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Aletheia
Print version ISSN 1413-0394
Aletheia vol.54 no.2 Canoas July/Dec. 2021
https://doi.org/DOI10.29327/226091.54.2-12
DOI 10.29327/226091.54.2-12
RELATOS DE PESQUISA
Sexualidade infantil: a percepção de professores de uma escola do município de Osório/RS
Child sexuality: the perception of teachers of a school in the municipality of Osório/RS
Wilian Gomes da Silva1; Mariana Canellas Benchaya2
Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
RESUMO
Este estudo teve por objetivo analisar a percepção de professores da educação infantil acerca da sexualidade na infância. Delineou-se uma pesquisa descritiva, exploratória, de cunho qualitativo. Utilizou-se do Grupo Focal (GF) como método de coleta de dados. Dentre os instrumentos utilizados na coleta, fizeram-se presentes a observação-participante, o questionário sociodemográfico e o roteiro de entrevista semiestruturado, elaborado pelos autores. Para a análise dos resultados, recorremos à Análise de Conteúdo (AC) de Bardin. Os resultados apontaram para a presença da sexualidade no dia a dia da educação infantil, deficiências na formação e não contemplação do tema nas formações continuadas ofertadas pelo município.
Palavras-chave: sexualidade infantil; educação infantil; psicanálise.
ABSTRACT
This study aimed to analyze the perception of teachers of early childhood education about sexuality in childhood. A descriptive, exploratory, qualitative research was delineated. The Focus Group (FG) was the method used for data collection. Among the instruments used in the gathering were the participant observation, the sociodemographic questionnaire and semi-structured interview script, all elaborated by the authors. For the analysis of the results, we used Bardin's Content Analysis (CA). The results pointed to the presence of sexuality in the daily education of children, deficiency in formation and the non-contemplation of the theme in the continuing education offered by the town.
Keywords: child sexuality; child education; psychoanalysis.
Introdução
A sexualidade humana, constitutiva do sujeito, ganha novos contornos na atualidade (Silva, 2010; Silva, 2005). Longe de ser uma determinação biológica, essa é construída, regulada, moldada, disciplinada a partir de uma matriz cultural vigente, sendo a heterossexualidade o modelo dominante (Braga, Caetano & Ribeiro, 2018; Schneider, 2017). Assim, o social define o que esperar do que consideram do feminino e do masculino (Louro, 2019; Louro, 1999). Até então, falar de corpo, sexo, prazeres e gozos eram tidos como algo escandaloso, púdico e imoral, sendo motivo para fortes repressões e perseguições àqueles ditos perversos e degenerados. Segundo Salles e Ceccarelli (2010) a sexualidade sofreu mutações no decorrer dos tempos, sendo a Psicanálise um importante operador no estudo dessa dimensão.
Acreditava-se que as primeiras manifestações da sexualidade ocorriam somente no período denominado de puberdade, sendo refutado, após Freud publicar seu célebre texto "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" (1905/1996), abalando a moral vigente e repressora de sua época, colocando as primeiras manifestações da sexualidade desde a mais tenra infância, ou seja, muito antes do nascimento. Para Freud, há um gozo durante a amamentação, para além de apenas um processo nutritivo que satisfaça uma necessidade fisiológica fundamental para a sobrevivência – saciedade da fome – sendo vislumbrado no rubor da criança e na sensação de deleite após o ato de amamentar (Silva, 2010; Freud, 1905/1996). Com isso, amplia o conceito de sexualidade, não a reduzindo apenas a genitalidade. Dessa forma, ela não tem objeto fixo, é autoerótica, ou seja, encontra satisfação no próprio corpo (Lejarraga, 2015). Em sua longa produção, defendeu uma educação menos repressora e mais libertadora, colocando, inclusive, que a educação sexual deveria ser feita pela escola e não pelos pais (Freud, 1914/1996; 1907/1996).
O fenômeno da sexualidade e suas manifestações na infância são temidos por pais e professores (Gambale, Vergueiro & Silva, 2010; Zornig, 2008; Freud, 1905/1996). Quando tomamos a figura do professor, falamos de alguém que também possui uma subjetividade, foi criada de determinada forma, em dada cultura, com determinada educação, não podendo ficar isenta das marcas inconscientes (Müller & Kreutz, 2001) que a moldaram, sendo essas responsáveis pela reprodução e perpetuação de tabus, ou seja, verdades que esse sujeito tem para si e que irão se estender ao modo como esse docente transmite dado conteúdo. Logo, o tabu é tomado como uma verdade do sujeito e para o sujeito, mas que não se baseiam em fatos cientificamente comprovados e descritos.
