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Aletheia
Print version ISSN 1413-0394
Aletheia no.45 Canoas Dec. 2014
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Símbolos, complexos e a construção da identidade na psicoterapia com crianças
Symbols, complexes and the construction of identity in children psychotherapy
Clarice Haubert; André Guirland Vieira
RESUMO
O presente estudo apresenta um relato do processo psicoterapêutico de uma criança e sua família com o objetivo de estudar a função dos símbolos, complexos e dos conflitos familiares na construção da identidade de um menino de 8 anos. Os dados foram registrados através de entrevistas com a criança, pais, professoras. Foram também feitos registros diários das sessões. A análise da produção simbólica mostrou um conflito na identidade sexual, construído a partir da história familiar. A partir dos resultados, é possível concluir que o trabalho sobre a expressão simbólica exerce uma função terapêutica, na medida em que possibilita uma melhor compreensão dos conflitos por parte do psicoterapeuta, da família e da própria criança. O estudo também mostrou o papel crucial da família tanto na origem dos conflitos psicológicos da criança como em sua resolução.
Palavras-chave: Sandplay, Brinquedo simbólico, Psicoterapia infantil, Identidade, Psicologia Analítica.
ABSTRACT
This study presents an account of the psychotherapeutic process of a child and his family in order to investigate the role of symbols, complexes and family conflicts in the construction of the identity of an 8-year-old boy. Data was gathered from interviews with the parents and teachers as well as from the registration of the daily sessions with the child. The analysis of the symbolic production showed that the main conflict was related to sexual identity, originated in the family history itself. From the results it is possible to conclude that to work on the symbolic expression has a therapeutic role, since it provides a better understanding of the conflicts to all, the psychotherapist, the family and the child. The participation of the family in both, the origin of the child psychological conflicts and in their resolution, was also shown as crucial.
Keywords: Sandplay, Symbolic play, Children psychotherapy, Identity, Analytical Psychology.
Introdução
Identidade, complexos e história familiar
O presente estudo é o relato de experiência com uma criança e sua família em um processo de psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica. Investigamos ali a função dos símbolos, complexos e dos conflitos familiares na construção da identidade de um menino de 8 anos.
Jung (1926/1986) concebe o desenvolvimento da Personalidade em um percurso que inicia na infância e que se estende ao longo da vida da pessoa. Até cerca de 3 anos de idade, por um estado de inconsciência de si mesma, a criança está relativamente fundida às condições do meio ambiente, de modo que ocorre uma identificação entre seu estado psíquico e a psique dos pais. Somente na adolescência o sujeito assume relativa independência em relação ao psiquismo dos progenitores. Em função desta identificação inconsciente, a criança tende a assimilar e reproduzir a visão de mundo dos pais, suas formas de sentir, de se comportar e de se posicionar na vida, aspectos peculiares de cada família que geralmente passam despercebidos. A esta visão de mundo adquirida, Jung chamou de complexo. Os complexos são transmitidos de geração em geração, justamente devido à tendência de repetição dos modelos parentais.
Enquanto elementos constituintes da personalidade, os complexos são formadores da individualidade. Jung (1907/1986) já havia apontado para o fato de certos complexos possuírem um efeito duradouro na personalidade, o que em geral era causado por experiências de vida marcantes. Tais experiências podiam ser eventos traumáticos, como acidentes que acabavam deixando sequelas determinantes ao rumo de uma vida, mas também por uma fragilidade exposta que acabava construindo um modo específico de se relacionar com os outros ou também por uma educação familiar e cultural capaz de construir uma determinada visão de mundo. Jung (1934/1984) entendeu que a diversidade dessas experiências proporcionada pelas diferenças nas trajetórias históricas de cada pessoa estabelecia a base psicológica para a construção da singularidade dos indivíduos. Assim, a individualidade seria construída a partir de uma história familiar de posicionamentos diante da vida, sejam eles problemáticos ou não (Jung, 1926/1986).
A função do símbolo na psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica
Segundo Jung (1912/1999) o homem possui dois tipos de pensamento: o pensamento lógico e o pensamento fantasia. O pensamento lógico é voltado à realidade externa e objetiva, visando à adaptação. Ele trabalha com conceitos linguísticos e constitui o instrumento da cultura. O pensamento fantasia é espontâneo e opera por associações, produzindo analogias e metáforas. Ele é o veículo das tendências subjetivas, sendo expressão dos motivos inconscientes. Por isso, sua linguagem é simbólica. Símbolo é uma imagem que embora possa ser familiar, tem uma conotação para além do seu significado manifesto, imediato e convencional, implicando algo vago, desconhecido ou oculto (Jung, 1964/1977). Os símbolos são produzidos pelo inconsciente, e os sonhos são sua via régia. Segundo Jung, os sonhos são orientados para uma meta, contendo um sentido e uma finalidade. Mediante os sonhos, o inconsciente compensa a consciência, visando o restabelecimento de um equilíbrio psíquico eventualmente perdido (Jung, 1964/1977; 1916/2000b). Imagens e associações análogas a mitos e ritos primitivos muitas vezes emergem nos sonhos. Tais símbolos não têm origem individual, sendo representações coletivas que perpassam a história de povos e culturas. A esta porção da psique, Jung (1916/2000b) deu o nome de Inconsciente Coletivo.
