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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.41 Canoas Aug. 2013

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Autopercepção de dificuldades escolares em alunos do ensino fundamental e médio em município do Rio Grande do Sul

 

Self-perception of learning difficulties in students of elementary and high school in a city in Rio Grande do Sul

 

 

Julia Almeida GodoyI; Rafaela Carvalho AbrahãoI; Ricardo HalpernI,II

I Universidade Luterana do Brasil
II Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

Endereço para contato

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo investigar a autopercepção de áreas do desenvolvimento infantil que são relevantes no desempenho escolar e podem levar a dificuldades escolares em alunos do ensino fundamental e médio de um município do Rio Grande do Sul, bem como sua associação com repetência, sexo e nível de escolaridade dos pais. Foi realizado um estudo transversal de base populacional com 1070 escolares. Os dados foram analisados através de estatística descritiva. Os resultados indicaram maior autopercepção de dificuldades escolares no sexo feminino. Também foi observada significância estatística nas correlações entre repetência, nível de escolaridade dos pais dos alunos e sexo. A partir dos resultados foi possível constatar que a autopercepção negativa pode ser determinante no desempenho dos alunos. Investigações sobre o tema são relevantes para o planejamento de intervenções no âmbito escolar.

Palavras-chave: Dificuldades escolares, Desempenho escolar, Autopercepção.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the self-perception of learning difficulties in students of elementary and high school in a city in Rio Grande do Sul, as well as its association with repetition, gender and level of parental education. Cross-sectional population-based study comprising 1070 students. Data were analyzed through descriptive statistics. The results indicated a higher perception of learning difficulties in women. Significance was also observed in correlations between repetition, parents education level and students gender. From the results it can be concluded that research on this issue are relevant for planning interventions in the school setting. Negative self-perception can be determinant in student performance.

Keywords: School difficulties, Academic performance, Self-perception


 

 

Introdução

O desenvolvimento humano compreende as contínuas mudanças que ocorrem ao longo da vida do indivíduo e vão desde a concepção até a morte, passando por todas as etapas (nascimento, infância, adolescência, adultez e velhice) (Fonseca, 1998). As diversas mudanças que ocorrem nos primeiros ciclos da vida são aceleradas e amplas, podendo ser divididas em quantitativas e qualitativas. Tais mudanças ocorrem no desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial (Papalia, Olds & Feldman, 2006). A infância, que é dividida em três fases principais, pode ser entendida como um período de extrema importância para o desenvolvimento humano. A primeira infância abrange desde o nascimento até os três anos de vida; a segunda infância, dos três aos seis anos; e a terceira infância, dos seis aos onze anos de idade (Papalia, Olds & Feldman, 2006).

Na adolescência, os principais aspectos são a busca de identidade e o papel das amizades em desenvolver e testar o autoconceito. O autoconceito, ou autopercepção, também pode ser definido como a forma pela qual a criança ou adolescente percebe suas habilidades e dificuldades individuais (motoras, cognitivas, familiares, sociais, afetivas), e pela ideia que tem de si próprios, tendo uma grande influência na autoestima (Campos, 2004). Portanto, é importante para crianças e adolescentes desenvolver autoconceito positivo e autoestima elevada, a fim de melhorar as chances de uma vida adulta satisfatória (Sternke, 2010).

Tanto na terceira infância, quanto na adolescência, a escola é a experiência central do desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial. Essa experiência tem um papel essencial na formação da autopercepção dos jovens (Stevanato, Loureiro, Linhares & Marturano, 2003). As crianças e adolescentes com dificuldades escolares apresentam um elevado risco de se perceber de forma negativa, o que amplia a possibilidade de problemas no contexto social e acadêmico, além de provocar prejuízo nos relacionamentos interpessoais. A autopercepção negativa também interfere no ajustamento social e provoca elevado risco de comportamento evitativo, favorecendo a tendência ao isolamento social (Elbaum & Vaughn, 2001).

As dificuldades escolares e dificuldades de aprendizagem normalmente estão associadas a diferentes etiologias, envolvendo fatores orgânicos, intelectuais, comportamentais, emocionais, ou uma inter-relação entre todos (Undheim, 2003). Tais dificuldades podem se expressar na vida do estudante de forma internalizada (retração social, ansiedade, depressão, etc.) ou externalizada (agressão verbal ou física, destruição de objetos, mentira, entre outros) (Roeser & Eccles, 2000).

