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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.7 no.1-2 São Paulo  1996

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A exclusão no Ciclo Básico: uma pedagogia de aparências

 

The exclusion in the "Ciclo Básico": a pedagogy of appearances

 

 

Ivana Serpentino Castro Feijó; Marilene Proença Rebello de Souza

S.M. de Saúde de São Paulo e Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

A partir da intervenção junto a uma escola, as autoras desvendam algumas de suas práticas geradoras de repetência no Ciclo Básico da rede de ensino de 1º grau do Estado de São Paulo das quais destacam duas: 1) alunos que vieram transferidos de outra escola, na sua grande maioria, repetem de ano; 2) as classes, em sua composição, podem ser consideradas heterogêneas quanto ao número de repetências na história escolar de seus alunos, mas são tratadas como fracas e fortes; isto sim determina a expectativa de aprovação ou reprovação de seus alunos. O fracasso escolar parece estar longe de relacionar-se com a produção do aluno, apesar de sua incapacidade ser insistentemente usada como justificativa. Essa escola vive um "como se" de aparências que contrasta com suas práticas geradoras de repetência, postura essa afinada com a política educacional do Estado de "contornar" a questão do fracasso escolar, ao invés de superá-la.

Descritores: Fracasso escolar. Ensino de 1º grau. Ciclo Básico. Política educacional. Psicologia escolar.


ABSTRACT

The objective of this article is to contribute to a discussion about the school exclusion process of those students who attend the "Ciclo Básico" at the Public School System. From a school intervention praxis, two main causes are stressed as grounds of failure: 1) students tranfered from other schools generally fail in the current school; 2) classes are considered heterogeneous as to the number of repeating students, but in fact they are treated as "weak" or "strong" classes and this may determine the student's pass or flop expectations. School failure is bound to rely on very different causes from those claimed for as student's incapacity. Such a school has an "as if" attitude that contrasts with its own repeating practices. It is similar to Government Educational Policy concerned mostly with getting the problem around, instead of solving it.

Index terms: School failure. Elementary school. Public school. Educational policy. School Psychology.


 

 

"Comprometer-se com a desumanização é assumi-la
e, inexoravelmente, desumanizar-se também."

(Paulo Freire)

 

"Ivana, sabe o que meu pai disse? Que se eu passar de ano eu posso sair da escola e ir trabalhar!"

Essa frase foi uma das primeiras coisas ditas por Josevaldo ao ser perguntado sobre o que pensava a respeito da escola. Nada mais verdadeiro para esse menino de doze anos que desde os sete está desejando se alfabetizar e lutando por isso. Sua história escolar, assim como a de milhares de crianças de sua idade, é marcada por inúmeros episódios que, pouco a pouco, vão desmontando a crença em sua própria capacidade, destruindo sua auto-estima e fazendo com que todos os que o rodeiam acreditem "que sua cabeça não dá para o estudo".

Esta afirmação de Josevaldo permitiu-nos conhecer um pouco mais o lado trágico vivido no dia-a-dia das relações escolares de nossas crianças, principalmente as mais pobres, as negras, as que moram em casebres, as filhas de pais desempregados e sub-empregados. Ao contrário do que se imagina, Josevaldo considera seu maior prêmio sair dessa escola, alcançar o mundo, ir para a vida, como se esta não pudesse estar presente na escola. Para aquele que "foi convencido" pelo sistema escolar de que é incapaz e perdeu o interesse pela escola depois de sucessivas reprovações, a exclusão acaba sendo vista como o maior "prêmio".

