Services on Demand
article
Indicators
Share
Psicologia Escolar e Educacional
Print version ISSN 1413-8557
Psicol. esc. educ. vol.8 no.1 Campinas June 2004
ARTIGOS
Variação lingüística e alfabetização: um estudo com crianças da primeira série do ensino fundamental
Linguistic variation and literacy: a study carried out among first elementary grade children
Sylvia Domingos BarreraI, 1; Maria Regina MalufII, III, 2
I Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto.
II Pontífica Universidade Católica de São Paulo.
III Universidade de São Paulo.
RESUMO
A pesquisa teve como objetivo investigar a influência da variação lingüística sobre a aquisição da linguagem escrita. Participaram da pesquisa 65 alunos de três classes da primeira série de uma escola pública de ensino fundamental. O material utilizado para avaliar o nível de variação lingüística das crianças foi aplicado no início do ano escolar. As provas utilizadas para avaliar os níveis de leitura e escrita foram aplicadas no início e final do ano letivo. A análise estatística mostrou correlação negativa significativa entre os níveis iniciais de variação lingüística e o desempenho final das crianças em leitura, sugerindo que a utilização de linguagem não-padrão pelos alunos pode dificultar o processo de alfabetização, sobretudo quando não trabalhada adequadamente pelas professoras. Os resultados obtidos sugerem a importância de uma efetiva difusão dos conhecimentos lingüísticos e sociolingüísticos, através dos cursos de formação de professores alfabetizadores.
Palavras-chave: Variação lingüística, Norma culta, Linguagem popular, Fracasso escolar, Alfabetização.
ABSTRACT
This research aimed to investigate the influence of different linguistic patterns in written language acquisition.. Subjects were 65 first grade students at a public school. The material used to measure levels of linguistic variation was applied at the beginning of the school year. Reading and writing assessment tests were applied both at the beginning and the end of the school year so as to evaluate acquisition levels. Statistics analysis showed negative and significant correlation between initial levels of linguistic variation and final performance in reading evaluation. These results suggest that different linguistic patterns can difficult the written language acquisition if they aren’t well working by the teachers that need to know and to use the linguistic and sociolinguistic knowledge in their literacy practice.
Keywords: Linguistic variation, Literacy, Standard language.
Introdução
A variação lingüística é tema da maior importância, sobretudo no início da escolarização, quando a criança é formalmente introduzida no ensino da linguagem escrita. Embora o estudo dos efeitos da variação lingüística no processo de aquisição da leitura e escrita seja teoricamente reconhecido como crucial, não tem sido objeto de suficiente atenção por parte dos formadores do professor alfabetizador, o qual em muitos casos não recebe informação e formação que lhe permitam lidar apropriadamente com essa questão em sua atividade profissional.
Souza (1996) analisou as publicações sobre variação lingüística em 30 periódicos científicos brasileiros, tendo encontrado não mais de trinta e sete textos referentes ao tema. Um dos resultados dessa análise consistiu em mostrar a importância e necessidade de se compreender o significado da variação lingüística e as responsabilidades da escola, no que diz respeito a esse problema que atinge prioritariamente as crianças das camadas populares, ao desqualificar sua fala, dificultando assim seu processo de alfabetização. A distância entre a linguagem culta veiculada pela escola e a linguagem das camadas populares, associada ao conflito de valores subjacentes a esses padrões lingüísticos diferentes, pode ser vista como uma das causas do fracasso escolar das crianças provenientes das camadas populares.
Neste estudo, expõe-se alguns aspectos teóricos sobre o tema. Em seguida os resultados de uma pesquisa realizada com o objetivo de avaliar relações existentes entre a variação lingüística, presente na fala de alunos da 1a. série do ensino fundamental, e o desempenho que apresentam em leitura e escrita.