Não há consenso na literatura em relação à definição para as dificuldades de aprendizagem, descritas sob diferentes perspectivas (Mazer, Dall Bello & Bazon, 2009). Numa perspectiva orgânica, essas dificuldades são consideradas como desordens neurológicas e são manifestadas por dificuldades importantes na aquisição e uso da linguagem, audição, leitura, escrita, raciocínio e habilidades matemáticas ou sociais (Correia & Martins, 2005).

Já numa perspectiva educacional, refletem uma incapacidade ou impedimento para a aprendizagem da leitura, escrita e matemática, ou ainda para aptidões sociais (Correia & Martins, 2005). É importante destacar que as dificuldades de aprendizagem não podem ser consideradas como problemas insolúveis, mas sim como desafios que fazem parte do próprio processo da aprendizagem (Ballone, 2005). Quando a capacidade produtiva da criança não se desenvolve adequadamente surgem as limitações, que geram baixa autoestima e pouca aceitação por parte dos colegas (Ferreira, Conte & Marturano, 2011). A baixa qualificação aumenta o sentimento de incapacidade e contribui para a manutenção do fraco desempenho (Ferreira, Conte & Maturano, 2011; Cia & Barhman, 2008).

Estudos atuais na área da educação destacam a necessidade de atenção para as dificuldades de aprendizagem. Entretanto, alguns autores brasileiros (Mazer, Dall Bello & Bazon, 2009), apontam que, de maneira geral, a literatura especializada discorre sobre esse tema sem discriminar as causas das consequências. Segundo esses autores, a dificuldade de aprendizagem pode ser um fator de risco para problemas psicossociais. Por outro lado, quando os fatores de risco são preexistentes, a criança poderá vir a ter problemas nessa área. Essa ideia é corroborada por Elias (2003), ao salientar que o sucesso escolar favorece o desenvolvimento socioafetivo adequado.

As dificuldades de aprendizagem podem afetar de forma negativa o desenvolvimento da criança, conforme já dito anteriormente, bem como o ajustamento nas etapas subsequentes do desenvolvimento. Esse aspecto se intensifica quando se apresenta associado a fatores de risco presentes no ambiente familiar e social. A educação brasileira e os altos índices de repetência e evasão escolar refletem tal colocação (Ministério da Educação, 2002). Os fatores de risco presentes no ambiente social e familiar de grande parte da população de escolares tem sido foco de interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento (Cia & Barhman, 2008). Aprofundar o conhecimento sobre variáveis que influenciam no desempenho escolar de crianças e adolescentes é importante, na medida em pode fornecer subsídios para intervenções focadas no âmbito escolar. Dessa forma, esse estudo buscou investigar a autopercepção dos alunos sobre áreas do desenvolvimento relevantes no desempenho escolar e que podem levar a dificuldades escolares, no sentido de prevenir que alunos com plena capacidade sejam rotulados ou classificados com deficiências. Esse tipo de equívoco pode intensificar os problemas e dificuldades escolares, ou até mesmo levar os alunos ao fracasso escolar, quando muitas vezes o problema reside na autopercepção negativa.

 

Método

Foi realizado um estudo transversal de base populacional, cujos dados foram derivados de um banco de dados já existente, coletados no ano de 2004. Participaram 1070 estudantes do ensino fundamental e médio, desde a 5ª série, de escolas públicas (municipais e estaduais) e privadas em um município do Rio Grande do Sul.

Os alunos foram indicados por listas fornecidas pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul (SEC) referentes ao 2º semestre de 2003, ano em que foram matriculados cerca de 7310 alunos. A Delegacia de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul (DEE) também forneceu uma lista contendo 11.973 alunos. A escola Martinho Lutero indicou 305 alunos diurnos e a Escola de Ensino Fundamental Padre José Eichelberger indicou 75 alunos, perfazendo assim, um total de 19.662 escolares. Considerando uma frequência esperada de 20%, um erro de mais ou menos 5% e uma confiança de 95%, seriam necessários 480 escolares no mínimo. A partir de um efeito de delineamento e possíveis perdas e recusas, foram necessárias 960 crianças, para garantir maior representatividade possível ao estudo. O cálculo da amostra foi realizado com Software Epi Info 6.