Sabemos que poucas são as crianças das classes populares que se beneficiam da escola. Estudo apresentado por Ferrari (1985) afirma que das crianças que entram na escola metade é reprovada no primeiro ano de escolaridade. Dados do MEC (ver, A máquina que cospe crianças, 1991) confirmam que de cada 100 alunos que ingressaram no 1º grau em 1978, apenas 19 concluíram essa etapa em 1985 sem repetência. Segundo Ferrari (1985), as desigualdades educacionais são regionais, ou seja, as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam os maiores índices de analfabetismo e de não-permanência de crianças na escola. Essa realidade se expressa também nos municípios brasileiros, isto é, são as escolas mais pobres - as que atendem as crianças de favelas e cortiços - as que apresentam os maiores índices de retenção e a maior defasagem série-idade. Na região próxima à Cidade Universitária (S. P.) esses índices de retenção variam entre 50 e 78% na passagem do Ciclo Básico (CB)1 para a 3ª série do 1º grau, em escolas nas quais o usuário tem esse perfil. E é numa dessas escolas que estuda Josevaldo.

A situação de tantos "Josevaldos" aparece em análises estatísticas recentes, como a de Ribeiro (1992), segundo as quais uma criança repetente tem a metade da chance de ser aprovada quando comparada a uma criança ingressante.

Como trabalhar enquanto psicólogos essas questões com os educadores, imersos que estão numa instituição onde, como afirma Patto (1990), tudo conspira contra a possibilidade de professores e alunos viverem situações diárias de contentamento, de melhora da auto-estima e de confiança na própria produção?

Partimos da concepção de que crianças e professores trazem para as relações escolares a sua história de vida e suas diferentes estratégias de resolução de problemas e de enfrentamento de desafios exigidos pela relação escolar. Essa relação implica na presença de aspectos afetivos e cognitivos, mas não podemos restringir as relações escolares, simplesmente, à influência de dificuldades emocionais e cognitivas individuais adquiridas e vividas fora da escola, por alunos, professores ou pais. A produção da repetência e dos problemas de aprendizagem tem sua origem nos processos de escolarização, na maneira como alunos e professores constróem o dia-a-dia escolar, nas práticas educacionais vigentes, nas concepções que os educadores têm da criança pobre, do negro, na crença (ou descrença) nas possibilidades de aprendizagem de seus alunos e na capacidade de ensinar de seus professores (Patto, 1990). É a partir desta concepção do fracasso escolar que o desvelar da vida diária escolar adquire significado como ação que propicia espaço de crítica e de movimento, possibilitando novas formas de relação da escola com sua clientela, em geral, e do professor com o aluno, em particular.

Procurando contribuir um pouco mais para a compreensão dos processos que se fazem presentes na vida diária escolar, acompanhamos algumas classes de Ciclo Básico de uma escola estadual de primeiro grau que atende crianças de um bairro periférico da cidade de São Paulo, o que nos permitiu conhecer alguns novos aspectos da trajetória dessas crianças no labirinto da escolarização, onde a saída, para a maioria delas, é a exclusão da escola.

 

MONTANDO O GRUPO DE AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS

Em 1994, o trabalho desenvolvido na escola tinha como tarefa discutir a respeito das crianças que não se alfabetizavam, tendo sido realizado um grupo de avaliação com elas e um grupo com as professoras, onde se planejaria essa avaliação e onde pudessem ser discutidos seus resultados.

É importante ressaltar que fazer um grupo de avaliação das crianças para abordar a questão da multirepetência pode parecer, à primeira vista, incompatível com os princípios teóricos que norteiam a nossa compreensão de tal questão, pois essa proposta aparentemente desloca para a criança a causa do fracasso escolar. Mas efetivamente tal grupo de avaliação, longe de ter como objetivo mostrar o que a criança não sabia, propôs-se, ao contrário, a ser um espaço onde crianças que durante um ano e meio de trabalho nessa escola foram objeto de discussão pudessem revelar-se para além do discurso das professoras. O grupo com professoras pretendia ser um lugar no qual pudéssemos iniciar uma reflexão sobre suas práticas institucionais tendo em vista compreender seus aspectos perniciosos e tentar recuperar o caráter transformador da aprendizagem.

Por outro lado, esta forma de intervenção exige aproximação do dia-a-dia da escola, de suas grandes questões, do desenrolar dos acontecimentos ao longo do tempo, para que se possa entender e fazer perceber como se constrói ali o fracasso escolar. O processo de organização do grupo de crianças e sua realização possibilitaram essa aproximação.