A questão da variação lingüística
A língua, enquanto fato social, é um fenômeno ao mesmo tempo dinâmico e conservador. É conservador porque necessita manter um certo grau de uniformidade para permitir a comunicação em uma dada comunidade lingüística; é dinâmico porque se modifica com o tempo, estando também sujeito às influências regionais, sociais e estilísticas responsáveis pelos processos de variação lingüística, como explica Preti (1994). Tais processos, que constituem o objeto de estudo privilegiado da sociolingüística, ramo da lingüística que estuda as relações entre linguagem e sociedade, são descritos mais detalhadamente a seguir.
A variação geográfica ou regional refere-se às diferenças lexicais (de vocabulário), fonológicas (de pronúncia ou “sotaque”) e/ou sintáticas (referentes à construção gramatical das frases), observadas entre falantes de diferentes regiões geográficas que utilizam a mesma língua. A variação social diz respeito às diferenças observadas na linguagem de diversos grupos sociais, os quais podem ser constituídos por critérios variados, tais como: classe social, grau de instrução, idade, sexo, etnia, profissão e outros. Com relação à influência da posição social e do grau de instrução, fatores esses que em geral se apresentam juntos, pode-se dizer que a oposição mais importante se dá entre a chamada linguagem culta (ou padrão) e a linguagem popular. A variação estilística refere-se às diferenças observadas na fala de um mesmo indivíduo, de acordo com a situação em que ele se encontra, ou seja, são diferenças lingüísticas determinadas pelas condições extraverbais que cercam o ato de fala, como, por exemplo, o assunto tratado, o tipo de ouvinte, a relação entre os interlocutores, o estado emocional do falante, o grau de formalidade do discurso. Assim, de acordo com a situação, o indivíduo “escolhe” o tipo de linguagem que julga mais conveniente. Pode-se afirmar que a oposição básica se dá, portanto, entre um nível de fala ou registro formal, no qual predomina a linguagem culta, e um nível de fala ou registro coloquial ou informal, com predomínio de estruturas e vocabulário da linguagem popular.
Diferenças entre língua popular e língua culta
No caso do português, como ocorre também em outras línguas, é possível identificar duas variantes básicas que, embora compartilhando o mesmo núcleo lingüístico, apresentam diferenças consideráveis quanto aos aspectos morfossintático, léxico e fonológico: a linguagem culta ou padrão e a linguagem popular. A primeira detém maior prestígio social, sendo usada pelo grupo social dominante e/ou em situações de maior formalidade, enquanto a segunda, de menor prestígio, é utilizada pelas classes populares e/ou nas situações sociais de menor formalidade. De modo geral pode-se afirmar que a variante padrão está mais relacionada às regras da gramática tradicional e aos exemplos da língua escrita literária, que são mais conservadores, enquanto a variante popular está mais aberta às transformações da linguagem oral.
De acordo com Preti (1994) pode-se classificar as principais diferenças existentes entre a língua padrão e a língua popular. Do ponto de vista morfossintático, observa-se que a língua popular caracteriza-se pela economia nas marcas de gênero e número, com redução na utilização das pessoas gramaticais dos verbos e dos tempos verbais, como por exemplo, predomínio da utilização da 1 a. e 3 a. pessoas do singular e perda quase total do futuro do presente, do futuro do pretérito e do pretérito mais-que-perfeito do indicativo, além do presente do subjuntivo. Caracteriza-se também pela simplificação gramatical das frases através da redução das estruturas subordinadas em benefício das frases simples, justapostas e da coordenação (como por exemplo o uso excessivo de “aí”, “então”, etc), maior emprego da voz ativa em lugar da passiva e predomínio das regências diretas nos verbos e do emprego de pronomes pessoais retos como objetos (Exemplos: “vi ele”, “encontrei ela”). No aspecto lexical pode-se observar um vocabulário mais variado na língua padrão, com maior precisão no emprego dos significados e maior incidência de vocábulos técnicos, enquanto na língua popular predomina um vocabulário mais restrito, empregado amplamente nos mais diversos sentidos, com maior freqüência de gírias e de recursos enfáticos. Com relação às diferenças fonológicas observadas na língua popular, verifica-se que, embora não cheguem a comprometer a comunicação, servem para marcar as formas lingüísticas de maior ou menor prestígio social. Como exemplo, podemos citar as seguintes formas não padrão: pobrema, craro, falaro, oio, homi.
