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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.24 Canoas Dec. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

A travessia de “Riobaldo Rosa”, no Grande sertão: veredas, como um processo de individuação

 

The initiation voyage of “Riobaldo Rosa” in The devil to pay in the backlands, as an individuation process

 

 

Tania Rebelo Costa Serra1

Universidade de Brasília-UnB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo retomar obra de 1990, intitulada Riobaldo Rosa, a vereda junguiana do Grande sertão, a fim de evidenciar a hipótese de que o romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas comporta uma interpretação junguiana. Essa hipótese visa a demonstrar que a “viagem” de Riobaldo, o protagonista do romance, pode ser analisada como um processo de individuação, com as suas diferentes etapas. A fim de facilitar a leitura, este artigo virá seguido de um glossário dos principais conceitos de Carl Jung usados no texto.
Por fim, é necessário ter em mente que se trata de um trabalho de crítica literária, e não de psicologia, o que necessariamente implica ser o processo de individuação nele tratado um processo finito, pertencendo àquele personagem específico, e que se encerra no final da narrativa, ao contrário do de uma pessoa de carne e osso, para a qual a individuação é um processo em perene renovação.

Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Carl Jung, Literatura brasileira, Mito, Arquétipo.


ABSTRACT

This paper is a new reading of the 1990 work entitled Riobaldo Rosa: a vereda junguiana do Grande sertão. Its main hypothesis is that Grande sertão: veredas, the 1956 novel by João Guimarães Rosa, can be analysed through the concepts belonging to Carl Jung"s analytic psychology. This reading implies that the character Riobaldo"s “initiation journey” can actually be interpreted as an individuation process, with all its stages of development. At the end, in order to facilitate the understanding of the text, comes a glossary with the main jungien terms used in this work. Lastly, it is important to point out that this is a work of literary criticism, not psychology, which means that the individuation process here analyzed relates to a specific character and is completed at the end of the novel, a fact that does not happen in real life, when individuation is a permanently being renewed.

Keywords: João Guimarães Rosa, Brazilian literature, Myth, Archetypes.


 

 

Introdução

Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias. (...) Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. (...) Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda. (...) Disse a mim mesmo que sobre o sertão não se podia fazer “literatura” do tipo corrente, mas apenas escrever lendas, contos, confissões. João Guimarães Rosa. (Carta a Gunter Lorenz)

Este trabalho propõe-se a fazer uma leitura junguiana do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Conseqüentemente, a narrativa não será analisada do ponto de vista literário, mas sim do ponto de vista do mito, da lenda, e de seu papel na psicologia analítica de Jung, aqui usada como instrumento para a garimpagem de verdades profundas da psique humana, desvendadas através da literatura. A fim de possibilitar esta abordagem analítica e esquemática, será observada a seqüência cronológica da narrativa, e não a ordem do discurso. Um glossário ao fim, contendo os principais conceitos utilizados, servirá de material ancilar ao leitor. Last but not least, antes de passar à análise do romance aqui proposta, deve-se lembrar a impossibilidade de restringir uma grande obra de arte a um único esquema analítico. Este é apenas o que está aí dito: UM esquema para abordar e compreender o texto de Guimarães Rosa, que agora em 2006 está completando cinqüenta anos de publicado.

Por outro lado, e ainda no campo das premissas, assim como Jung estudou os mitos enquanto receptáculos de uma herança cultural da humanidade, e como uma linguagem onde o arquétipo é o instrumento para veicular determinada mensagem, estudarei também o romance Grande sertão: veredas sob seus aspectos míticos e arquetípicos. O primeiro objetivo deste trabalho, então, é mostrar que a utilização das estruturas mitológicas e dos arquétipos do inconsciente coletivo por Guimarães Rosa2 teve como conseqüência levar a mensagem do crescimento psicológico humano – através da “travessia” de Riobaldo – diretamente ao subconsciente do leitor do século XX e, em assim fazendo-o, tornar-se um texto paradigmático, exemplar, atributo também necessário à literatura épica da qual faz parte.

Na tese de mestrado3 que deu origem a este estudo procurei demonstrar, utilizando o sistema psicológico e a terminologia de Jung, que o romance rosiano poderia ser comparado a um mito do descobrimento de si, e a travessia acima mencionada ser compreendida como um típico processo de individuação, com todas as suas cinco fases. Garimpar esse processo é o segundo objetivo deste trabalho. Antes de mais nada, no entanto, é preciso mencionar um leitmotiv na obra, uma espécie de ritmo interno da narrativa, ou seja, verificar que, em Rosa, as diferentes etapas da vida do protagonista, Riobaldo, duram, grosso modo, períodos de sete anos, ou múltiplos desse número. Assim, pudemos evidenciar quatorze momentos diferentes no enredo, entre os quais encontrar-se-ão espalhadas as cinco fases da individuação. Antes do começo da análise propriamente dita, contudo, gostaria de fazer uma pequena digressão a respeito desse “ritmo heptassílabo” interno do romance. É curioso e divertido observar que o sete tem como que um papel mágico nas entrelinhas do texto, e vamos vê-lo emergindo nos detalhes mais diminutos da narrativa, como, por exemplo, quando da batalha final do Tamanduá-tão, na qual Riobaldo decide contar até dez antes de atacar, mas não consegue passar do sete4 ... Toda a construção da estrutura temática e narrativa vai seguir esse padrão, e devemos compreender essa marcação rítmica do autor como uma referência implícita a uma tradição esotérica e numerológica, dentro da qual o número sete tem função mágica e transformadora – função esta que destina também à sua obra.