Formamos um grupo com professores do CB, tendo como tarefa a montagem do grupo de avaliação das crianças. Iniciamos pelo levantamento dos alunos que os preocupavam e pela recuperação de sua história escolar, do ano de entrada na escola, de seus ex-professores; levantamos a queixa e as hipóteses do professor sobre a causa do fracasso escolar de cada criança citada. Ou seja, foram levantadas as histórias escolares, as queixas e as hipóteses a respeito de nove crianças.

Observamos de imediato que todas as queixas giravam em torno de problemas de aprendizagem: as crianças esquecem o que a professora acabara de ensinar; são desligadas; sem interesse; copiam mas não lêem; não copiam certo ou não copiam tudo o que a professora manda; muitos são esforçados e com boa coordenação motora, mas não se alfabetizam. A escola pedia uma avaliação psicológica que confirmasse, na forma de diagnóstico, as hipóteses dos professores e da coordenação sobre as causas do fracasso escolar dessas crianças.

As hipóteses levantadas pelos professores para a não-alfabetização nunca se relacionavam com aspectos escolares, seja da estrutura escolar, seja da unidade escolar ou da sala de aula, mas giravam em torno, basicamente, de causas clássicas presentes na literatura especializada: problemas familiares; afetivos (seja por a mãe ser "louca", o pai "ter se enforcado", o pai "bater muito", ou "cada filho ser de um pai" etc.); problemas sócio-econômicos (os pais não tem recursos para manter seus filhos, comprar material, cuidar da saúde, dar boa alimentação e/ou não são alfabetizados, não podem ensinar seus filhos, não valorizam o estudo); laços de parentesco (o fato de uma criança ter apresentado dificuldades de aprendizagem é justificado pela história de repetência de outras crianças da família)2; desnutrição e problemas neurológicos (Moysés & Lima, 1983).

A compreensão dos professores acerca do fracasso escolar excluía qualquer participação da escola, localizando nos indivíduos - alunos e suas famílias - a causa do fracasso escolar, confirmando mais uma vez o que as pesquisas na área vêm enfatizando a respeito dessa questão (Patto, 1990; Collares, 1995). Justapõem-se no discurso do professor, como numa colcha de retalhos, os diversos tipos de explicações sobre as causas do fracasso escolar construídas ao longo desse século, explicações que têm em comum um único aspecto: afirmar a incapacidade do aluno.

 

REPETÊNCIA E EXCLUSÃO NO CICLO BÁSICO

Na realização da tarefa de recuperar a história escolar desses alunos, as listagens das classes especificando a data de nascimento da criança e a data de ingresso naquela escola mostraram-se um importante documento. Através delas tivemos acesso à defasagem série-idade no Ciclo Básico, que permite afirmar que embora o Ciclo Básico não admita a repetência, tendo abolido a seriação, esta existe, pois encontramos crianças com até sete anos de permanência no CB. Assim sendo, na análise que se segue chamaremos de repetência a permanência do aluno no Ciclo Básico3 por mais que os dois anos previstos neste Ciclo.

Analisando os números da Tabela 1, podemos constatar que 55,6% das crianças do CB-C têm dois anos de escolaridade (ou seja, não repetiram nenhum ano) e 44,4% têm uma repetência ou mais repetências, ou seja, permanecem no CB-C mais que dois anos, dos quais 20,5% têm duas repetências ou mais, ou seja, estão no CB de quatro a sete anos.

 

 

É importante salientar que esse perfil do Ciclo Básico já é resultado de uma ação, no ano anterior, da Direção junto às professoras, por pressão da Delegacia de Ensino, no sentido de que a escola "tomasse uma providência" para reduzir a repetência. A decisão tomada foi a de promover os alunos do CB-C para a 3ª série (Tabela 2), na qual, porém, repetem a programação de CB-C, o que cria a ilusão de que a reprovação no Ciclo Básico diminuiu nessa escola.

