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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.11 no.21 São Paulo June 2006

 

ARTIGOS

 

Os paradoxos da fantasia

 

Paradoxes of fantasy

 

 

Ricardo SalztragerI

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é analisar as diversas circunscrições da figura da fantasia, objetivando o destaque do seguinte paradoxo: a fantasia pode se apresentar como uma estrutura articulada ao campo discursivo do sujeito, ou então, como o que justamente escapa a tal encadeamento. A base para a discussão é o modelo de aparelho psíquico da “Carta 52”.

Palavras-chaves: Fantasia, Discurso, Interpretação, Construção, Psicanálise


ABSTRACT

The purpose of the article is to analyze the different circumpscritions of the figure of fantasy throughout the Freudian texts, highliting the following paradox: the fantasy either takes the form of an articulated structure in the discoursive field of the subject or takes the form of what escapes that link. The basis for this discussion is the model of the psychic apparel developed by Freud in “Letter 52”.

Keywords: Fantasy, Language, Daydreams, Fantasies of spanking, Psychoanalysis.


 

 

Desde os primórdios de sua elaboração teórica, Freud (1895) considerou o psiquismo como um aparato de captura de excitações, que seriam vinculadas a determinadas representações, para uma posterior descarga. Nesta medida, estava em jogo, de um lado, um quantum de excitação que precisava ser descarregado e, de outro, um dispositivo erigido, justamente, para efetuar um certo tipo de trabalho frente à estimulação. Assim, onde prevalece o incessante esforço do aparelho psíquico para dar conta da excitação que o invade, é destacada a sua função de fornecimento de algum sentido ao que é da ordem do indizível (Freud, 1920).

Pressupondo que a dinâmica psíquica compreende tanto um domínio representacional quanto um pólo pulsional, a proposta do presente artigo é lançar alguns subsídios para a análise do estatuto de uma figura crucial do pensamento psicanalítico – a fantasia –, levando em consideração suas articulações com estas duas dimensões da esfera psíquica. Trata-se de examinar as diversas circunscrições do tema, ao longo da obra freudiana, objetivando destacar o seguinte paradoxo: a fantasia, ora se presentifica como a resultante do extenso trabalho de representação psíquica, ora como o que, justamente, resiste à atividade representativa. Em outros termos, evidenciaremos que, apesar da atividade fantasmática se manifestar como uma estrutura articulada ao campo discursivo do sujeito, também podemos constatar que ela se configura como um resíduo que escapa ao encadeamento significante.

Com efeito, através do discurso, o analista consegue obter o devido acesso às mais variadas fantasmatizações do sujeito em análise: trata-se de verdadeiros castelos no ar, romances e teorias inventadas sobre a realidade circundante, lembranças encobridoras referentes a eventos infantis e concepções diversas arquitetadas acerca de si mesmo e dos seus semelhantes. Enquanto tais formações se manifestam ao longo do processo de associação livre, algumas outras fantasias, que em virtude de seu conteúdo ameaçador se tornaram inconscientes, são trazidas à tona somente num segundo momento, quando se dá o levantamento da barreira do recalque. Mas, apesar desta diferença topográfica, todas as construções fantasmáticas em questão se apresentam enquanto estruturas passíveis de ordenação e expressão por intermédio da fala.

Contudo, quando voltamos nosso interesse para o relato clínico do caso do Homem dos Lobos (Freud, 1918), por exemplo, verificamos que mesmo o processo analítico mais abrangente se defronta com a impossibilidade de conduzir a totalidade do material recalcado à consciência. Ou seja, dá-se o reconhecimento de um lócus no aparelho psíquico que escapa à trama representacional, constituindo um resíduo inacessível tanto ao processo de rememoração consciente, quanto ao trabalho de interpretação. Neste contexto, constatando que, no caso clínico em questão, tal fragmento aponta, justamente, para uma produção fantasmática, podemos observar que, paradoxalmente, a fantasia também comporta um núcleo indizível e inassimilável pela rede de significações. Do mesmo modo, quando no artigo “Bate-se numa criança”, Freud (1919a) investiga a problemática da origem e desenvolvimento da produção fantasmática do sujeito, a vertente pulsional da figura da fantasia também é enfatizada: é a lógica interna ao complexo fantasmático que obriga a presumir a existência do segundo tempo do fantasma de espancamento. Portanto, em ambos os casos, se faz presente a indicação de algo no campo fantasmático situado para mais além do domínio do recalcado.

