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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.20 Canoas Dec. 2004

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Adolescência em pacientes portadores de fibrose cística

 

Adolescent patients with cystic fibrosis

 

 

Kátia Bones Rocha1,I; Mariana Calesso Moreira2,II; Viviane Ziebell de Oliveira3,III

I PUCRS
II Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP)
III Hospital de Clínicas de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A adolescência é um período do desenvolvimento acompanhado de importantes mudanças na esfera física, psicológica e social, caracterizando-se como um momento de transição para a vida adulta. A presente pesquisa investigou algumas repercussões que uma doença crônica como a fibrose cística possui dentro deste processo. Para tanto, foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com três adolescentes portadores da doença, buscando compreender suas percepções acerca da puberdade e entrada na adolescência, bem como os reflexos nos planos para o futuro e adesão ao tratamento. A partir disso, pode-se perceber que os participantes apresentaram dificuldades em relação à sexualidade, processo de aquisição da autonomia e independência, relacionamento com os pares e adesão ao tratamento. O jovem, com a entrada na puberdade, percebe as limitações impostas pela doença, existindo, a partir disso, dois movimentos: os que conseguem buscar alternativas em direção a vida adulta, aceitação da doença e do tratamento, adquirindo uma relativa autonomia e outros que não são capazes de transpor as barreiras impostas pela doença crônica. Estes se conservam dominados pelo sentimento de imobilidade, determinado pela manutenção dos vínculos infantis de dependência.

Palavras-chave: Adolescência, Fibrose cística, Adesão ao tratamento.


ABSTRACT

Adolescence is a period of development acompanied by important psychological, social and physical changes. This moment is a transition to adulthood. The present research investigates some repercussions a chronicle disease as the cystic fibrosis has in this process. Semi-directive interviews were realized with three adolescents with cystic fibrosis to understand theirs perceptions about puberty, and their future planning and treatment adherence. From this, we can perceive that the participants present difficulties with their sexuality, autonomy, independence, social relationships and treatment adherence. When adolescence starts, the young perceives the limitation that comes with the disease, and two different movements appear: adolescents who succeed at geeting alternatives in direction of adult life, acceptance of the pathology and the treatment and get a relative autonomy, and those who feel immobilized, with childlike links of dependence.

Key words: Adolescence, Cystic fibrosis, Treatment adherence.


 

 

Introdução

A adolescência é um período caracterizado por importantes mudanças físicas, psicológicas e sociais, que levam o adolescente desenvolver-se em direção ao mundo adulto (Bee, 1997; Mussen, Conger, Kagan, Huston, 1988; Moreira, 2003; Steinberg, 1993). As peculiaridades desta etapa evolutiva, sua expressividade e as manifestações comportamentais e adaptativas variam, dependendo do momento histórico e da sociedade em questão (Dusek, 1996; Kimmel & Weiner, 1998). Desta forma, a adolescência configura-se como um período possivelmente turbulento e de grande crescimento individual (Bee, 1997; Kimmel & Weiner, 1998).

Este processo é demarcado pela puberdade, através das modificações corporais que ocorrem nesta etapa, principalmente, no que se refere à maturação sexual. Tais modificações habilitam fisiologicamente o jovem para a reprodução. Assim, a entrada na adolescência tem como marco as mudanças biológicas, porém a conclusão deste período se dá a partir de fatores individuais e sociais (Bee, 1997; Blos, 1995; Osório, 1989; Steinberg, 1993). Frente a este contexto, ocorrem também importantes alterações emocionais, as quais são vivenciadas de forma muito peculiar por cada adolescente. As ansiedades despertadas a partir deste processo estão relacionadas às perdas acarretadas pela entrada no mundo adulto. Este é um processo decisivo no ciclo vital, sendo um período de forte instabilidade emocional, rumo a independência afetiva (Aberastury, 1981).

