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Aletheia
Print version ISSN 1413-0394
Aletheia vol.52 no.2 Canoas July/Dec. 2019
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS - PSICOLOGIA
Psicologia e a Atuação Intersetorial na Infância e Juventude: Gênero, violência e laços familiares
Psychology and the Intersectoral Performance in Childhood and Youth: Gender, violence and family ties
Hugo Tanizaka1; Rosa Frugoli2; Ludmila Carderelli3; Ariane Mendonça4 Miria Benincasa5
Universidade Metodista do Estado de São Paulo
RESUMO
Este artigo se trata de um Relato de Experiência sobre a atuação do profissional de psicologia em interface com a rede intersetorial, especificamente, com uma adolescente transgênera acolhida em Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes. Esta medida protetiva se deu em decorrência da mesma ter sido aliciada por um grupo de exploração sexual em seu estado natal, tendo sido separada de sua família e trazida para São Paulo para atuar como profissional do sexo. Este trabalho versa sobre a atuação em rede de profissionais atuantes em todas as esferas que gravitam o entorno deste caso: saúde, direito e assistência. Por fim, o artigo pretende apontar possibilidades de articular a rede intersetorial de formas éticas e eficazes que resultam diretamente na garantia e manutenção dos direitos tangentes à infância e juventude.
Palavras-chave: Adolescente transgênera; Acolhimento institucional; Rede intersetorial.
ABSTRACT
This article refers to an Experience Report regarding the performance of the psychology professionals in connection with the intersectional network, specifically related to a transgendered adolescent hosted at an institutional foster care services for children and adolescents. This protective measure has been taken since she was enticed by a group of exploitation in her home state, having been separated from her family and led to Sao Paulo to perform in the sex trade. This work deals with the networking of professionals involved in all spheres that shape the environment in this case: health, law and assistance. Finally, the article intends to point out possibilities of providing the intersectional network with ethics and effectiveness that would directly result in the guarantee and maintenance of rights related to childhood and youth.
Keywords: Transgendered adolescent; Institutional foster care services; Intersectional network.
Introdução
Este trabalho se refere a um relato de experiência na rede intersetorial de atendimento a criança e adolescente. Considerando as garantias de cidadania a este público na vinculação intersetorial entre saúde, educação e judiciário, neste artigo se problematiza quais intervenções do psicólogo são possíveis em um contexto de acolhimento de crianças e adolescentes. No alcance deste questionamento, o objetivo foi identificar as ações dos profissionais em casos do acolhimento institucional de adolescentes e refletir com estas ações repercutem na rede de atendimento e nas relações dos próprios usuários dos serviços intersetoriais.
Em termos atuais, a saúde consiste em um viés de manutenção e busca por qualidade de vida dos indivíduos articulados nos contextos que estão inseridos. A saúde é um processo em constante movimento e está diretamente relacionada às demandas culturais e sociais. Na modernidade, configurou-se inicialmente a um modelo biomédico, que focalizava sua atenção às doenças e agentes patógenos. Já nas últimas décadas, teve como alvo de sua compreensão os aspectos comportamentais e habituais do ser humano (Ribeiro, 2011; Scliar, 2007).
Neste sentido, a forma que compreende-se hoje, o conceito de saúde foi submetido a transformações significativas (Scliar, 2007) e desde o pós-guerra o conceito de saúde fora ampliado para uma compreensão totalizante do indivíduo, rumando para um entendimento de que a saúde é uma condição que o ser humano está em contato direto em todo o decorrer de sua vida, bem como em todas as esferas em que se manifesta, como na social, psicológica, biológica e espiritual (Buss, 2003; Matos, 2004). Esta compreensão coaduna a movimentos que passaram a estudar as interdisciplinaridades e saberes compartilhados (Escorel, 1999), o que abriu portas para a comunidade científica debruçar-se sobre o tema saúde, passando a pesquisar e produzir materiais que tematizem esta aproximação entre saberes diversos.
Contextualizando este processo no Brasil, Teixeira e Solla (2006) indicam a necessidade de o país procurar caminhos significativos para a modificação do modelo de saúde com efetiva participação popular, alinhando-se nas finalidades entre setor público e privado, ou seja, somente por meio da coalização intersetorial é que será possível a implantação de um modelo de atenção à saúde que seja inclusivo. Estes indicativos também fazem parte da Política Nacional de Promoção de Saúde da Secretaria de Vigilância em Saúde (Malta et al., 2016).