Com base nestes pressupostos, se faz necessária a retomada de algumas indicações presentes nos textos freudianos nos quais predomine ora a esfera representacional, ora o panorama pulsional dos processos psíquicos, visando circunscrever alguns subsídios teóricos que auxiliem no objetivo de analisar o paradoxo da atividade fantasmática.

 

A fantasia como cenário discursivo

Com o abandono da teoria da sedução sexual (Freud, 1897), a figura da fantasia passou a assumir um lugar de destaque no pensamento psicanalítico, conduzindo Freud no caminho de suas grandes elaborações teóricas. Ou seja, ao perceber que as cenas de sedução narradas pelas histéricas não passavam de meros dispositivos de dissimulação das manifestações da sexualidade infantil, tornou-se inevitável um exame do funcionamento do aparelho psíquico, visando destacar o mecanismo responsável pela construção destas fantasias. Tal investigação culminou na construção da primeira tópica (Freud, 1900), com a conseqüente postulação de um inconsciente sistematizado, ou seja, um espaço psíquico dotado de características e funcionamento próprios. Neste sentido, as primeiras referências metapsicológicas de Freud à atividade fantasística levavam em conta sua articulação com a divisão topográfica do aparato, com a dinâmica do recalque e com a questão do primado do princípio de prazer.

Nos primeiros escritos, a atividade fantasmática é contemplada em suas múltiplas facetas, seja como lembranças encobridoras (Freud, 1899), devaneios (Freud, 1908a), ou organizações inconscientes subjacentes aos sintomas neuróticos (Freud, 1908b) aos sonhos (Freud, 1900) e às criações artísticas (Freud, 1910). Uma distinção quanto à situação topográfica da fantasia começa a se esboçar já em “A interpretação de sonhos” (Freud, 1900). Ela pode se manifestar, em primeiro lugar, sob a forma de devaneios: cenas e romances inventados pelo sujeito são circunscritos como formações de compromisso, expressando o material recalcado de maneira deformada para conseguir o acesso à consciência. Por outro lado, a fantasia também se configura como uma estrutura inconsciente, devendo assim permanecer, em virtude de seu conteúdo ameaçador. Ambas possuem um papel crucial no mecanismo de formação dos sonhos: enquanto as fantasias inconscientes encontram-se atreladas ao desejo instigador do sonho, os devaneios são utilizados pelo trabalho de elaboração secundária, servindo como importante recurso para fornecer uma fachada inteligível aos sonhos.

Estas duas formas de presentificação da atividade fantasmática serão objeto de análise mais detalhada em escritos posteriores da obra freudiana. No artigo “Escritores criativos e devaneio”, por exemplo, Freud (1908a) focaliza a vertente consciente da fantasia circunscrevendo-a, em linhas gerais, como uma atividade imaginativa que visa à correção da realidade insatisfatória. A fantasia seria impulsionada por um desejo insatisfeito, funcionando como uma espécie de cenário para a realização de um desejo recalcado e vinculado à sexualidade infantil. Neste contexto, o retraimento do sujeito para a esfera da fantasia funcionaria como uma espécie de solo comum tanto à criação artística quanto à formação dos sintomas. Ou seja, por um lado, as fantasias constituem as verdadeiras fontes das quais os escritores criativos retiram a inspiração para a confecção de suas obras literárias. Em contrapartida, caso o sujeito não consiga sublimar a libido, as fantasias podem se tornar profusas e poderosas, dando origem aos diversos transtornos neuróticos.