A adolescência em portadores de doenças crônicas, como a fibrose cística, possui peculiaridades determinadas pela própria enfermidade. A fibrose cística é uma doença genética, de caráter autossômico recessivo, que compromete o funcionamento de todos os órgãos e sistemas do organismo, através da alteração da função das glândulas exócrinas. É uma doença evolutiva que não tem cura. Estima-se que cerca de 90% dos pacientes morrem em virtude de doenças pulmonares (Andrade, Fonseca, Abreu & Silva, Menna-Barreto, 2001). Os avanços tecnológicos e o desenvolvimento de terapêuticas adequadas para cada patologia têm permitido aos portadores de algumas doenças crônicas o controle de sua evolução e até mesmo a cura (Vieira & Lima, 2002). No que diz respeito à fibrose cística, nos últimos 25 anos, a sobrevida destes pacientes teve um aumento de 700% (Boice & Heights, 1998), sendo que há 40 anos atrás a maioria deles morria na infância e no final dos anos noventa, 36% alcançavam a idade adulta (Staab & colaboradores, 1998).

A adolescência pode ser um período frustrante e difícil para o jovem saudável, sendo ainda mais complicado para os jovens portadores de doença crônica. Com o aumento da sobrevida destes pacientes, estes têm mais tempo para sofrer as perdas e limitações que a doença acarreta. Estudos mostram que a vivência da adolescência por portadores de fibrose cística possui algumas peculiaridades, como implicações na vida escolar, trabalho, relacionamento familiar, amigos e com o sexo oposto (Dennig & Gluckson, 1984; Lask, 1995; Duncan-Skingle & Foster, 1995; Oliveira & Gomes, 1998; Oliveira, Oliveira, Gomes, 2004). A fibrose cística, freqüentemente, faz com que os adolescentes dependam física, emocional e financeiramente de sua família, o que pode trazer implicações para a transição da vida em família para a vida independente e dos estudos para o trabalho (Simena, 1992), sendo fundamental que o adolescente consiga manter sua auto-estima e confiança (Kyngäs, Kroll & Duffy, 2000). Em virtude da doença, existe a necessidade, de tanto o jovem quanto a família readaptarem-se e buscarem novas estratégias de enfrentamento. Ocorrem mudanças no cotidiano, devido às limitações físicas, sinais e sintomas da doença, hospitalizações e tratamentos. Estes fatores permeiam o processo de crescimento e desenvolvimento destes indivíduos e, muitas vezes, os separam de seu ambiente natural e familiar (Vieira & Lima, 2002). Assim, na maioria das vezes, suas experiências sociais tornam-se limitadas (Blum, 1992; Boice & Heights, 1998).

Pesquisas têm sugerido que indivíduos com fibrose cística sofrem mais de problemas psicológicos do que sujeitos saudáveis e sofrem menos do que aqueles com outras doenças crônicas (Heuzey, Navarro, Mouren-Simeoni, 1997).

Estudos mostram que adolescentes com fibrose cística apresentam algumas dificuldades, principalmente no que diz respeito à vocação profissional, consciência de seu funcionamento sexual e conhecimento a respeito da sua doença. Vários adolescentes possuem distúrbios de sua imagem corporal (Hodson, 1997). Torna-se necessário encontrar caminhos para capacitar as vítimas dessas doenças a suportar o estresse normal da adolescência e preparar-se para uma vida adulta produtiva. Somente desta forma, um maior número de adolescentes poderá adquirir a autonomia necessária, apesar de possuírem uma doença crônica (Boice & Heights, 1998).

Em função da doença faz-se necessária uma rotina rígida de tratamento, a qual pode ser dificultada com a entrada na adolescência. Neste período, muitos pacientes portadores de fibrose cística começam a rebelar-se contra o tratamento, tendo relutância em participar dos regimes rigorosos de fisioterapia e de um compromisso clínico regular. Por isso, é importante que a família trabalhe juntamente com a equipe médica a fim de criar um sistema de cuidados que dê ao adolescente um grau de independência e confiança e que isto seja aceito por todos como um estágio de desenvolvimento do jovem (Hodson, 1997; Kyngäs, Kroll & Duffy, 2000). Sabe-se também que a comunicação efetiva entre médico e paciente favorece a adesão ao tratamento (Foley, 1993; Souza, 1999).