Iniciando, então, a análise proposta, deve-se primeiramente mencionar que a travessia de Riobaldo poderia também ser encarada como uma viagem iniciática, que, por sua vez, seria a interpretação metafísica da viagem geográfica de um herói épico. Tomando o exemplo clássico de Ulisses na Odisséia, de Homero, vemos que a sua “viagem” é o desenvolver-se como ser humano; o encontrar e aceitar o sofrimento; o perseverar em alcançar seus nobres objetivos, mesmo que para isso leve dez anos. Ao término da jornada épica, como no exemplo mais recente de Parsifal, de Wolfran von Eschenbach, o encontro com o objeto da busca inicial, neste caso o Graal, simboliza o estado do homem que atingiu a sabedoria, ou seja, aquele que conseguiu encontrar a plenitude psíquica. Consistentemente encontrado através dos séculos, o tema da longa viagem, das muitas aventuras vividas com a ajuda dos deuses, e a perseverança em fazer o bem é característico do ephos através da história literária.

Assim, poderíamos ir um pouco mais longe e afirmar que a viagem iniciática seria um tema subjacente a quase toda a literatura épica. Segundo Hélder Macedo,

um poema épico tende a significar, como discurso de segundas intenções, um percurso espiritual, uma viagem iniciática personalizada num herói. E há um esquema básico subjacente a toda viagem iniciática o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada dos ritos de passagem. Esse esquema define três momentos fundamentais: a chamada, a viagem propriamente dita, e o regresso. (Camões e a viagem iniciática, p.33)

O grande épico de João Guimarães Rosa é exemplo dessa linhagem de obras-primas da literatura ocidental, que começa com Homero, continua com Virgílio, Dante, Ariosto, Camões, Torquato Tasso, e que passa pelos romanços medievais de cavalaria, sobretudo os do ciclo da busca do Santo Graal, como o de von Eschenbach. O sentido épico no Grande sertão já foi suficientemente analisado na literatura acadêmica e não cabe ser aqui estudado. Por outro lado, se o romance traduz uma visão total do mundo, num sistema em que o narrador trata da compreensão ordenada do Universo – também atribuição do mito –, caberia ainda afirmar que Rosa criou, assim como James Joyce, um novo herói épico, já que Riobaldo narra na primeira pessoa sua travessia pelo Sertão, isto é, pela vida que se vai ordenando através do seu narrar. Este, assim, já não seria mais “apenas” literário, mas seria, sobretudo, psicológico, fornecendo, portanto, farto material para uma análise do tipo aqui proposta.

Conforme já foi dito anteriormente, este trabalho visa também a mostrar que a viagem iniciática do herói épico Riobaldo comporta todas as etapas do processo de individuação de que fala Carl Jung. Contudo, para que este processo venha a acontecer, essas diferentes etapas têm de ser necessariamente assimiladas e interiorizadas psicologicamente pelo herói, antes que ele possa atingir o ponto de maturação psíquico. Elas devem também aparecer em uma ordem cronológica e progressiva, a saber: 1- (preliminarmente) a interiorização da persona. Em seguida apenas, a identificação e aceitação das imagens dos arquétipos do inconsciente coletivo: 2- a sombra; 3- a anima5 ; 4- o velho sábio e 5- o Si-Mesmo. Os quatorze momentos distintos da travessia do herói, como ficou assinalado acima, seriam como pequenas “viagens” que levariam à grande Viagem final, o encontro do homem com a Ordem, ou Cosmos, estágio a que Jung chama de Selbst, o Si-Mesmo. Na verdade, se as cinco etapas aqui referidas estão contidas nesses quatorze momentos, a análise da individuação, fio condutor deste artigo, terá como função costurá-los, entrelaçando-os e explicando-os à luz daqueles cinco arquétipos.

Assim, a primeira fase da vida de Riobaldo precede as ações narradas: é o momento em que vive só com sua mãe, numa simbologia do andrógino dos tempos primordiais. Esta androginia voltará a realizar-se no fim das aventuras – a volta ao começo, de que fala Hélder Macedo –, mais tarde, quando se casar com Otacília. Naquele primeiro momento, o herói e a Bigri, sua mãe, moram do lado esquerdo – o lado do coração – do Rio São Francisco perto da Serra das Maravilhas e da vila que se chamava Alegres. Trata-se do tempo da lenda e do mito, em que tudo é perfeito. Sua persona, ou seja, sua personalidade exterior, desenvolve-se num clima de tranqüilidade, embora o jovem nutra profundo ódio pelo “protetor” da família, um certo Gramacedo Judião Borges, evidente ciúme do filho pela mãe. Toda essa primeira fase de sua vida, passada junto à Bigri, dura mais ou menos quatorze anos e é uma espécie de “prólogo”, ou preparação para a narrativa a seguir.