Esta primeira teoria acerca da formação sintomática a partir do recalcamento de uma fantasia é discutida, de maneira mais abrangente, no artigo “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, no qual Freud (1908b) postula que os mais variados sintomas constituem a manifestação de uma fantasia inconsciente que não consegue forma de expressão mais adequada. O processo tem seu início com o recalcamento de uma fantasia outrora construída pela criança durante um ato de masturbação. A partir daí, a ausência de interferência por parte da consciência provoca um desenvolvimento profuso e desinibido da fantasia e, quando esta é despertada por algum acontecimento fortuito, uma formação sintomática se estabelece como solução de compromisso. Os sintomas neuróticos seriam concebidos como resultante de uma espécie de conciliação entre uma fantasia inconsciente buscando realização e um impulso contrário que tenta suprimi-la.

Assim, concebida enquanto encenação atrelada ao desejo inconsciente ou enquanto uma espécie de tela protetora que permite ao sujeito somente se defrontar com o desejo em questão de forma dissimulada, a atividade fantasmática está sendo aqui privilegiada em sua vertente representacional. Trata-se, em última instância, de assimilar a fantasia à extensa rede de representações que se constitui, segundo a linguagem do “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895), a partir da formação dos percursos facilitados na rede neuronal, ou então, de acordo com os termos de “Além do princípio de prazer” (Freud, 1920), à trama significante resultante do trabalho de elaboração psíquica das tendências pulsionais. Neste aspecto, prevaleceria o jogo do deslocamento energético por entre os meandros da trama significante, possibilitando as constantes rearticulações da rede fantasmática em diferentes figuras, cenários e contextos. Também articulada ao domínio da linguagem, a fantasia constituiria o pano de fundo necessário às formações discursivas do sujeito em análise (Perron-Borelli, 1997).

Por tal configuração metapsicológica, constata-se que as formações fantasísticas em questão se apresentam como estruturas passíveis de interpretação pelo procedimento analítico. De fato, a interpretação se exerce justamente na decomposição incessante de produções fantasmáticas que, em si mesmas, já seriam interpretações, fornecidas pelo sujeito, para as suas mais diversas experiências1. Neste sentido, a clínica psicanalítica opera na decomposição dos elementos presentes no discurso fantasmático do sujeito, a fim de abrir espaço nas ramificações imbricadas na cadeia de trilhamentos, buscando conceder devida expressão aos desejos recalcados. Através da destruição de uma determinada produção fantasmática uma outra fantasia pode ser recomposta.

 

A fantasia como cena indizível

Com efeito, uma série de impasses clínicos referentes ao fenômeno da compulsão à repetição (Freud, 1920), à noção de inquietante estranheza (Freud, 1919b) e ao artifício da construção em análise (Freud, 1937) culminaram numa reestruturação da metapsicologia freudiana rumo à valorização das tendências situadas para além do principio de prazer (Freud, 1920). Ou seja, queremos ressaltar que não se trata aí do reconhecimento em si da dimensão pulsional do aparato psíquico, pois, de fato, o ponto de vista econômico da metapsicologia jamais deixou de estar presente no pensamento de Freud. Como exemplos, podemos mencionar o reconhecimento de um umbigo dos sonhos (Freud, 1900), uma primeira teorização sobre o fenômeno da repetição na clínica (Freud, 1914), além da discussão acerca da noção de afeto (Freud, 1915b). No entanto, podemos considerar que em 1920, Freud vai tomar o conceito de pulsão em sua radicalidade, o que acarretou um importante deslocamento teórico-clínico e a conseqüente reformulação de vários conceitos e figuras da metapsicologia freudiana. Com respeito à figura da fantasia, o destino não poderia ser outro. Com isso, esboçou-se uma nova concepção da atividade fantasmática que, para além de sua vertente representacional, também levava em conta suas conexões às tendências psíquicas situadas para além do princípio de prazer e do jogo do recalque / retorno do recalcado.

Deste modo, com a construção do conceito de pulsão de morte (Freud, 1920) é radicalizada a impossibilidade de levar adiante a proposta de vencer as resistências para trazer à consciência a totalidade do material recalcado, evidenciando-se também o fracasso da interpretação ante a insistência da intensidade pulsional. Assim, se antes a ênfase na dificuldade de condução do material recalcado à consciência recaía sobre as resistências oferecidas pelo paciente, a partir do reconhecimento de um pólo pulsional no campo psíquico, tal impossibilidade passa a ser referida a algo que escapa ao encadeamento significante. Neste contexto, o pensamento freudiano admitiu a existência de algo que não pode ser recordado, mas que, no entanto, desempenha papel crucial na constituição e funcionamento do aparelho psíquico, impondo um limite crucial ao processo de significantização. Nesta perspectiva, o recurso à construção em análise (Freud, 1937) será utilizado quando, diante da insistência pulsional, a interpretação se torna vacilante. Em última instância, a entrada em cena da figura da construção vem evidenciar a existência de um lócus no aparelho psíquico, situado para além do encadeamento significante.