Foi aplicado um questionário semiestruturado, onde os alunos responderam de forma anônima sobre dados sociodemográficos e hábitos de vida e questionário sobre autopercepção de doze áreas do desenvolvimento relevantes no desempenho escolar, a saber: motricidade fina, motricidade ampla, memória, atenção, afeto, linguagem, orientação visomotora, processamento simultâneo, orientação temporal, decodificação, interação social e autoavaliação. Em cada uma das áreas analisadas, foram apresentados os principais aspectos relevantes no desempenho escolar e que poderiam levar a dificuldades nesse âmbito. Os sujeitos do estudo responderam a cada uma dessas situações dentre três opções: "sim eu tenho tal dificuldade"; "às vezes apresento tal dificuldade"; "não apresento dificuldade nunca".

Destaca-se que no presente estudo o questionário não foi utilizado em sua totalidade. Os alunos preencheram o instrumento dentro de um período de 60 minutos, sendo que as dúvidas existentes foram respondidas para toda a turma pela pessoa responsável por coletar os dados.

É importante informar que após a definição da amostra a pesquisadora visitou as escolas e realizou o primeiro contato junto à direção ou ao serviço de Orientação Pedagógica, onde entrou com uma carta de apresentação endereçada ao diretor da escola, contendo uma breve justificativa e o propósito do estudo, a sistemática da coleta de dados e o seu funcionamento. Além dessa carta, foi entregue um ofício de apresentação e permissão para o desenvolvimento da pesquisa, fornecido pela secretaria de Educação e Cultura.

As respostas dos questionários foram digitados no programa Epi Info 6 com dupla digitação, após o banco de dados foi impresso e conferido com os originais. A análise dos dados foi feita através do programa SPSS versão 18.0. Foi realizada análise descritiva através de média e desvio padrão para as variáveis contínuas e frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas. A comparação dos escores de dificuldades entre as variáveis foram realizadas através dos testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis seguido do teste de comparações múltiplas de Dunn com ajuste de Bonferroni. O nível de significância considerado foi de 0,05.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Ulbra (número 204-268H). Foi aprovado em seus aspectos éticos e metodológicos, inclusive quanto ao seu Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com as Diretrizes e Normas Internacionais e Nacionais, e a Resolução 196/96 e complementares do Conselho Nacional de Saúde. A Delegacia de Educação, Secretaria de Educação do município e as escolas particulares Martinho Lutero e Padre Eichelberger assinaram o termo de consentimento onde foi informado que se tratava de um estudo observacional com riscos mínimos.

 

Resultados

Foram avaliados 1070 escolares, matriculados na rede pública estadual e municipal, e na rede particular de um município do Rio Grande do Sul, no ano de 2004. Dos 1070 estudantes, 71 pertenciam a escolas particulares e 999 a escolas públicas (estaduais e municipais). Do total da amostra 49,3% (528) eram do sexo masculino e 50,7% (542) do sexo feminino. A idade média era de 13,82 anos com desvio padrão (DP) de ± 2,12.

Quarenta e três por cento dos alunos repetiram algum ano letivo, e desses, vários repetiram mais de uma série. A 5ª série foi a que apresentou o maior índice neste quesito com 5,8% de repetência (62 alunos), em segundo lugar foi a 1ª série do ensino fundamental com 4,9% totalizando 52 alunos, seguindo pela 6ª série com 4,6% (49 alunos), 4ª série com 3,5% (37 alunos) e 7ª série com 3,3% (35 alunos).

No que se refere às habilidades escolares, foram avaliadas as seguintes áreas do desenvolvimento: motricidade fina, motricidade ampla, memória, atenção, linguagem, orientação visomotora, processamento simultâneo, orientação temporal, afeto, autoavaliação, decodificação e interação social. Em cada uma das doze áreas analisadas, foram apresentados os principais aspectos relevantes no desempenho escolar e que poderiam levar a dificuldades nesse âmbito. Os sujeitos do estudo respondiam cada uma dessas situações dentre três opções: "sim eu tenho tal dificuldade"; "às vezes apresento tal dificuldade"; "não apresento dificuldade nunca".

