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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte Dec. 2010

 

 

O sonho de angústia e a teoria da sedução generalizada

 

The anguish dream and the generalized seduction theory

 

 

Henriqueta Lúcia de Arcoverde Melo I,II1; Fernando Cézar Bezerra de Andrade I,III2; Hélida Magalhães da Costa Lima I,III3

ISociedade Psicanalítica da Paraíba
IICentro universitário de João Pessoa
IIIUniversidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta e discute um caso clínico marcado pelo caráter repetitivo de sonhos de angústia, entendidos, na perspectiva da Teoria da Sedução Generalizada, de Jean Laplanche, como expressão de esforços de metabolização de mensagens enigmáticas implantadas (quiçá, mesmo, intrometidas) no psiquismo da paciente a partir da relação com as figuras parentais. Desse modo, a evolução do caso sugere uma gradual perlaboração psíquica, através da situação analítica, em que se criam condições não só para a emergência e análise de material inconsciente, mas, inclusive, para sua produção no contexto transferencial.

Palavras-chave: Psicanálise, Caso clínico, Sonho, Angústia, Teoria da sedução seneralizada.


ABSTRACT

This paper presents and discusses, from the perspective of the Generalized Seduction Theory, by Jean Laplanche, a clinic case marked by the repetitive nature of anguish dreams, understood as an expression of efforts to translate enigmatic messages implanted (or perhaps even intruded) into the patient's psyche by the relationship with the parental figures. Thus, the evolution of the case suggests a gradual psychic work through the analytic situation, which creates conditions for the emergence and analysis of unconscious material and its production in the context of transference.

Keywords: Psychoanalysis, Clinic case, Dream, Anguish, Generalized seduction theory.


 

 

O tema das Journées Jean Laplanche 2010, ocorridas em julho, em Dijon, França, sobre a metapsicologia do sonho, remeteu-nos a um caso clínico (MELO, 2006), cujo início foi marcado pelo caráter repetitivo de um sonho de angústia em que, para além da realização do desejo infantil, fez-se patente a tentativa de tradução/metabolização de mensagens enigmáticas implantadas, senão intromissoras, na relação com os pais.

 

O caso clínico

Cristina, dezenove anos, bonita e coquete, extremamente abatida, com voz entrecortada e visível constrangimento, enumerava, na primeira sessão, os seus sintomas. Achava-se inibida, passiva, pessimista. Fracassara nos estudos, fora reprovada quatro vezes. Sentia-se gorda, com seios grandes, embora aparentasse uma silhueta normal. Aos treze anos, depois de um regime severo, recebeu o diagnóstico de anorexia nervosa. Embora muito assediada, tinha dificuldade de namorar.

Mas seu maior problema era um sonho recorrente de angústia, de ameaça de possessão demoníaca, que vinha desde os dez anos. Havia períodos em que o sonho se fazia esporádico. Mas, à época das primeiras entrevistas, acontecia duas a três vezes por semana.

Tudo começou quando assistiu ao filme "O Exorcista". A cena que mais a impressionou e que associa ao seu pesadelo foi a da menina se debatendo, e a cama balançando. Sua mãe, espírita, levou-a para tomar "uns passes". Também consultou médicos e usou tranquilizantes.

No sonho, estava dormindo de barriga para cima, e um demônio tentava penetrála pelo abdômen. Angustiada, debatia-se e lutava para impedir a penetração. Acordava suada, cansada, com dores no corpo, a cama em desalinho. "Parece ter acontecido na realidade" comentava com expressão de dor. Mais nova, gritava, e chorando, ia para a cama dos pais. A partir dos treze anos, deixou de ir. Mas perdia o sono e, no dia seguinte, sentia-se extenuada, deprimida, sem ânimo para acompanhar as aulas. Cada vez mais temia dormir. Mesmo quando não sonhava, acordava várias vezes na noite.

No início, quando não havia nada além do sonho de possessão para relatar, as sessões eram marcadas por longos silêncios angustiados, interrompidos por perguntas sobre a análise e a analista. Raramente falava de sua história e do cotidiano numa família que incluía os pais, um irmão seis anos mais velho e uma irmã cinco anos mais nova. O pedido à analista para que a "exorcizasse" de seus sonhos foi diminuindo à medida que a possessão onírica foi ganhando novas configurações, indicativas de um trabalho de elaboração. Quando começou a estabelecer algum tipo de relação entre o sonho e seus desejos sexuais, as lembranças infantis apareceram.