No entanto, é justamente neste ponto que intervém o paradoxo em questão no presente artigo. Se voltarmos nosso interesse para o relato clínico da “História de uma neurose infantil” (Freud, 1918), momento no qual o artifício da construção começa a ganhar espaço na clínica psicanalítica, verificamos que este fragmento que não se faz representar, configurando-se como uma espécie de resíduo da atividade psíquica, conduz, paradoxalmente, para uma produção fantasmática. Resistindo à simbolização, a fantasia surge no caso do Homem dos Lobos como algo que não pode ser expresso por meio de palavras, delimitando um registro situado para além do domínio do recalcado, e manifestando-se como um resto da operação de ligações psíquicas, que só pôde vir à tona mediante o recurso à construção. Deste modo, cabe perguntar: pode a fantasia se apresentar como o produto do trabalho de ligações psíquicas e, ao mesmo tempo, como o que resiste ao encadeamento discursivo? Em caso positivo, qual será então o estatuto metapsicológico de uma construção fantasmática que escapa à trama de significantizações?

De fato, durante o tratamento do caso, o interesse de Freud (1918) se dirigiu para a construção de uma cena que justificasse a fobia infantil do Homem dos Lobos. Para tal, foi tomado como ponto de partida um sonho, datado da noite de seu quarto aniversário, no qual havia alguns lobos sentados sobre os galhos de uma nogueira, diante da janela de seu quarto. A interpretação do sonho consistiu em demonstrar que, em seus pensamentos oníricos, o paciente estaria revivendo uma cena sucedida aos dezoito meses de idade, no qual testemunhara uma relação sexual entre os pais. A cena em questão foi denominada de cena primária.

É interessante notar a obstinação de Freud (1918), num primeiro momento, em fornecer o estatuto de realidade à cena em questão. No entanto, pouco antes da publicação do caso clínico, são acrescentadas duas longas passagens ao relato original, nas quais se manifestam algumas tentativas de recuperação do caráter fantasmático da cena primária. Daí, é levantada a hipótese de a cena ser fruto de uma produção fantasmática arquitetada a partir de impressões deixadas pela observação ocasional de uma cena de cópula entre cães pastores. Contudo, apesar da consonância da presente hipótese com as elaborações metapsicológicas empreendidas até então sobre a temática da realidade psíquica, não foi esta a solução definitiva para o problema. Assim, num segundo acréscimo, são retomados os impasses acerca da justificativa da neurose pela realidade material ou pelo viés da fantasia, e Freud lança mão da proposta de considerar a cena primária enquanto expressão de uma fantasia originária2.

Também no artigo “Bate-se numa criança” o núcleo indizível da atividade fantasmática é enfatizado. Segundo Freud (1919a), a formação dos três tempos da fantasia de espancamento (“Meu pai espanca uma criança que eu odeio”, “Meu pai me espanca” e “Bate-se numa criança”) se torna inteligível quando nos voltamos para uma investigação minuciosa acerca das diversas manifestações psíquicas de uma menina imersa em seus complexos parentais. A construção do primeiro tempo da fantasia se dá no instante em que uma criança que, acreditando ser o objeto privilegiado do amor paterno é surpreendida com o nascimento de um irmão. Deste modo, a cena na qual o pai bate na criança odiada é estruturada pela criança na tentativa de gratificar seus ciúmes e interesses egoístas. Trata-se de uma fantasia visivelmente incestuosa na medida em que realiza os desejos edipianos do infante. O sentimento de culpa, oriundo do recalcamento destes impulsos libidinais, promoveria a reversão do cenário inicial da fantasia de espancamento para “o meu pai está me espancando”. Esta segunda forma de manifestação da fantasia é inconsciente, e assim permanece, em virtude da intensidade do processo de recalque. O conteúdo que assoma à consciência é um derivado deste material inconsciente, no qual o adulto que espanca não é o pai, mas algum professor ou qualquer outra pessoa que exerça algum tipo de autoridade, sendo a criança uma mera espectadora. Por um lado, a figura do professor toma o lugar do pai e, por outro, as várias crianças funcionam como substitutas da própria menina.