No tocante a relevância da saúde na rede intersetorial, nos cuidados à Infância e Juventude, o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente surge como uma ferramenta para assegurar o previsto na Lei 8.069 (1990), que afirma seu caráter especial frente às políticas públicas e enfatiza que este público deve fazer parte de uma incorporação intersetorial. Desta forma, compete a todas as áreas de atenção a primazia no atendimento, isto é, à saúde, à assistência, à educação e ao judiciário garantindo amparo em todas as especificidades desenvolvimentistas inerentes a sua condição (Warschauer & Carvalho, 2014).
Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes em uma unidade federativa do país foram implantados no ano de 2010. A este serviço ficou incumbido a função de 'abrigar' menores de 18 anos, com relações familiares inexistentes ou altamente desgastadas por motivos que variam desde situações complexas de violências doméstica até extrema vulnerabilidade social (Miranda, 2016). Uma das aplicações mais comuns do profissional de psicologia na área da assistência é o segmento de vulnerabilidade social e risco, entre estes, geralmente se garante a necessária atuação de pelo menos um profissional de psicologia.
No contexto brasileiro de atendimento a este público, há diversas reflexões a respeito de como se deve atender a população de crianças, adolescente e jovens (Cunha & Boarini, 2010). Inicialmente se indagava quanto a natureza vincular e/ou afetiva da relação parental, por outro lado, discutia-se a eficácia do Estado a relacionar-se com este público por meio de instituições que foram se transformando initerruptamente ao longo do tempo (Pitta & Fontoura, 2011). Houve um período, em que à infância brasileira era reservado o mesmo tratamento jurídico direcionado aos adultos e invariavelmente os conflitos eram resolvidos por meio da institucionalização punitiva e coercitiva, e neste sentido, competia exclusivamente às organizações filantrópicas, praticamente todas originárias de ordens religiosas, a intencionalidade de proteção a este público enquanto o Estado se guiava por um viés corretivo reducionista das potencialidades do público em questão (Ayres, Cardoso & Pereira, 2009).
Olhando atentamente para a história dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, percebe-se que somente a partir de 1988 com a Constituição Federal entra em vigor a Doutrina Jurídica da Proteção Integral a crianças e adolescentes6. Neste percurso lhes foram atribuídos direitos e foi atrelada ao Estado a obrigatoriedade de manutenção e garantia de direitos básicos (França, 2004; Silva, 2019; Ciarallo & Almeida, 2009). É deste momento, que na história da infância e juventude brasileira surgiu a necessidade de repensar as formas de institucionalização, sendo necessária retirar o foco do olhar que criminalizava e/ou os assistia de forma incipiente para se investir no desenvolvimento integral deste público.
Entretanto, é importante configurar que a premissa central destes serviços não se refere estritamente ao pleno resguardo físico, conforme recomendações da Organização Mundial de Saúde. (Alberto et al., 2008). A rede de proteção à criança e ao adolescente exige que os operadores considerem sempre a família como agente partícipe basilar no desenvolvimento, visto ser nesta família que se encontram as maiores potencialidades para o desenvolvimento destes sujeitos. Muitas vezes, o serviço de acolhimento adota postura assistencialista e aufere à instituição uma relação de verticalidade sobre estas famílias, se colocando como mais apta para os cuidados desta população do que a sua família (Vons & Miranda, 2011; Pitta & Fontoura, 2009). Nestes casos, isto só seria aceitável se fosse compreendida a atenção às necessidades materiais como sobrepostas às necessidades afetivas e, por mais que as instituições forneçam amparo às necessidades básicas, não oferecem referenciação, bases afetivas e espaço de organização identitária, facilitando o surgimento de um cenário de assujeitamento (Silva, 2009).
A partir deste contexto, desenvolveu-se um Relato de Experiência em psicologia na atuação de uma rede intersetorial focalizando o acolhimento de uma adolescente. O método utilizado foi o qualitativo com descrição das etapas de atendimento realizado pelo serviço de psicologia na rede intersetorial. Após, realizou-se discussão a respeito das situações de acolhimento e como este auxilia na reconstrução de vínculos familiares dos envolvidos na vida da adolescente; posteriormente apresenta-se a relevância dos serviços de assistência como legitimadora para a efetividade do direito ao convívio familiar.