Frente a estas características do processo de amadurecimento em jovens portadores de doenças crônicas como a fibrose cística, torna-se relevante uma reflexão sobre as mudanças que ocorrem nesta etapa da vida. Tal fato suscita a seguinte questão investigada na pesquisa: Como os adolescentes portadores de fibrose cística percebem a sua puberdade e entrada na adolescência e quais são seus planos para o futuro?

O estudo teve como objetivo investigar como os participantes portadores de fibrose cística sentiram-se com a entrada na puberdade, verificando se esses perceberam mudanças no seu comportamento. Avaliar que mudanças comportamentais foram essas e se elas influenciam na relação com outras pessoas e de que forma, bem como analisar os reflexos da adolescência na adesão ao tratamento da fibrose cística. Além disso, identificar se esses jovens possuem ou não planos para o futuro e quais seus movimentos de busca em relação à isto.

 

Método

A pesquisa é de cunho exploratório. Foram entrevistados três adolescentes, de ambos os sexos, com idade entre 17 e 20 anos, portadores de fibrose cística. Cabe ressaltar que nos três casos a gravidade da doença era avaliada pelos médicos como moderada.

O instrumento para coleta de dados foi uma entrevista semi-dirigida, posteriormente gravada e transcrita. Após a realização das entrevistas, foi utilizada a técnica de associação de idéias que possibilita explicitar o processo de interpretação dos dados tornando-os mais claros e visíveis. Os dados foram analisados qualitativamente, a partir da abordagem do Construcionismo Social, através da produção de sentidos e significados dados pelos sujeitos em relação às questões propostas. Portanto, o desafio foi abandonar a objetividade e ressignificá-la como visibilidade, concebida como pressuposto básico da intersubjetividade (Spink & Lima, 1999).

A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética do hospital no qual o estudo foi realizado. Os participantes assinaram um termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram informados a respeito dos seus direitos conforme o Código de Ética na Pesquisa com Seres Humanos (Brasil, 1996). Em relação ao participante menor de 18 anos, obteve-se também autorização de seus pais para que ele participasse da pesquisa.

 

Análise e discussão dos resultados

Cada um dos participantes recebeu um nome fictício: Ana, Bia e José. Os participantes possuem idades entre 17 e 20 anos e a escolaridade variava entre o final do ensino médio e superior. Através da análise em profundidade das entrevistas foi possível identificar categorias que serão apresentadas a seguir. Trechos falas dos participantes elucidarão e propiciarão a discussão dos resultados.

Como os jovens portadores de fibrose cística perceberam sua entrada na puberdade

A análise da entrevista da paciente denominada Ana revela que com a entrada na puberdade esta passa a manifestar sua dificuldade em aceitar a doença: “...não foi assim muito agradável (ri)! Eu me revoltei um pouco, sabe. Eu já não era assim muito calminha... tanto que eu fiz tratamento psicológico”. Da mesma forma José, ao se definir como “mais magro, mais baixo”, demonstra que se percebia diferente dos outros. A puberdade configura-se como uma das três maiores transições na vida destes adolescentes, sendo as outras duas a época em que é comunicado o diagnóstico e o tempo de mudança da escola ou da casa para o trabalho e vida independente. No início da adolescência, é freqüente em qualquer pessoa o sentimento de ser diferente de seus amigos e colegas e de não ser compreendido. Sendo assim, os adolescentes que possuem uma doença crônica, percebem-se ainda mais separados e muito diferentes dos seus companheiros. O desenvolvimento puberal dos pacientes fibrocísticos geralmente se dá mais lenta e tardiamente (Hodson, 1997), deixando marcas que poderão interferir no seu desenvolvimento emocional e nas aquisições da adolescência (Hofman & Gabriel, 1998; Lewis & Wolkmar, 1993; Sugar, 1992; Oliveira & Gomes, 1998).. Para os jovens com uma doença crônica, a puberdade pode estar associada à depressão e à rejeição de si próprio, por sentir-se diferente das outras pessoas, tanto a nível físico quanto comportamental (Blum,1992).