Tendo em vista o objetivo do presente artigo, devemos contrapor à leitura de Freud das fantasias de espancamento – que, ancorada nos desejos recalcados referentes ao complexo de Édipo, privilegia sua vertente representacional – com uma outra visada para a questão. Com efeito, o texto freudiano é bastante ambíguo a este respeito, pois apesar de indicar uma série de fatores que levam à articulação das fantasias em questão com as tendências pulsionais, a interpretação reducionista destes fantasmas à luz do complexo de Édipo pode conduzir a uma acepção diversa. Dentre os fatores passíveis de conduzir ao reconhecimento do lócus pulsional dos fantasmas de flagelação, podemos citar a constatação de que o segundo tempo da fantasia foi fruto de uma construção em análise e o reconhecimento do estatuto eminentemente masoquista deste mesmo tempo do complexo fantasístico em questão. Passemos ao exame destes dois aspectos.

O primeiro fator concerne, portanto, à configuração inconsciente do segundo tempo da fantasia. De fato, não foi através de uma interpretação dos sintomas de seus pacientes que Freud (1919a) foi levado ao reconhecimento deste tempo da fantasia, mas pelo artifício da construção em análise. Segundo Miller (1998), o caráter inapreensível do segundo tempo da fantasia não remete necessariamente à ação de uma resistência egóica ao trabalho analítico na medida em que algumas passagens do texto freudiano justificam sua articulação com algo que é da ordem do indizível. Assim, ao contrário do primeiro e do terceiro tempo da fantasia, atrelados ao domínio representacional do aparelho psíquico, a segunda fase poderia constituir-se como um lócus inerente ao campo do devaneio que, associado às tendências pulsionais, não se presta ao movimento de interpretação:

No que diz respeito às fantasias simples e primitivas que não podiam, obviamente, ser atribuídas à influência das impressões escolares ou de cenas tiradas de livros, seria necessário maior informação. Quem era a criança que estava sendo espancada? A que estava criando a fantasia, ou uma outra? Era sempre a mesma criança, ou às vezes era uma diferente? Quem estava batendo na criança? Uma pessoa adulta? (...) Nada do que foi apurado pôde esclarecer todas essas perguntas; apenas a resposta hesitante: Nada mais sei sobre isto: estão espancando uma criança” (Freud, 1919a, p. 197, grifo meu).

Com base na citação acima, podemos verificar que a expressão ‘Nada mais sei sobre isto: estão espancando uma criança’, resposta recorrente ao longo das mais diversas análises, parece indicar a existência de algo que não se insere na trama significante, configurando-se como um núcleo indizível da própria estrutura fantasmática (Mancini, 1998).

O segundo aspecto importante pode ser depreendido a partir da configuração eminentemente masoquista deste mesmo tempo do complexo fantasmático em questão. Retomando o processo de passagem do primeiro para o segundo momento da fantasia de espancamento, verificamos que Freud (1919a) circunscreve a formação da fantasia masoquista como uma transformação da fantasia sádica, por intermédio da atuação do sentimento de culpa e da regressão da libido à fase sádico-anal. Certamente, tal encaminhamento merece ser encarado como reflexo de uma concepção anterior, apresentada em “As pulsões e suas vicissitudes” (Freud, 1915a), na qual o masoquismo é tido como secundário em relação ao sadismo. Todavia, se nos detivermos um pouco mais sobre esta temática, principalmente quanto ao redimensionamento das figuras do sadismo e do masoquismo a partir da publicação de “Além do princípio de prazer” (Freud, 1920), podemos vislumbrar um outro encaminhamento para a questão.