Referente à motricidade fina, a maior parte dos escolares respondeu positivamente a três das cinco situações, representando 28,1% do total de alunos. No quesito motricidade ampla, a maioria respondeu positivamente a duas de cinco (28,6%); memória, três de cinco situações (25,6%); atenção, quatro de cinco (25,6%); linguagem duas de cinco (22%); orientação visomotora, uma de cinco (28,6%); processamento simultâneo, três de cinco (25,8%); orientação temporal, duas de cinco (26,5%); afeto, três de cinco (25,5%); autoavaliação, três de cinco situações (39,6%); decodificação, seis de dez (14,2%) e interação social, quatro de dez (17,6%), conforme Tabela 1.

 

 

 

 

Quando comparada a autopercepção de problemas em cada uma das áreas, com o sexo dos alunos, cinco destas áreas apresentaram associação estatisticamente significante. Em todas as áreas que mostraram significância estatística, as estudantes do sexo feminino tiveram uma média maior de autopercepção de dificuldade do que os estudantes masculinos, conforme Tabela 2. As áreas que apresentaram tal correlação são: motricidade ampla, orientação visomotora, afeto, decodificação e por último, interação social. Na motricidade ampla, por exemplo, área que apresentou maior diferença de percepção de dificuldade entre os sexos, a média encontrada pelas meninas foi de 2,31 com desvio padrão de 1,34. Já a dificuldade percebida pelos meninos foi em média 1,77 com desvio padrão de 1,24.

 

 

Outra associação verificada foi entre repetência escolar e as doze áreas analisadas no estudo. Houve significância nesta relação apenas nas áreas citadas a seguir: motricidade ampla, memória, atenção, linguagem e decodificação. A motricidade ampla foi a única área em que os alunos que perceberam mais dificuldade não haviam repetido nenhuma série. Nas demais áreas que apresentaram significância estatística os alunos que perceberam mais dificuldade já haviam repetido algum ano letivo, conforme a Tabela 3.

 

 

O nível de escolaridade dos pais em comparação com as dificuldades percebidas pelos alunos em cada área do desenvolvimento também foi observado. Ao todo, 1053 alunos sabiam o nível de escolaridade do pai, dos quais, 15 eram analfabetos, 669 estudaram apenas o ensino fundamental, 270 completaram o ensino médio e 99 o ensino superior.

Correlacionando tais dados com a percepção de dificuldade dos estudantes, houve significância estatística na área de motricidade ampla entre os filhos de pais com ensino superior em comparação a filhos de pais com ensino fundamental, e filhos de pais analfabetos. O mesmo foi observado na área de linguagem. Quanto à dificuldade de decodificação, os filhos de pais com maior escolaridade mostraram menor percepção de dificuldade do que os demais extratos. No quesito interação social, a significância apareceu entre os alunos de pais com ensino superior em relação aos demais, conforme apresentado na Tabela 4.

 

 

Foram 1064 os estudantes que sabiam o nível escolar da mãe. Destas, 12 eram analfabetas, 691 haviam completado o ensino fundamental, 266 o ensino médio e 95 mães tinham o ensino superior. A correlação das áreas de dificuldade dos alunos com o grau de escolaridade das mães foi de relevância estatística em seis das doze áreas analisadas no estudo.

Na motricidade ampla, houve diferença na percepção de dificuldades entre alunos com mães que tinham o ensino superior comparado a alunos com mães analfabetas; filhos de mães com ensino médio comparado a filhos de mães analfabetas; e filhos de mães com ensino fundamental comparado a filhos de mães analfabetas.

Na área da atenção, a diferença foi entre escolares filhos de mães com ensino superior comparado a filhos de mães com ensino fundamental. Diante das dificuldades com a linguagem, houve relevância em três correlações: percepção dos filhos com mães de ensino superior comparado a filhos de mães com ensino fundamental; entre alunos de mães com ensino superior comparado a alunos de mães analfabetas e, por fim, de filhos de mães com ensino médio comparado a filhos de mães com ensino fundamental.

Na orientação visomotora houve diferença apenas na autopercepção de dificuldade de filhos de mães com ensino superior comparado a filhos de mães analfabetas. Nas áreas de decodificação e interação social apesar da significância do teste de Kruskal Wallis não houve diferença significativa quando realizado o teste de Dunn com ajuste de Bonferroni (Tabela 4).

 

Discussão

As áreas de aprendizado referentes à autopercepção de dificuldades entre escolares de ambos os sexos que apresentaram significância estatística foram as seguintes: motricidade ampla; orientação visomotora; afeto; decodificação e interação social. Como resultado da análise, em todas as áreas citadas as estudantes do sexo feminino apresentaram uma média maior de percepção de dificuldades comparado aos estudantes do sexo masculino.