Apesar dessas diferenças e \dado o caráter dinâmico da língua, que se modifica e evolui com o tempo, muitas vezes torna-se difícil estabelecer uma distinção clara entre língua padrão e língua popular, pois vários elementos de uma acabam sendo assimilados pela outra. Além disso, tanto do ponto de vista da sintaxe, quanto do léxico e da fonologia, há estruturas comuns que pertencem às duas formas de linguagem, já que se trata de uma única língua. Por essa razão, alguns lingüistas têm sugerido o estabelecimento de um nível hipotético intermediário entre a língua padrão e a popular, o qual denominam “linguagem comum” e que estabeleceria uma espécie de integração entre essas duas formas de linguagem (Preti, 1994). Como exemplo, podemos citar, no que diz respeito ao vocabulário, a generalização na linguagem comum de gírias populares e de termos técnicos próprios da língua padrão. Do ponto de vista fonológico, alguns exemplos de estruturas populares que já começam a fazer parte da língua comum são a tendência a não pronunciar os r finais dos infinitivos verbais (falá; dizê; comê), os u finais de certas formas verbais do pretérito (falô; cantô, parô), etc.
A escrita como fator de unidade lingüística e seus determinantes sociais
Segundo Mattos e Silva (1995) há um paradoxo entre a heterogeneidade lingüística que compõe qualquer língua e a necessidade de sua unificação nas sociedades complexas e letradas. Lemle (1995) também aponta a escrita como o principal fator responsável pela existência de uma forma padrão para representar todas as variedades de uma determinada língua. A língua escrita atua, portanto, como um fator de unificação lingüística, uma vez que as modificações gramaticais e ortográficas são bem mais lentas do que as transformações apresentadas pelos atos de fala. Pode-se afirmar então que uma das funções da escrita é manter a unidade lingüística das sociedades letradas, por oposição à diversidade observada em termos de fala.
Dentre as variedades lingüísticas existentes, a língua padrão é quase sempre a variedade escolhida para a escrita. Tal escolha, entretanto, não se baseia em critérios de correção lingüística, mesmo porque tais critérios cientificamente não existem, mas sim por ser a língua padrão a utilizada pelo grupo social dominante. Dessa forma, o prestígio que o grupo social detém acaba sendo atribuído à sua linguagem, que passa a ser associada à escrita e a ser considerada a norma padrão. Da mesma forma, a estigmatização da linguagem popular como “incorreta” é conseqüência do status inferior que os seus falantes ocupam na sociedade, ou seja, a valoração lingüística está baseada numa valoração social (Gnerre, 1987).
Historicamente, a gramática tradicional que é a normativo-prescritiva, surge a partir da antigüidade grega, tomando como modelo de língua correta os textos dos grandes escritores. Posteriormente baseia-se nos usos lingüísticos da elite aristocrática e em seguida, da elite burguesa, como modelos da linguagem que deve ser reproduzida pela instituição escolar. A lingüística moderna rompe com essa tradição normativa, ao propor a prevalência do falado sobre o escrito, bem como a igualdade de valor entre todas as línguas. A gramática passa a ser entendida então como um ramo da Lingüística, havendo uma separação entre a gramática normativa e a gramática descritiva, sendo que esta última passa a ser considerada o centro da lingüística (Mattos & Silva, 1995, 1996).
A gramática normativa trabalha com o conceito de normas prescritivas, que servem como diretrizes para a representação escrita da língua, sendo qualificado de “erro” o que não segue esse modelo, mesmo em termos de língua oral. Essas normas são codificadas nas gramáticas pedagógicas, sendo parcialmente atualizadas ao longo do tempo, por imposição das mudanças lingüísticas ocorridas. Já a lingüística moderna trabalha com o conceito de normas sociais, que dizem respeito às variantes lingüísticas utilizadas pelos diferentes grupos sociais, como por exemplo as normas regionais, normas etárias, norma culta e outras.