No ensaio “O problema econômico do masoquismo”, por exemplo, Freud (1924) retoma a temática do sadismo e do masoquismo, para repensá-la à luz das novas aquisições teóricas trazidas com a segunda teoria pulsional. Neste artigo, são reconhecidas três modalidades de masoquismo: o masoquismo feminino referente aos sujeitos que, em geral, se colocam numa posição de servidão frente a seus parceiros sexuais; o masoquismo moral, que se vincula à atuação da instância superegóica, e pode ser reconhecido em sujeitos que possuem um sentimento inconsciente de culpa exacerbado, manifesto em alguns fenômenos clínicos, tais como a reação terapêutica negativa; e, por fim, o masoquismo erógeno, resultante do processo de fusão originária entre pulsão de vida e pulsão de morte. Em linhas gerais, o advento da organização sexual provocaria um desvio do potencial destrutivo da pulsão de morte para os objetos, por intermédio da ação das pulsões de vida. Nesta medida, o processo de fusão da pulsão de morte com a libido, com a conseqüente transposição da agressividade para o mundo externo, resultaria numa atitude sádica propriamente dita. Por outro lado, pressupondo que o desvio das tendências destrutivas é sempre parcial e, portanto, uma parcela de agressividade permanece voltada para o eu, Freud (1924) identifica, neste resíduo, o masoquismo erógeno primário.

A partir da circunscrição destas três modalidades de masoquismo, observamos uma certa distinção entre, de um lado, os estatutos metapsicológicos do masoquismo moral e do masoquismo feminino e, de outro, o estatuto do masoquismo erógeno. Desta maneira, podemos considerar que a dinâmica do masoquismo feminino é completamente regida pela lógica edípica: o sujeito masoquista deseja ser tratado como uma criança travessa, e por detrás de seu comportamento subjaz uma fantasia masturbatória construída na infância. Na gênese do masoquismo moral, a situação é equivalente, pois o processo analítico sempre traz à tona um desejo incestuoso vinculado a uma tendência parricida. Já na abordagem metapsicológica do masoquismo erógeno, não há nenhuma indicação no texto freudiano que conduza à sua articulação, seja com o complexo de Édipo, seja com qualquer outro desejo sexual recalcado. Pelo contrário, Freud (1924) concebe o masoquismo erógeno como um resíduo do processo de ligação entre Eros e pulsão de morte. Trata-se de um masoquismo originário, diretamente vinculado às tendências situadas para além do princípio de prazer, na medida em que se configura como expressão de uma dialética própria ao movimento pulsional.

Com base nestes pressupostos, cabe perguntar: à qual destas modalidades de masoquismo corresponde a fantasia “meu pai me espanca”? Se retomarmos a discussão apresentada em “Bate-se numa criança” (Freud, 1919a), verificamos que o segundo tempo da fantasia de espancamento deve ser articulado ao masoquismo moral, pois a gênese desta fantasia é assinalada como a resultante da atuação do sentimento de culpa da criança por seus desejos edipianos. Tendo em vista que a regressão da libido à fase anal também contribui para a formação desta fantasia, promovendo o advento de uma excitação sexual referente à condição de ser amada ou espancada pelo pai, podemos também referi-la ao masoquismo feminino. Todavia, se considerarmos o redimensionamento teórico concernente ao par de opostos sadismo-masoquismo possibilitado pela reformulação do dualismo pulsional, por que não contemplarmos a configuração inconsciente das fantasias de espancamento enquanto expressão do masoquismo erógeno? Cabe marcar que tal articulação entraria em total consonância com o caráter inapreensível e residual desta configuração fantasmática.

Desta maneira, mais uma vez, enfatiza-se a dimensão pulsional inerente ao campo fantasmático, e a fantasia deixa de ser circunscrita apenas em suas articulações com o domínio representacional do aparelho psíquico, e passa a ser contemplada também como um resíduo inacessível à rede de significações.

 

Argumentação metapsicológica

Circunscritos os principais paradoxos da atividade fantasmática na teoria freudiana, analisemos, por fim, os diferentes estatutos metapsicológicos destas duas modalidades de fantasmatização. Para tal, o modelo de aparelho psíquico arquitetado na “Carta 52” (Freud, 1896) será bastante útil.