Na psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica, a análise dos sonhos assume lugar central como método investigativo. Os sonhos são dramatizações da situação atual da psique, tanto inconsciente como consciente, propiciando acesso aos complexos e à dinâmica psicológica do sujeito. Ao representar os conteúdos psíquicos através de uma imagem, cena ou drama, o sonho permite ao sonhador a tomada de consciência sobre o modo como tem se posicionado diante das mais variadas situações de vida, o que o permite agir em prol da restauração de seu equilíbrio psicológico. Dessa forma, os sonhos exercem uma função autorreguladora do psiquismo. Esta função autorreguladora ocorre igualmente em outras expressões criativas e simbólicas, como a pintura, a modelagem, o brinquedo e as artes de modo geral, pois "os símbolos não ocorrem apenas nos sonhos: aparecem em todos os tipos de manifestações psíquicas" (Jung, 1964/1977, p.55).
Os sonhos de crianças são particularmente significativos; não raro, esses primeiros sonhos apresentam uma antecipação do seu destino (Jung, 1938/2011). O conteúdo dos sonhos e de toda produção simbólica da criança exprime muitas vezes conflitos parentais e dramas familiares, alguns deles preexistentes à própria criança (Jung, 1926/1986). Através das imagens retratadas em desenhos e pinturas, o distúrbio emocional e os afetos podem ser expressados, clarificados e posteriormente trabalhados pelo psicoterapeuta (Jung, 1916/2000b). Silveira (1982; 1992/2001) referiu que o desenho, a pintura e a modelagem quando feitos livremente, permitem acesso aos fenômenos internos, aos conteúdos arcaicos invasores do inconsciente, provindos dos estratos mais profundos da psique; tais imagens expressam a situação do consciente e do inconsciente, constelados por experiências vividas pelo indivíduo.
O brincar na caixa de areia ou Sandplay, tal como proposto por Kalff (1980), é outra modalidade de acesso ao inconsciente da criança. Utiliza-se uma caixa de areia com dimensões de 72 x 50 x 7,5 cm, junto com uma série de brinquedos em miniatura, representando objetos, situações e seres do mundo concreto ou mítico para que a criança construa cenários de forma espontânea. Na construção dos cenários, busca-se que a criança dramatize seus conflitos. Visa-se também que, a partir dessa dramatização, uma solução seja encontrada (Ammann, 2002; Vieira, 2006a; Weinrib, 1983/1993).
O processo de interpretação dos símbolos na Psicologia Analítica
Para Jung (1916/2000b), a interpretação dos sonhos e fantasias envolve dois processos: a contextualização e a amplificação. A contextualização consiste em reconstituir o contexto do sonho, visando estabelecer seu texto. Ela baseia-se na consideração objetiva da imagem do sonho, nas associações do sujeito sobre os elementos oníricos, na série de sonhos e na situação atual da consciência, dada pela história de vida da pessoa. No tratamento de crianças é relevante considerar também a história familiar. A amplificação consiste em buscar representações das imagens ou dos símbolos na cultura, de modo a traçar analogias com as fantasias do indivíduo (Jung, 1916/2000b; Vieira, 2006b).
O sonho apresenta estruturas ou fases semelhantes ao drama, com início, meio e fim. O sonho é um drama vivido internamente. A primeira fase é a exposição, a qual indica o lugar da ação, os personagens e a situação. A segunda é o desenvolvimento da ação; aqui, a situação se complica, o problema passa a atuar e torna-se mais complexo, além de haver certa tensão. A terceira fase é a culminação ou peripécia, em que ocorre algo decisivo ou a situação muda inteiramente. A quarta fase, por fim, é a lise, contendo a solução ou o resultado produzido pelo trabalho do sonho (Jung, 1916/2000b; 1938/2011; Vieira, 2006a). A análise de uma série de sonhos mostra uma interligação coerente entre os temas oníricos (Jung, 1938/2011), clarificando o teor dos conflitos psicológicos. Isto proporciona uma tomada de consciência dos problemas mais significativos que afligem uma pessoa e em alguns casos permite um vislumbre sobre como esta falta pode ser compensada ou corrigida. No tratamento de crianças, as produções simbólicas podem ser analisadas e interpretadas pelo mesmo processo proposto para os sonhos. Quando lidas em uma série, estas imagens e dramatizações são capazes de revelar de forma objetiva os conflitos mais significativos. Considerando que o pensamento e a linguagem da criança são eminentemente simbólicos e que ela expressa seus sentimentos e conflitos mediante o brincar, temos por objetivo estudar a maneira como os símbolos contribuem para a ação terapêutica em uma psicoterapia com criança.
Método
Participou deste estudo uma criança com idade de 8 anos, do sexo masculino, frequentando o Ensino Fundamental, residente no Rio Grande do Sul, morando com os pais e duas irmãs. O participante foi selecionado dentre as crianças que vivenciaram um conflito psíquico e estiveram em tratamento psicoterápico com orientação na Psicologia Analítica conduzido pela pesquisadora.