Muitas vezes, estes sentimentos são influenciados pelas próprias mudanças fisiológicas que ocorrem nesta etapa. As flutuações de humor do púbere estão relacionadas ao conjunto de sensações internas e à quantidade de hormônios que circulam na corrente sangüínea. Isto reforça uma falta de constância nas emoções, o que resulta em grandes e repentinas mudanças de humor (Knobel, 1978; Lewis & Wolkmar, 1993; Steinberg, 1993). Bia menciona as dificuldades que enfrentou neste período: “Ah, eu me sentia meio incompreendida... depois veio a primeira menstruação e eu disse: ‘pronto, tô morrendo!’... foi a primeira coisa que me veio na cabeça”. Relaciona ainda o sangue com alguma manifestação da doença, evidenciando que a forma como vivenciou o desenvolvimento físico foi dificultada pela relação estabelecida entre o corpo e a doença. A menarca pode ser vivenciada pela adolescente como uma forma de morte da criança que era até então, gerando luto pelo corpo infantil perdido (Aberastury, 1981). As transformações nesta etapa se dão tão rapidamente, que o próprio adolescente pode ter dificuldade em se reconhecer. José, diferentemente de Ana e Bia, afirmou que sentiu o início da sua puberdade acontecendo mais tardiamente: “É, já por eu ter essa doença todo mundo sabia, por eu ser magro, ser baixo, tudo isso já influenciava na doença “.

No processo de busca da identidade o adolescente desloca a dependência dos pais para o grupo de companheiros, no qual todos se identificam. Isto se revela através das regras do grupo em relação à vestimenta, costumes e preferências. A partir da vivência no grupo, o jovem consegue se opor aos pais e estabelecer uma identidade diferente à do meio familiar. Desta forma, o grupo constitui um passo intermediário no mundo externo, para alcançar a individualidade adulta (Steinberg, 1993). Estudos apontam que adolescentes com fibrose cística têm mais dificuldade com sua própria imagem corporal do que adolescentes com outras doenças crônicas, pois a enfermidade traz efeitos aparentes, como retardo no crescimento físico e no desenvolvimento sexual, en quanto que em outras doenças crônicas, estas diferenças podem não ser percebidas com tanta clareza (Bush & Geddes, 2002; Singer, Drotar & Doershuk, 1988). Esta situação pode fazer com que os adolescentes sintam-se mais isolados, não conseguindo estabelecer uma relação próxima com os pares. A participante Bia pontua: “Ah, no começo eu me sentia meio estranha. Eu fiquei ‘nossa o que está acontecendo comigo’, fiquei meio sem saber o que fazer. Daí eu peguei e fui falar com a minha mãe, saber o que estava acontecendo”. A jovem, primeiramente, não foi procurar um amigo mais próximo, buscando a mãe para esclarecer suas dúvidas. Nenhum dos entrevistados mencionou a figura do melhor amigo ou mesmo a pertença clara a um grupo específico de amigos. Quando se referem a outros jovens, estes são somente os colegas de aula da escola.

Relação com os pares

As mudanças que acompanham a chegada à adolescência trazem consigo uma série de implicações para o relacionamento dos jovens com seus amigos e colegas. A partir do que foi trazido pelos participantes, percebe-se que, na maioria das vezes, é por causa do tratamento que os colegas ficam sabendo da doença, ainda que a maioria tenha referido não falar abertamente deste assunto. Bia. relatou que começou a contar sobre a doença por volta dos 13 anos “Eu agora falo, mas antes eu não falava”. Revela que quando era criança não falava porque não tinha conhecimento formal a respeito da doença: “... eu nem sabia direito ainda, depois que eu fui começar a saber o que é que era”. É comum que os pacientes adolescentes sejam excluídos, pelo médico e pela mãe, das informações sobre a doença, no intuito de protegê-los de maior sofrimento (Oliveira, Oliveira, Gomes, 2004). “Eu não explico assim, bem explicadinho. Eu digo o que é, digo o nome da doença, eu digo como é que é. Quando eu levo, ou levava, porque agora eu não levo mais os remédios, as enzimas, todo mundo perguntava: Para que é isso? Para que tu toma? O que é que faz? O que é que não faz? Eu explicava, mas agora eu não explico também”. Portanto, foi a partir do tratamento, mais especificamente da medicação, que os colegas de Bia ficaram sabendo a respeito da doença.