Embora as meninas participantes deste estudo tenham apresentado maior percepção de dificuldades escolares em relação aos meninos, de acordo com outros estudos (Nopola-Hemmi et al., 2002; Selikowitz, 2001), as incapacidades de aprendizado ocorrem de duas a cinco vezes mais frequentemente em meninos do que em meninas. A crença de alunos e alunas sobre suas capacidades podem influenciar o comportamento e a motivação diante da tarefa escolar (Roeser & Eccles, 2000). Esses aspectos, por sua vez, afetam o desempenho de forma direta atrasando as intervenções quando estas se fazem necessárias.

Os padrões educacionais ainda vigentes podem favorecer o sexo masculino, aceitando com maior facilidade o baixo desempenho escolar dos alunos homens (Capellini, Tonelotto & Ciasca, 2004). Dessa forma, pode-se inferir que a percepção negativa sobre dificuldades escolares das participantes do sexo feminino neste estudo, pode ser relacionada aos padrões referidos acima, em uma perspectiva de gênero e o ainda persistente preconceito imposto ao sexo feminino. Esses achados são corroborados por outros autores (Silveira, Sabbag & Cardoso, 2009), no estudo sobre o perfil de personalidade de escolares com dificuldade de aprendizagem. Segundo os mesmos, os escolares do sexo masculino são ensinados a desempenhar uma versão de masculinidade dentro e fora da sala de aula, que seja bem sucedida.

Estudo de Martinelli, Schiavoni e Bartholomeu (2009) apontou que numa avaliação de professores, diante de alunos de ambos os sexos, o bom desempenho escolar das meninas foi atribuído ao seu esforço, enquanto o desempenho inferior dos meninos foi percebido como "não realização" de um potencial brilhante devido ao seu comportamento ativo. Da mesma forma, outros autores apontam que os professores frequentemente preferem ensinar os alunos do sexo masculino (Silveira, Sabbag & Cardoso, 2009), pois são considerados como mais interessantes e inteligentes. As meninas, embora elogiadas por sua responsabilidade, são preteridas em relação aos meninos, que são considerados mais estimulantes e criativos, o que afeta diretamente a autopercepção sobre o desempenho escolar global.

A autopercepção de dificuldades escolares se apresenta muito clara quando relacionada à repetência do ano letivo. Nesta correlação os resultados do estudo mostraram que dentre as doze áreas analisadas, apenas seis delas apresentaram significância estatística, como segue: motricidade ampla; memória; atenção; linguagem; processamento simultâneo e decodificação.

A motricidade ampla foi a única área em que os estudantes não repetentes perceberam mais dificuldade que os alunos repetentes. Nas demais áreas analisadas os alunos que haviam repetido algum ano letivo perceberam mais dificuldade. Embora a motricidade ampla não possa ser separada do desenvolvimento intelectual e nem da afetividade, a percepção de um bom desempenho acadêmico encontra-se fortemente relacionada com o sucesso na escola (Giancaterino, 2011), o que está em consonância com os achados deste estudo.

Fatores ambientais e pessoais também são apontados como variáveis que afetam a autopercepção de escolares sobre seu desempenho, influenciando a aprendizagem e a motivação (Bandura, Barbaranelli, Caprara, Pastorelli & Regalia, 2001). Dessa forma, o insucesso acadêmico pode levar a um senso de não cumprimento da tarefa psicossocial de desenvolvimento esperada para a faixa etária investigada neste estudo.

O nível de escolaridade dos pais dos alunos, quando correlacionado a autopercepção de dificuldades escolares, apresentou significância estatística nas áreas de motricidade ampla, linguagem, decodificação e interação social. Na motricidade ampla as associações que tiveram relevância foram entre os filhos de pais com ensino superior comparado a filhos de pais com ensino fundamental e filhos de pais analfabetos. Em ambas, os filhos de pais com menor nível escolar perceberam mais dificuldades do que os filhos de pais com mais anos de estudo. Essa correlação também foi encontrada nas demais áreas investigadas. A falta de qualificação profissional e a baixa escolaridade de pais podem se estabelecer como risco para um pior rendimento acadêmico de seus filhos, pois essas famílias tendem a ter menos condições de orientar e auxiliar os filhos na escola (Dos Santos & Graminha, 2005). Como contraponto, estudo de Carvalho e Allain (2012) sobre influências dos pais observadas nos hábitos escolares dos filhos apontou que não houve correlação estatística entre o acompanhamento dos estudos dos filhos e a escolaridade dos pais.