A lingüística moderna tem demonstrado, portanto, que é cientificamente incorreto realizar uma classificação hierárquica das diversas variedades de uma língua com base em critérios de “inferioridade” ou “superioridade” lingüística. De acordo com os conhecimentos da sociolingüística pode-se afirmar que as diferentes formas de linguagem decorrem de um processo natural de variação lingüística, o qual visa atender às diversas situações comunicativas existentes no meio social. Desse ponto de vista, o prestígio ou estigmatização associados às diferentes variedades de linguagem presentes numa dada comunidade constituem um fenômeno social e não lingüístico, expressando na verdade a contradição existente entre as classes sociais que a compõem.
Embora do ponto de vista lingüístico seja infundado postular uma superioridade da língua padrão culta sobre suas variantes regionais e sociais, não se pode negar que é a primeira que detém o prestígio social. A maioria dos pesquisadores da área concorda com a idéia de que é função da escola ensinar a língua padrão a todos os alunos, como forma de garantir aos mesmos a assimilação dos conhecimentos escolares básicos, inclusive a alfabetização, possibilitando assim que eles possam desfrutar dos benefícios da educação formal.
Variação lingüística e fracasso escolar
O conhecimento produzido a respeito da questão da variação lingüística, sobretudo a partir de uma perspectiva sociolingüística, tem contribuído para destruir o mito da “deficiência lingüística” das crianças provenientes das classes populares, substituindo-o pela idéia da existência de “diferenças lingüísticas” entre as várias formas de linguagem observadas em uma mesma comunidade lingüística.
Atualmente, salienta Abaurre (1984), constitui consenso entre aqueles que possuem algum conhecimento sobre questões lingüísticas, o reconhecimento de que o aluno, ‘por mais marginalizado que seja, possui, ao iniciar o processo de alfabetização, um repertório lingüístico perfeitamente adequado e suficiente para a expressão de seu universo de experiências’ (13). Entretanto, tal repertório é muitas vezes desvalorizado pela escola que ainda não assimilou esse conhecimento, sendo o aluno e sua cultura discriminados e marginalizados.
De acordo com Franchi (1983) há um aspecto imposto pela sociedade e sobretudo pela escola que mais contribui para a regressão da criatividade verbal oral e escrita em crianças provenientes de classes sociais menos favorecidas. Esse aspecto diz respeito ao fato das mesmas terem a sua linguagem marcada como “vulgar”, “incorreta” e “feia”, o que pode levar a um bloqueio na expressão da linguagem oral e profundas dificuldades na aquisição da escrita.
Segundo Abaurre (1984), o fato da escola não considerar a língua padrão como meta a ser atingida, mas antes como parâmetro de comparação com base no qual se avaliam desempenhos considerando-os como “certos” ou “errados”, acaba por reforçar diferenças socialmente estabelecidas, ao invés de questioná-las e de favorecer a sua superação. Assim, todos os alunos são avaliados da mesma forma e com o mesmo grau de exigência, sem que seja levado em conta a peculiaridade das crianças cuja linguagem está mais distante da norma padrão. Entretanto, além das dificuldades ortográficas inerentes ao sistema de escrita da língua (no qual duas ou mais letras podem representar o mesmo som e dois ou mais sons podem ser representados pela mesma letra), que afetam igualmente a todos os alfabetizandos, é bastante evidente, em se tratando de um sistema alfabético, que uma criança que diz “alembrei”, “zóio”, “frauta”, terá muito mais dificuldade em escrever corretamente as palavras “lembrei”, “olhos” e “flauta” se comparada a uma criança que fala uma variedade lingüística mais próxima da forma padrão.
Uma vez que a língua padrão constitui o veículo de todo saber cultural, científico e artístico que se manifesta sob a forma escrita. Muitos autores têm proposto que a função da escola não deve ser a de substituir a norma popular, que os alunos já dominam em sua linguagem falada, pelos modelos da norma culta, mas sim a de ensinar-lhes que ambas as formas de linguagem podem coexistir e ser utilizadas na comunicação, de acordo com as circunstâncias (Preti, 1994).