Da mesma forma, Ana referiu que anteriormente falava sobre a doença para os namorados, em função do tratamento: “Ah, eu dizia que eu tinha uma doença pulmonar, e que tinha que fazer fisioterapia. Eu falava mais por causa da fisio, para eles não chegarem lá e eu tivesse... (faz gestos de como se estivesse tossindo)”. No entanto, assumir a doença não foi fácil para ela: “ ...era um menino da minha turma. Daí quando eu comecei a gostar dele e a gente começou a ficar junto. Aí ele começou a ir na minha casa e eu disse: ‘Óh, eu tenho essa doença, ela não tem cura, ela não pega. Daí ele ficou diferente, ele não me beijava, eu mal conseguia chegar perto dele, ficou separado. Daí eu me senti uma pessoa bem pequenininha, que eu era a criatura mais pequenininha do mundo. Na situação que eu não tava conseguindo lidar com isso e não adiantava eu fala. Eu dei polígrafos para ele, mostrava para ele que não pega... Daí eu pensei eu não vou contar mais, porque aí eu vou perder todos os namorados, não vou mais conseguir namorar. Eu vi todas as minhas amigas com namorado e eu não conseguia... Tudo isso começou a me dar uma revolta... Daí depois eu aprendi a lidar com essa situação, eu aprendi como é fácil de explicar para eles”. Frente às dificuldades procurou ajuda psicoterápica para lidar melhor com a sua doença.

José também expressa dificuldade em assumir a doença frente aos colegas, amigos: “Eu não gosto muito. Ah, pelos outros saberem que eu tenho assim mesmo, é mais ruim”. Ele refere que não precisa falar a respeito da doença, pois seus amigos, colegas, já sabem de seus problemas em função das internações: “Todos entendiam, já me conheciam, já sabiam da minha história a tempo, já eram colegas de anos atrás, daí foi normal”. As colocações feitas pelos jovens entrevistados, revelando a dificuldade para contar a respeito da doença aos colegas remetem a duas questões. Uma delas relacionada à vergonha da doença e do quanto isso pode dificultar que eles tenham um grupo de amigos mais próximos. Os adolescentes portadores de fibrose cística, ao expressarem as dificuldades que possuem para interagir com o grupo, em função da doença, exemplificam formas que a doença pode interferir no seu desenvolvimento (Boice & Heights, 1998; Hodson, 1997).

Ana conta como enfrentou o relacionamento com os amigos: “Eu conto. Elas gostam de saber. Aonde eu moro todo mundo sabe de tudo, então não tem aquilo mais, eu não tenho mais aquela vergonha que eu tinha. As minhas primas diziam: ‘tu não pode brincar, porque tu tem uma doença, tu vai cair ainda aqui e vão colocar a culpa em nós’. Eu era completamente rejeitada sabe, eu ficava num canto. Nunca me deixaram fazer nada. Depois que eu comecei a provar para elas que eu era mais capaz que elas, que eu fazia aeróbica, jazz e ballet, tudo na mesma época, ao mesmo tempo, elas começaram a perceber que eu podia brincar com elas”. O incremento da auto-estima e fortalecimento egóico, propiciou que Ana crescesse e aceitasse suas condições e limitações, podendo assim conviver melhor com outros jovens de sua idade. O sentimento de auto-estima é de suma importância para um melhor desenvolvimento das relações interpessoais, sendo este influenciado pelas percepções da imagem corporal, sexualidade e intimidade, autonomia e habilidades sociais e cognitivas (Simena, 1992).

Autonomia e adesão ao tratamento

Uma das questões propostas referiu-se à percepção dos jovens quanto a mudanças no seu comportamento em função da entrada na adolescência. As colocações apontam dois movimentos: a busca pela autonomia sua influência na forma como conduzem seu tratamento. Assim, nota-se que as mudanças comportamentais percebidas ficam mais voltadas para a dependência em relação aos pais e dificuldades que se impõe sobre a adesão ao tratamento. A fibrose cística exige que os adolescentes tenham uma rotina muito rígida de cuidados diários. O principal destes é a fisioterapia, sendo que a maioria dos pacientes necessita duas sessões ao dia ou mais. Há, também, importantes cuidados nutricionais, pois os pacientes tendem a ficar desnutridos, necessitando ingerir enzimas em cada refeição, além dos suplementos alimentares e das freqüentes e longas internações hospitalares (Hodson, 1997).