 

 

Apesar dessa aprovação maciça, ainda assim permaneceram no CB-C vinte e nove crianças com mais de uma repetência, das quais vinte e duas tinham perspectiva de reprovação em 1994. Analisando a trajetória desses multirepetentes na escola verificamos que onze deles, que concentravam maior número de repetências, viviam o impasse de estar num CB-C com programação de CB-I, de modo que a escola criava a ilusão de que o progresso escolar acontecia. Como crianças trabalhadas em nível de CB-I não passam para a terceira série, estas crianças acumularão mais uma repetência. Dessa forma, vai-se formando um sistema paralelo de séries: terceiras séries que são CB-Cs, CB-Cs que são CB-Is.

Trabalhamos não só com a repetência já ocorrida, mas também com a expectativa de reprovação, através da listagem, feita pela professora, dos alunos que ela acredita que passarão ou não de ano4. Esse aspecto foi ponto importante de nosso trabalho, pois permitiu-nos tratar da repetência potencial, e esta sim poderia ser repensada e evitada. Ao levantarmos as previsões de aprovação para 1994 no CB-C constatamos que havia uma projeção de 41% de reprovação.

Pudemos confirmar também que quanto maior o número de repetências da criança, maior a probabilidade de reprovação. Nesta escola, as crianças sem repetência têm uma porcentagem de 72% de aprovação; com uma repetência tal número cai para 59%; com duas repetências só 25% são aprovadas; com três repetências parece que como última chance 37% são aprovadas, porque daí para a frente terminam as possibilidades de aprovação, conforme mostra o Gráfico 1. Esses dados referendam pesquisa anterior que chama atenção para a instalação de uma "pedagogia da repetência", segundo a qual refazer o ano letivo supostamente seria benéfico para o aluno, o que não se confirma na realidade da sala de aula (Ribeiro, 1992).

 

 

TRANSFERÊNCIA E EXCLUSÃO NO CICLO BÁSICO

Outra constatação importante possibilitada pelos dados levantados no processo de montagem do grupo de avaliação refere-se à relação entre história de transferência escolar e expectativa de reprovação.

O que pudemos perceber é que as crianças transferidas têm maior porcentagem de reprovação, no ano da transferência para a nova escola, muito embora crianças transferidas no ano anterior tenham aumentada sua porcentagem de aprovação em 1994 (Gráfico 2).

 

 

É importante ressaltar que as crianças com história de transferência, nessa escola, são muitas (68 das 142 crianças que freqüentam o CB-C, ou seja, 49%), o que torna este fato atuante na produção do fracasso escolar. O Gráfico 3 mostra como as crianças com história de transferência participam dos índices de repetência dessa escola.

 

 

Os gráficos 4 e 5 mostram que mais da metade das crianças que se transferiram para essa escola não tinha história pregressa de repetência, no ano em que se transferiram.

 

 

 

 

Os professores e a direção tentam explicar os altos índices de reprovação entre as crianças transferidas alegando que a escola anterior cursada pela criança era fraca, mesmo quando a desconhecem.

 

FORMAÇÃO DE CLASSES E EXCLUSÃO

No início do ano de 1994, as crianças foram remanejadas pelas quatro classes de CB-C. Quais foram os critérios de remanejamento?

Embora no projeto original do Ciclo Básico a seriação tenha sido abolida e a concepção da aprendizagem como um processo contínuo tenha sido adotada oficialmente, na prática escolar a composição das classes obedece a critérios que reintroduzem a idéia de seriação e definem os conteúdos que serão trabalhados pelo professor.

As professoras falam de classes "mais fortes" e "mais fracas"; existe uma divisão interna que é conhecida e explicitada por elas em várias ocasiões, que nomearemos como "forte", "meio-forte", "meio-fraca" e "fraca"5. As crianças encaminhadas para o grupo de avaliação eram crianças da classe "fraca" e da classe "meio-fraca".