O professor torna-se um espelho, substituto das primeiras figuras parentais da criança (Freud, 1914/1996). Atuando como o mediador de um campo que permita o fluir da criatividade, da aprendizagem e das descobertas (Silva, 2010) torna-se fundamental a instrumentalização deste para que o diálogo se inicie, seja com as crianças que estão sob seus cuidados, com os pais e/ou até mesmo com a comunidade em que a instituição escolar se encontra, com o objetivo de romper com estereótipos e preconceitos de qualquer espécie. As mudanças ocorridas nos últimos séculos, apontando para novas possibilidades de constituir-se sujeito, aliado aos diversos estudos que apontam uma deficiência de produção acadêmica que possa relacionar infância com gênero e sexualidade (Silva & Bertuol, 2015; Guizzo, 2013; Guizzo, Beck & Felipe, 2013) tornam este trabalho de relevância pública para os profissionais da educação e da saúde, justificando assim a sua importância.
Este artigo constitui um recorte de uma pesquisa maior desenvolvida na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Campus Gravataí, intitulado "Sexualidade infantil: a percepção de professores da Educação Infantil de uma escola do município de Osório – RS" entre os anos de 2017 e 2018. Tem-se por objetivo apresentar e analisar a percepção dos professores da educação infantil acerca da sexualidade na infância. Como fundamentos teóricos serão utilizados autores da Psicanálise (Freud, 1914/1996; 1907/1996; 1905/1996; Lejarraga, 2015), dos Estudos Culturais e Teoria Queer , como Louro (2019; 2004; 1999); Butler (1999); Weeks (1999); Foucault (1984); Felipe (2006); Guizzo (2013) entre outros, buscando problematizar o lugar da sexualidade na Educação Infantil.
Método
O estudo realizado foi de caráter descritivo, exploratório e qualitativo (Silveira & Córdova, 2009). Os participantes da pesquisa compreenderam seis (6) professores e cinco (5) auxiliares de Educação Infantil de uma escola do município de Osório/RS. Para tanto, a coleta dos dados se pautou na realização de um Grupo Focal (GF) com vistas a atender os objetivos propostos (Souza, 2020). O mesmo foi realizado em dois momentos: a primeira coleta de dados ocorreu no mês de Outubro de 2017 e, a segunda, em Abril de 2018.
Como instrumento de coleta de dados utilizou-se de um roteiro de entrevista semiestruturado com perguntas norteadoras que contemplavam: 1) a inserção da sexualidade nas práticas pedagógicas; 2) a percepção dos professores acerca das manifestações da sexualidade na infância; 3) o entendimento sobre a palavra sexualidade; 4) formação acadêmica e continuada; 5) a importância dos estudos teóricos do desenvolvimento psicossexual; 6) realização de trabalhos sobre a temática da sexualidade; 7) manejo com os pais; 8) abordagens frente às interrogações das crianças e; 9) o papel dos professores no esclarecimento das dúvidas de seus alunos. A entrevista foi gravada e filmada após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos sujeitos participantes. Também foi utilizado um Questionário Sociodemográfico, elaborado pelos autores, solicitando informações acerca do sexo, idade, tempo de experiência, formação e turma em que atuavam.
O uso da observação participante permitiu a apreensão daquilo que não se expressa verbalmente, manifestos pelos comportamentos e maneirismos dos sujeitos (Mónico, Alferes, Parreira & Castro, 2017; Gerhardt, Ramos, Riquinho & Santos, 2009). No que condiz a questão ética, tal estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) por meio do Parecer nº 2306757, CAEE nº 76778717.0.0000.5349 de acordo com as recomendações da Resolução 510 (Conselho Nacional de Saúde, 2016). Após a coleta de dados, a entrevista foi transcrita e submetida à Análise de Conteúdo (AC) de Bardin. Tal análise privilegiou o conteúdo em si, relevando o tema em que está sendo trabalhado (Gomes, 2007). Posteriormente, após identificação e decodificação das falas, se realizou o tratamento dos resultados dando sua devida interpretação.