A segunda etapa de sua estória começa quando ele encontra o Menino, num dia de maio, após ter estado gravemente doente. Esse encontro vai modificar radicalmente sua vida, pois esse jovem é um ser iluminado que representa a coragem e a feminilidade, que passarão a acompanhá-lo dali para a frente. É importante também observar, que uma grave doença sempre antecede uma mudança estrutural na vida de Riobaldo: seriam como pontos de mutação psicológicos, índices no texto de que alguma coisa vai mudar. Assim é que, nesse momento de sua vida, ele exorciza o ódio que sente pelo “protetor”, supera os sentimentos negativos, que vinha carregando no coração, e fica prontinho para seguir o seu destino, caminhar para o seu futuro. Em verdade, quando os dois adolescentes cruzam o Rio, está-se realizando a primeira travessia do herói, ou seja, o começo da ação, do agir. O Menino – que mais adiante saberemos ser o Reinaldo, aliás, Diadorim – tem um papel fundamental no romance e será uma espécie de guia de Riobaldo por quase toda a narrativa, como veremos em breve.

A terceira etapa da travessia de Riobaldo começa logo após a morte da mãe, quando é enviado para a fazenda São Gregório, de posse do seu padrinho, o coronel Selorico Mendes, na verdade seu pai, como virá a saber mais tarde. O rapaz tem mais ou menos quatorze anos, e vai começar a sua aprendizagem formal – diferente da aprendizagem das coisas “do coração”, que havia tido na etapa anterior –, já que o padrinho vai ensiná-lo a manejar as armas, para o que Riobaldo demonstra grande habilidade. Esse momento permite-lhe também viver na “lordeza”, além de abrir-lhe acesso à cultura, pois ali ele estuda também Letras, História e Geografia. Esse terceiro momento da viagem iniciática configura a interiorização da persona adequada ao status de grande fazendeiro dos Gerais, status este que ele está legitimamente usufruindo no tempo da narração. No entanto, o herói não gosta do pai – Freud explicaria – e dilacera-se entre os sentimentos de tédio e a gana de partir. Do final dessa etapa por diante, ele estará sempre partindo, viajando, na mímesis do destino de outros heróis épicos, como Ulisses ou Enéias.

O quarto momento de sua viagem começa quando ele, mais ou menos com vinte e um anos, foge da São Gregório, após ter sabido acidentalmente pelo bando do grande “Rei dos Gerais”, Joca Ramiro, que o padrinho é, na verdade, seu pai. Após a fuga, Riobaldo encontra Zé Bebelo, para quem servirá de professor – embora, na verdade, vá aprender muito com ele. No fim desse período de sua vida, quando opta por tornar-se um jagunço, ele vai eliminar a persona adquirida anteriormente, pré-requisito necessário à passagem aos outros estágios de maturação psicológica, que formam o conjunto do processo de individuação. Logo antes da fuga, contudo, ainda na fazenda do pai, ouve pela primeira vez a Canção de Siruiz, símbolo da criação poética, e que ele vai levar na memória pelo resto da vida, lado a lado com a destreza com as armas, opostos que nele complementam-se harmonicamente. É interessante notar que o herói seguirá interiorizando experiências, seja com aprendizagens formais e/ou estéticas, seja com pessoas, que, ao morrerem ou desaparecerem da narrativa, são assimiladas simbólica e psicologicamente por ele.

No entanto, essa nova vida de mordomias, sem trabalho concreto além de ser “cabo eleitoral” de Zé Bebelo, começa a desgostá-lo. Riobaldo não está preparado para experimentar a estabilidade, simplesmente porque ainda não completou sua aprendizagem vivencial, isto é, não des-estruturou o mundo da infância e da adolescência, a fim de lhe dar rumo novo e próprio. Sente-se, portanto, compelido a prosseguir a viagem e refere-se pela primeira vez ao seu destino. Esta seria uma alusão inicial à noção de carma, de predestinação, que percorre toda a narrativa. O herói, na verdade, parece intuir que é necessário desconstruir e interiorizar a persona – representada pela lordeza –, e foge novamente, finalmente efetivando a interiorização do arquétipo.

Assim, após ter assimilado esse primeiro arquétipo, começa a quinta etapa de sua viagem iniciática, e segunda do processo de individuação, aquela em que o herói vai encontrar e começar a interiorizar a sombra: a vivência do Mal em cada um. É nesse momento de sua vida que ele reencontra o Menino, agora um jovem e belo rapaz, e que é chamado de Reinaldo pelo bando do chefe Joca Ramiro. Riobaldo torna-se ele mesmo um jagunço e mata pela primeira vez um homem, rito de passagem doloroso e do qual sai ficando mais uma vez gravemente doente, prenúncio de nova mudança estrutural em sua mente. Na verdade, sente-se tão mal naquele momento, que pensa em partir de novo, mas a amizade com o Reinaldo segura-o. Pouco depois, seu destino leva-o a encontrar-se com o bando do Hermógenes – uma das personificações da sombra de nosso herói, “tigre assassim” (G. s. v., p.16), – e entrar no seu acampamento é como descer aos infernos. Esta seria a primeira catábase6 de Riobaldo, e da qual emerge com poderes diferentes.

Por outro lado, é também a partir daqui que se inicia sua apresentação aos quatro diferentes estágios da anima, etapa imediatamente posterior na cronologia do processo de individuação. Este arquétipo é inicialmente representado pela figura da donzela guerreira Reinaldo/Diadorim, por quem Riobaldo, mais adiante, vai descobrir estar apaixonado. Assim, a simbologia desse encontro com o lado feminino aparece, quando vemos o herói fruindo as belezas da natureza que o(a) amigo(a) ensina- lhe a ver. Ele também descobre que tem um conhecimento intuitivo das coisas – instrumento cognitivo a que hoje chamaríamos de inteligência emocional –, além da astúcia natural7 característica da inteligência racional. Desta maneira, com a ocorrência cada vez mais freqüente de aglutinações entre pólos antagônicos de fenômenos, está iniciando-se uma espécie de processo paralelo, o de coniunctius oppositorum, união dos opostos, simbolizada pela figura do andrógino, mecanismo psíquico também requerido para se alcançar o Si-Mesmo.