Fazendo o levantamento de crianças por número de repetências, surpreendeu-nos perceber que o perfil das classes "forte" e "fraca", quanto ao número de repetências das crianças, não era tão diferenciado. Sem dúvida, a classe "fraca" concentrava crianças com mais de três repetências, mas nela estavam também muitas crianças sem nenhuma repetência. As classes "forte" e "meio-forte" concentram mais crianças sem repetência e assimilam crianças com até duas repetências, mas podemos observar que a classe "meio-forte" tem mais crianças sem repetência e menos crianças com duas repetências do que a classe "forte". A classe "meio-fraca" só difere da "forte" por assimilar algumas crianças com três repetências, que representam 8% da classe. A classe "fraca" assimila as crianças com quatro e cinco repetências (constituindo 32%, ou seja, 1/3 da classe), o que reduz a porcentagem de crianças sem repetência, mas não as separa das multirepetentes, o que nos permite dizer que a composição das classes é heterogênea.

O critério de diferenciação entre as classes é menos o perfil dos alunos do que o do professor: o fato do professor ser considerado "forte" é que define sua classe como "forte". Nesta escola, confirmando uma tendência já notada por outras pesquisas, ao professor novo é atribuída a classe "fraca". A professora que lecionara para a classe "fraca" no ano anterior, em 1994 estava com a "meio-fraca", o que permite supor a existência de um mecanismo de atribuição de classes e de "promoção" interna dos docentes que também rotula os professores6.

De alguma forma, repete-se com o professor o mesmo mecanismo que é produzido com os alunos transferidos. O professor que "vem de fora", que não pertencia até então ao corpo docente da escola, é visto como mais fraco do que seus pares. Embora a sala de aula sob sua responsabilidade não difira substancialmente das demais, espera-se a reprovação de todas as crianças.

Apesar de ter havido uma preocupação da Direção em montar classes heterogêneas7, as professoras continuaram a designá-las como "fortes" e "fracas", de modo que o efeito final da iniciativa de formar classes heterogêneas foi perverso: os 68% de crianças da classe "fraca" que não têm repetência, ou têm uma ou duas repetências - ou seja, que têm um perfil semelhante ao das classes "fortes" - repetirão de ano, pois é essa a classe que, apesar de ser um CB-C, trabalha com programação de CB-I e assim as crianças ficam impossibilitadas de aprender conteúdos que são pré-requisito para cursar a 3ª série - ou passarão para uma 3ª série "falsa", uma 3ª série com conteúdo de CB, que acomoda uma situação insustentável de 68% de retenção no ano anterior.

É importante salientar que as crianças transferidas em 1994 concentram-se nas classes "fraca" e "meio-fraca": das 42 crianças transferidas em 1994, 30 estão nas classes "fraca" e "meio-fraca", ou seja 73%; das 12 que foram para as classes "forte" e "meio-forte" 9, ou seja, 75% serão reprovadas. Nessa escola, tanto as crianças transferidas como as professoras removidas são colocadas em lugares onde se espera pouco de seu rendimento, seja pela inclusão desses alunos em classes "fracas", seja pela baixa expectativa em relação à capacidade de ensinar e aprovar dessas professoras.

 

REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS OBSERVADOS NA ESCOLA

Além de termos confirmado a presença nesta escola de mecanismos de exclusão escolar já registrados na literatura educacional, verificamos que a transferência e o processo de formação de classes são geradores de repetência nessa escola. A transferência, um procedimento corriqueiro na vida escolar, principalmente de famílias migrantes em busca de instalação nos bairros da periferia, é motivo de reprovação maciça desta escola. Como explicá-lo? Uma modalidade de xenofobia escolar, que se manifesta não só em relação aos alunos, mas também aos próprios professores "estrangeiros"? Alguns depoimentos das professoras sugerem a existência de pressupostos de má qualidade, seja do ensino das escolas de origem, seja dos alunos transferidos, seja dos professores removidos, o que se concretiza nos lugares que lhe são oferecidos dentro da escola: as classes "fracas". Os dados sobre a relação série-idade não confirmam a suposição dos educadores: a maioria das crianças transferidas não apresenta nenhuma repetência escolar anterior à transferência. A repetência acontece, pela primeira vez, nesta escola. Os professores removidos, por sua vez, têm aproximadamente 10 anos de experiência profissional e participação em treinamentos oferecidos pelo Estado, perfil semelhante aos de outros professores da casa considerados "fortes".