Resultados
Dos participantes da pesquisa:
Foram participantes da pesquisa seis (6) professores e cinco (5) auxiliares de Educação Infantil que atuavam na instituição escolar. Dentre as características que compuseram o grupo de professores, cinco são do sexo feminino e apenas um do sexo masculino. As idades variam de 27-51 anos. Quatro deles possuem Magistério. No que condiz a Educação Superior, uma é formada em Pedagogia (Séries Iniciais), sendo os demais com formação em outras áreas (Letras, História, Matemática e Informática), atuando na Educação Infantil. Todos possuem pós-graduação em nível de especialização. Possuem mais de dois anos de atuação. Quanto à turma em que trabalham: uma atua no Berçário e Maternal; uma atua no Jardim; uma somente no Berçário e; três atuam no Maternal.
No segundo grupo, composta pelos cinco auxiliares de Educação Infantil, todas são do sexo feminino, com idades que variam entre 24-59 anos. Quatro das participantes possuem mais de dois anos de atuação, sendo que uma não respondeu a informação contida no Questionário Sociodemográfico. Duas possuem Ensino Superior completo, sendo uma habilitada em Pedagogia e a outra não informou qual área do saber se formou. Uma das participantes está cursando Ensino Superior (Pedagogia), uma possui Ensino Médio completo e outra não especificou. Entre as turmas que atuavam: duas no Berçário II; uma no Jardim e Maternal I; uma no Maternal I e; uma no Maternal II.
Da observação-participante:
Durante as observações realizadas, foram perceptíveis as resistências e estranhamentos quando da apresentação do tema de pesquisa. Uma das docentes, quando ficou ciente de que não se tratava de uma dita reunião, foi incisiva em suas críticas, argumentando não ter sido comunicada. Ao que parece, um problema de comunicação da Direção e Supervisão Pedagógica aos docentes foi o estopim para tal situação. Outro ponto bastante controverso foi o fato de a discussão no grande grupo ser gravada e filmada, gerando desconfiança por parte das participantes.
Decorridos seis meses da primeira coleta e diante de mudanças no quadro de funcionários de tal instituição, foi possível realizar a segunda coleta com os auxiliares de Educação Infantil. Parece ter havido um esquecimento por parte das professoras sobre tudo o que foi discutido, sendo possível observar o quanto os marcadores de gênero ainda estavam muito presentes e enraizados nos processos de trabalho. No período de retorno da pesquisa a escola estava se preparando para as festividades juninas e, em decorrência disso, os alunos, bem como, seus responsáveis, estavam vendendo rifas, cujo prêmio consistia em duas cestas de produtos. As cestas, por sua vez, estavam marcadas de forma diferente para meninos e meninas, em múltiplos aspectos, sendo embalado na cor rosa para meninas e na cor azul para meninos, reforçando os estereótipos de gênero.
Foi necessário retomar a explicação da pesquisa à Direção e Supervisão Pedagógica, uma vez que afirmaram não se lembrar do que se tratava. Entretanto, devido ao grupo operar em horário de funcionamento institucional, o tempo de discussão do segundo grupo teve de ser reduzido, o que limitou maiores aprofundamentos. Durante a realização da mesma, o silêncio se fez presente em muitos momentos, sendo necessário a intermediação do facilitador para que pudessem verbalizar aquilo que estavam pensando. Uma das participantes do grupo de auxiliares não se manifestou em nenhum momento, mas estava ali, atenta aos debates que ocorriam.
Ater-nos-emos agora a descrição de algumas falas que surgiram durante os diálogos realizados. Visando preservar a identidade dos participantes, nomearemos os professores de P1 a P6 e os auxiliares de A1 a A5, respeitando as diretrizes recomendadas pelo Comitê de Ética.
Das categorias analíticas:
Quanto aos resultados da entrevista, essa foi agrupada em duas categorias, sendo: a) Docência, percurso formativo e significações atribuídas à sexualidade e; b) Dispositivos3 agenciadores da sexualidade . A primeira categoria comportou duas categorias intermediárias, a saber: 1. Significados, percepções e sentidos dados à sexualidade infantil e; 2. Sexualidade infantil e formação docente. Já na segunda, as categorias intermediárias foram: 3. Manejo e; 4. Sexualidade infantil e sociedade. As falas subjacentes às categorias serão expostas abaixo.
a) Docência, percurso formativo e significações atribuídas à sexualidade:
Nesta categoria estão expostas falas que tratam da experiência docente e seu percurso formativo no campo da teoria e da práxis, que influenciam na sobremaneira de pensar e atribuir significados às manifestações da sexualidade infantil.