O sexto momento da travessia é feito sob outro nome: o da pessoa do “pós-encontro” com a sombra/Hermógenes, que ele já começa a interiorizar. Riobaldo ganha o epíteto de Tatarana, devido à sua pontaria quase infalível, e torna-se líder de bando. Por outro lado, assim como veremos no caso da anima, no romance analisado a sombra vai ser representada por quatro personagens: o Hermógenes, o menino Guirigó, o catrumano Treciziano e o Ricardão. Essa múltipla exposição ao arquétipo faz com que o herói comece a gostar imensamente do poder que possui sobre os chefiados – e a exercê-lo. No entanto, essa personalidade emergente do amigo deixa Diadorim bastante inquieta, o que a leva a convidá-lo para abandonarem o jaguncismo. Mas agora é Riobaldo Tatarana quem não está “pronto” e não quer partir; deve continuar sua jornada, pois sua viagem está pré-traçada, e ele não pode mais fugir: “viver é muito perigoso”, e ele “carece de ter muita coragem” para encarar o seu próprio destino. Carece, na verdade, de compreender que o Bem e o Mal são dois lados de uma mesma moeda, e que sem reconhecer a existência de ambos – e “domar” a sombra – ele não pode crescer psicologicamente.

A sétima etapa dessa viagem é regida pela descoberta do amor: o processo do encontro e assimilação da anima segue o seu curso. Riobaldo sente-se enamorado por Reinaldo – “Diadorim, meu amor” (G. s. v., p.221) –, mas resiste a esse amor que lhe parece pecaminoso. Outra mulher aparece nesse momento da trajetória do herói, a Nhorinhá, mulher-fêmea que se opõe à jovem guerreira, mas que, de certa forma, tranqüiliza-o sobre sua masculinidade. Nhorinhá8 representa o primeiro aspecto da anima, que Jung denomina Eva, o do relacionamento puramente instintivo e biológico. Já Diadorim representaria o seu segundo nível, que o psicanalista chama de Helena, personificação da relação amorosa em um nível romântico e estético, embora tendo elementos sexuais. Ainda nesse mesmo período cronológico, conhece também Otacília, a moça com quem vai casar-se poucos anos depois, e que simbolizará o terceiro aspecto do arquétipo, a Virgem Maria: o poder do amor espiritualizado.

Na verdade, vale repetir, será só depois de sua união com Otacília – a Beatriz desta obra; a mensageira dos aspectos numinosos da vida –, que o herói volta a ter a condição de andrógino que gozava quando da infância e adolescência idílicas junto à mãe, conforme veremos mais adiante. Desta maneira, apenas após enfrentar essas travessias turbulentas, poderá reencontrar o tempo do mito, quando volta a ficar “redondo”, completo, embora num outro ponto, ou patamar da espiral que é o seu desenvolvimento psíquico. Assim, se por um lado Diadorim morre de ciúmes da rival, por outro lado é a ela a quem vai recorrer pedindo rezas pela alma do amigo, quando percebe que este pode estar ficando “pautário”, como o Hermógenes. Na qualidade de mulher, ela compreende intuitivamente o que o amigo precisa; vence a ojeriza e faz o apelo à rival espiritualizada: o amor generoso prevalece sobre o ciúme. Por outro lado, e como num reforço às qualidades femininas – o prazer estético –, é ainda nesse tempo que Riobaldo lê seu primeiro romance, Sinclair das ilhas, que o deixa fascinado. Frui todas as belezas do mundo e não é mais apenas um chefe dominador, mas já apresenta um acentuado lado “yin”, evidenciado pelo romancista no amor à cultura e ao belo que a música e a literatura representam, assim como o vimos também gostar da Canção de Siruiz. Não será à toa que o veremos escrever os primeiros versos: está “prenhe” das pessoas e de amor...

A oitava fase de sua viagem iniciática começa após a morte de Medeiro Vaz, que havia sucedido a Joca Ramiro, após ter sido este assassinado à traição. Assim, depois da morte de Vaz9, e, em seguida, da chefia abortada de Zé Bebelo, Riobaldo assume a liderança do bando numa espécie de guerra santa contra os “Judas” traidores: Ricardão e Hermógenes. Está também se iniciando um segundo ciclo na narrativa, em que os arquétipos vão apresentar-se inflacionados – o que, segundo Jung, é um grave perigo para o psiquismo. A partir desse momento, para o herói não há mais volta possível, isto é, não pode uma vez mais fugir e ir buscar a sua “alma”, já que Diadorim é filha de Joca Ramiro e, jurando vingança de morte contra os “Judas”, vai exigir a participação de Riobaldo na guerra final que vai começar. Nesse contexto, o Tatarana torna a mudar de nome e agora é o Urutu-Branco, grande chefe e, como veremos mais adiante, futuro Rei dos Gerais10.