O levantamento dos dados foi procedido mediante os seguintes instrumentos: a) entrevista aberta com os pais: foram investigados o motivo da consulta, a história de vida da criança com os respectivos sintomas e sua evolução, a história familiar e dados de anamnese, conforme necessário; b) entrevista aberta com professora e orientadora educacional: levantamento da situação da criança na escola em termos de desenvolvimento cognitivo, emocional, social, vivências e eventos significativos; c) registros diários das sessões de psicoterapia: verbalizações da criança, os eventos relatados por ela, os comportamentos não verbais e as atividades realizadas; d) produção plástica realizada pela criança, através de desenhos, pinturas e modelagens: disponibilizados materiais plásticos para a realização livre e espontânea de desenhos, pinturas e modelagens, e registrados os relatos, as estórias e as associações da criança sobre os mesmos (Jung, 1916/2000b; 1917/2004; Silveira, 1992/2001; e) fotografias do brincar simbólico na caixa de areia: foram disponibilizados brinquedos e uma caixa de areia para que a criança criasse cenários de forma livre e espontânea; foram fotografados os cenários que a criança construiu na caixa de areia e registrados os relatos, as estórias e as associações da criança sobre os mesmos (Jung, 1916/2000b; 1917/2004; Vieira, 2006; Ammann, 2002); f) sonhos: foram registrados os sonhos relatados pela criança e suas respectivas associações (Jung, 1916/2000b; 1917/2004; Vieira, 2006).
Foi utilizado delineamento de estudo de caso único (Yin, 1994/2001), buscando analisar os símbolos e sua função terapêutica na psicoterapia infantil, bem como uma compreensão do caso analisado. Foi efetuada a seleção do participante dentre os pacientes atendidos pela pós-graduanda, e procedeu-se o contato inicial para propor a participação na pesquisa junto ao responsável legal, com os devidos esclarecimentos acerca dos objetivos, privacidade e o caráter voluntário. Após, a criança foi consultada sobre a possibilidade de sua participação, também sendo esclarecida conforme descrito antes. Confirmado o interesse de participação, foi lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo responsável legal e pelo participante. Posteriormente, os instrumentos de coleta de dados foram organizados para proceder ao levantamento e à análise dos dados.
Foram adotados os princípios éticos referentes à proteção dos direitos, bem-estar e dignidade dos participantes, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, e a resolução número 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia, dispondo sobre a realização de pesquisas em psicologia com seres humanos. No presente estudo, os nomes dos sujeitos de pesquisa foram omitidos, tendo sido substituídos por nomes fictícios.
Toda produção simbólica foi analisada e interpretada conforme proposto pela Psicologia Analítica, contemplando os processos de contextualização e amplificação. Os sonhos e narrativas foram analisados segundo o modelo de análise dramática de Jung (1916/2000b; 1917/2004), que organiza a produção simbólica em quatro proposições macro narrativa: exposição, desenvolvimento da ação, peripécia, e solução. A análise dos dados contemplou as intervenções clínicas procedidas com a criança e com a família, bem como os resultados obtidos de tais intervenções. Para a elaboração deste estudo, foram selecionados alguns relatos e produções simbólicas realizadas pelo participante durante as primeiras 15 sessões dentre as 83 procedidas ao longo do tratamento.
Resultados e discussão
Paulo tinha 8 anos quando foi encaminhado à psicoterapia. O motivo da consulta apresentado pela escola era o fato de Paulo mentir e ter dificuldade de relacionamento com colegas meninos, preferindo relacionar-se com meninas. A mentira foi descrita como inventar estórias, como a de ter um irmão pequeno e coisas que o irmão fazia em casa. Também se dizia gay, o que era motivo de chacota pelos colegas. Paulo residia com os pais e duas irmãs: Carla, com 17 anos, e Marina, com 11 anos; o pai chamava-se Antônio, tinha 43 anos e trabalhava como auxiliar de almoxarifado; a mãe, Luciana, tinha 38 anos e cuidava do lar. Paulo veio trazido à terapia apenas pela mãe, o pai recusou-se a participar do tratamento. Paulo sempre foi brigão, e havia cerca de quatro meses que ele estava mais agressivo: irritado e ciumento, empurrava a mãe, brigava e implicava com as irmãs e queria ter autoridade sobre elas; colocado de castigo, chorava e esperneava como bebê. Luciana não o deixava jogar bola com os meninos na rua nem brincar com meninos maiores, embora ele pedisse. Paulo considerava que os colegas da escola eram chatos; também falava que o pai era chato, porque não brincava com ele. Luciana descreveu o esposo como enérgico, briguento, como alguém que não demonstrava carinho e era exigente; tinha como aspectos positivos preocupar-se quando os filhos adoeciam e não bater neles. Tendo engravidado de Paulo, Luciana queria que fosse uma menina, "porque é mais companheira e mais fácil de criar". Decepcionou-se ao saber que era menino; até ele nascer, acreditou que pudesse haver engano. Desde que nasceu, Paulo presenciou muitas brigas entre o casal, devido ao marido ter ciúmes e achar que a esposa o traía com outros homens. Paulo foi concebido em uma relação sexual forçada pelo pai. Segundo a mãe, o casal não tinha mais vida sexual porque ela queria separar-se. Luciana desesperou-se ao engravidar, pensou em suicídio e se expôs a situações de risco. Antônio pensou que o filho não era dele; depois que Paulo nasceu, o pai só olhou para o menino aos 9-10 meses. Há quatro meses o casal brigou, e desde então não se fala.