Discutindo sobre a sexualidade no dia a dia, bem como, a forma como ela se manifesta dentro do contexto da Educação Infantil, alguns enunciados expressam o modo como professores e auxiliares captam sua expressão a partir das observações diárias que realizam: P2: "[...] eu acredito que já foi mais tabu, olha, hoje em dia já está mais esclarecido né? Todas as turmas que eu entrei, assim, como ele se insere? No dia a dia. Desde tu saber ensinar para uma criança que né? Banheiro das meninas e dos meninos, a partir daí já" ; P3: "No Jardim eles já estão mais na descoberta mesmo, né? Até nessa turma, eu tenho uma de manhã e outra de tarde, a turma da tarde bem mais aflorada, assim... questionamentos não, situações mesmo assim, que a gente vê que eles estão se descobrindo né? Alguns mais precoces, outros menos... Não tem um tempo certo, né?" ; P5: "Os meus eles fazem assim: esse tem igual o do meu pai, sabe, esse igual ao da mãe..." Questionadas sobre o que significa a palavra sexualidade, os professores responderam: P3: "Uma palavra muito complexa! […] acho que depende da idade com que essa palavra é abordada" ; P4: "Eu acho que é uma coisa delicada, e tem que ter um cuidado para ser tratado" ; P1: "E, às vezes, é complicado... a questão é, como abordar com a família né?" .
Perguntado sobre como a temática da sexualidade é abordada nas formações pedagógicas, os docentes, bem como, os auxiliares, foram unânimes em dizer não haver contemplação do assunto nos projetos: P1: "É, eu acho que é mais, quando a prefeitura proporciona pra nós, é mais a questão do comportamento, atividades, avaliação... Especificamente, não lembro, sobre sexualidade..."; A1: "Na verdade, eu acho que a gente nunca, nunca teve nenhuma formação continuada... É! Esse tema. E na verdade eu acho que é uma coisa que precisaria. Mas não, a gente nunca teve nada específico". O reconhecimento de que discutir o tema é estranho para elas próprias foram expressas em dado momento do GF, como mostrado a seguir: P2: "[...] A gente não tá, quer dizer, preparada pra isso..." A1: "Na verdade, parece um tabu até pra gente né, é o que eu sinto nesse momento". Após a fala de A1, A3 complementa: "Mas eu também acho, na verdade, que somos pessoas de mais idade, antigamente, não se falava, a gente se descobria se descobrindo. Ninguém comentava. Hoje desde pequenos já tem tudo na escola, e coisa. E daí a gente já é meio, se retrai, porque tudo não podia. Se descobria fazendo. Deus me livre que o pai visse beijar na boca ou fazendo mais coisa".
Indagadas sobre se desenvolveram algum trabalho relacionado ao tema, os docentes concordaram que não procuram abordar questões da sexualidade com as crianças, ficando restritas às questões de gênero: P2: "A gente procura não enfocar nisso né. Não dar destaque pra esse tema" ; P3: "Eu lembro de ter elaborado isso no plano de aula a questão de gênero..." Já as auxiliares enfatizaram não estarem preparadas para falar ou desenvolver algum trabalho com a temática, mas trazendo a importância de abordar junassuntosto aos pais: A2: "[...] Assim, eu acho que na realidade a gente não está preparado na verdade para lidar [...] a gente não sabe na verdade, como agir né"; A1: "Seria importante trazer esses , pros pais também [...] que às vezes os pais não querem saber [...]".
b) Dispositivos agenciadores da sexualidade:
Nesta categoria estão contidas falas que sinalizam os jogos de poder-saber que circulam na instituição escolar, bem como, menção às outras instituições que regulam o exercício da sexualidade (igreja, Estado, família, mídia, etc.).