A sinfonia literária segue no seu desenrolar heptassílabo, e o nono momento do processo de individuação de Riobaldo, no Grande sertão: veredas, é aquele em que o herói lidera o bando na travessia do Liso do Sussuarão, espécie de deserto intransponível que ficava na retaguarda da fazenda do Hermógenes. Vários arquétipos característicos do processo aqui estudado estarão presentes, concomitantemente, nesse momento da narrativa: o Urutu-Branco leva ao seu lado esquerdo o sacizinho Guirigó, terceira personificação da sombra, como já referido antes; ao seu lado direito o Cego Borromeu, primeira manifestação do arquétipo do velho sábio, etapa seguinte da individuação antes de chegar ao Selbst; por fim, Diadorim/anima, esta sempre presente desde o começo da fase de jagunço. É também nesse momento que ele mata o catrumano Treciziano, terceiro representante da sombra, no seu processo de assimilá-la psicologicamente.

Contudo, antes do cruzamento, ele vai ter uma experiência místico-epífana na Encruzilhada das Veredas Mortas, onde se foi encontrar à meia-noite com o demo. Depois disso – e apesar de não ter visto o malino, o tinhoso – Riobaldo passa a sonhar muito, significativamente, e a jamais errar numa decisão tomada. Durante todo esse curto período, podemos depreender da narrativa uma justaposição perigosa entre consciente e inconsciente, o que dá enorme dramaticidade ao texto, prenunciando a tragédia que está por vir. No entanto, consegue ser bem sucedido no rito iniciático que é cruzar o Liso e descobre, não só que o diabo não existe, mas também que o Mal não existe fora e sim dentro de cada um. Este conhecimento dá-lhe poderosa força interior, força esta imediatamente percebida pelos animais que o circundam, e também pelo “Seo” Ornelas, grande lorde e fazendeiro dos Gerais. A partir desse momento, o Urutu-Branco passa a usar instintivamente o poder energético da sombra, agora praticamente interiorizada, embora não saiba ainda dominá-la adequadamente.

A décima parte da viagem iniciática ocorre quando da última batalha da guerra santa, em que morrem o Ricardão – quarto e último representante da sombra –, pela mão de Riobaldo, e o Hermógenes, pela mão de Diadorim. Nesse momento, o último Rei dos Gerais interioriza, finalmente, o arquétipo da sombra: esse é o dia do “diabo na rua no meio do redemoinho”!... Por outro lado, é nesse momento, também, ao abraçar-se chorando com “a Mulher”11 diante do corpo de Diadorim/Maria Deodorina, que assimila o quarto e último aspecto do arquétipo da anima, representado pela mulher do Hermógenes, aspecto este aque Jung chama de Sophia: a sapiência; a sabedoria que transcende até mesmo a pureza e a santidade. Agora, Nhorinhá, Diadorim, Otacília e a Mulher passam a fazer parte de seu psiquismo, que segue construindo seu equilíbrio ao unir os pares opostos Bem e Mal, Masculino e Feminino, e assim ad infinitum. No final dessa travessia, quando abandona o jaguncismo e casa-se com Otacília, terá interiorizado todos os quatro estágios do arquétipo da sombra e da anima, já podendo ser analisado como um homem “semicompleto”.

Aproximando-nos do final da jornada, a décima primeira etapa passa-se sob a ameaça da morte. Riobaldo, que havia tombado12 como que atingido por um raio, após ver o Hermógenes ferir de morte Diadorim, passa meses entre a vida e a morte, inteiramente despojado da vontade de viver, diante do que lhe parece ser uma grande injustiça do destino: primeiro pela ignorância em que foi mantido a respeito do(a) amigo(a), e, segundo, pela tomada de consciência do que poderia ter sido, caso tivesse sabido da verdade. Quando fica bom, empreende sua última viagem em busca das origens de Diadorim – nova travessia. Nesse momento, ele já havia conseguido levar a bom termo a missão de trazer ordem para o Sertão e tirá-lo da desordem em que se encontrava desde a morte de Joca Ramiro. Nesse momento, também, ele já era visto como o salvador da terra, o Rei dos Gerais, aquele que lhe devolveu a paz, tirando-a do estado de Caos, para trazer-lhe o de Cosmos.

No entanto, ainda não era a sua hora e a sua vez. Não está inteiramente maduro, e o processo de individuação está incompleto; é, portanto, necessário prosseguir nas travessias. Assim é que a décima segunda etapa começa com o reconhecimento do arquétipo do velho sábio, arquétipo este duplamente representado no romance pelo velho Borromeu, conforme já mencionado antes, e por Quelemém, espírita kardecista, que vai ampará-lo e aconselhá-lo nessa hora de transição. No futuro, quando o herói narra esses fatos – a travessia na camada da memória –, Quelemém já será compadre do casal Riobaldo e Otacília. Por outro lado, o narrador explica também ao Doutor que, após conhecê-lo, e ao contar a sua estória, conseguiu sair do “lavarinto” em que se encontrava, isto é: aprendeu as verdades escondidas – e finalmente compreendeu-se a si próprio.