Tal proposta, conhecida por “bidialetismo”, também tem sido alvo de críticas, como a de Soares (1986) que alerta para a diferença, aparentemente sutil porém com graves conseqüências práticas, entre a proposta do bidialetismo enquanto instrumento de integração/adaptação social ou de transformação social. Na verdade, a possibilidade de uma pedagogia bidialetal para a transformação social tem como pressuposto a inter-relação entre aspectos políticos e educacionais. É necessário que os educadores desenvolvam não apenas sua competência técnica, mas também seu compromisso político, no sentido de poderem fazer uma opção mais consciente com relação aos objetivos da sua prática pedagógica.
A partir do exposto, é possível perceber que a literatura existente sobre a questão das relações entre variação lingüística e ensino/aprendizagem da leitura e escrita, tem sido consistente em atribuir a esse fator lingüístico, um papel importante no fracasso escolar das crianças falantes de variantes lingüísticas mais afastadas da língua padrão. As explicações para essa relação, entretanto, variam desde a atribuição de deficiências lingüísticas aos alunos pobres, passando pela idéia da diferença lingüística (busca explicar as dificuldades de escolarização das classes populares pela maior distância entre o sistema fonológico utilizado por falantes de variantes lingüísticas não padrão e o sistema ortográfico a ser aprendido). E por fim, a uma visão mais crítica do problema, que relaciona tais dificuldades. Sobretudo, ao preconceito e discriminação com que a linguagem do aluno pobre vem sendo tratada pela escola, a qual, ao desqualificar a sua fala e conseqüentemente a sua origem e identidade sociocultural, teria uma influência negativa sobre o processo de aquisição da linguagem escrita.
Na escola, a desqualificação da linguagem do aluno pode se dar em dois níveis: no nível oral, por meio do bloqueio de sua expressão verbal, como resultado de correções inadequadas feitas pelo(a) professor(a), e no nível da escrita, por meio do impedimento de que o(a) aluno(a), durante a etapa inicial do processo de alfabetização, escreva foneticamente, de acordo com a variedade lingüística por ele(a) utilizada, a qual é considerada errada, em comparação com a norma padrão adotada como modelo. De acordo com Franchi (1988) os erros ortográficos costumam ser tratados diferentemente pela escola, havendo maior discriminação quando as escritas fonéticas se baseiam na transcrição de formas lingüísticas não-padrão, utilizadas por alunos pertencentes às classes populares (por exemplo, escrever muié por mulher, óia por olha), do que quando os erros cometidos baseiam-se em meras arbitrariedades ortográficas do sistema ou em formas que estão mais próximas da língua oral culta (por exemplo escrever caza por casa,comi por come, papeu por papel).
Alguns autores como Soares (1986), Abaurre (1984) e Garcia e Roncarati (1992) têm defendido a idéia da existência de um intervalo ou hiato entre a fala da criança que se alfabetiza e a fala do professor alfabetizador. Intervalo esse que estaria relacionado a um conflito lingüístico, enquanto expressão de conflitos socioculturais mais abrangentes, vivenciado nas situações de interação verbal presentes no cotidiano escolar. Tal conflito se constituiria num foco permanente de tensão nas interações verbais, gerando movimentos contraditórios de assimilação e resistência lingüística e cultural. De acordo com essa perspectiva , o fracasso na aquisição da norma culta pode ser visto como uma forma de resistência. No sentido de preservação da identidade, por meio da manutenção da própria linguagem, uma vez que o sucesso no processo de alfabetização significaria, para esses indivíduos, a vitória do processo de aculturação, implicando no silêncio de sua fala e, em última instância, dos seus desejos (Labov, 1974; Assis, 1988).