No que tange ao manejo das perguntas elaboradas pelas crianças, onde os professores se veem diante da tentativa de dar uma resposta, percebe-se certa insegurança desses e um cuidado para não falar além daquilo que foi perguntado: A2: "Com os pequenos, eu não sei ainda, como que vai né. Que é uma coisa que a gente não sabe se a mãe quer que nós falamos, né"; P2: "Até porque uma questão que eu acho que deve ser colocada aí, que é a questão religiosa. Pais que não querem que a verdade seja dita. Então, como é que tu vai fazer?"; P3: "Eu acho que responder sempre o que eles estão perguntando... não precisa ser além, né. Dar a resposta, não deixar eles com dúvidas, né. Mas dar a resposta dentro daquilo que eles estão perguntando" ; A5: "Eu não sei responder... eu não sei o que vai me perguntar, como vai estar o ano que vem, enfim, ou quando vê, porque é uma coisa diferente. E que eu saiba eu tolero, enfim, não tenho [...] mas e ela vai me perguntar e eu vou [...]" (se referindo ao fato das crianças verem casais homossexuais se beijando).
Discursos sobre como devem ser tratados os casos daqueles que apresentam manifestações da sexualidade mais exacerbada, foram narradas do seguinte modo: P1: "[...] não é um assunto que precisa abrir para a turma inteira, que é um ou outro..."; P4 : "E também, acho que chamar os pais, como tu comentou, mostrar que elas podem brincar da mesma coisa. Tipo, o Patrick4 fica o tempo inteiro ali, demonstrando. Refletem em casa, ele faz a mesma coisa ou ele faz na escola para chamar atenção dos coleguinhas?".
Os limites daquilo que é culturalmente estabelecido para meninos e meninas foram contestados por alguns dos participantes, como sinalizado: P2: "Não tem aquela coisa, não pode brincar... Todo mundo pode brincar com tudo, com boneca, com salão..." ; P1: "[...] não tem tanto tabu... só pra homem, só pra mulher... Até mesmo os meus pequeninhos, do berçário 1, ãnnn, eles gostam, que nem uma vez eu estava observando, ontem, eu tava observando o Vicenzo com um pratinho e com um garfinho, assim... como se tivesse fazendo comidinha né? E daí na piazinha, ali dentro da pia brincando... Então quer dizer, até acho que pra família é uma coisa assim bem... não é aquela coisa de isso aqui não pode brincar... provavelmente ele brinca com a Gillian... ou com a mãe, ou né..."
O papel dos educadores para se falar sobre sexualidade também mobilizaram narrativas, sendo apontado que, por mais que estudem o tema, irão se deparar com novas situações que, no momento, não terão as respostas: P3: "[...] Que a gente pode estudar, pode ler, pode... e a gente vai se pegar com perguntas como essas. E qual é a resposta? Qual a melhor resposta? Não tem uma formação que vá preparar pra gente responder todas as coisas, né?" ; A3: "Hãn, eu acho que é um papel muito importante, nesse caso, ter uma melhor preparação pra isso, porque na verdade a gente fica o dia inteiro com eles. Olha o tempo que eles ficam com os pais em casa, praticamente à noite e fim de semana".
Por último, o papel da cultura e dos meios de comunicação foi mencionado por uma das professoras, onde essa imputa a família uma transmissão de valores, mas que, diante de mudanças contextuais, perderam a sua função de limitar certos conteúdos: P1: "É verdade! Uma coisa que eu acho assim, tão complicado hoje em dia, é a questão da mídia, a televisão assim, sem horário, às vezes até as propagandas" . E continua: "As famílias tão muito assim, tão muito, eu não sei se, ããn, liberando demais né... E essa coisa da estrutura familiar, a questão dos valores, a questão do respeito, essas coisas vão se perdendo né... vão se perdendo". Complementando a discussão, P2 e P6, traçam um debate e produzem novas aberturas: P2: "[...] pro pai e pra mãe é mais fácil deixar na frente da TV" ; P6: "[...] dar o tablet pra criança, anestesia a criança ali e não incomoda" . Em certo momento, no tocante ao consumo e a circulação de produtos, tendo como foco, a população infantil, P2 traz uma importante contribuição: "E tem aquela questão, eu tava pensando agora nas roupas infantis, que agora são tudo de gente grande. E é sapatinho que já tem salto". P6 complementa: "É a questão da maquiagem, também, que eu acho que é uma coisa que, é, aguça a sexualidade muito...".
Não tivemos a pretensão de exaurir todas as falas que se produziram durante a realização dos grupos, mas apontar algumas que foram marcantes e que constituem o corpo deste artigo e que serão discutidas abaixo.