Com a chegada na adolescência, ocorre um desenvestimento por parte dos doentes crônicos em relação ao seu tratamento. Eles não parecem querer o auxílio de outras pessoas, principalmente da mãe, o que faz com que muitos deixem de seguir as recomendações até então mantidas (Kyngäs, Kroll & Duffy, 2000). Esta situação pode ser observada através do relato de José: “ ...daí agora, depois que eu comecei a crescer mais, esse negócio de fisioterapia já ficou mais difícil no caso de eu ter mais compromisso para fazer, estudar. Assim oh, de eu ter que estudar e ao mesmo tempo ter essa doença que me impede de fazer o que eu gosto”. Bia contribui: “Quando eu era mais novinha eu fazia fisioterapia e a minha mãe me ajudava, mas não era muito. Daí quando eu comecei a ficar maior, mais velhinha, agora eu não faço direito, entendeu? Eu faço mais sozinha do que com a minha mãe”. Fica clara a busca pela autonomia, uma vez que a paciente relata estar fazendo a fisioterapia sozinha, mas ao mesmo tempo, enfatiza não conseguir realizá-la de forma adequada: “É ruim de fazer, porque é uma coisa muito chata e todo dia tem que fazer. Se fosse assim um dia sim, um dia não, seria melhor, mas todo santo dia, a mesma coisa, ah enjoa”. É comum que pacientes fibrocísticios, na adolescência, rebelem-se contra o tratamento (Hodson, 1997). Na busca de autonomia, o jovem necessita distanciar-se da família e experienciar novas formas de relação com o mundo externo. Quanto à conduta, sabe-se que o adolescente não pode manter uma rigidez, permanente e absoluta, embora queira. Seu comportamento é dominado pela ação. Sua personalidade é permeável, com freqüentes projeções e identificações, o que resulta numa instabilidade permanente e normal. Os adultos geralmente não aceitam o posicionamento instável dos jovens, exigindo que eles tenham uma identidade já formada, quando na realidade sua identidade é transitória, circunstancial e contraditória, o que facilita a elaboração dos lutos típicos desta etapa da vida (Lewisky, 1995). Durante o processo de estabelecimento da identidade, o adolescente é acompanhado pelo sentimento de melancolia e ansiedade. A realidade muitas vezes o frustra, surgindo um intenso sentimento de solidão, característico destas perdas (Knobel, 1978). A busca pela autonomia é saudável para a vida emocional destes pacientes, porém pode representar perigo à sua saúde física. Kyngäs, Kroll e Duffy (2000) relatam que a adolescência é um período de transição da dependência para independência, quando os jovens começam a adotar um grande número de novos papéis sociais e emocionais e aprendem a arcar com as alterações nas funções corporais. Adolescentes com uma doença crônica estão constantemente lutando pela sua independência. Neste sentido, José refere: “é um negócio que não tem cura. Daí, o cara já sabe que vai ter um tratamento sempre e que não vai ter certas liberdades” A doença faz com que estes pacientes dependam fisica, emocional e financeiramente de sua família tendendo a permanecer morando com os pais. Quando uma criança adoece, na maioria das vezes, é a mãe que assume seus cuidados, mesmo que isto a sobrecarregue, gerando estresse e tenha sérias implicações em seu cotidiano (Blair, Cull & Freeman, 1994; Oliveira, Oliveira & Gomes, 2004). Portanto, quando os jovens entram na adolescência e iniciam o processo de individuação, as mães podem apresentar dificuldade para aceitar este movimento. José ressalta: “Ficar internado no hospital, já não é mais como antigamente, que a mãe trazia e que não tinha a escolha de querer ou não... agora é eu que decido, eu que tenho que pensar o que é melhor para mim”. José demonstra sua autonomia em relação à mãe mas, em contrapartida refere impotência frente à doença.