Método
O presente estudo se trata de um Estudo de Caso. Este método de investigação qualitativa dispõe-se a realizar compreensão extensiva e com precisão conceitual acerca do fenômeno a ser pesquisado (Yin, 2015). O Estudo de Caso é uma estratégia metodológica que coloca o pesquisador como o principal instrumento de coleta e análise de dados, portanto favorece momentos em que sua condição humana, própria e subjetiva serão vantajosas para poder se adaptar, reformular e descobrir novas situações da pesquisa durante a realização da investigação a ser realizada (Yin, 2015; André, 2008). O Estudo de Caso, denota de uma sensibilidade ímpar em relação ao contexto a ser estudado, o que amplia as possibilidades das pesquisas frente às de outras modalidades (André, 2008).
Este Relato de Experiência tem como base a descrição dos atendimentos durante o período de acolhimento institucional da adolescente Vitória (nome social fictício), que civilmente é reconhecida enquanto pessoa do gênero masculino e que se apresenta socialmente enquanto pessoa do gênero feminino. A adolescente contava com 16 anos de idade na época deste acolhimento e encontrava-se distante de toda sua família. Seus familiares se encontravam em sua cidade natal, no interior do Estado do Piauí.
Cabe o esclarecimento que todos os dados identificatórios da adolescente, seus familiares e dados sobre territorialidade foram alterados para garantir o devido resguardo das informações originais e que em alguns momentos do Relato, os artigos definidos utilizados para denominar o gênero da adolescente irão variar, conforme a perspectiva adotada, ora pelos diversos agentes que interagiram com a mesma no decorrer dos atendimentos, ora pela própria adolescente que em alguns momentos, referia-se a si mesma como pessoa do gênero masculino.
Descrição da situação pregressa ao acolhimento da adolescente e ação profissional
A partir de uma ação entre os serviços de segurança pública, polícia civil, militar e federal, houve a operação de invasão a um edifício utilizado para prostituição e exploração sexual. Nesta operação foram encontradas mais de 60 profissionais do sexo, sendo uma destas pessoas, Vitória, a única com idade inferior a 18 anos. Em seu depoimento, relatou ser do interior de um estado do nordeste brasileiro vindo para São Paulo para trabalhar como "garota de programa".
A segurança pública compreendeu que Vitória se enquadrava como vítima em caso de Tráfico de Pessoas e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, ambos crimes federais. Os policiais conseguiram também coletar com a mesma os nomes das pessoas responsáveis por este esquema. Vitória fora colocada sob a guarda do Conselho Tutelar de referência da região.
Posteriormente, Vitória evade da tutela deste conselho, com a intenção de retornar ao local em que costumava ficar (o prédio invadido). Uma semana após esta evasão a adolescente surge em outro Conselho Tutelar solicitando ajuda, visto que havia sido "jurada de morte" pelas pessoas que ela havia denunciado, o que foi confirmado pela rede e consequentemente se acionou a Vara da Infância e Juventude do foro de referência do território.
Vitoria foi encaminhada a um Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes – SAICA. A atuação dos profissionais deste serviço de acolhimento era pautada nos seguintes princípios de atuação: a) garantir de forma integral todos os direitos preconizados pelo ECA; b) ofertar uma acolhida devida para a adolescente, para que a mesma passasse a se sentir pertencida e segura e, como consequência disto, uma interrupção no ciclo vicioso que se apresentava, que era criar situações em que a mesma se colocava em risco; c) realizar compreensão psicológica da adolescente, no que competia a estrutura de personalidade, afetos, afiliação, potencialidades e estima, para que fossem traçadas estratégias interventivas para ressignificar este histórico pregresso; d) realizar estudo psicológico e social da família da adolescente e atuar tendo horizonte principal o desacolhimento institucional e reestruturação do convívio familiar; e) verificar com os órgãos competentes a compreensão vigente, assim como, a extensão real da ameaça sofrida pela mesma.