O nível de escolaridade das mães ao ser correlacionado com a percepção de dificuldade dos estudantes também apresentou significância estatística em algumas áreas do desenvolvimento, como motricidade ampla, atenção, linguagem, orientação visomotora, decodificação e interação social. Os filhos de mães com ensino superior perceberam menos dificuldades de aprendizado em comparação aos outros níveis de escolaridade de suas genitoras. Tais achados apontam para a importância da cultura familiar de valorização do estudo. O nível de escolaridade tanto de mães como de pais, tem sido referido como o melhor preditor socioeconômico do desempenho escolar (Brandley & Corwyn, 2002). Especificamente quanto à escolaridade materna, estudos apontam que mães com mais anos de estudo tendem a ter um maior envolvimento com a vida escolar dos filhos e, em decorrência desse envolvimento, associa-se um melhor desempenho dos alunos (D'Avila-Bacarji & Martuno, 2005). Da mesma forma, estudo de Carvalho e Allain (2012) apontou que mães com maior grau de escolaridade estimulam o hábito de leitura dos filhos, o que pode ser associado à observação dos filhos aos hábitos das mesmas, e assim contribuir no desempenho escolar.

Os resultados indicaram que variáveis como o contexto familiar e a manutenção de uma cultura que ainda favorece o sexo masculino, são relevantes e devem ser consideradas quando se investiga o espaço escolar, visto que podem ter alguma influência na autopercepção e no desempenho dos alunos ao longo do tempo. Nesse sentido, considera-se importante destacar os achados, já mencionados, que apontaram que em todas as áreas investigadas as estudantes do sexo feminino apresentaram uma média maior de percepção de dificuldades comparado aos estudantes do sexo masculino.

A partir dos resultados encontrados no presente estudo podemos considerar que as investigações sobre autopercepção de áreas do desenvolvimento relevantes no desempenho escolar e de dificuldades escolares são importantes, para o planejamento de intervenções no âmbito escolar. A autopercepção negativa pode ser determinante no desempenho dos alunos, conforme descrito na literatura pesquisada.

O presente estudo apresenta algumas limitações. A primeira refere-se ao fato de que não foi investigado o real desempenho (notas) dos alunos participantes, a fim de compará-lo com as percepções negativas. Outra delas consiste no fato de que as análises realizadas levaram em conta exclusivamente a percepção dos escolares nas diferentes áreas do aprendizado. Esse tipo de investigação pode levar a possíveis vieses na interpretação dos resultados. A forma como os escolares percebem suas dificuldades pode ser influenciada por diferentes variáveis dos seus aspectos cognitivos e ambientais.

Este foi um estudo correlacional, cujos resultados devem ser vistos como indicativos de associação, e não de relações de causa e efeito (Marsh & Craven, 2006). Dessa forma, sugere-se que em estudos futuros sobre esse tema possam ser investigados também outros atores do contexto em que os alunos estão inseridos, como pais, mães, cuidadores e professores, para comparar às percepções dos estudantes. No entanto, vale lembrar que nesta pesquisa, o objetivo foi investigar a autopercepção dos alunos em áreas do desenvolvimento que são relevantes no desempenho escolar e as dificuldades decorrentes da mesma. Pelos resultados aqui descritos é possível ter uma visão global sobre o fenômeno da autopercepção no desempenho escolar e como isso reflete nas dificuldades nesse âmbito, que precisaria ser complementada com outras investigações que contemplem as individualidades dos sujeitos. Análises qualitativas e com amostras reduzidas são recomendadas para captar as sutilezas do tema em questão.

 

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Endereço para contato
E-mail: ju_godoy@hotmail.com

Recebido em novembro de 2013
Aceito em maio de 2014

 

 

Julia Almeida Godoy: Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Luterana do Brasil.
Rafaela Carvalho Abrahão: Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Luterana do Brasil.
Ricardo Halpern: Professor Associado de Pediatria UFCSPA e Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Pediatra especialista em Desenvolvimento e Comportamento, Center for Development and Learning, University of North Carolina at Chapel Hill.

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