Discussão
Tivemos por intenção apresentar e analisar a percepção dos professores da educação infantil acerca das manifestações da sexualidade na infância. No percurso da pesquisa, observaram-se resistências quanto à colocação do tema, marcado por discursos que reproduzem estereótipos de gênero e que reforçam concepções simplistas da sexualidade. Deficiências na formação e não contemplação da temática nas formações continuadas dos docentes constituem hipóteses plausíveis para a perpetuação de crenças e tabus em torno da constituição sexual da criança.
Nas narrativas, professores e auxiliares apontaram estar à sexualidade presente no dia a dia da educação infantil, existindo banheiros que são para meninos e banheiros que são para meninas. Também evidenciaram a questão da diferença sexual como de conhecimento das crianças. Essa divisão binária encontra ecos na teorização de Louro (2004; 1999). Para a autora, a escola, a partir de seus múltiplos meios de regulação dos corpos, produzem marcas que se perpetuarão ao longo de toda a vida do sujeito. Logo, a instituição escolar cumpre a sua função enquanto dispositivo (Foucault, 1984) instituindo normas, produzindo agenciamentos dos corpos, tendo como premissa uma sexualidade dita heteronormativa. Os papéis daquilo que é do feminino e do masculino são colocados em ação, na própria gestão escolar, de modo a atender uma demanda de fora, de uma expectativa colocada pelo social (Couto, Pocahy & Oswald, 2018; Martins, 2017; Schneider, 2017).
Os significados atribuídos à sexualidade foram narrados como sendo variáveis, de acordo com os momentos em que se fala sobre o tema, deixando evidenciar uma compreensão reducionista do termo. Também apontaram para o cuidado de enunciar o assunto, requerendo certo tratamento, modo de dizer, como falar, indo ao encontro das considerações de Foucault (1984) acerca dos agenciamentos produzidos no discurso, permitindo um dizer sobre o sexo, sobre o corpo e sobre os prazeres da carne. A sexualidade infantil, hoje, não é a mesma daquela do século XX (Silva, 2005), e não será a mesma num futuro próximo. A própria definição de sexualidade é mutável. Como bem reforçam alguns autores (Finco, 2013; Louro, 2004, 1999; Butler, 1999; Weeks, 1999). Estamos, hoje, no território da imanência e não mais de posições fixas e rígidas, mas maleáveis, que ora se constroem, ora se desconstroem (Louro, 2019). Entretanto, não podemos reduzir a sexualidade apenas ao caráter genital ou a algo dado, tido como natural, obedecendo às regras de um biologicismo (Fieira, Lorenz & Gagliotto, 2017). Sexualidade é outra coisa, cuja construção se dá dentro de um determinado tempo sócio-histórico-cultural (Brandão & Lopes, 2018).
O trabalho sobre a sexualidade não faz parte da rotina desses profissionais, onde dizem não dar um enfoque para tal. Mas se aceitamos o fato de que a sexualidade está presente desde a mais tenra infância, não estaria ela presente nos fazeres pedagógicos? Se de um lado afirmam estar à sexualidade presente no dia a dia, como podem afirmar não dar um enfoque para tal? A ideia de que a sexualidade é algo exterior, a parte do sujeito, parece insistir. Por outro lado, uma das docentes diz já ter previsto em seu conteúdo programático o trabalho sobre gênero. Confrontamos esses dados com a Diretriz Curricular Nacional para a Educação Infantil (Ministério da Educação, 2009) que, em nenhum momento, faz menção ao tema da sexualidade, mas fazendo-o em relação ao gênero, apontando para a necessidade da proposta pedagógica da instituição de educação infantil garantir o respeito e combater toda forma de dominação e preconceito em razão de gênero (Martins, 2017; Ministério da Educação, 2009). O fato de o próprio Estado negar a dimensão da sexualidade como constituinte do sujeito, assume reflexos na formação continuada e pedagógica dos docentes.
O município, conforme trazido pelos profissionais, não oportunizou em nenhum momento uma formação que contemplasse o tema da sexualidade na educação infantil. De acordo com Silva e Bertuol (2015) isso se deve ao fato de muitas formações focarem em termos de comportamento infantil, dando maior enfoque para os fatores cognitivos do desenvolvimento. Por outro lado, a pouca produção científica em torno da articulação sexualidade, gênero e infância produzem uma espécie de invisibilidade da temática (Guizzo, 2013; Guizzo, Beck & Felipe, 2013).