O outro mecanismo de exclusão escolar, relacionado com a composição das classes, faz com que alunos sejam considerados "fortes" e "fracos", não por sua capacidade de aprendizagem ou seu rendimento escolar, mas por terem sido incluídos em classes "fortes" ou "fracas", estereótipos a partir dos quais as crianças são vistas, que determinam os conteúdos que lhe serão ensinados e aumentam ou diminuem suas possibilidades de aprovação.

Aspectos decisivos do destino escolar extrapolam a produção dos alunos e situam-se em práticas produzidas pela própria escola, tais como as histórias de transferência, as repetências anteriores, as expectativas de reprovação e os remanejamentos. O fracasso escolar dessas crianças, portanto, está longe de poder ser tratado, simplesmente, como "problema de aprendizagem" individual. Nesse processo, a produção dos alunos passa a ser secundária enquanto indicador de aprendizagem, pois os critérios de avaliação são de outra natureza (passam por outros lugares da instituição).

Os dados colhidos revelam que a escola cumpriu as exigências burocráticas da Delegacia de Ensino, criando classes heterogêneas e diminuindo os índices de reprovação, formando uma 3ª série "falsa"; nada mudou que favorecesse o processo de escolarização das crianças; ao contrário, manteve-se ou agravou-se o quadro anterior. Prevalece o aspecto formal: é importante que a escola pareça estar funcionando bem, seja com menores índices de reprovação, seja com o caderno bonitinho, independentemente de estar alcançando os objetivos para os quais foi criada. O que menos importa é o nível de aprendizagem dos conteúdos escolares que ela está efetivamente proporcionando.

Na fala das professoras, muitas vezes práticas como os remanejamentos, por exemplo, são justificadas pela preocupação com o aluno. Há professoras que justificam a reprovação de um aluno como recurso para que ele passe mais tarde para uma classe forte. Tais iniciativas individuais das professoras via de regra são calcadas em argumentos a favor da criança, mas são engolidas por formas de funcionamento da instituição, não tão imediatamente visíveis, que geram repetência.

Analisando a trajetória escolar dessas crianças pudemos explicitar diferentes critérios para promoção para a terceira série, a dificuldade de critérios comuns para avaliar os trabalhos das crianças, a concepção mecanicista de aprendizagem, a concepção de erro como "câncer da aprendizagem".

Além disso, foram levantados pontos de estrangulamento no fluxo escolar dos alunos: a repetência que gera repetência; a transferência que gera repetência; o remanejamento que gera repetência; a organização das classes que gera repetência; a criação do CB-C que é CB-I; a falsa terceira série.

A necessidade de parecer eficiente, tema recorrente nessa escola, é uma versão local de uma política pedagógica mais ampla estruturada no ensino público estadual paulista, que tenta mascarar a repetência que as escolas geram o tempo todo. O projeto do Ciclo Básico traz na sua origem o objetivo burocrático de contornar os altos índices de evasão e repetência nas séries iniciais. O verbo contornar significa "dar a um problema uma solução imperfeita, ou de emergência, por falta de meios para boa solução". A proposta do Ciclo Básico não leva em conta as causas fundamentais da produção do fracasso escolar, não enfrenta os problemas de fundo da educação escolar de 1º grau no estado de São Paulo, que são basicamente dois: o pouco investimento financeiro na área (Helene, 1994) e a crença dos educadores na incapacidade de aprendizagem das crianças das classes populares (Patto, 1990).

Após treze anos de implantação do CB, os responsáveis pela política educacional vêm desconsiderando pesquisas que desvelam aspectos ocultos desta proposta (veja, p. ex., Cruz, 1994) e dão continuidade à produção de repetência e exclusão de milhares de jovens da educação básica no Estado de São Paulo. Os "filhos do Ciclo Básico" não são mais crianças e sim adolescentes que, via de regra, não acreditam mais nem na sua capacidade de aprender, nem na escola.