Por volta dos sete anos viu a cena primitiva. Ouviu um barulho no quarto dos pais e entrou sem bater. Em outra ocasião, surpreendeu-os despidos, deitados na cama. Sentou-se na barriga do pai e brincou de "cavalinho". Outra vez, tendo encontrado o pai despido, calçando as meias, tentou sentar-se no seu colo, mas ele a mandou sair. Na infância, todos tomavam banho juntos. Quando a família viajava para a terra natal de seus pais, não raro a mãe e os irmãos ficavam hospedados na casa da avó materna e ela dormia na cama com o pai, na casa da mãe dele. Referia jogos sexuais com o irmão.

Já mocinha, detestava quando o pai bebia e ficava mais desinibido e afetivo. Foi numa dessas ocasiões que, depois de a mãe recusar o convite do marido para dançar, foi dançar com ele, por pena. Sentir o pênis dele roçando em sua coxa foi perturbador.

A atualização da fantasia recorrente no sonho aconteceu na sessão em que foi para o divã. Não chegando a deitar-se completamente, deu um pulo e voltou para a poltrona. Foi como se o demônio que, nos sonhos, começava a tomar a forma de uma mulher, estivesse à espreita.

Tomada de angústia, pálida, referiu um imenso mal-estar, semelhante ao que sentia no sonho. Mal conseguiu colocar em palavras o que viveu. Deitar de costas parecia atualizar tanto a virulência do ataque pulsional, quanto a da retaliação de um superego sádico.

Na repetição transferencial, a mãe intrusiva e castradora poderia atacá-la, em revide à sua secreta hostilidade. Se o divã se tornou, desde então, um objeto fóbico, para o qual mal conseguia olhar, também lhe permitiu suportar, na atualização transferencial, a proximidade materna. Gradativamente, os conflitos passaram a ser expressos através de uma rede mais ampla e elaborada de associações e simbolizações.

A cena do filme "O Exorcista" constituiuse num segundo tempo, em que as mensa-gens enigmáticas de toda uma infância foram ressignificadas après-coup. O conteúdo aterrorizante do sonho e seu caráter repetitivo apontam para a dificuldade de metabolização dessas mensagens. A repetição transferencial, no entanto, constituiu-se na possibilidade de uma integração dessas vivências conflituosas.

 

Sobre o sonho de angústia a partir da teoria da sedução generalizada

No capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", Freud (1900/1980) argumenta que o sonho de angústia não contradiz a teoria do sonho como "realização de desejo". Na verdade, haveria nesses sonhos uma falha no processo de censura e o desejo proibido far-se-ia mais transparente. E, então, o que seria prazer para a instância inconsciente, apareceria como desprazer para o eu, sob a forma de angústia. Diferentemente do sintoma, no qual o retorno do recalcado estabeleceria uma formação de compromisso com a instância recalcadora, aqui, na falta dessa formação de compromisso, a angústia expressar-se-ia mais livremente.

Se analisarmos o sonho de angústia na perspectiva da Teoria da Sedução Generalizada (LAPLANCHE, 1988), porém, a orientação ptolemaica de um inconsciente que precede a consciência, um inconsciente inato, muda de sentido. As mensagens enigmáticas do adulto, imantadas de sexualidade inconsciente, serão traduzidas e seus restos constituirão o recalcado originário, núcleo do inconsciente. Como compreender, então, dessa perspectiva copernicana, o sonho de angústia?

Poder-se-ia lembrar, com Freud (1923 [1922]/1980) que o que foi outrora tomado como possessão demoníaca foi, depois das "luzes", simplesmente entendido como manifestação histérica. A possessão seria simplesmente a projeção, sobre o demônio, do demoníaco próprio aos desejos proibidos existentes dentro de cada um. A origem desses desejos, porém, não será questionada.

A cena do filme "O Exorcista", que dá forma ao sonho, caracteriza-se pelo excessivo da reação. Não se trata da reação de uma menina: a ideia de possessão faz-se verossímil. Ora, em vez de uma projeção, a cena não remeteria, antes, ao excessivo das mensagens parentais? À dificuldade de traduzi-las? Nesse sentido, a paciente não teria razão? "Destraduzi-las" primeiro, assumir depois o próprio desejo, separando-o do enigmático das mensagens dos pais, durante o processo analítico, em vez de aumentar, diminuiu a angústia e pôs fim ao pesadelo. Era então o próprio desejo que se projetava no demônio, ou essa estranha mistura pela qual o desejo próprio e o desejo dos outros se confundem? Poderse-ia até pensar que assumir o próprio desejo funcionou como um contrainvestimento ao enigmático do desejo dos pais.