Frente às interrogações das crianças, narram que antes de qualquer resposta, procuram entender o que de fato a criança pergunta e quer saber. Falam sobre o entrave de discutir o tema com a família, que, muitas vezes, pertencem a uma dada religião, não sabendo se devem ou não trazer o assunto para pauta. Por outro lado, admitem que os próprios pais não queiram saber daquilo no qual eles deveriam saber. Freud (1905/1996) discorre sobre as investigações empreendidas pelas crianças na tentativa de encontrar uma resposta para suas perguntas, se utilizando da observação dos animais, da forma como estes concebem um filhote, acasalam, etc. De acordo com a literatura, Britzman (1999) aponta que os próprios docentes podem se ver com sentimentos conflituosos, ambivalentes, ao tentar ensaiar uma resposta adequada à pergunta. Monteiro e Storto (2019) e Silva (2010) sinalizam para a importância de responder aquilo que a criança deseja saber, reforçando a necessidade de entender o contexto da pergunta, dando uma resposta satisfatória. Frente a um não saber, as autoras enfatizam a importância de o/a docente dizer isso à criança, de que não sabe responder aquilo que ela perguntou. O que não se pode é deixar a criança mergulhada em uma angústia, sem possibilidades para elaborar uma interrogação, já que a curiosidade sexual é a propulsora de toda pulsão epistemofílica que acompanhará o sujeito ao longo de toda a vida.
As discussões de gênero marcaram um debate centralizador nos grupos, em que afirmavam serem os brinquedos e brincadeiras comuns a todos. As tentativas de não incorrer nas reproduções de estereótipos estão presentes nas falas de P1 e P2. Para os casos de exacerbação das manifestações da sexualidade (comportamento, masturbação, etc.), a atitude dos professores, conforme descrito, era chamar os pais para uma conversa na instituição, não necessitando abrir o assunto para a turma. Tais sujeitos são alvos da mais constante vigilância, se tornando casos a serem discutidos, conversados, narrados, encaminhados (Finco 2013; Vianna & Finco, 2009; Louro, 2004). Podemos pensar, a partir de Butler (1999), o corpo abjeto , que nada mais é do que aquele sujeito cujos gestos, modo de andar, se vestir, brincar, se comportar, etc. não se enquadram nos padrões culturais vigentes, mas que constantemente são enunciados – ou melhor, anunciados no grupo – como forma de sinalizar os limites do permitido e do proibido.
Quanto ao papel docente afirmaram que, por mais que busquem conhecimento, se informem do assunto, haverá momentos em que não saberão como responder às perguntas feitas pelas crianças, destacando, também, a importância de estudar o tema, já que passam boa parte do tempo com elas. Freud (1907/1996; 1914/1996) já sinalizava para a necessidade de uma educação mais libertadora e menos repressora, incumbindo aos professores o papel do esclarecimento sexual das crianças. Como representante substituto das primeiras figuras parentais, a figura do professor serve de modelo identificatório, sendo mediador da aprendizagem, da curiosidade, enfim, da pulsão epistemofílica que acompanha o sujeito (Silva, 2010). Outeiral (2010) toma o lugar do professor como de transmissor de um saber, do pedagógico, de fazer o pequeno ser acessar os produtos culturais oferecidos pelo laço social. Devemos frisar, entretanto, que esse professor não é uma folha de papel em branco, sendo possuidor de uma subjetividade, inscrito no desejo de alguém, com uma história, moldado de acordo com uma determinada cultura e, por extensão, dotado de certos saberes (Müller & Kreutz, 2001). Logo, isso também marcará a forma como este lidará com aquilo que também lhe toca, não ficando isento do que a ele foi repassado, fazendo dessa transmissão uma verdade imutável.
Por fim, os participantes trouxeram a preocupação com a forma como a mídia influencia as crianças, levando a uma adultização da infância, onde roupas e maquiagens foram os produtos destacados como de maior consumo pelo público infantil. A mídia - televisão, rádio, internet, propagandas, revistas, etc. - ocupam um papel de difusora, e também de identificação, fazendo uso de diversas estratégias de marketing que lançam esses sujeitos no curto-circuito do consumo (Alvarez, 2014; Felipe, 2006). Se não são as crianças, são os pais que, coagidos e seduzidos por tais estratégias, se veem compelidos a comprar dado objeto, permitindo com que seu filho ou filha acesse os bens disponíveis, que possa gozar as voltas de um gadget (Alvarez, 2014). A isso Felipe (2006) denomina de pedofilização da infância , tornando inegável a influência da cultura de massa na formação do sujeito infantil.