A partir do contato inicial com a família foram identificados diversos vínculos fragilizados em decorrência de situações conflituosas anteriores ao acolhimento da adolescente. A intervenção adotada visava que em cada contato entre os membros da família, houvesse a possibilidade de resgate de vínculos compreendendo que as entrevistas visavam criar possibilidades para que fosse permitido refazer novos significados de subjetividade.
Nos contatos com a adolescente, ficou claro para a equipe do serviço que a genitora demonstrava fortes resistências em aceitar tanto a orientação sexual, quanto a identidade de gênero de Vitória e a considerava uma má influência para seu outro filho de 9 anos. O padrasto de Vitória por sua vez, mostrava-se muito mais confortável com a identidade de gênero de Vitória, inclusive a defendia nos conflitos com a genitora e também em contextos sociais diversos.
A interação entre Vitória e sua genitora por telefone era insatisfatória, terminando sempre com a adolescente chorando e se isolando, pois a conversa sempre se voltava para a prostituição da garota e a vergonha que a família sentia devido às roupas femininas utilizadas por Vitória. Estes ciclos de conversas repetiram-se por cerca de um mês, até a adolescente recusar-se a falar com seus familiares. O movimento foi seguido de uma postura deprimida inclusive com a mesma passando a se vestir como um adolescente do sexo masculino e pedir para ser chamado de Vitor.
Discussão
A saúde como auxiliar da reconstrução do vínculo familiar
Sob a identidade de Vitor, duas questões de saúde surgiram de forma emergente. Na primeira eclodiram no adolescente certas úlceras na região peniana, especificamente na glande e prepúcio, o que em avaliação e exames médicos fora diagnosticado como uma forma agressiva do vírus do HPV. Os médicos acreditavam que o vírus havia sido contraído meses atrás e como a sintomatologia deste quadro pode demorar a se manifestar em pessoas do sexo masculino, provavelmente havia ficado em latência até o presente momento.
Na segunda, a problemática foi causada pela forma que a adolescente utilizava suas roupas íntimas, que colocava pressão sob seus testículos. No Hospital de referência, fora diagnosticada uma torção do testículo esquerdo e foi solicitada uma biopsia, na qual foi verificado que o mesmo havia necrosado e teria que ser retirado em procedimento cirúrgico, o que para a adolescente foi visto como algo positivo, fazendo com que Vitória voltasse a ser a identidade social da adolescente. A equipe realizou a leitura de que Vitória era mais equipada para lidar com momentos de crise e de dificuldades do que Vitor.
A adolescente passou a dizer que estava mais próxima ainda de ser uma mulher e pediu para que isto fosse contado para sua genitora, e assim foi feito. No acolhimento de uma criança e/ou adolescente o trabalho técnico é voltado também para família e não apenas para o acolhido (Cronemberger & Teixeira, 2018). Neste caso percebeu-se que a presença da mãe se fazia relevante para Vitória. Então, fora realizado uma solicitação para que genitora exercesse função materna, visto a demanda da situação.
O efeito dessa intervenção foi ambivalente. Por um lado, a genitora estava preocupada com o filho e querendo maiores informações acerca de todos os passos da situação. Por outro, a mãe culpabilizava o próprio filho por ter criado esta situação para si mesmo.
Perante os contatos familiares, embora estes mostrarem-se conflituosos há de se considerar que tinha sido a primeira vez que mãe e filha mantiveram conversa por um longo período não resultando em choro e revolta por parte da adolescente. Este momento foi decisivo para o trabalho da equipe profissional, era necessário aproveitar o momento para se trabalhar práticas interventivas acerca da relação mãe-filha e demais situações do caso.
Vitória recuperou-se dos problemas de saúde e passou a manter contatos contínuos por telefone com a família e com a equipe profissional. A fim de garantir a provisoriedade da separação familiar, a equipe precisa assumir uma postura ativa de facilitadora do contato com a família de origem, uma vez considerado o fato de quanto mais tempo a adolescente fosse cuidada neste serviço, mais vínculo ela desenvolvia como a equipe. O serviço como atuante dos direitos da adolescente compreende que os vínculos desenvolvidos com a adolescente não podem gerar concorrência com a família e tampouco permitir a instauração de uma relação adversarial, pois ao serviço compete meramente a extensão dos cuidados familiares, sendo que estes são ofertados primariamente pela família de origem e somente quando isto não é possível a equipe promove este papel (Penso & Moraes, 2016; Nascimento & Avarca, 2017).