É importante observar que, do ponto de vista lingüístico e cognitivo, a maior distância existente entre o sistema fonológico utilizado por alunos falantes de variantes lingüísticas não-padrão e o sistema ortográfico a ser aprendido, dificulta, sobretudo o acesso à escrita ortograficamente correta. Isso porque para se alfabetizar a criança inicialmente deve construir a hipótese de uma correspondência biunívoca entre letras e sons. É somente no decorrer do processo de alfabetização que essa hipótese inicial deverá ser reformulada, no sentido de englobar as irregularidades na correspondência entre letras e sons derivados do contexto ortográfico, da estrutura morfológica das palavras e também da distância entre a fala do aluno e a língua padrão na qual a escrita se baseia. Além disso, é possível esperar que as crianças cuja fala apresenta maior grau de variação lingüística, enfrentem maiores dificuldades no processo de aquisição da linguagem escrita, quando submetidas a práticas interativas e pedagógicas inadequadas baseadas na rejeição de sua linguagem. Poderia resultar num bloqueio da sua expressão oral e escrita, como bem mostrou Damergian (1981) em pesquisa realizada em escolas da cidade de São Paulo, que atendem um grande contingente de crianças migrantes nordestinas. Contudo, ainda são poucas as contribuições das pesquisas empíricas destinadas a demonstrar, de forma sistemática, esse “intervalo” entre a linguagem da escola e a linguagem popular e suas conseqüências para o processo de alfabetização.
Em concordância com as contribuições teóricas apresentadas, as propostas mais recentes de diretrizes curriculares para a educação nacional, no que se refere ao ensino da língua materna, têm enfatizado a importância de se considerar as variedades lingüísticas faladas pelos alunos sem discriminá-las. Entendendo a variedade padrão como socialmente, mas não lingüisticamente, privilegiada. Por outro lado, enfatizam também a necessidade de proporcionar ao aluno o domínio da norma culta, de modo que ele possa utilizá-la como meio de acesso aos bens culturais e à participação política no contexto social. O objetivo não é substituir pela língua culta a variedade lingüística utilizada pelo aluno, mas acrescentar esta modalidade à sua fala, de tal forma que ele possa produzir discursos adequados aos diferentes contextos sociais. Portanto, é relevante verificar como este conhecimento tem sido difundido e assimilado pelas professoras alfabetizadoras em sua prática docente.
Nesse sentido, a presente pesquisa visa contribuir para a questão, adotando um delineamento longitudinal breve. Tem como objetivos: identificar e descrever os diferentes tipos de variação lingüística utilizada, no início da alfabetização escolar, por um grupo de alunos provenientes das classes populares; verificar se os alunos que apresentam maior variação lingüística no início do ano, são os mesmos que enfrentam maior dificuldade na aquisição da linguagem escrita no final do ano. E observar como as professoras desses alunos se comportam frente a manifestações de variação lingüística.
A hipótese norteadora da pesquisa é de que a variação lingüística interfere negativamente. O que dificulta ou impede a aprendizagem da leitura e escrita, quando estigmatizada e/ou trabalhada pedagogicamente de forma inadequada.
Método
Participantes
A pesquisa foi realizada em três classes de primeira série do ensino fundamental de uma escola pública municipal, localizada na periferia da cidade de São Paulo. Atende predominantemente crianças provenientes de famílias de baixo nível sócio-econômico.
Inicialmente foi feita uma sondagem, de aplicação coletiva, sobre o nível de escrita dos alunos. Foram solicitados a escrever os nomes dos animais que lhes eram mostrados em gravuras. Foram selecionadas para participar da pesquisa as crianças que apresentaram nível pré-silábico de concepção da escrita (conforme a terminologia de Ferreiro & Teberosky, 1986) e que estavam cursando a 1 a. série pela primeira vez.O grupo de participantes ficou constituído por65 crianças, sendo 38 meninos e 27 meninas. A média de idade foi de 7,3 anos com desvio padrão de 0,6 conforme se vê na Tabela 1.
Tabela 1: Distribuição das crianças participantes da pesquisa por classe, sexo e idade.
SEXO MASC. | SEXO FEM. | TOTAL | IDADE (X) | IDADE DP | |
CLASSE 1 | 10 | 08 | 18 | 7,9 | 0,9 |
CLASSE 2 | 13 | 14 | 27 | 7,0 | 0,2 |
CLASSE 3 | 15 | 05 | 20 | 7,2 | 0,3 |
TOTAL | 38 | 27 | 65 | 7,3 | 0,6 |