Aos 4-5 anos, devido ao afastamento de Luciana, que esteve acompanhando seu pai, avô de Paulo, em um período de hospitalização, Paulo regrediu, voltando a chupar bico e apresentando enurese noturna. No momento da entrevista, aos 8 anos, continuava com a enurese, apresentando algumas vezes encoprese. Dormia com fralda presa ao dedo, chupava bico à noite para dormir e algumas vezes durante o dia enquanto assistia à televisão.
Na primeira sessão, Paulo modelou dois falos, os quais designou como "pau" (Figura 1). A seguir, fez duas árvores. Do que sobrou da massa que estava usando, modelou uma cabeça e colocou junto às árvores (Figura 1), dizendo que era uma menina, a Ana, colega com quem brincava na escola de "mamãe e filhinho, papai e filhinha". Enquanto modelava, Paulo perguntou se sua mãe, que o aguardava na sala de espera, estava rezando; segundo ele, ela estaria rezando "pra nenhum homem mau pegar ela".
Após, Paulo fez uma pintura (Figura 2) narrando a seguir: "É um planeta, o Saturno (exposição); a grama preta apodreceu porque faltou água, o planeta era terra e pegou toda a água; o verde é grama que ficou com água. O azul é vários fios pelos quais sai água para o planeta; o amarelo é o que sai dos fios (desenvolvimento da ação). As bolas cor-de-rosa um homem mau fez (peripécia). No planeta não mora ninguém, porque é terra e secou" (solução). Por fim, desenhou a Bandeira do Brasil (Figura 2).
Na segunda sessão, Paulo construiu duas caixas de areia. Na primeira (Figura 3), disse que ia fazer um castelo com a areia (exposição); fez um pequeno monte, colocou uma bola enterrada na areia e falou que era uma bomba (desenvolvimento da ação); pôs uma menina em pé sobre o monte (peripécia), ela logo caiu, ele a retirou (solução). Na segunda caixa de areia, refez o monte, colocou quatro bolas sobre ele (Figura 3) e narrou: "são bombas, é o mal (exposição); as bolas se abrem e soltam uns fios (desenvolvimento da ação), os fios entram no monte (peripécia) e suga o sangue de quem está dormindo lá dentro" (solução).
A seguir, vamos analisar a série de conteúdos simbólicos que surgiu nesses dois primeiros encontros. Uma série consiste na representação sucessiva de um mesmo tema, o qual vai se desdobrando mediante imagens ou narrativas subsequentes. Para compreendê-las, vamos contextualizar, buscando a conexão do seu sentido com a história de vida de Paulo e da família. Quando necessário, procederemos à amplificação, retomando a título de esclarecimento, como tais símbolos têm sido lidos pelas diversas culturas ao longo da história das civilizações. Considerando que no material de Paulo surgiram várias imagens sem narrativas, para entendê-las precisamos buscar seu significado na cultura.
Assim como Jung (1916/2000b) apontou que os sonhos iniciais de uma psicoterapia possuem um valor diagnóstico e prognóstico, as produções simbólicas iniciais de Paulo mostraram o conflito e a demanda central a ser tratada na psicoterapia e sua possível evolução. Nesta primeira série Paulo assinalava duas questões centrais. A primeira envolvendo o casamento dos pais, mais especificamente a sexualidade vivida nesse casamento, o modo como ele foi gerado e o sentido para a família de sua geração. A segunda refere-se ao processo de construção da identidade sexual de Paulo.
As imagens dos falos e das árvores junto à cabeça de uma menina (Figura 1) evocam o mito de Átis e Cibele. Segundo o mito, Átis, enlouquecido pela mãe, que por ele se apaixonara, praticou a autocastração debaixo de um pinheiro, transformando-se posteriormente em pinheiro. Cibele, desesperada pela morte do filho, levou-o até sua gruta onde o pranteou. O pinheiro, na antiguidade, era a árvore dedicada a Cibele, deusa da fecundidade (Chevalier & Gheerbrant, 1982/2003). A árvore, nesse contexto, significa o filho que a mãe recolheu à caverna, ou seja, ao seio materno; ao mesmo tempo, a árvore também significa o materno, pois no culto prestado ao deus Átis, sua imagem era pendurada em uma árvore, que depois era cortada. A transformação em pinheiro simboliza, no culto, a identificação e o sepultamento do filho na mãe, enquanto o corte da árvore representa a castração e o sacrifício do filho (Jung, 1912/1999). Mediante esse mito, vemos o efeito do complexo materno no filho que permanece identificado à mãe, o que traz consequências importantes em termos de sexualidade. Esse conflito ficou expresso tanto na imagem dos falos quanto na das árvores onde é colocada a cabeça de uma menina. A criação de Paulo como uma menina, conforme assinalado na primeira entrevista com Luciana, constituía o fator determinante de sua identificação massiva com a mãe e do conflito na construção de sua identidade sexual. Diante disso, e dizendo-se gay, implicitamente ele se perguntava: "sou menino ou sou menina? Se sou menina, o que faço com tudo aquilo que me caracteriza como menino?". Criando Paulo como uma menina e promovendo o apego e a infantilização, a mãe o mantinha preso e identificado com ela. Tal como simbolizado no mito, ela psiquicamente o "castrava". Por outro lado, a imagem das árvores com cabeça de menina pode também simbolizar um feminino infantilizado vivenciado pela mãe, que não integrava a sexualidade na relação do casal e cuja libido se mantinha apenas no nível de "mamãe e filhinho", tal como retratado na brincadeira de Paulo com a amiga de escola. Jung (1939/2000a) propôs que o complexo materno na filha pode gerar tanto a hipertrofia quanto a atrofia do feminino. No aspecto negativo do complexo materno, a meta da mulher consiste em parir, sendo o homem apenas instrumento de procriação, de modo que o Eros desenvolve-se apenas como relação materna.