Portanto, após a dupla assimilação do arquétipo do velho sábio, Riobaldo está pronto para empreender a última fase de sua viagem iniciática: o encontro com o Si-Mesmo. Deste modo, a décima terceira e penúltima etapa do processo é o regresso do herói ao começo de sua jornada, conforme o esquema sugerido por Hélder Macedo – penúltima travessia. É importante também observar que, para o leitor, essa idéia da trajetória circular fica fortalecida pela referência sub-reptícia ao eterno retorno, conceito mítico por excelência e reforçado por Rosa no final do romance, com o desenho do símbolo do infinito. Vejamos o que diz Macedo sobre essa etapa em uma viagem iniciática:

Para a sua aventura se tornar uma verdadeira iniciação, terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal ao ultrapassar sucessivos obstáculos até que, no encontro com a Magna Mater – momento indispensável e objetivo implícito da sua demanda –, tenha assumido o poder paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada. (Camões e a viagem iniciática, p.33)

Assim, após “assumi(r) o poder paterno”, Riobaldo volta às origens. Ele deve estar por volta dos vinte e oito anos, quando abandona a vida de chefe jagunço como o último Rei dos Gerais – estes já de volta ao estado de Cosmos, ordem esta que deve necessariamente prevalecer no tempo do mito. Portanto, a volta ao começo, embora em outro ponto da espiral, encontra-o casado com Otacília e próspero fazendeiro, como seu pai, já que após a morte deste havia herdado todas as suas posses. Na verdade, uma vez que havia sido bem sucedido em ultrapassar e interiorizar a persona, ou seja, a figura de lorde e fazendeiro abastado, ele agora volta a poder usá-la em um outro estágio de seu desenvolvimento psíquico, numa outra sintonia energética: a do arquétipo regido por um sinal positivo. Finalmente, é na São Gregório, de retorno quase ao começo da narrativa cronológica, que ele está contando/cantando sua estória ao Doutor da cidade grande. É assim um homem completo.

Agora a epopéia entra em sua última etapa, sendo o herói nesse momento apresentado como um homem maduro, completo e bem estabelecido na vida, no que se vai configurar como a décima quarta fase de sua viagem, e a quinta e última do processo de individuação. Desta maneira, a travessia – a última – continua no tempo da narração, como uma verdadeira catábase ao reino da memória, tema recorrente em grande parte dos sistemas mitológicos. Por outro lado, mostra-nos que o retorno através da lembrança é a forma privilegiada de acesso do artista à mina de ouro dos fatos culturais guardados no inconsciente coletivo da humanidade, que o autor magicamente desvenda para seu leitor. Assim sendo, com mais essa circunferência fechada, ou seja, após ter assimilado todos os arquétipos anteriores e equilibrado inúmeros opostos, colocando-os em harmonia, pode-se dizer que o herói está “redondo” e que chegou ao estágio do Si-Mesmo, ou Selbst, no esquema de individuação proposto por Jung.

É importante compreender, ainda, que, assim como o ato de narrar pode ser entendido como instrumento de catarse para o protagonista, a obra em si também proporciona catarse a seu leitor e, portanto, duplica a função iluminadora do mito, tornando-se, conseqüentemente, ela mesma mediadora no processo de explicação do mundo, atributo mitológico por excelência. Em decorrência desse papel iluminador do romance, seria possível também compreender-lhe o principal personagem, Riobaldo/Tatarana/Urutu-Branco/Rei dos Gerais, como um legítimo representante do último arquétipo do processo de individuação, o Selbst, simbolizado, conforme diz Jung em seus estudos, pelos grandes mestres ou messias. Assim, a travessia terminada satisfatoriamente eleva-o à categoria de paradigma, de modelo e padrão de comportamento a seguir-se, imortalizando-o.

Por conseguinte, após a análise acima empreendida, penso ser possível afirmar que a utilização das estruturas mitológicas e dos arquétipos do inconsciente coletivo por João Guimarães Rosa teve como conseqüência concreta levar a mensagem do crescimento psicológico humano – através do exemplo da travessia de Riobaldo – diretamente ao subconsciente do leitor do século XX, conforme enuncia o primeiro objetivo deste trabalho. Conseguiu-o, parece-me, escamoteando a razão e privilegiando a intuição e a empatia; conseguiu-o através do diálogo direto com o inconsciente coletivo daqueles leitores; consegui-o, repito por fim, efetuando a união de fórmulas narrativas míticas, tão antigas que se perdem nas brumas da memória coletiva da humanidade, e de uma linguagem moderna, revolucionária. Por outro lado, por meio da interpretação junguiana do texto, a segunda hipótese deste trabalho também pôde ser evidenciada, isto é, demonstrar que o romance rosiano poderia ser comparado a um mito do descobrimento de si, podendo a travessia acima mencionada ser compreendida como um típico processo de individuação, com as suas cinco etapas.

Contudo, seria ainda necessário mencionar, antes de concluir, que a viagem iniciática, aqui analisada, evidenciaria em um nível mítico-simbólico, uma outra síntese operada entre opostos geralmente não sintetizáveis na cultura ocidental do século XX, a saber: a união do homem racional com o homem metafísico e/ou instintivo. Desta maneira, como ordenação do mundo, o Grande sertão identifica-se com o mito e a epopéia; no entanto, através da construção de um significado ontológico para a vida humana, ele já passa a ser simbólico. Assim, Riobaldo – ou será que não poderíamos falar de uma nova coniunctius intitulada Riobaldo Rosa? – encontra a sua alma13 construindo uma ponte que o liga à tradição, ao conhecimento cultural imemorial (novamente a volta ao começo de que fala Hélder Macedo), mapeando um caminho para o inconsciente dos leitores e dando-lhes referência emocional. Neste sentido, o texto fornecer-nos-ia, ao mesmo tempo, tradição e renovação; história e interpretação; alegoria e simbologia; prazer estético e empatia cultural.