Desta situação o serviço passou a dimensionar possibilidades de a família vir fazer uma visita a adolescente. Os pais queriam, porém, os recursos financeiros para a viagem entre os estados não eram possíveis, além de não terem onde se alojar, e nem para alimentação. Então, para aproveitar este momento de reestruturação da relação familiar foi viabilizada uma estratégia para que eles mantivessem contato via redes sociais, sob supervisão, pois a situação de risco ainda era presente em torno de Vitória, que ainda sofria ameaças pela denúncia realizada.
A intersetorialidade na manutenção dos vínculos familiares
A equipe iniciou um trabalho com a rede da cidade natal da adolescente, via ofício ao Conselho Tutelar daquela cidade, com intuito de que se realizasse um estudo sobre a família e a situação de ameaça. Também foi realizado contato com o Programa de Proteção para Crianças e Adolescentes ameaçados de morte da região. Como estes programas têm a prerrogativa de auxiliar financeiramente a família em suas despesas pelo período de um ano, a aproximação familiar seria uma possibilidade possível neste caso. Entretanto, este trabalho foi complexo, dado o caráter nacional que as articulações deveriam ocorrer, além de conseguir autorização do Juiz da Vara da Infância e Juventude que ocupava papel de guardião legal da adolescente.
O Conselho Tutelar da região da família apresentou um estudo favorável à família naquilo que competia as condições, relacionamentos vinculares e garantias de direito da criança. Entretanto, ao considerar o retorno de Vitória, as circunstâncias configuraram-se como de alto risco e ameaça de vida, dado o fato de estes terem ciência que o grupo de pessoas que aliciaram Vitória continuava agindo na região natal da adolescente.
Nos três meses que seguiram diversos ofícios para a rede intersetorial, diálogos e discussões com inúmeros agentes da rede de proteção de São Paulo e do estado de origem da adolescente, resultaram de forma unânime entre os agentes da rede, na inclusão da família de Vitória no programa de proteção e posterior vinda para São Paulo. Entretanto, a adolescente frente a possibilidade do reencontro familiar passou a ficar arredia e deprimida, ficando reclusa e hostil as tentativas de conversas tanto com a família, quanto com a equipe. A equipe compreendeu esta circunstância como uma forma agravada de ansiedade pelo encontro, fantasia de rejeição e insegurança no que tangia ao futuro, visto que a adolescente revelou com dificuldades que aquela situação configurava a seus olhos, que seus pais estavam se sacrificando por ela. Vitória estava com medo de não alcançar as expectativas (Vidal et al., 2017).
Vitória e seu desenvolvimento pessoal: uma possibilidade
Vitória nesta época já estava com 17 anos de idade e faltava menos de 8 meses para completar 18 anos. Em uma determinada hora na troca de plantão entre funcionários do turno diurno com os do turno noturno, Vitória evadiu do serviço. Naquele mesmo dia foi realizado contato com todos os órgãos de direito da região, Conselhos Tutelares, CREAS, Departamento de Regulação de Vagas da Secretaria Municipal da Assistência e Desenvolvimento Social e com o Poder Judiciário para que se caso a mesma solicitasse alguma vaga nos serviços, fosse direcionada de volta para este serviço, visto o trabalho já desenvolvido e realizado com a mesma e sua família. Após horas da evasão do serviço, Vitória retornou. Foi considerado que o retorno voluntário da adolescente era um avanço em termos de resiliência e parcimônia, ou seja, de seu autocuidado (Vidal et al., 2017).
No dia seguinte Vitória conversou com a equipe, pediu desculpas. Relatou estar insegura sobre tudo que estava acontecendo e passou a não querer conversar com a mãe por telefone, mas a equipe manteve contato a genitora para permanecer ativo o canal de comunicação.
A adolescente relatava que não confiava em si mesma longe da equipe "Aqui eu voltei a estudar, terminei o primeiro ano do ensino médio, fiz um curso de cabeleireira, outro de gastronomia, fiz até uma cirurgia e agora vou encontrar minha família e ir embora? Não vou conseguir. Vocês são minha família" disse a adolescente. Ao compreender este relato como a instauração dos processos de apego e formação de laços afetivos (Carvalho, Haack, Razera & Falcke, 2016), o serviço concluiu que a adolescente estava amadurecendo, uma vez que a mesma retornou e estava conseguindo nomear seus medos, algo natural do ponto de vista desenvolvimentista ao passo de que a resiliência só se desenvolve em ambiente de adversidade, em que uma base segura fora instalada devidamente no psiquismo do indivíduo (Marteletti & Siqueira, 2014).