A forma de possessão demoníaca deste sonho convida-nos a questionar a teoria freudiana do sonho como, necessariamente, uma realização de desejo. À luz dos desenvolvimentos da Teoria da Sedução Generalizada, que propõe, como um de seus postulados centrais, na origem do psiquismo, a constituição de enigmas instalados no coração do inconsciente, resultantes da impossibilidade de tradução de mensagens sexuais do outro, há que se perguntar se a dificuldade de traduzir e, consequentemente, de metabolizar não será o fator comum a todos os sonhos de angústia.

Admitindo-se a hipótese pela qual os sonhos de angústia são produções oníricas mais próximas desses enigmas fundadores, constituindo-se em tentativas menos bem-sucedidas de sua tradução que ganham novo endereçamento no enquadre clínico, no contexto do caso aqui considerado pode-se supor que o settinganalítico criou condições para que a esperada tradução ocorresse - em razão daquilo que defende Laplanche acerca da situação clínica, entendida como uma atualização da situação antropológica fundamental, capaz, portanto, de promover traduções que, na atualidade da transferência, contribuam para a perlaboração de conteúdos inconscientes (portanto, psiquicamente sempre presentes) que aparecem no sonho.

Prova disso é que Cristina pode iniciar seu processo de tradução do enigma sexual implícito em seu sonho repetitivo, justamente quando a matriz do enigma ameaçou irromper no setting, quando se deitou no divã. O salto para fora do divã registra o susto da invasão do eu por esse corpo estranho interno, o que desperta a angústia, e o demônio ganha forma de mulher - como a própria analista.

Com as intervenções respeitosas e acolhedoras da psicanalista, ao invés de repetir-se a situação traumática (impossível de suportar), permitiu-se experimentar sentimentos de um continente psíquico forte o suficiente para garantir a divisão psíquica e, com isso, o recurso egoico ao recalque - com ele, também a perlaboração.

 

Considerações finais

Como indica Laplanche em "A tina" (1993) e em "Rêve et communication" (2006), há que considerar os sonhos de angústia como esforços malsucedidos de tradução de enigmas inconscientes que, quando no contexto clínico, podem encontrar condições, pela transferência, para uma metabolização mais eficaz, dada a atualização da situação antropológica fundamental.

Para Cristina, foi essencial encontrar, no mesmo espaço clínico, tanto os demônios internos, associados pouco a pouco a seus desejos eróticos (traduzidos, portanto, pela via manifestamente sexual, não como necessidade, mas como alternativa); quanto a "exorcista" que garantiria, na transferência, limites à angústia inerente ao enigma. Suportar essa angústia manifesta nos sonhos, pois, é condição de perlaboração que se alcança no enquadre transferencial e clínico.

 

Referências        [ Links ]

_____. Uma neurose demoníaca do século XVII (1923 [1922]). In: _____. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIX, p.91-133.         [ Links ]

LAPLANCHE, J. Teoria da Sedução Generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.         [ Links ]

_____. A tina. A transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1993.         [ Links ]

_____. Rêve et communication. Faut-il réécrire le capître VII? In: _____. Sexual. La sexualité élargie au sens Freudien. Paris: Presses Universitaires de France, 2006, p.51-78.         [ Links ]

MELO, H. L. de A. Uma neurose demoníaca no século XX: fragmentos do início de uma análise. Psicanalítica, Recife, ano 4, n. 4, Recife, p.37-58, out. 2006.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Álvaro de Carvalho, 320 – Tambauzinho
58.042-010 – João Pessoa/PB
Fone: (83)3224-2504
E-mail: henriquetaarcoverdemelo@hotmail.com

Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 12/11/2010

 

 

1 Psicanalista e sócia fundadora da Sociedade Psicanalítica da Paraíba – SPP; mestre em Psicologia Social - UFPB; professora do Centro Universitário de João Pessoa.
2 Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba; doutor em Educação – UFPB; professor do Departamento de Fundamentação da Educação da Universidade Federal da Paraíba.
3 Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba; mestre em Psicologia Social-UFPB; mestre em Psicologia Clínica, Psicopatologia e Psicanálise pela Université René Descartes, Paris V – Sorbonne; professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba.

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