Nesta esquematização, Freud demonstra interesse em delimitar o psiquismo como um aparato de memória, destacando sua função de armazenamento da estimulação que o atinge. A principal idéia presente na carta é a da constituição do aparelho psíquico mediante um processo de estratificação permanente do material mnêmico, sendo que a cada uma destas retranscrições corresponde um diferente registro de memória. Do ponto de vista topográfico, a partir da extremidade perceptiva do aparelho se disporiam três diferentes registros psíquicos.

De acordo com tal encaminhamento, a excitação penetra no aparato por sua extremidade perceptiva (W), sendo as marcas deixadas pela estimulação inscritas no registro designado signos de percepção (Wz). Garcia-Roza (1996) recorre ao termo alemão “Prägung”, visando salientar que os signos em questão possuem o estatuto de marcas, ou seja, impressões que apenas afetam o aparato, ainda não inscritos enquanto traços mnêmicos articulados uns aos outros na forma de uma trama significante propriamente dita. Pelo contrário, eles se manifestam como uma escritura desorganizada, ainda que funcionem como uma espécie de matéria-prima para, no registro mnêmico seguinte, operar o jogo significante (Braunstein, 1990). Para a montagem da cadeia de representações é necessária a ação conjunta de dois mecanismos próprios ao registro da inconsciência (Ub). O primeiro deles diz respeito à conversão das diversas impressões em traços mnêmicos. Em si, o traço seria entendido como o produto da inscrição de uma determinada impressão no aparato, implicando na sua conservação permanente na memória subjetiva (Garcia-Roza, 1996). Por conseguinte, será estabelecida uma série de articulações entre os diversos traços já inscritos no psiquismo, promovendo o advento de um circuito significante através do qual a excitação poderá circular e ser descarregada. Já a terceira retranscrição da memória, presente no registro da pré-consciência (Vb), corresponderia à ligação do material mnêmico às representações-palavra, tornando possível o seu acesso à consciência (Bews).

De fato, a proposta de conceber a formação do aparelho psíquico a partir de um processo de estratificação do material mnêmico conduz ao contraste existente entre o que Freud denominou de signos de percepção com o que foi conceituado como os registros da inconsciência e da pré-consciência. Ou seja, de um lado, temos um conjunto de marcas psíquicas ainda não articuladas na forma de uma cadeia de representações e, de outro, temos duas retranscrições do material mnêmico erigidas pela articulação dos diversos traços psíquicos na forma de uma trama discursiva.

Com base neste modelo, é admissível esboçar uma articulação dos registros da inconsciência e da pré-consciência com as fantasmatizações que se apresentam sob a forma de devaneios, lembranças encobridoras ou estruturas inconscientes subjacentes aos sintomas neuróticos, sonhos e criações artísticas. Tais produções fantasmáticas estariam vinculadas ao advento de uma rede de facilitações na qual o deslocamento de ordem metonímica entre os diversos elementos da cadeia tornaria viável a constituição de uma trama fantasística romanceada e historicizada. Vinculadas ao registro da pré-consciência, tais fantasias podem também se ligar às representações-palavra, manifestando-se enquanto estruturas passíveis de ordenação.

Seguindo esta argumentação, tais fantasias se manifestariam enquanto resultantes da atividade representativa do aparelho psíquico, configurando-se enquanto fruto do trabalho de elaboração psíquica. A articulação destas fantasias com os registros da inconsciência e da pré-consciência também se legitima na medida em que reconhecemos, nas retranscrições mnêmicas em questão, o cenário propício ao primado do princípio de prazer e à dinâmica do processo de recalque. Ou seja, temos aí a base metapsicólogica necessária para explicar o fato de que tais fantasmatizações se apresentam, no procedimento analítico, enquanto dissimulações ou formações de compromisso entre, de um lado, um desejo inconsciente e, de outro, os impulsos contrários à sua realização.

Ademais, o atrelamento destes registros ao domínio significante justificaria a possibilidade dos diferentes rearranjos da trama fantasmático nos mais diversos cenários, mediante o deslocamento afetivo entre os elementos dispostos na rede. Isso, por sua vez, possibilita à interpretação psicanalítica avançar por entre os trilhamentos dispostos na cadeia discursiva, em vistas de exprimir a verdade do desejo recalcado instigador destas produções psíquicas.