Neste tipo de serviço, a equipe passa a ocupar o lugar de representante simbólico, não gerando prejuízos do ponto de vista da identificação transferencial, contudo apenas se em termos de contratransferência, não houver correspondência a estes sentimentos por parte dos profissionais (Kernberg, 2016).
Após as análises realizadas acerca dos conflitos de Vitória foi verificado que suas perspectivas estavam repletas de fantasias e que sintomaticamente poderiam incidir em um quadro agudo de ansiedade (Vale & Martins, 2017).
Sobre as experiências de Vitória vivenciadas durante o período no serviço, a adolescente costumeiramente estava sempre mexendo em seu cabelo, o que gerou bastante desgaste aos fios que compunham sua peruca, questionada a quanto tempo ela usava, respondera "que há 3 anos e esta é uma mista, cabelos metade sintéticos, metade de verdade". Continuava falando que seu sonho era ter uma "100% verdadeira", o que a escuta qualificada permitiu a compreensão sobre o quanto a mesma sentia-se incompleta em sua identidade (Kerneberg 2016).
A equipe aventou a necessidade simbólica de uma nova peruca ser um benefício simbólico a adolescente. Mesmo sem recursos econômicos específicos do serviço para a aquisição do objeto, a equipe conseguiu operacionalizar tal recurso. Em uma ação conjunta dos funcionários a peruca foi adquirida. A mesma fora presenteada por toda a equipe e a mesma chorou intensamente e verbalizava que não sabia como agradecer, que este havia sido o melhor presente que ela recebera na vida. Foi permitido que a mesma aproveitasse aquele momento, no mesmo dia ela passou horas se produzindo, cantarolando e conversando levemente com todos a sua volta.
Cabe ressaltar que no dia seguinte, a adolescente fora chamada para conversar e inquerida: "E aí, vamos encontrar sua família?" Ela completamente produzida, vestida, maquiada, cabelo escovado, acessórios e uma bolsa, respondeu prontamente: "Vamos Tio!".
Os desencontros dos serviços na esfera judicial
Diversos serviços da rede de proteção da criança e do adolescente foram articulados para o encontro familiar. O reencontro ocorreu numa determinada Secretaria, tendo sido informado o lugar apenas na véspera do encontro para garantia do sigilo.
Vitória, mesmo muito bem vestida e até o momento segura na hora em que viu sua mãe, estremeceu e não sabia como reagir, a genitora por sua vez repetiu o movimento da adolescente e ambas ficaram se olhando por um breve momento em silêncio. O silêncio oi quebrado pelo padrasto de Vitória que enquanto segurava o irmão da adolescente no colo, abraçou fortemente a adolescente, o que se tornou um abraço a três.
Vitória tomou a iniciativa e disse chorando: "Oi mãe!" A genitora não falou nada, porém começou a chorar, choro intenso e sofrido. A adolescente condoída foi abraçar a mãe que inicialmente só chorava, porém após um breve momento correspondeu ao abraço e ambas se abraçaram, todas as demais pessoas ali presentes, inclusive a equipe permaneceu em absoluto silêncio observando aquele momento, o abraço durou cerca de 10 minutos.
Após o início da reunião em que todos conversavam, a família, manifestou-se dizendo que vieram para reconstruir a família e que iriam tentar de todas as formas fazer com que o convívio desse certo, falaram que já estavam providenciando a venda do imóvel em sua cidade natal e que estavam confiantes de que tudo daria certo. Os Programas Assistenciais informaram que com a anuência formal dos órgãos reguladores dos serviços, estes iriam informar a Vara da Infância e Juventude e solicitar autorização para a realocação da família em algum estado fora da região de ameaça, ou seja, fora de São Paulo e do Piauí. Após este acordo foi ensejado à família um dia só deles, sem intervenções ou outras pessoas.