No entanto, talvez o que mais importe entender, no âmbito deste trabalho que se conclui, é a noção de que a compreensão do mundo, que nos propõe o romance analisado, só poderia ser veiculada através do Verbo, da palavra escrita. Desta maneira, compreendemos que a realização das diversas conjunções de opostos – conjunções estas que atravessam necessariamente os vários estágios do processo de individuação de Riobaldo – apenas seriam possibilitadas pela linguagem, “porta para o infinito”, conforme disse o autor em carta a seu tradutor Günter Lorenz, e epígrafe a este estudo. O bardo, parece dizer-nos Rosa, é o intermediário entre os homens e os deuses, e a palavra escrita seria o seu instrumento de comunicação por excelência. Outras artes, como a música, por exemplo, também aparecem no texto com essa função intermediadora, mas é sem dúvida a literatura que é ali privilegiada, o que evidentemente não exclui de outros exemplos de individuação caminhos diversos para se chegar ao Si-Mesmo.

Por fim, a chave para compreender o sucesso do atualíssimo romance de Rosa, que este ano completa cinqüenta anos, poderia ser a certeza interior de que é possível chegar-se ao Selbst, ainda que apenas através da imaginação criadora. Por outro lado, esse conforto possibilitado pelo mito dá alento e prazer numa sociedade marcada pelo excessivo racionalismo e esterilidade espiritual. Assim, o propósito deste artigo é, no fundo, o de lembrar-nos que Grande sertão: veredas seria também uma ponte que nos conduziria pela fruição da beleza estética até as verdades mais profundas da mente humana. Essa atualidade simbólica do texto – que vai beber nas estruturas mesmo da mitologia e da literatura universais – prova que o paradigma continua válido, e que a viagem iniciática de Riobaldo Rosa ilumina, ainda pertinentemente, o leitor do século XXI.

 

Glossário junguiano

- anima/animus: segunda etapa do processo de individuação, esses dois arquétipos do inconsciente coletivo representam, respectivamente, o lado feminino do homem e o lado masculino da mulher. Sem a compreensão da dualidade básica humana – masculino/feminino, yin/yang –, e assumindo-a interiormente, não há amadurecimento psíquico possível. Segundo Marie Louise Von Franz, cada um desses arquétipos admite também quatro aspectos no seu desenvolvimento. Por exemplo, a anima envolve os seguintes estágios no relacionamento amoroso (metáfora representando a união dos opostos): 1- Eva: representa o relacionamento puramente instintivo e biológico; 2- Helena (de Fausto): personifica a relação já em um nível romântico e estético, embora tendo elementos sexuais; 3- Maria: eleva Eros à grandeza da devoção espiritual; 4- Sophia: a sapiência, a sabedoria que transcende até mesmo a pureza e a santidade.

- arquétipo: “resíduos psíquicos acumulados no inconsciente da Humanidade através dos séculos e revelados como "imagens primordiais", que ressurgem sempre na intuição dos poetas, independentemente do tempo e do espaço” (Moisés, p.41).

- “conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, evidenciável nos mitos e lendas de um povo, ou no imaginário individual, especialmente em sonhos, delírios, manifestações artísticas, etc” (Houaiss).

- catábase: do grego catabasis: música antiga. Progressão dos sons descendentes na música grega. Aqui utilizado no sentido de descida aos “infernos” da psique, ao encontro com a própria sombra; uma travessia para o inconsciente. Os mitos representativos dos processos de crescimento e amadurecimento de um indivíduo geralmente mostram a catábase para o mundo ctônico e desconhecido, de onde o indivíduo volta pronto para uma nova etapa de sua vida.

- coniunctius oppositorum: a união dos opostos, objetivo precípuo do processo de individuação, ocorre na primeira e segunda etapas desse processo.

- grande mãe/velho homem sábio: terceira etapa do processo de individuação, esses dois arquétipos do inconsciente coletivo identificam-se com o mesmo sexo dos indivíduos. Para um homem, por exemplo, seria Merlin. Eles simbolizam a sabedoria profunda das coisas, alcançada através da meditação, do sofrimento e da velhice, unidas a um diálogo intuitivo com o seu “deus interior” e com a realidade exterior. A união dos opostos, efetuada nos dois primeiros estágios do processo, permite a eclosão desse arquétipo, que já é um símbolo do Si-Mesmo. Apesar de etapa necessária, essa terceira fase do processo é perigosa, já que o indivíduo pode ser tomado pela “inflação”, ou seja, ser dominado pelo arquétipo com o qual está tendo contato.

- homem moderno: é a noção que liga os conceitos de mito e do processo de individuação. Ser solitário, necessitando viver o presente como uma ponte entre o passado e o futuro e bem sucedido na ocupação que escolheu. Num mundo dessacralizado, sente a necessidade de cunhar seu próprio conceito de religiosidade. Está sempre à procura de uma alma, a sua alma, que lhe permita voltar ao mundo do transcendente. Para Jung, o caminho para encontrar a alma está na viagem para dentro, buscando encontrar os “deuses” que aí se encontram escondidos.

- inconsciente coletivo: parte do nosso psiquismo que seria herdada através dos milênios de experiência cultural do homem, uma espécie de herança psíquica. Pode-se inferir sua existência através de imagens recorrentes ao psiquismo, os arquétipos.

- libido: energia psíquica. O sentido de religiosidade encontrado em todos os povos é um exemplo da transmutação da energia da libido.