Por outro lado, devemos constatar que as fantasias de cena primária, em conjunto com o segundo momento da fantasia de espancamento, possuem um estatuto metapsicológico semelhante ao dos signos de percepção. Nesta perspectiva, o registro em questão deve ser concebido não como um aglomerado de resíduos do processo perceptivo propriamente dito, mas como um conjunto de escrituras psíquicas dissociadas que, no discurso do sujeito em análise, se atualiza numa determinada cena ou imagem fantasmática.

Tratar-se-ia, nestas fantasmatizações, de uma espécie de inscrição psíquica elementar, situada para mais além da dinâmica do recalque e do retorno do recalcado e da primazia do princípio de prazer. Também, o caráter residual de tais fantasias, configuradas como aquelas que resistem à atividade representativa, encoraja-nos, no sentido de situá-las enquanto “fueros” (Freud, 1896, p. 283), ou seja, marcas psíquicas que, embora não tenham sofrido tradução alguma, ainda perpetuam no aparato na forma de uma escritura elementar3.

Enquanto inscrições psíquicas desagregadas e não articuladas numa trama de facilitações, tais fantasmatizações escapariam a qualquer remanejamento de ordem metonímica. Daí, a impossibilidade de mudanças de cenários ou personagens em seus conteúdos. A ausência de ligações diretas com as representações-palavra do registro da pré-consciência também explicaria o fato de elas consistirem em algo que não pode ser expresso por meio da fala. Assim, apartadas do restante das formações discursivas do sujeito, tais fantasias escapam tanto aos esforços de rememoração e evocação conscientes, quanto ao trabalho de interpretação. Restaria, ao processo analítico, a possibilidade de construí-las, atribuindo-lhes algum sentido através de sua inclusão numa trama discursiva.

Trata-se, portanto, de um redimensionamento teórico-clínico da figura da fantasia. Ou seja, mediante o encaminhamento proposto para a questão, almejamos demonstrar que a atividade fantasmática não se manifesta na clínica apenas enquanto um romance, uma lembrança encobridora, um devaneio ou uma estrutura inconsciente subjacente aos sintomas, sonhos e criações artísticas. Em outros termos, a atividade fantasística também abrange em seus domínios uma série de cenas neutralizantes ou anestesiadas. Estas, justamente, por se manifestarem no discurso do sujeito em análise na forma de cenas propriamente ditas, ainda merecem ser designadas de fantasias. Nesta perspectiva, estaríamos indo contra a visão corrente no meio psicanalítico de que as marcas mais primitivas do aparelho psíquico estariam situadas num mais aquém do domínio fantasmático. A presente elaboração tenta, pelo contrário, também incluir no campo da fantasia as tendências traumáticas ou residuais da atividade psíquica.

Com efeito, a circunscrição deste paradoxo é importante na medida em que, por várias vezes, nos vemos analisando da mesma forma modalidades fantasísticas diversas. Deste modo, faz-se necessário atentarmos aos diferentes estatutos metapsicológicos destas duas modalidades de fantasmatização, a fim de procedermos da melhor maneira possível na clínica.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ricardo Salztrager
Rua República do Peru, 53 / 701 – 22021-040 – Copacabana – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2255-0115
email: ricosalz@uol.com.br

recebido em 24/10/2004
2ª versão revisada recebida em 06/04/2005
aprovado em 15/09/2006

 

 

Notas

IPsicanalista; Doutorando do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Bolsista CAPES.
1Para maiores detalhes, ver Foucault (1987).
2Segundo Laplanche e Pontalis (1988), tratava-se de uma forma de conciliar realidade psíquica e realidade material num mesmo postulado, pois os fantasmas originários se apresentam, ao mesmo tempo, como fantasias inconscientes, remetidas a situações realmente vivenciadas por nossos ancestrais.
3Cabe destacar que o termo “fuero” foi empregado por Freud (1986) em referência às antigas leis espanholas que, apesar de ultrapassadas, ainda vigoram em determinadas províncias.