A terceira imagem desta série foi a pintura e a narrativa acerca do planeta Saturno (Figura 2). Podemos observar aqui a presença de um complexo familiar que suga toda a vitalidade e anula toda potência e a própria vida. Uma significativa metáfora da dinâmica familiar que tanto através da ação do pai via rejeição e distanciamento na relação com o filho, quanto da mãe, pela superproteção e projeções relativas ao masculino, retirava de Paulo a necessária energia para crescer de maneira saudável. O homem mau mencionado por Paulo é a representação da imagem negativa de masculino que Luciana tinha, pois considerava que nenhum homem valia, conforme expressou em entrevista. Essa representação era transmitida a Paulo tanto via identificação inconsciente, como verbalmente, à medida que denegria a imagem do pai. Isso é ratificado pela fantasia de Paulo de que a mãe devia estar rezando para que nenhum homem mau a pegasse. Estando identificado à mãe, ele compartilhava os mesmos sentimentos em relação ao pai-marido, tomando o partido dela nos desentendimentos com o esposo. Tal identificação produzia no menino um tom afetado em um processo de exclusão do aspecto masculino de sua identidade, visto pela mãe como algo mau, violento e perverso. Devido a essa situação, a vida tornava-se estéril e triste como a representação do planeta Saturno (Figura 2) e sua transposição para o local em que viviam, mediante a representação da Bandeira do Brasil (Figura 2). Jung (1926/1986; 1916/2000b) descreveu a identificação entre a psique dos pais e a da criança como um estágio normal dentro do desenvolvimento da personalidade e estabeleceu um paralelo com o conceito de participação mística proposto por Lévy-Bruhl (1947) no campo da Antropologia. Tal identificação inconsciente da criança com a psique dos pais deve-se ao estado de inconsciência em que ela se encontra. Quanto mais frágil ou incipiente for a consciência do eu, mais ela 'participa', por assim dizer, da psique dos pais (Jung, 1926/1986).
As duas narrativas seguintes surgidas nesta série contêm um mesmo elemento: a bomba. Na primeira narrativa (Figura 3) a personagem é uma menina, na segunda (Figura 3) é alguém que dorme, isto é, que se encontra em estado de inconsciência, e está tendo seu sangue sugado. A menina no castelo remete a anima. Para Jung (1939/2000a; 1928/2003; 1917/2004), a anima representa o aspecto feminino da personalidade masculina, tendo a mãe como primeiro modelo, a anima é também uma ponte de ligação com o inconsciente e com a vida em seu aspecto mais instintivo. Em sua escolha amorosa, o homem tende a projetar na mulher amada sua imagem de feminino (Jung, 1928/2003). Desse modo, "em cada complexo materno masculino, ao lado do arquétipo materno, a anima do parceiro sexual masculino desempenha um papel importante" (Jung, 1939/2000a, p.95). Vemos que a menina, aqui, sendo a anima de Paulo, representava ao mesmo tempo a mãe como modelo de anima para Paulo e a anima do pai de Paulo, e ela estava sobre uma bomba. A bomba pode ser lida como uma metáfora do casamento dos pais e dos conflitos familiares que essa situação suscitava face à inconsciência do casal, que mantinha um casamento baseado no utilitarismo. A imagem da menina sobre a bomba também se remete ao processo de construção da identidade de Paulo, que criado artificialmente como uma menina, identifica-se com a mãe.
Na quarta sessão, Paulo contou o seguinte sonho: estava dormindo, acordou e viu uma aranha sobre a cama (exposição), a aranha encostou-se nele, ele não sentia as cobertas nem a aranha, só sentia a si mesmo se ele se tocava (desenvolvimento da ação). A aranha se enroscou nas suas pernas, braços e pescoço e o enforcou, ele morreu (peripécia). A mãe acordou e, quando o viu, desmaiou (solução).
Na quinta sessão, Paulo montou uma caixa de areia: juntou oito bastões, fez um retângulo com eles e colocou o Power dentro (Figura 4). Depois narrou: "o Power ficou preso (exposição), ele caiu ali (desenvolvimento da ação), foram os maus que fizeram isso (peripécia), eram paredes que iam se fechando" (solução).