- mito: “relato fantástico da tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana” (Houaiss). O mito é catártico e tem a função de tranqüilizar a psique. Em sua linguagem encontramos o pensamento mágico e alto índice de redundância. O mito ordena o mundo, criando sua própria taxionomia. O tempo do mito é “congelado”, e ele está constantemente buscando mediar os antagonismos e restabelecer o equilíbrio entre forças opostas, sobretudo entre Caos (desordem) e Cosmos (ordem). Para Jung, o mito corresponde a uma verdade psicológica importante.

- persona: etapa preliminar do processo de individuação, em que o indivíduo tem de identificar a “máscara social” de que se serve e através da qual esconde-se o verdadeiro ego. Desmascarar e depois assimilar/interiorizar os “trejeitos culturais” da sociedade na qual se vive é condição necessária ao início do processo.

- processo de individuação: a travessia/as várias etapas para alcançar uma personalidade redonda, superior; amadurecimento pessoal. Ocorre normalmente na segunda metade da vida e faz com que o indivíduo aceite os “opostos”, tanto em nível individual quanto coletivo

- psique: é um sistema dinâmico e constantemente em movimento. Não expressa exatamente a idéia de alma: é como se fosse um fluxo constante de energia que se auto-regula. Esta energia psíquica (libido) corre entre dois pólos, chamados de “opostos”, que têm função reguladora, de equilíbrio. Ela é também responsável pela criação dos símbolos do inconsciente, que se exprime, então, através de uma linguagem simbólica. Esta função transcendente tem por objetivo transformar o instinto em cultura.

- símbolos do inconsciente: o símbolo é apreendido através da intuição, que, sendo percepção através do inconsciente, faz com que seja compreendido por empatia e inteiramente absorvido pela consciência.

- Si-Mesmo/Selbst: quarta e última etapa do processo de individuação, este arquétipo do inconsciente coletivo é o ápice do desenvolvimento e amadurecimento de um indivíduo, extremamente difícil de ser alcançado pelos humanos comuns ele é simbolizado pelos grandes messias e profetas: Jesus, Buda, Maomé, e é representado pelo número 4, sendo a quaternidade o símbolo da perfeição. O indivíduo torna-se um homem cósmico quando o ego se incorpora ao Si-Mesmo. O homem cósmico representa a parte interna e imortal de cada ser humano.

- sincronicidade: conceito extremamente difícil de ser compreendido, mas que é, basicamente, a ocorrência de uma coincidência significativa, ou seja, que tinha de ser, que estava fadada a ser. Em um nível mais profundo, é o resultado da comunicação instintiva entre o mundo invisível e o físico. A sincronicidade é, também, o que permite explicar a intuição premunitória de Riobaldo, Hermógenes ou Zé Bebelo, ligada à noção de destino e carma.

- sombra: o lado “mau”, tabu, dentro de cada um, localizada no inconsciente pessoal. De uma maneira geral, nos mitos é representada por um(a) feiticeiro(a) ou qualquer personagem cruel, geralmente do mesmo sexo que o(a) herói(ina). Esses instintos geralmente encontram-se reprimidos, mas, para se alcançar a maturidade psíquica, é essencial que o indivíduo aprenda a reconhecê-los e mantê-los sob controle.

 

Referências

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Houaiss, A. (2001). Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. RJ: Ed. Objetiva.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail:taniaserra@yahoo.com

Recebido em agosto de 2005
Aceito em março de 2006

 

 

Autora
1 Tania Rebelo Costa Serra – Mestre em Literatura Brasileira (UNB), PhD em Literatura Brasileira (NYU); Professora do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB.
2 Tudo leva a crer que o tenha feito intuitivamente
3 Posteriormente publicada sob o título de Riobaldo Rosa: a vereda junguiana do Grande sertão
4 Por outro lado, seria talvez possível pensar que o número sete marca um compasso numa grande sinfonia literária, ou compõe um leitmotiv temático, no que poderia até mesmo ser visto como um palimpsesto da estrutura narrativa inicial
5 Como não há exemplo de animus na narrativa, este não será abordado neste trabalho. A mesma coisa acontece para a 4ª etapa, e aqui não será abordado o arquétipo da velha sábia, apenas o do velho sábio
6 A catábase, ou “descida aos infernos pessoais”, é característica do épico. Vide o encontro de Enéias com seu pai Anquises, nos Campos Elísios, na Eneida, de Virgílio. Haverá ao todo seis catábases na narrativa, que não serão mais mencionadas em função das limitações de espaço deste trabalho
7 Atributo de Ulisses por excelência
8 Ao contrário da Rosa"uarda de sua adolescência, que simbolizaria a sexualidade pueril, anterior ao arquétipo em questão
9 Medeiro Vaz é o segundo rei apresentado na narrativa, embora vá falhar na prova que é cruzar o Liso do Sussuarão, espécie de rito de iniciação, ou catábase, necessário para o jagunço ser aprovado como rei
10 Os três grandes reis mencionados na narrativa são: Joca Ramiro, Medeiro Vaz e o Urutu-Branco, numa reiteração da estrutura mítica do eterno retorno, simbolizado pela morte do antigo rei e a chegada do novo rei
11 A mulher do Hermógenes, nunca expressamente nomeada, e que vinha sendo trazida refém do Urutu-Branco desde que haviam saído de sua fazenda por detrás do Liso do Sussuarão
12 Numa alusão à morte simbólica do iniciado
13 Riobaldo Rosa, a quem também poderíamos nos referir como o paradigma do homem moderno que encontrou a sua alma, numa referência à hipótese de Jung no ensaio “Modern man in search of a soul” (“O homem moderno à procura da alma”)

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