Três dias depois dos ofícios enviados à Vara da Infância e Juventude, esta respondeu negando a solicitação e proibindo a saída da adolescente do estado. Inclusive convocou os envolvidos para uma audiência. A ansiedade da adolescente agravou-se assim que foi informada da situação, passando a demonstrar choro, condutas agressivas e pouco continentes no que compete ao equilíbrio emocional, ou seja, a adolescente experienciou de forma negativada a possibilidade de perda do recém re-conquistado convívio familiar. (Zuanazzi & Sei, 2017).
No dia da audiência, compareceram em juízo todos os envolvidos e a douta Juíza da Vara relatou primeiramente para os agentes da rede o caráter impar da audiência informando que nunca tinha julgado caso em que estivessem presentes tantos agentes distintos e tamanha ação intersetorial da rede de proteção e ainda mais em escala nacional. Continuou dizendo que a não autorização, deu-se "por compreender absurda a solicitação de um dos serviços da rede" os quais solicitavam autorização para encaminhar uma adolescente em sua jurisdição para outra, alegando não poder informar nem mesmo à magistrada o destino da adolescente. Nestas circunstancias, os agentes do Programa de Proteção que elaboraram o ofício, responderam que apesar de compreenderem o argumento da Juíza, estavam agindo conforme determinações reguladoras da Secretaria de Direitos Humanos e não tinham autorização para revelar esta informação para ninguém, somente para a equipe do território destino que saberiam exclusivamente quando viessem buscar a adolescente. A juíza não aceitou a explicação e determinou nestas circunstâncias ser impossível o cumprimento do solicitado.
Neste momento, o serviço responsável pela adolescente nos últimos meses apresentou o estudo realizado sobre a adolescente e sua família; afirmado que este era um momento novo de subjetivação e de reestruturação familiar; e sugere outra forma de abordar o caso, a adolescente deveria ser desacolhida do Estado, retornando os plenos poderes sobre a adolescente para seus pais. E estes como responsáveis pela adolescente poderiam ir com a filha para onde desejarem, sem ter que informar ao judiciário, como toda família, inclusive para o lugar disponibilizado pelo programa de proteção. A juíza após certa ponderação passou a ministrar então, uma audiência de reintegração familiar nos moldes tradicionais, com oitiva dos pais, da adolescente, apresentação do estudo psicossocial, propostas de encaminhamento e por fim, decisão judicial.
A equipe deste serviço apresentou seus estudos, relativizando inicialmente a medida protetiva adotada e a intencionalidade desta conforme a Lei 8.069 (1990), sendo que o acolhimento institucional é a sétima e última medida protetiva a ser adotada pela magistratura. E, de acordo com a mesma Lei, os serviços de rede teriam a prerrogativa de trabalhar o caso intencionando o retorno ao convívio familiar ou a inserção em família substituta. No caso de Vitória, competiu a equipe apresentar estudos psicológicos e sociais que subsidiassem a decisão judiciária no que se referia ao retorno familiar.
Considerações Finais
Os serviços da rede intersetorial de atendimento, em especial o serviço de acolhimento dos profissionais da área da psicologia, podem permitir ao sujeito ampliação do seu mundo, bem como uma maior aproximação com o outro. No caso presente, fica evidenciado que às compreensões oriundas do saber psicológico foram fundamentais, não apenas para a garantia dos direitos da adolescente e de sua família, mas também para nortear um horizonte ético de atuação, possibilitando ações direcionadas em prol do desenvolvimento e da reestruturação vincular de um núcleo familiar inteiro.
É importante a compreensão de que os direcionamentos e propostas neste caso partiram dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, que precipitou o Estatuto da Criança e do Adolescente e da operação de serviços existentes na Rede Intersetorial. Isto demonstra que a rede devidamente articulada oferece inúmeras possibilidades de alcançar encaminhamentos e/ou desfechos favoráveis para os atendidos, garantindo de forma integral a defesa dos direitos da criança e do adolescente, entretanto é exigido compromisso ético por parte de seus profissionais.