Planos futuros e sexualidade

A dificuldade em assumir uma posição mais autônoma frente à família pode acarretar algumas alterações em relação aos planos futuros destes adolescentes e ao desenvolvimento de sua sexualidade. Nota-se que os jovens entrevistados convergem em suas percepções sobre o tema apenas em alguns aspectos. Ana e Bia não trazem a sensação de ter tido seu desenvolvimento puberal atrasado, assim como José que refere isto. O menino demonstra ter percebido que algumas de suas características corporais eram diferentes de seus colegas. Hodson (1997) observa que o matrimônio é mais comum em mulheres com fibrose cística do que em homens. Um aspecto relevante a ser considerado é que a maioria dos homens com fibrose cística (90%) são estéreis e isto pode ter um importante efeito psicológico. Ilustrando estes achados, dentre os entrevistados, as duas meninas possuíam namorado, enquanto José não: “ Mais ou menos, assim... vontade eu tenho, mas por ter essa doença aí já...já muda um pouco né, o negócio de namorar, conhecer uma pessoa que entenda dessa doença... Também, pela pessoa saber que a gente tem e não gostar mais... era mais fácil se fosse uma que já conhecesse o problema, uma amiga assim, que já soubesse como é”.

Os desejos e ambições com relação ao futuro revelam-se através de projetos e de dúvidas relacionadas aos riscos representados pela doença. José refere: “... ah, é que eu tava crescendo e eu precisava ter um objetivo de vida...viver, conseguir as coisas para mim, trabalhar o dia que eu puder e conseguir as coisas que eu quero...”. O emprego é um meio de integração na cultura adulta. A falta de um trabalho pressupõe uma transição inacabada, a impossibilidade de uma vida independente, um maior exílio social e a não participação naqueles elementos que se definem como construtivos e característicos da etapa da adolescência (Álvaro-Estramiana,1992; Steinberg, 1993). Outro movimento em direção a vida adulta é o casamento. “Agora daqui a dois anos eu termino a minha faculdade. A gente já tá começando a construir uma casa, tá começando devagarinho, conforme dá né. Construir nossa casa né, ter nossos filhos né, ter a minha vida. Até brinco com a mãe tu não vai te meter na minha vida”. Assim, a jovem manifesta seu desejo de ter uma vida independente com seu noivo, separando-se da família.

Desta forma, percebe-se que há características que são peculiares para todos os participantes, em função de sua vivência e desenvolvimento serem perpassados por uma doença crônica. Porém, a forma como cada adolescente experiencia este período e lida com as limitações, se dá de maneira peculiar.

 

Considerações finais

A puberdade apresenta-se como um divisor de águas entre a infância e vida adulta, ocasionando um grande impacto para os adolescentes com fibrose cística que até então estavam muito atentos para seu corpo em função da doença. Com estas mudanças fisiológicas, fica concreta a percepção de que não serão mais criança e que é esperado que evoluam rumo ao mundo adulto. No entanto, são apontadas algumas limitações atuais e futuras em virtude da enfermidade. Frente a isto, se observa dois movimentos: jovens que conseguem buscar alternativas em direção a vida adulta, aceitação da doença e do tratamento, adquirindo uma relativa autonomia e outros que não conseguem transpor as barreiras impostas pela doença crônica. Estes se conservam dominados pelo sentimento de imobilidade, determinado pela manutenção dos vínculos infantis de dependência. Tais achados nos remetem a necessidade de outros estudos para identificar quais são os fatores que determinam estas diferenças, investigando características de personalidade, da família e do contexto social e da doença.

 

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Endereço para correspondência
e-mail: kbrocha@pucrs.br

Recebido em 05/2004
Aceito em 09/2004

 

 

1 Kátia Bones Rocha – Psicóloga, Mestranda em Psicologia Social e da Personalidade da PUCRS
2 Mariana Calesso Moreira – Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS e Psicoterapeuta em formação pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP)
3 Viviane Ziebell de Oliveira - Psicóloga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS e Psicoterapeuta formada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP)

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