A série seguinte contempla as imagens e narrativas da quarta e quinta sessão. A aranha aparece no sonho de Paulo, e ela o enforcou e matou. A aranha é uma imagem arquetípico-cultural do aspecto destrutivo do complexo materno (Jung, 1912/1999), aparecendo aqui como símbolo da mãe devoradora que infantiliza e promove a dependência do filho. O sonho da aranha encontra uma correspondência com a caixa de areia, na qual o herói Power encontra-se preso (Figura 4). O herói é um antigo símbolo do impulso no sentido da liberdade e da autonomia, sendo um modelo de desenvolvimento para o eu. O herói encarcerado é uma metáfora do impulso de individuação do eu submetido ao complexo materno.
Na sétima sessão, Paulo fez uma caixa de areia (Figura 5) retomando o tema do herói: tomou o Power Ranger e falou que ia enterrá-lo, puxou areia fazendo um túmulo (exposição). Disse que ele foi morto por um raio que caiu na sua cabeça, que ele estava lutando com os malcriados que não obedecem aos outros (desenvolvimento da ação). Depois, começou a desenterrar o boneco e novamente colocou areia sobre ele, puxava a areia com vigor e disse que era para ficar bem morto; inseriu três estacas, disse que era uma placa (peripécia). Desfez o túmulo e retirou o Power e a placa e voltou a construir um monte de areia, agora ao centro da caixa: disse que estava enterrando o raio porque agora eles viram que não foi o Power (solução).
Esta narrativa da morte do herói que luta com os malcriados (Figura 5) complementa a imagem anterior (Figura 4). O herói é um ser dotado de coragem e determinação que luta para superar os obstáculos: vencer o dragão/baleia/serpente/mãe, aventurar-se numa região perigosa (fundo do mar, caverna, floresta) ou encontrar o tesouro difícil de ser resgatado (Jung, 1912/1999). O herói é uma figura-modelo, um ideal ou um fator de direção gerado pelo inconsciente quando a pessoa precisa adotar uma atitude heroica para vencer uma dificuldade (Franz, 2003). Psicologicamente, a luta do herói representa a luta para superar uma inferioridade moral. Por inferioridade moral compreende-se algo que está faltando para que a personalidade possa se desenvolver. A luta heroica implica coragem, autonomia e esforço para empreender uma conquista, como a necessidade de libertar-se do mundo materno, para crescer e tornar-se adulto. Na caixa de areia, o herói morre sem ter cumprido a função de inspirar o eu a se libertar da infantilidade, o que demonstra que esse impulso de crescimento não está suficientemente forte para fazer frente ao complexo materno. Paulo reage a este desafio sentindo-se exigido e inventando dores para fugir a suas obrigações, tal como ir à escola.
Na décima segunda sessão, Paulo propôs a brincadeira de achar o tesouro escondido. Escondeu um baú no armário e criou a brincadeira, dizendo o que devíamos fazer, dizer e como agir; colocou uma escada no meio da sala para ser uma divisão de ambientes e uma passagem; era para procurarmos muito, não era para a terapeuta abrir a porta onde estava o tesouro, somente ao final e quando ele dissesse. Depois de procurarem bastante, ele propôs que a terapeuta tentasse enganá-lo, pegando o tesouro e dizendo que não estava ali.
Na décima terceira sessão, ao chegar, Paulo buscou chamar atenção com uma atitude histriônica, jogando-se ao sofá e respirando com sofreguidão, dizendo-se cansado. Construiu uma caixa de areia (Figura 6): apanhou duas bonecas e uma vassoura para limpar a sujeira que um homem fez (exposição). Uma das bonecas queria namorar o homem, a outra era amiga dela; o diálogo inicial entre as duas foi sobre isso. A fala do homem foi pretensiosa e de pouco caso, dizendo: "vou sair com umas mulheres!". Quando o homem se aproximou, as duas se assustaram, caíram para trás e tiveram dificuldade de se recompor por ficarem muito atrapalhadas, tentavam levantar e caíam. Quando se levantaram, o homem empurrou e chutou uma delas, Paulo passou a vassoura sobre o pé do homem e fez barulho de escarro. Depois Paulo retirou a boneca da caixa de areia, pegou a vassoura e fez que limpava o lugar onde ela estava, emitindo uma expressão de nojo, com isto expressava que ela fez sujeira ou coco. Em seguida, falou em tom irritado: "cadê a sua bota?", ficara sob a areia; recolocou a boneca na areia e a fez afundar, então Paulo disse: "é areia movediça", e a boneca ficou enterrada até o pescoço. A amiga foi ajudá-la e terminou afundando também; o homem entrou na caixa para ajudar, mas não fez nada (desenvolvimento da ação). Paulo enterrou as duas bonecas totalmente, buscou uma pá para colocar mais areia, depois começou a retirar a areia. Retirou a primeira boneca e a deitou dentro da caixa; a amiga tentou sair da areia, levantou-se e se afastou do monte e Paulo disse: "ele tem poderes", e começou a jogar areia na boneca com a mão, a terapeuta perguntou: "que poderes ele tem?", respondeu "de magnetismo". Ficou jogando areia na boneca, que ficou tentando levantar-se, mas caiu por causa da areia que lhe era jogada (peripécia). Paulo largou o boneco e passou a brincar com as duas bonecas, elas ficaram afundando e saindo da areia de modo saltitante. A terapeuta perguntou o que estava acontecendo e Paulo respondeu: "elas estão brincando". Depois, ele segurou cada boneca na mão e colocou areia sobre elas (Figura 6), manifestando que estava tomado por um desejo de sujar (solução).