Se falar de sexualidade ainda nos interpela para algo do desconhecido - mas não tão desconhecido assim - como será que Freud viria à sexualidade e seus desdobramentos, hoje? Como bem nos diz Weeks (1999), o grande atrativo da psicanálise é que ela nos possibilita se interrogar acerca dos processos psíquicos determinados em dado período histórico, o que, por um lado, não escapa daquilo que o próprio Foucault (1984) nos interpelou: de uma vontade de saber sobre o sexo. Vontade que expressa o desejo de dominar, de colocar em discurso, de enunciar a sexualidade, ou seja, de aperfeiçoar e desenvolver um saber sobre aquilo que vem a ser/constituir a sexualidade.
Conclusão
Os professores entrevistados demonstraram resistências no início do GF, seja por se tratar de uma coleta de dados para pesquisa, seja pelo fato de a mesma estar sendo filmada e gravada. No decorrer do processo estavam mais à vontade e integrados. A partir dos diálogos, evidenciou-se que a sexualidade se encontra presente na realidade quotidiana da escola, sendo vivida pelos professores de modo ambivalente, ora como um fenômeno natural, ora como algo complexo, permeado por crenças e tabus. Também demonstraram pouco conhecimento teórico sobre o assunto. No quesito da oferta de cursos de formação continuada oferecidas pelo município, expressaram não ter ocorrido nenhum evento sobre o tema em discussão.
Diante do exposto, compreendemos que a sexualidade ainda é um tema tabu no entorno social, marcada por estigmas e preconceitos. Estruturam crenças que, muitas das vezes, impedem o viver criativo e expressivo das crianças. Se Freud (1905/1996) já causara desconforto na sociedade moralizante de sua época, atualmente, o fenômeno parece insistir. A onda de retrocessos que assola o país torna emergente a discussão de temas relativos à sexualidade e ao gênero, subvertendo a noção natural da mesma, quando, na verdade, essas são frutos de uma produção histórica e social que se modifica a cada instante (Louro, 2019; 2004; 1999). A sexualidade de hoje não é a mesma da Viena do século XX e não será a mesma de amanhã (Silva, 2005). Variações se impõem e se imporão, nos colocando diante de novos desafios.
É inegável o papel da sexualidade na constituição do sujeito, não sendo possível extirpá-lo da vida do mesmo. Ela está ali e marca presença. Não é algo que se aprende lendo uma série de manuais sobre sexo e prazeres, mas que encontra respostas no íntimo de cada um (Müller & Kreutz, 2001). Quando o professor está bem resolvido com a sua própria sexualidade, esse pode ter melhores recursos para abordar o assunto, acolhendo as dúvidas e favorecendo práticas em sala de aula menos repressivas e mais integradoras.
Para tanto, reforçamos a importância da criação de cursos de formação continuada que tragam o tema para debate entre docentes e auxiliares de Educação Infantil, possibilitando trocas e reflexões que aliem teoria e prática. A partir de estudos de casos concretos e seminários é possível produzir frutíferas considerações, trabalhar em prol de uma transmissão que produza deslocamentos e novas formas de se pensar a sexualidade e o gênero na infância. O estabelecimento de parcerias e a necessidade de contemplação da temática nos cursos de licenciatura também são alternativas potentes, vindo ao encontro das ideias de Martins (2017).
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Endereço para correspondência
E-mail:wiliangomessilva2014@gmail.com
Recebido em: novembro de 2020
Aceito em: abril de 2021
1 Wilian Gomes da Silva: Psicólogo. Graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Campus Gravataí/RS. Endereço para correspondência: R. Teodoro Barbosa Telles, 112, Bairro Bom Princípio, Santo Antônio da Patrulha/RS – CEP 95500-000.
2 Mariana Canellas Benchaya: Psicóloga. Professora do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Campus Gravataí. Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Endereço para correspondência: Av. Itacolomi, n. 3600, Bairro São Vicente, Gravataí/RS – CEP 94155-052.
3 O termo dispositivo foi tomado de empréstimo de Foucault (1984). Segundo Chignola (2014) o dispositivo pode ser entendido como um conjunto de discursos, regulamentos, saberes, difundidos por instituições que visam enunciar um saber-poder sobre o sexo e a sexualidade.
4 Os nomes aqui descritos são fictícios, visando preservar a identidade das crianças que tiveram seus nomes citados.