- "Ivana, sabe o que o meu pai disse? Que se eu passar de ano eu posso sair da escola e ir trabalhar!"

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLARES, C.A.L. O cotidiano escolar patologizado: espaço de preconceitos e práticas cristalizadas. São Paulo, 1995. Tese (Livre Docência) - Universidade Estadual de Campinas.         [ Links ]

CRUZ, S.H.V. O ciclo básico construído pela escola. São Paulo, 1994. 187p. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

FERRARI, A. Analfabetismo no Brasil: tendência secular e avanços recentes. Cadernos de Pesquisa, v.52, p.35-49, fev.1985.         [ Links ]

HELENE, O. Qual a saída para a crise escolar brasileira? Revista Universidade e Sociedade, v.4, n.7, p.19-26, jun.1994.        [ Links ]

KALMUS, J.; PAPARELLI, R. Para além dos muros da escola: as repercussões do fracasso escolar na vida das crianças reprovadas. São Paulo, IP-USP, 1992. (Relatório apresentado à FAPESP atendendo aos requisitos para bolsa de Iniciação Científica)        [ Links ]

A MÁQUINA que cospe crianças. Veja, v.24, n.1209, p.46-8, nov.1991.        [ Links ]

MOYSÉS, M.A.A.; LIMA, G.Z. Desnutrição e fracasso escolar: uma relação tão simples? Revista ANDE, v.1, n.5, p.57-61, 1983.        [ Links ]

PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1990.         [ Links ]

RIBEIRO, S.C. A pedagogia da repetência. Estudos Avançados, v.5, n.12, p.7-21, 1992.        [ Links ]

ROSENTHAL, R.J.; JACOBSON, L. Expectativas de professores com relação aos alunos pobres. In: A ciência social em um mundo em crise: textos do Scientific American. São Paulo, Perspectiva / EDUSP, 1973. p.199-204.        [ Links ]

 

 

1 O Ciclo Básico é um projeto implantado pela Secretaria Estadual de Ensino, desde 1984, cuja proposta pedagógica inclui num ciclo de dois anos as anteriores primeira e segunda séries do primeiro grau, visando "contornar" os altos índices de evasão e repetência nas séries iniciais (Cruz, 1994).
2 Fato semelhante é observado por Kalmus e Paparelli (1992) em pesquisa com quatro crianças multi-repetentes. A "estigmatização familiar" faz parte da história escolar de Rildo, um dos casos estudados.
3 Embora em sua proposta original elimine a seriação, o Ciclo Básico a mantém na prática, através da criação de classes como o CB-I (Ciclo Básico Inicial) e CB-C (Ciclo Básico em Continuidade). No CB-I estão os alunos que ingressam na escola, aos quais são oferecidos conteúdos pedagógicos que correspondem à 1ª série do 1º grau. No CB-C estão os alunos que cursam pelo segundo ano o CB, mas que não necessariamente cumpriram os conteúdos do CB-I e que só são promovidos para a 3ª série depois de aprenderem os conteúdos do CB-C. Como conseqüência, muitos permanecem durante vários anos nessa categoria, como mostraremos a seguir.
4 A relevância do tema da expectativa dos educadores em relação aos alunos pobres foi apresentada no importante estudo realizado no final dos anos 60 por Rosenthal e Jacobson (1973).
5 Entre as professoras, as designações de "classe forte" e "classe fraca" são explicitamente utilizados e os "meio-forte" e "meio-fraco" subentendidas.
6 Observação nesse sentido foi apresentada por Patto (1990) quando da análise do funcionamento de duas salas de aula, uma considerada "forte" e outra "fraca", o que lhe permitiu concluir que "as decisões sobre aprovação/reprovação passam, portanto, por critérios que não a qualidade do rendimento." (Patto, 1990, p. 264).
7 Vários trabalhos de pesquisa enfatizam o mito das classes homogêneas; neste trabalho observamos o mito das classes heterogêneas.