Na décima quarta sessão, Paulo repetiu esta brincadeira com as bonecas e o boneco, com algumas variações: propôs dizer às bonecas que iam salvá-las e logo sussurrou: "vamos enterrá-las, tá? Nós dissemos que vamos salvar, mas vamos é enterrar!".
Na décima quinta sessão, Paulo contou à terapeuta que sua mãe ingeriu comprimidos para dormir e que tiveram dificuldades em acordá-la. A seguir, brincou na caixa de areia (Figura 7): montou um castelo e quatro edifícios. Escolheu três personagens: o homem de roupa cor de laranja foi nomeado Robin; o de roupa azul, Mateus e o de roupa roxa, Andy (exposição). Eles começaram a pular e a se enterrar na areia, Paulo disse que ali era "aquele lugar frio... a neve". Em determinado momento, enterrou os três juntos, cobrindo-os totalmente com areia, depois eles subiram sobre o castelo e começaram a saltar e se afundar na areia/neve, gritavam enquanto se atiravam e se afundavam. Gritando de modo histérico, Paulo fez com que os bonecos derrubassem os prédios, de maneira que eles passaram a ser designados 'quebradores'. Depois apanhou montes de areia e colocou sobre o castelo, então derrubou o castelo. Disse que os homens eram irmãos, que brigavam entre si e que um batia no outro. Eles se odiavam. Enterrou os três, cobrindo-os com um monte de areia/neve, retirou-os do monte e eles lutaram entre si. Um enterrou o outro na areia, que ficou com a cabeça coberta e o corpo de fora. Paulo arrumou o prédio verde e os irmãos voltaram a derrubá-lo, a luta ocorria ora diretamente entre os personagens, ora com eles jogando os prédios de um lado para o outro. Então apareceu um coelho. Primeiro, ele se escondeu atrás de um prédio, depois subiu nele e desafiou os homens, dizendo que tinha poderes. Paulo apanhou uma escada vermelha e a apoiou no prédio vermelho, Mateus subiu e atirou-se dali; os irmãos continuaram se enterrando e saindo da areia/neve. Veio um tubarão que andou atrás do Robin, Paulo falou que o tubarão era o Robin que se transformava em tubarão (desenvolvimento da ação). Robin levantou os prédios e os reorganizou, apoiou a escada no prédio verde e subiu. O tubarão ainda andou atrás dele. Depois Robin veio até os outros dois que estavam juntos e gritou que os odiava, porque o tratavam como um bebê; depois, ele chutou todos os prédios, derrubando-os. Mateus e Andy também foram derrubados. Depois, Robin ficou doente e Mateus e Andy pegaram um carro para levá-lo ao médico (peripécia). Andy foi para trás do castelo junto com Robin, o qual ficou no médico. Mateus deitou-se na areia, Robin e Andy vieram, falaram com ele e ele não respondeu. Eles aproximaram-se perguntando o que houve, mas Mateus continuou não respondendo, então os dois saíram gritando "ambulância". Mateus levantou-se e disse: "enganei eles" (solução).
Sobre a aparente tentativa de suicídio, Luciana relatou à terapeuta que ela queria falar com o esposo sobre a separação, mas ele não quis; brigaram e ele a acusou de traição. Primeiro, Luciana disse que ingeriu os comprimidos porque queria dormir; depois, colocou que queria morrer, estava pensando em seu pai, pensou que se ela morresse o marido ia ter que assumir os filhos. A terapeuta enfatizou a necessidade de ela buscar uma psicoterapia para tratar-se. Depois de alguns meses, Luciana aceitou o encaminhamento para terapia e começou a tratar-se. Paulo prosseguiu o tratamento psicoterápico.