O caso evidencia uma dinâmica de transformações na adolescente, desde quando foi acolhida incialmente no serviço. A melhora em seus recursos básicos de enfrentamento, bem como o desenvolvimento de condutas e de sua autoestima foram expostas e a adolescente conseguiu ressignificar parte de suas relações parentais, atrelando a si mesma responsabilidade sobre suas condutas no convívio familiar anterior para muito além dos problemas advindos da resistência materna sobre a sua orientação sexual. As intervenções que ocorreram em contextos da realidade com a adolescente, possibilitaram que a mesma fosse capaz de articular pensamentos e verbalizar mais claramente o seu papel dentro de sua família, saindo da vitimização de si mesma e se empoderando de seu papel enquanto filha em sua família.
Além de a própria adolescente ter conflitos, assim como sua família, identificou-se a problemática no campo judiciário que decidiu por indeferir as solicitações dos serviços. Nisto foi fundamental a presença da rede para vida da adolescente tendo em vista que somente os dados burocráticos não conseguiram apreender o caso de Vitória levando o judiciário a tal decisão inicial. Com a presença dos profissionais da rede explicando as condutas e evidenciando os dados dos estudos, inclusive ampliando possibilidades desolução para o caso do ponto de vista da saúde integral do grupo familiar, foi possível rever a postura decisória inicial da magistratura.
A adolescente retornando à responsabilidade direta de seus pais e realocada em um novo ambiente com devido amparo da rede de atenção básica pode servir como meio de reconstrução dos vínculos familiares e manejo dos afetos, passando então, para a possibilidade de se configurar dinâmicas satisfatórias de uma família. Ao descrever o caso de Vitória torna-se fundamental que os profissionais, sobretudo psicólogos, compreendam a necessidade de efetivação de intervenções compatíveis com o modelo biopsicossocial, ou seja, respeitando tanto o princípio da dignidade humana, bem como o princípio da isonomia que primazia pela equidade e pluralidade das manifestações do ser humano na realidade.
Por fim, destaca-se neste artigo, que a psicologia na atualidade precisa intervir a partir da complexidade das experiências vividas pelas pessoas em uma sociedade complexa e pluralista em seu contexto. Cabe apontar ainda, a partir do ponto de vista dos autores deste artigo, a relevância de se pontuar e realizar novas pesquisas sobre a inserção do profissional de psicologia em novos contextos da Rede Intersetorial de atendimento nos diversos serviços e embora o campo de atuação tenha se inserido na área da assistência social a partir 2005 com a implantação do Sistema Único da Assistência Social, têm-se verificado que ainda hoje, assuntos referentes a esta área e a diversidade social não se encontram inseridos nos cursos de formação profissional, especificamente no que se refere ao preparo do futuro profissional neste segmento de intersetorialidade e em todas as esferas de proteção do ser humano.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail:hugo.tanizaka@prof.ung.br
Recebido em: setembro de 2018
Aceito em: setembro de 2019
1 Hugo Tanizaka: Universidade Metodista do Estado de São Paulo; Escola de Ciências Médicas e da Saúde; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Bolsista CAPES/TAXA) – São Bernardo do Campo/São Paulo. Docente do Curso de Graduação em Psicologia pela Univeritas-UNG. Endereço: Praça Tereza Cristina, 88 – Centro – Guarulhos (UnG), CEP: 07023-070 – Telefone: 2464-1676. Celular: 11 9.8593-5919.
2 Rosa Frugoli: Universidade Metodista do Estado de São Paulo; Escola de Ciências Médicas e da Saúde; Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde – São Bernardo do Campo/São Paulo. Celular: 12 9. 9787-3573.
3 Ludmila Carderelli: Universidade Metodista do Estado de São Paulo; Escola de Ciências Médicas e da Saúde; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde – São Bernardo do Campo/São Paulo. Celular: 12 9. 9168-2147.
4 Ariane Mendonça: Universidade Metodista do Estado de São Paulo; Escola de Ciências Médicas e da Saúde; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Bolsista CAPES/TAXA) – São Bernardo do Campo/São Paulo.
5 Miria Benincasa: Universidade Metodista do Estado de São Paulo; Escola de Ciências Médicas e da Saúde; Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde – São Bernardo do Campo/São Paulo. Celular: 11 9.8210-2712.
6 Embora a ideia de proteger a criança já estivesse presente na Declaração de Genebra de 1924, na Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e, posteriormente, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, já com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 que passou-se a configurar a criança como alvo da proteção do Estado e como centro de políticas públicas que priorizem seu desenvolvimento sadio (Alberto et al., 2008).