Esta última série contempla o material simbólico surgido na décima segunda até a décima quinta sessão. Inicia com a brincadeira do tesouro escondido. A partir dessa brincadeira, desvelou-se o tema da perversidade nas relações interpessoais. Através da identificação, Paulo reproduz a vivência dos pais, na qual o sentimento de ser enganado é decisivo: segundo Luciana, a situação do casal complicou-se quando Antônio suspeitou que ela o traísse, foi este o momento em que as brigas iniciaram. Quando Luciana engravidou, o esposo verbalizou que não acreditava que o filho fosse seu. Segundo a mãe, Paulo foi concebido através de uma relação sexual forçada. O sentimento de ser enganado mantinha-se vivo por parte de Antônio. A recusa em ter relações sexuais por parte de Luciana também parece ter alimentado esta fantasia do esposo. As narrativas nas caixas de areia com as bonecas e o boneco (Figura 6) mostram um caráter perverso na relação entre o homem e a mulher, baseada em uma sexualidade utilitária e em uma visão grosseira da sexualidade, associada à sujeira e à postura cafajeste do homem. No homem predomina a agressividade, enquanto que na mulher, a atitude histriônica de desejo e repulsa diante da sexualidade. Paulo reage a esse imaginário e prática sexual dos pais, reproduzindo-o e assumindo uma postura de defesa e de identificação em relação à mãe. O desfecho é a impossibilidade de uma relação heterossexual imaginária que mantenha uma paridade ontológica entre o homem e a mulher, de maneira que cada um possa ser e expressar-se livremente. É provável que o tesouro escondido no baú, o qual necessitava ser descoberto na psicoterapia fosse o fato de a personalidade de Paulo estar sendo construída sobre uma base falsa. Estão sendo proporcionadas a Paulo duas possibilidades de identificação, dois modelos de construção de identidade para a vida adulta: se ele assumir a identificação com o masculino e adotar a masculinidade, será como o homem retratado na caixa de areia (que representava a imagem que a mãe tinha dos homens e/ou a imagem da sexualidade do pai); se assumir a identificação com o feminino, poderá apresentar uma personalidade histriônica ou assumir a identidade sexual feminina, tornando-se gay, como dizia na escola. A última narrativa da série (Figura 7) traz a destruição da cidade e é condizente com a tentativa de suicídio da mãe ocorrida naquela semana: os personagens destroem o próprio cenário de atuação, assim como a mãe esteve em vias de destruir a si mesma e, com isso, a família. A destrutividade da situação familiar é também representada através da imagem do tubarão. A neve simboliza o congelamento da situação, que se revela estática e paralisada: a tentativa de suicídio, em vez de uma saída que promova o crescimento e a transformação. Ao tentar o suicídio, Luciana estava pensando em seu pai, e o fez para que o marido assumisse os filhos. Em entrevista anterior, ela relatou que sempre comparou o marido ao pai, e ressentia-se por seu esposo não ser como ele. Com isso, mostrava-se como uma mulher que permaneceu na condição de filha e, portanto, infantilizada. Posicionando-se como filha e buscando no casamento uma relação de parentalidade, a sexualidade precisava ser excluída. A partir da cena na caixa de areia, na qual Robin derruba os prédios e agride seus irmãos porque o tratam como um bebê, podemos considerar que a agressividade como defesa frente à infantilização era uma forma típica de funcionamento dentro desta família. Ainda que inconscientemente, Paulo compreendeu a tentativa de suicídio da mãe como uma manobra manipulativa, o que é representado na caixa de areia pelo personagem Mateus, que finge estar morto.
Considerações finais
A psicoterapia com crianças implica a participação da família no processo terapêutico: a produção de reflexões acerca de suas próprias dificuldades e a busca de recursos necessários a sua superação mostrou-se no presente caso como uma importante ferramenta de trabalho. Foi particularmente importante a tomada de consciência, por parte da família, da influência que exerce na organização psicológica e no desenvolvimento da criança. No caso clínico analisado, vimos que a produção simbólica de Paulo, interpretada a partir do contexto de sua história pessoal e familiar, possibilitou compreender que seus conflitos referiam-se à construção da identidade sexual e a uma problematização da sexualidade do pais.
Ficou evidenciado o papel dos complexos familiares nos conflitos. Alguns desses complexos mostraram um caráter transgeracional, como o que predominava na relação conjugal, pois o ciúme e desconfiança de traição reproduziam-se na família desde o avô paterno: Antônio não foi criado por seus pais, que tiveram várias separações devido aos ciúmes, culminando em uma separação definitiva quando ele tinha 10 anos. Antônio agora atualizava o complexo reproduzindo-o com sua esposa. Outro complexo familiar decisivo envolveu o desejo da mãe de que Paulo fosse uma menina, fazendo com que ela, inconscientemente, o criasse como uma menina. Este complexo reforçado em sua constelação pela rejeição do pai provocou uma dificuldade na identificação de Paulo com o masculino, o que fez com que ele se mantivesse emocionalmente identificado com a mãe. A neurose produzida pelos conflitos familiares dificultou tremendamente o processo de desenvolvimento de Paulo, dificultando que ele realizasse suas potencialidades. O que restou foram as dificuldades a ser superadas, como a inabilidade para conviver com outros, o sentimento de incapacidade para brincar e jogar bola com os pares, para cuidar de si próprio e para ter autonomia.
Apesar da adesão ao tratamento, a tentativa de suicídio impôs limites à psicoterapia, imprimindo um ritmo mais lento e uma extrema cautela na abordagem relativa à participação da família. Outra dificuldade foi o pai não aceitar participar na psicoterapia de Paulo. A situação do casal era grave e representava um obstáculo para uma melhor evolução do menino. Compreendemos que nessa situação o prognóstico era desfavorável, pelo menos naquele momento. Pelas identificações que lhe eram proporcionadas, Paulo tendia a apresentar dificuldades para lidar com o feminino na vida adulta, quer se optasse pela construção de uma identidade masculina ou feminina, a menos que o grupo familiar decidisse rever suas próprias representações e reorganizar suas relações.
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Endereço para contato
E-mail: chaubert@ig.com.br
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
Clarice Haubert: Psicóloga; Especialista em Psicologia Clínica; Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
André Guirland Vieira: Psicólogo, Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA.