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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

As engrenagens do silêncio

 

The work of the silence

 

 

Janaina P. Rocha de Paula

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste texto é um convite à releitura do livro Ópera dos mortos, de Autran Dourado. A tentativa é fazer operar os conceitos crucias a todo trabalho analítico: as engrenagens do silêncio e da morte. Autran Dourado nos apresenta, em sua bela narrativa, personagens que vivem sob o domínio de forças pulsionais que parecem arrastá-los rumo à destruição, sem que nada ou nenhum movimento seja empreendido para impedir esse silêncio devastador.

Palavra-chave: Perda, Ausência, Morte, Inércia, Psicanálise, Literatura.


ABSTRACT

The purpose of this text is to invite the reader to visit, once again, the book Ópera dos mortos (Autran Dourado) where the grains of silence and death can be linked to main concepts of psychoanalytical work. In his beautiful narrative, Autran Dourado introduces us to characters who live under the domain of driving forces which seem to drag them in the direction of destruction. No movement or action seems to be undertaken in order to stop this devastating silence.

Keywords: Loss, Absence, Death, Inertia, Psychoanalysis, Literature.


 

 

Psicanálise e literatura

"Literatura e psicanálise tocam-se em muitas encruzilhadas, pelo seu objeto de estudo e de amor. De amor, porque sem ele a relação com seu objeto torna-se extremamente perigosa. O texto, literário ou não, exige extrema delicadeza para ser analisado, tocado, invadido em sua interioridade” (Silviano Brandão, 1995, p. 21). A escolha deste termo &– encruzilhada &– fornece-nos a imagem exata do encontro entre psicanálise e literatura. Como campos distintos que avançam, seguindo por vias diversas, psicanálise e literatura têm seu ponto de contato, ponto encruzilhada, no lugar mesmo do texto. Texto narrado, texto escrito, texto de imagens. É Ruth Silviano Brandão quem nos fala sobre isso, em seu belo ensaio Os riscos da leitura psicanalítica.

Para a autora do ensaio, a psicanálise trabalha com o texto escrito, trançado, retrançado, produzido nas encruzilhadas e no encontro de várias vozes. O trabalho do psicanalista é o de pontuar, sublinhar, reescrever e às vezes restaurar, por meio de uma escuta especializada, esse “texto flutuante”. De maneira semelhante à do psicanalista, “o leitor do texto literário sublinha, seleciona, reescreve o texto lido” (p. 21): reescreve a partir dos efeitos de sua leitura, das impressões e marcas da experiência de sua passagem pelo texto. É assim que trabalha o psicanalista diante do texto literário.

A partir do encontro entre um psicanalista e um texto literário &– trata-se mesmo de um encontro contingente &–, o analista passa a escutar o texto “conforme as modalidades específicas da escuta analítica” (Green, 1994, p. 16). Assim, seguimos a trama do texto para penetrar em sua ficção singular, de maneira semelhante àquela empreendida na escuta da narrativa de um sonho. Sem nos esquecermos da especificidade do nosso objeto de estudo, como analistas assumimos o risco da interpretação, “tiramos o texto de sua trilha” por meio do trabalho de “conectar e desligar” os fios delicados que constituem uma narrativa, na tentativa de inferir o jogo de forças, toda a dinâmica e a economia presentes nas engrenagens ocultas &– uma mecânica da psique &– que pareciam determinar certos modos de agir, sentir e pensar. Entramos, então, no campo da chamada metapsicologia, em que a psicanálise se lança como um texto específico, na tentativa de estabelecer relações com outros textos, para além do setting analítico. É justamente a especificidade e a sofisticação do texto metapsicológico que “permite qualquer investigação que pretende ser psicanalítica, dentro ou fora das paredes do consultório” (Carvalho, 2006, p. 8).

Quanto ao fato de que o texto literário exige certa delicadeza para ser interpretado, e concordamos com isso, não podemos tomar essa indicação como empecilho para o trabalho. Todo livro é um livro de areia, nos dirá Borges, na medida em que a cada nova leitura ele se desfaz para ao final se refazer. Por isso, podemos lê-lo a cada vez utilizando recursos diferentes sem medo ou pudor de que essas diferentes interpretações desvirtuem esse material. “Algo existe no texto que, constituindo sua estabilidade, suportará o trabalho interpretativo sobre uma dupla face de resistência (opacidade) e legibilidade” (Carvalho, 2006, p. 13). A interpretação analítica é de fato específica, por vezes exaustiva, mas nunca despropositada ou excessiva. Ela suporta os pontos de ilegibilidade do texto, trabalha a partir deles com o intuito de retraçar (e não decifrar) o caminho da sua construção. “É ela o que permite, afinal, encontrar o elemento que afetou o espectador ou o leitor e que evidenciará, no caso do literário, um sentimento ligado à sua função interna, ou seja, sua estruturação a partir dos processos psíquicos que o compõem e que dão a ele, na enunciação, sua estabilidade e sua especificidade” (p. 11).

A validade desse empreendimento está assentada em duas justificativas que considero preciosas: em primeiro lugar, “quem interpreta pôde se desligar e falar de uma história que não é a dele, pôde se ocupar de uma verdade da qual está à parte, mas na qual se acha estranhamente implicado” (Piglia, 2004, p. 59).

Tanto o analista do texto quanto o narrador da Ópera dos mortos parecem se beneficiar dessa posição. Narram a história, tecem e desfiam o fio da narrativa, como alguém que conta um sonho, colocando-se às vezes em um outro lugar, com a distância e a proximidade necessária ao trabalho interpretativo. O trabalho analítico tem, sem dúvida, parentesco com essas formas. A segunda justificativa diz respeito ao exercício de percorrer dados disponíveis, na tentativa de inferir o emaranhado de forças que determinam um comportamento ou uma obra. Segundo Mezan, esse exercício é útil ao psicanalista, que, assim, se “aperfeiçoa no manejo de seus próprios instrumentos, mostrando com clareza como funciona o raciocínio analítico e o que ele pode ou não pode esclarecer” (1998, p. 28). Operando com um sistema conceitual sofisticado e um método de investigação sutil, o psicanalista pode se lançar e se perder no universo dos livros.

 

Um tecido de sonho: texto narrado

“Como num sonho, um texto, no tempo em que
ele se escreve, não nos diz aonde vai”
(Pontalis, 1991, p. 47).

Autran Dourado, escritor mineiro, guarda em seus escritos as intensas relações com a vida no interior, suas tradições, conflitos e a introspecção que alguns críticos gostam de chamar de “mineiridade”. É autor de livros de gêneros diversos, entre eles o conto Solidão, solitude (1972) e os romances Uma vida em segredo (1964), A barca dos homens (1961), Ópera dos mortos (1967), O risco do bordado (1970) e Os sinos da agonia (1974). Segundo Massaud Moisés (2005), dois desses romances &– Ópera dos mortos e Os sinos da agonia &– apresentam uma linguagem cuidadosamente trabalhada e a revelação de mundos espectrais e estranhos, nos quais os personagens “são arrastados pelas forças dos instintos rumo à destruição”. Temas preciosos para a psicanálise e material de trabalho do psicanalista. Do livro de Autran Dourado deixamos emergir a voz do narrador, que nos dita o rumo do início ao fim, persiste ora de fora, ora de dentro da própria história, entregando-se e a nós, como leitores, aos efeitos da sua narrativa. Cada um dos personagens que vivem e morrem em seu relato traz as marcas de sua constituição; cada um revela ou desvela os aspectos presentes em seu psiquismo, seus dramas, medos e sofrimentos. Se a voz do narrador se confunde com a do próprio autor, talvez possamos dizer apenas que o escritor trabalha a partir de uma “matéria vasta” (Silviano Brandão, 2006, p. 12), que inclui o próprio inconsciente e todas as vozes alheias, agora tornadas suas. E então vamos ao sobrado e Rosalina...

“O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração &–imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas o conduto, o olhar é que importa. (...) Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando” (Dourado, 1967, p. 11). Assim o narrador da Ópera dos mortos nos convida a entrar na história, a escutar a música que silencia a Casa dos Honório Cota. Não, essa não é a ópera que nos acorda no sobressalto por ter em suas notas a vida, o furor. É uma ópera que parece ter se fixado no instante em que todos os relógios pararam. Os ponteiros não deslizam mais, fixados que estão no tempo do silêncio. E se o tempo pára, acompanhando as engrenagens do grande relógio colocado bem ao centro da sala, a narrativa, ao contrário, prossegue. Nesse tipo de narrativa, como nos mostra Pontalis, algo nos deixa com a sensação de que “não há mais distinção entre passado, presente e futuro. Em que os tempos se misturam com os rostos. Em que não se sabe quem é quem, nem onde se está, nem quando” (Pontalis, 1991, p. 52).

Ao escrever essas palavras no livro A força da atração, Pontalis (1991) tratava dos sonhos, esse tecido de imagens, sobre o qual foi construído o “edifício invisível da psicanálise” 1. Para Pontalis, a operação freudiana diante desse tecido visual consistia em transformar todo relato do que aparecia em sonho &– como imagem &– em um texto. Era, então, sobre ele que o trabalho da interpretação começava por “decompor”, “desfazer”, “desmanchar o texto”, para enfim atingir o enunciado do desejo, da aspiração, do anseio 2, daquilo que levou o sonhador a tecê-lo. A dificuldade encontrada nesse percurso de trabalho era justamente a constatação de que os pensamentos oníricos não seguiam nunca um caminho direto; havia desvios, recuos, deslocamentos, condensações, como se os tecidos de texturas e cores diferentes se juntassem, enlaçados em uma rede inventada pelo próprio sonhador &– uma colcha de retalhos. Desse modo, o sonho não era o tempo reencontrado, mas um tempo reconstruído por aquele que se implicava em sua narrativa, e percorrendo os vestígios, os pequenos detalhes, escrevia. Quer dizer, transformava o sonho em um texto. Essa passagem &– da imagem à narrativa, e desta ao texto &– mostra como Freud vai deslocando-se para o ponto de “enigma”. Os sonhos não dizem exatamente aquilo que mostram, o “visual” não é o “visível”, e por isso, não há porque simplesmente observar um sonho. Há um ponto a mais, um ponto situado no desconhecido, que faz com que o sonhador invente seu percurso, e para esse ponto, o trabalho é mesmo o da interpretação, que se não busca a solução para o enigma do sonho, ao menos se coloca a sua procura3.

Essa breve digressão é para buscar uma aproximação entre a narrativa do sonho e a narrativa do livro Ópera dos mortos, de Autran Dourado. Como em um sonho, essa narrativa vai se constituindo por lembranças, vestígios, detalhes que ficaram esquecidos, e que agora ganham um tecido visual: as voçorocas, o sobrado, a janela de Rosalina. Imagens que ora escondem, desviando a nossa atenção para um outro detalhe, ora revelam de modo insuspeito aquilo que não se presta a figurações. A narrativa desliza com a voz de um narrador, que parece trabalhar em um outro regime de pensamento, o regime inconsciente. Não há preocupação com o tempo cronológico dos fatos, ainda que esses sejam contados. Não há o relato linear que segue a lógica de um antes e um depois. A memória de um passado, a idéia de um futuro e o instante do presente se embaralham, e aí o instante, fica por conta dos vestígios do passado. O regime inconsciente está fora do tempo linear, secundarizado, “mas nem por isso escapa à experiência do tempo e àquilo que é sem dúvida seu núcleo: a experiência da perda e da ausência” (Pontalis, 1988, p. 166). Essa narrativa tampouco escapa a essa experiência. Diria mais. Ela se desenrola a partir desse núcleo de ausência e de perda. Não há catástrofe, nada que nos surpreenda de maneira abrupta. Há apenas um relato discreto, sem alarde, que nos aproxima de uma silenciosa repetição, sem nenhum outro mistério, senão o mistério mesmo de existir.

O narrador nos revela ser alguém que participou da história, esteve presente nos fatos, construindo fantasias acerca dos conflitos, escutando o silêncio que se sobrepunha ao sobrado e às palavras mal-ditas. Agora ele tece seu texto como aquele que teve um sonho e o observa de fora. Em seu relato encontramos certo efeito de estranheza. Estranho porque foi, em algum momento, familiar. Não há unheimlich sem heimlich, nos dirá Pontalis (1991, p. 22). O familiar não é marcado pelo vivido, como fato real, mas como aquilo que existe sem que possamos apreender: como fantasias e sombras que nos habitam e que deveriam permanecer ocultos, mas que ao insistirem, deixam um rastro de estranheza. Pontalis retoma a passagem do texto O estranho (1919): em que Freud, a partir do desdobramento da palavra heimlich, desenvolve a idéia de algo afastado dos olhos, escondido e secreto. O estranho não é o novo, mas algo que é familiar e há muito presente no psiquismo, mas que se alienou, permanecendo escondido por ocasião do processo de recalcamento, e que ao retornar inesperadamente, provoca o sentimento de estranheza.

Ainda no texto O estranho, Freud problematiza a questão ao dizer que “pode ser verdade que o estranho (unheimlich) seja algo que é secretamente familiar (heimlich), que foi submetido ao recalque e depois voltou”. Mas, continua ele, “nem tudo o que evoca desejos recalcados e modos superados de pensamento, que pertencem à pré-história do indivíduo e da raça, é por causa disso estranho” (p. 264). O recalque talvez não seja a única condição para o estranho retorno de alguma coisa. No texto Recordar, repetir e elaborar (1914), Freud já havia trabalhado com a hipótese de que o grupo de processos psíquicos &– entendidos como puramente internos &– em sua relação com o esquecer, o recordar e o repetir, deveria ser considerado sob outros ângulos. Segundo ele, acontece com muita freqüência ser recordado algo que nunca poderia ter sido esquecido, porque nunca foi notado, nunca foi consciente, e assim, não sofreu a ação do recalque. Isso que nunca foi esquecido, por não ter sido de modo algum notado, refere-se às pulsões, que mais tarde Freud agrupará sob a categoria das pulsões de morte.

Em Para além do princípio de prazer (1920), Freud nos fornece os elementos para trabalhar a idéia de que na tópica psíquica há algo mais do que o recalcado, há também a “casa assombrada” onde a pulsão de morte circula livremente, escapulindo dos domínios do recalque. Freud mantém a idéia do retorno de algo sentido como estranho, apesar de familiar, ainda que não condicionado ao recalque. Isto pelo fato de que essa pulsão compulsiva, que busca por meio da repetição a possibilidade de se fazer representar no interior da tópica, é familiar ao psiquismo, uma vez que esteve presente desde suas origens. E se ao retornar parece-lhe estranha, é em função de seu caráter de irrepresentabilidade. Se o inconsciente continua trabalhando para apresentar o que é recalcado, o conceito de pulsão de morte surge como uma noção necessária para abarcar aquilo que não é redutível ao campo das representações. O psiquismo tenta indicar diferentes destinos para a pulsão, no esforço de dominá-la, seguindo uma ordem que leva em consideração o princípio do prazer. Mas para a pulsão de morte, o único destino possível é a descarga total, o aniquilamento da tensão, que desconsidera totalmente o princípio que parecia manter o aspecto econômico do aparelho.

Talvez seja por isto que no romance de Dourado, o sobrado desperte tanta curiosidade. Talvez seja por isto que o narrador tenha inventado uma ópera que conta a história dos mortos que habitam um sobrado que está lá, atrás da cortina na qual se esconde Rosalina, sob o véu que guarda o que há de demoníaco e assustador, justamente por não ter sido submetido à ação do recalque; mas que está também aqui, do lado de fora, no lugar onde a vida parece se intricar com a morte de maneira sorrateira e disfarçada. As cortinas, por vezes, nos protegem daquilo que nos é o mais estranhamente familiar. Ao mesmo tempo, o sobrado revela, escancara a estranheza, a repetição, a ausência sem remédio e a perda impossível de recuperar: “e de repente a gente voltava ao sobrado. Naquela casa tudo tendia a se repetir. O sobrado se enchia de gente, mesmo que uma festa. Mas era uma festa de pura especulação (...) a gente queria saber, (...) a chaga de nossa alma de vez em quando doía, quando a gente se lembrava” (Dourado, 1967, p. 241). Algo nesse sobrado sobrou, isto é, permaneceu fora do recalque. É para este resto, ponto de atração e repetição, que a interpretação psicanalítica tentará achar um sentido.

 

Um pouco de ópera

Na casa de muitas janelas coloridas vivia Rosalina, escondida detrás das cortinas, desde sempre olhando a igreja, as casas, a estrada. Os olhos vazios e mornos miravam o silêncio, a solidão do descampado. Só ela e Quiquina naquele sobrado. Os relógios há muito não ditavam mais o ritmo dos dias. O tempo está parado, nos revela o narrador, desde a morte de Dona Genu. Mas ele nos adverte: “veja antes a casa, deixe Rosalina para depois, tem tempo” (Dourado, 1967, p. 14)4.

Foi Lucas Procópio quem construiu o sobrado. Homem rude, agreste, soturno, de caráter duro. João Capistrano Honório Cota, o filho, parecia ser diferente. Não tinha a rudeza do pai. Mais civilizado, cuidava da aparência e tinha um porte de senhor. Acrescentou a fortuna, aumentou a fazenda, e depois da morte do pai, assobradou a casa. É verdade que não mexeu em nada que havia sido construído antes &– “não quero mudar tudo. Não derrubo obra de meu pai”, dizia ele para o mestre de obras. “O que quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem que ser assim. Eu mais ele (...). Argamassa estranha essa de gente e casa” (p. 14), repetia o mestre de obras, enquanto trabalhava na construção do sobrado. A casa de janelas retas e pesadas era adoçada por uma leve curva das janelas de cima. Olhando assim, pela primeira vez, ninguém reparava que aquela casa tinha nascido de outra &– “era preciso atentar bem para ver numa só casa, numa só pessoa, os traços de duas pessoas distintas: Lucas Procópio e João Capistrano Honório Cota” (p. 16).

Desde menino, João Capistrano fora homem sério. Tinha um riso de quem engoliu a alegria. Além dos traços marcados pelas sobrancelhas cerradas e lábios grossos, nenhum outro vestígio do pai. Devia tê-lo enterrado bem escondido no fundo da alma. No entanto, esse Honório Cota tinha “nos olhos a tristeza macerada de homem que luta com as sombras” (p. 23). Casado com dona Genu, foi depois de muito tempo que nasceu Rosalina. Tiveram outros filhos antes dela, mas nenhum havia sobrevivido. Quiquina, a criada, estava presente desde os tempos de Lucas Procópio. Era ela que havia acompanhado o enterro dos “anjinhos malnascidos”, e agora ajudava nos cuidados com Rosalina. Não falava, mas estava sempre atenta a tudo que se passava no sobrado. Silenciosamente, circulava por todos os espaços ocupados pela família Honório Cota.

Rosalina era moça bonita, bem-educada, tinha dezesseis anos quando o sonho de mando e riqueza começou a tomar corpo na alma de João Capistrano. Nesse tempo, alguma coisa começou a mudar, ou será que aquilo que tinha tomado um rumo desviado passou a andar pela mesma estrada perdida? A verdade é que, um dia, João Capistrano começou a “botar reparo” na administração da cidade &– “a partir daí foi um xingatório, uma luta, uma futrica danada” (p. 32). O coronel Honório Cota crescia, se agigantava. Toda essa exaltação durou até o dia das eleições. Por uma ligeira alteração, uma falcatrua &– vai-se saber? &– o partido do coronel perdeu as eleições. Não houve jeito. Agora João Capistrano Honório Cota estava mais triste e ensimesmado. Os olhos vidrados passaram a não fitar ninguém, vinham de outro mundo, carregado de sombra. Olhava o chão “como se buscasse no cimento alguma coisa que só ele sabia, alguma coisa perdida para sempre” (p. 38). Trancado no sobrado, absorto no silêncio, o ressentimento ocupava os dias que passavam com o andar do relógio. Ele era outro, ou aquele mesmo que esteve escondido, enterrado na alma? Bom, o fato é que ele ficou outro homem: duro, sem contemplação, sem perdão. Dona Genu só sabia chorar tamanha desgraça. Rosalina assumia o silêncio do pai, o ar ofendido e o ódio duradouro de quem nunca esquece.

A casa permaneceu assim, sem receber uma alma viva sequer, até a morte de Dona Genu. Foi nesse dia que o primeiro relógio parou. A cidade toda ali, esperando que a dor da morte abrandasse o coração do coronel Honório Cota. Mas nada &– “o coronel se trancou no quarto. Só apareceu na hora de fechar o caixão. Na sala, ele olhou todos do alto, nenhuma palavra. Dirigiu-se primeiro para o grande relógio-armário e parou o pêndulo. Eram três horas” (p. 39).

Chegou, então, a vez de o tempo passar para que outra morte viesse &– “tudo de novo, igualzinho relógio repetição” (p. 41). A gente toda no sobrado esperando Rosalina. Quem sabe dessa vez o sobrado não abria as portas, quem sabe a cena não se repetiria para ter uma outra solução diferente daquela que ficou parada? Mas tudo foi repetido, do mesmo modo. Rosalina, trancada no quarto, só apareceu na hora de fechar o caixão que guardava o corpo do Coronel Honório Cota. Era uma figura recortada de histórias, inexistentes e etérea que descia as escadas levando nas mãos o relógio de ouro do pai. Colocou-o junto aos outros, pendurado num prego na parede, ponteiros parados. De súbito, voltou-se para onde tinha vindo e subiu as escadas, enquanto tudo era acompanhando pelo silêncio. O sobrado novamente fechado, Rosalina atrás da cortina bordando flores &– “o tempo era só a noite e o sol, as duas metades impossíveis de parar” (p. 51). Somente Quiquina e seu Emanuel, amigo antigo que cuidava das contas e da fazenda, entravam no sobrado. Quiquina cuidava da casa e vendia as flores de Rosalina na cidade. Não contava histórias nem de fora, nem de dentro do sobrado. Não falava.

O tempo passou novamente, dessa vez até chegada de Juca Passarinho. Rosalina deixou que ele entrasse no sobrado, aceitando seus serviços. Quiquina não gostava daquele homem, que chegava sorrateiro e tirava Rosalina do silêncio. De tanto assuntar, conseguia arrancar história da boca de Dona Rosalina. E, de repente, ela se assustava por estar falando “aquelas coisas de menina”, e logo voltava para o mundo existente, para a dureza das coisas sem vida. Juca Passarinho não podia entender o porquê de todo aquele orgulho, aquela dureza. Talvez não fosse orgulho, talvez fosse tristeza, uma tristeza de morte &– “por que não mandava às favas a memória do pai, a sombra do pai, a mão pesada que mesmo morta, de longe a mantinha presa?” (p. 143).

Foi assim que Juca Passarinho foi se achegando. Cada vez mais dentro do sobrado, cada vez mais próximo de Rosalina. Até o dia em que, sozinha na sala, após ter bebido o vinho guardado e que Quiquina nunca deixava faltar, se deixou acariciar por Juca Passarinho. Ele, ainda assustado, descobria aos poucos o corpo daquela mulher. Ela falava depressa, como se quisesse separar a fala do corpo, dividir-se em duas: uma pura voz, outra corpo queimando &– “ela era uma mulher séria, uma mulher sem o menor gesto, sem o menor ruído, uma mulher de sombra e silêncio. Apenas uma mulher” (p. 154). De repente, Quiquina na porta. Rosalina deu um grito de horror e se desvencilhou de Juca.

Quiquina sabia, mas não dizia nada. Tinha visto tudo, tinha ódio dele. Continuava vigiando Rosalina. Ela, novamente orgulhosa, dando ordens durante todo o dia. Dias absurdos, noites sem sentido. De noite, Rosalina &– “Rosaviva” &– ; de dia, Dona Rosalina &– “o seu corpo para ela era apenas um corpo. Só com o corpo se falavam, só com o corpo se entendiam. Porque a alma e os olhos lhe eram vedados. Dos mortos” (p. 200). A sua serventia se limitava ao ponto em que ela encontrava a paz do corpo, o silêncio desanuviado do corpo. Tinha desistido da tentativa de unir no mesmo ser as duas figuras. Chegava a pensar que cada uma seguia o seu caminho, sem encontro possível a não ser na morte. Enquanto isso, Juca Passarinho também se dividia, tornava-se cada vez mais sorumbático, distante, à espera.

O tempo passou. O sobrado sofria sua ação, ainda que parecesse suspenso, em um tempo do mesmo, em um tempo parado que acompanhava a falta de movimento dos ponteiros dos relógios. Rosalina gemia, gritava. Quiquina estava lá, junto dela. Depois dos gritos, um longo e interminável silêncio que durou o resto da noite, o dia todo. Foi só depois que Quiquina desceu com o embrulho debaixo do braço, como uma trouxa de roupa suja. Estendeu os braços, entregando-o a Juca Passarinho. Ele quis recuar, um tremor frio cobria todo seu corpo. Diante do olhar de Quiquina, não tinha mais vontade, sabia agora o que ela queria dizer. Dentro dele um grande vazio, um oco sem fundo. Juca Passarinho se entregava aos pensamentos soltos, ruminava idéias, lamentava-se. Ele também devia ter passado correndo pelo sobrado, continuado a viagem e nunca ter entrado naquela voçoroca.

De repente toda a cidade passou a ouvir uma “cantilena” chorosa, entoada na escuridão da noite. Uma cantiga que ninguém tinha ouvido antes e da qual só se percebia a toada. Muitas histórias, essa coisas que a gente da cidade inventava para tentar explicar o que parecia inexplicável. Nessas horas a gente imagina, inventa muito. Até o dia que a cidade ficou sabendo que “toda noite, há muitas noites, tarde da noite, quando todos dormiam, Rosalina saía do sobrado e ia por aí cantando a sua cantiga no mundo da noite” (p. 246).

O sobrado novamente se enchia de gente, todos à espera de Rosalina &– “naquela casa tudo tendia a se repetir. Como um relógio, um daqueles relógios parados” (p. 241). De braços dados com Emanuel, Rosalina descia a escada. Vestido branco, passos decididos, sorria como se fosse pra gente. Mas, sabíamos, não era para a gente que ela sorria, era um sorriso abobalhado, para ninguém. Os olhos vidrados, parados em algum lugar, num tempo perdido. Ela entrou no carro e partiu “deixando atrás de si uma nuvem de poeira. Lá se ia Rosalina para longes terras. Lá se ia Rosalina, nosso espinho, nossa dor” (p. 248).

 

Desfiando a narrativa

“Ópera”, nos diz o dicionário (Aurélio da língua portuguesa ), “é um drama musicado com diálogo cantado, teatro onde se representam esses dramas”. De verdade? Era verdade? A gente aceita. Dessa narrativa podemos imaginar a música, enquanto escutamos o desenrolar da peça. Esperamos pelo pior? Não, esperamos apenas um sopro, um movimento, mínimo, apenas um. Às vezes somos compelidos a gritar: acorda! Mas a ópera segue seu curso, e o narrador prossegue o relato. E enquanto ele continua o trabalho de fiar seu texto &– ou seu sonho &–, sigo daqui desfiando. O reconto da Ópera já é um trabalho interpretativo, visto que a passagem do leitor pelo texto nunca é totalmente passiva. O processo de leitura é movido pulsionalmente por algo que lhe é externo e o provoca, determinando suas escolhas, suas marcações e deslizamentos a partir do material escrito. Desfiamos e tecemos a partir do relato do sonho &– “tudo parecia de verdade, era de verdade, a gente aceitava, não havia explicação” &– do nosso narrador, que se mantém tão próximo quanto distante da história que narra. Rosalina poderia mesmo ser um sonho, o sonho do narrador. Rosalina, aquela que detrás da cortina revela os fantasmas da alma de um homem. Mas também poderia ser uma história vista, vivida, ouvida, e que agora ganha os contornos especiais a partir daquilo que mobiliza o contador. De um lado ou de outro, o que aparece como detalhe impossível de esquecer &– o sobrado, o resto, o que sobrou &– é o efeito disto sobre aquele que conta, reconta, tece e desfia o texto.

Desde que o pai se fechou, Rosalina deixou crescer um nada de vontade, um nada de desejo. Os dias seguem o curso, e ela, atrás da cortina, presa passivamente no vazio. Não há expressão de horror, de mal-estar. Nada. Apenas Rosalina atrás da cortina a tecer flores. Nenhum movimento que nos ofereça a mínima impressão de que ela vai sair ou acordar desse aprisionamento na morte. Há um olhar aberto dirigido para o tempo de ausência e de perda, sem que nenhuma operação de sentido possa ser realizada. Apenas um jeito de reviver. A dureza e o orgulho do início cedem lugar a um silêncio ainda mais ensurdecedor. E se temos a ilusão de que essa mudança de tom revela uma mudança na alma, estamos completamente enganados. Que força é essa que arrasta, empurra para a morte? Deixa seu rastro de estranheza porque, se falamos em força, podemos supor, em um rápido deslizamento de idéias, que existe um movimento. Empurra e arrasta para algum lugar, diferente desse em que se está. Entretanto, essa força que ronda o sobrado, atingindo pai, filha e mãe, é uma força que não leva a lugar algum, uma força de inércia. Uma força que os coloca sempre no mesmo lugar, que os arrasta para dentro do sobrado, e o fato de morrerem em um tempo depois não faz disso uma grande diferença. Já estavam lá, apenas sobrevivendo.

O pai de Rosalina era um homem atormentado pelos fantasmas, de riso triste. Mas de repente emudeceu. Nenhuma palavra, nenhum cumprimento. Perder as eleições teve para ele o valor de ter sido traído por todos. Esse fato contingente, um simples acaso, parece ter marcado radicalmente sua vida. Não é o fato em si que merece destaque, mas a maneira como isso, ao mesmo tempo em que provoca uma ruptura no curso das coisas, traz à tona o tormento de um homem. Não havia palavra que pudesse traduzir o espanto de uma experiência vivida como traumática. Diante dela, apenas o silêncio para dar conta de um excesso pulsional que não encontra registro para ser simbolizado. O traumático não é a perda das eleições, mas o desvelamento de uma alma atormentada, um outro nele mesmo, que estava escondido entre as janelas e vigas do sobrado. Se antes tínhamos apenas as nuanças desse outro, agora sua presença se impõe e insiste. É sobre essa presença insistente que o coronel Honório Cota não encontra palavras, não encontra jeito de fazê-la retornar às sombras. Seu silêncio é a prova radical de que nele há um outro que trabalha, enquanto ele mesmo se cala.

Os fantasmas lhe rondavam a alma, é verdade. Perder as eleições traz de volta, descortina, promove o encontro com aquilo que existe de mais familiar na alma desse homem. É esse familiar que é insuportável, estranho, aterrorizante. Força mortífera que o mantém preso no sobrado, força que parece ter estado presente em sua constituição psíquica, herança do pai, e que agora insiste, devastando tudo. Força que se sobrepõe aos domínios do recalque, alastra sem deixar saída. E se antes ele “assobradou” a casa, deixando insinuadas as pilastras que deveriam estar ocultas, agora ele constrói o silêncio. Nem o choro da mulher, nem a inumação de Rosalina no sobrado puderam arrancá-lo desse lugar.

Enquanto o pai morria aos poucos, a mãe chorava. Chorava a perda dos filhos mal-nascidos, chorava a apatia do marido, chorava a vida que Rosalina não teria. Foi ela quem partiu primeiro, deixando para trás a marca de um tempo perdido, dando forma a uma ausência que rondava a casa desde há muito. Essa morte era a presentificação de todas as mortes que constituíam o sobrado e que permaneceram silenciadas, desde os tempos de Lucas Procópio, com seu jeito esquisito de imprimir horror e medo. Ele morreu, mas continuou assombrando a todos da cidade; parecia estar ainda na casa que o filho fez questão de manter erguida, disfarçando apenas a rudeza. Nada mais se falava. Quiquina era a prova. Os filhos mortos, a tristeza, a espera. Marcas que não receberam nenhuma operação de sentido, permanecendo em um espaço, sem significado. Os relógios pararam como para anunciar: aqui há mortos. Aqui há mortes. Sem que isso suportasse uma interpretação, apenas constituindo-se em um ato que, ao ser repetido, tenta liquidar uma experiência traumática.

Então Rosalina veio depois de muitas mortes. Parecia ser aquela que traria vida: “Rosaviva”. Mas acabou ficando entre o sono sem sonhos do pai e o choro da mãe. Bordava flores na tentativa de trançar os fios de todas as mortes que exerciam uma dupla influência sobre seu presente. Influência sobre a infância, à qual tinham um estranho, mas profundo, acesso; influência sobre o futuro, sobre o qual ela não tinha mais querer, a não ser o de consentir que nada mudasse. Não se desfazia de nada. Os relógios, o sobrado, a casa. Tudo igual, como antes &– “às vezes queremos nos matar; às vezes, simplesmente morrer. Às vezes, ainda, só queremos estar mortos”, diria Michel Schneider (2005, p. 297). Rosalina parecia ser um desses, só queria estar morta. Nada mais, simplesmente isso. Algumas vezes ela se inquietava com a demora de Quiquina, com as visitas de Emanuel, até com a conversa exagerada de Juca Passarinho. E quando achávamos que, agora sim, sairia dessa inércia, lá estava ela novamente sentada, à espera do nada: “Rosalina de sempre, na sua própria substância” (Dourado, 1967, p. 145). Bordava apenas, e se esse trançar fios tinha alguma função na sua economia psíquica, ficamos no suspense quanto aos seus efeitos.

Foi com a chegada de Juca Passarinho que se acirrou o “combate entre o dia e a noite”. Novamente esperamos que durante as noites, após muitas taças de vinho, Rosalina começasse a viver os dias. Entretanto, esses duravam apenas o tempo necessário para que o corpo se desfizesse do excesso que o atormentava. O encontro entre os dois amantes não garantia qualquer tipo de ligação que pudesse “tornar mais difícil a tarefa de deixar de viver”. Ao contrário, promovia o desligamento, correndo o mais depressa possível para um estado livre de qualquer excitação. Não havia prazer, mas um gozo que aparecia como substrato de uma tendência radical do funcionamento psíquico, tendência essa que recebeu o nome de pulsão de morte (Freud, 1920, p. 73). Atuando desligada, e em oposição ao princípio do prazer, busca restaurar um estado anterior de coisas impelindo o psiquismo a um retorno ao estado inorgânico. Pulsão que trabalha em silêncio, e sem fazer ruídos, conduz o que é vivo ao encontro com a morte, ponto de aniquilamento total das excitações. É assim que a pulsão de morte, observada na compulsão à repetição, visa a um “para além”. Seu trabalho não é manter constante o nível de excitação, mas deixar o organismo seguir um curso que está além do prazer e do desprazer, em um movimento de retorno a um estado anterior à vida.

A sexualidade, nesse caso, não está livre do aspecto demoníaco e desligado da pulsão de morte. Ao contrário, ela é tomada a serviço dessa pulsão, que visa ao escoamento livre, para além dos domínios do princípio do prazer. A relação sexual entre Rosalina e Juca Passarinho não promovia qualquer tipo de ligação que pudesse nos indicar a prevalência das pulsões de vida; ao contrário, desligava, como se a vida corresse o mais depressa possível para o ponto de seu fim. Essa sexualidade tomada a serviço da pulsão de morte era também objeto privilegiado do recalque. Rosalina fantasia os encontros de Juca Passarinho no “curral das éguas”, com o erotismo que faz despertar um desejo ardente e, ao mesmo tempo, uma enorme repulsa. Entretanto, a radicalidade da renúncia a qualquer movimento, a imobilidade no tempo, a fixidez na casa pareciam ser expressão não somente de um conflito oriundo dos processos de recalcamento. A tendência ao imóvel, ao tempo morto era, antes, seu princípio. O que estava presente era uma autonomia da pulsão de morte, que sem ruídos fazia seus arranjos. Era essa eternidade imóvel que despertava o estranhamento de Juca Passarinho e o olhar curioso da cidade. As voçorocas do sobrado, esse fundo, esse buraco que alastra engolindo tudo. De fora, observávamos apenas como espectadores a morte se apossar da vida. O sobrado funcionava quase como um anteparo ao horror do contato direto com isso que é, para todos, o mais estranhamente familiar.

Na Ópera havia um mundo adormecido ao redor de Rosalina: o pai, a mãe, Quiquina. Um mundo que ela velava na mesma medida em que adormecia com ele, cultivando um “nada de vontade”. Estranho é pensar que, ao desligar-se da vida, Rosalina continuava presa à memória do pai, mantinha erguida a casa na trilha dos rastros deixados pelos fantasmas que povoavam o sobrado desde os tempos antigos. Sombras que circulavam no espaço “assobradado” &– assombrado &– anunciando os ecos de uma transmissão, que de geração para geração deixou um resto &– as sobras &– de algo que não pôde ser dito. Algo que não pôde ser representado, e portanto não sofreu o movimento de ligação empreendido pelo psiquismo em seu trabalho de interpretação. Uma vida inteira trancada no sobrado, aquilo mal chegava a ser uma vida, e no entanto, não era uma morte. Agora já não havia dias e noites, apenas um nada de espera. A sabedoria popular, que diz que para cada morte há uma vida, não atingia as portas do sobrado. Ao contrário, depois de uma morte, vinha outra e depois mais outras. Uma única vez, e depois de muitas mortes, veio a vida. Mas isso não constituiu uma exceção naquele lugar em que tudo tendia a ser do mesmo jeito. Em uma eterna sincronia, esse ligar e desligar funcionavam fornecendo o ritmo à ópera. A repetição do mesmo e a insistência no tempo da morte pareciam ser movimentos, que além de manter o ritmo conhecido &– talvez um modo de gozo mortífero, imperativo e que não deixava saída &–, tentavam inscrever algo que parecia ter ficado à margem.

Confirmando tudo isso, foi assim que depois de duas mortes, veio outra. O filho de Rosalina não vingou. E ela? Já não tinha vida, mas também não estava morta. O choro da mãe agora dava o tom da cantilena de Rosalina. A “maluqueira do pai” rondava a cidade nas noites escuras como “alma do outro mundo”. Então, em uma manhã, o sobrado novamente se encheu de gente. Nada de espetacular, nenhuma saída triunfal. Um olhar distante, nenhum suspiro, nenhum sopro. O carro partiu, deixando para trás uma nuvem de poeira, as voçorocas e o sobrado sem Rosalina. Será?

Rosalina, o sonho do nosso narrador? Sonho que revela o que há de mais sombrio e estranho funcionando nas engrenagens da vida, que revela os caminhos e descaminhos dos “riscos do bordado”, dando o tom aos “sinos da agonia” 5. “O senhor querendo saber, primeiro veja... ali naquela casa de muitas janelas de bandeiras coloridas vivia Rosalina” (Dourado, 1967, p. 11). E, então... silêncio, Rosalina ainda pode chegar na janela.

 

Referências

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recebido em 07/11/06
versão revisada recebida em 02/05/07
aprovado em 08/05/07

 

 

Janaína P. Rocha de Paula
Psicanalista; Mestranda do programa de Pós-graduação em Psicologia/Estudos Psicanalíticos (UFMG); Especialista em Teoria Psicanalítica (UFMG).

1. Essa expressão é de Patrick Lacoste, citado por Pontalis (1991, p. 39).
2. Pontalis revela a dificuldade em traduzir a palavra alemã Wunsch que aparece no livro A interpretação dos sonhos. Sugere, então, três possibilidades: desejo, anseio, aspiração. Decidimos não optar por apenas uma dessas palavras para não corrermos o risco de “perder de vista” um determinado sentido.
3. O livro de Pontalis A força da atração trabalha essa passagem do mistério ao enigma, lembrando que o sonho não é mais a estrada principal, é a interpretação que quer sê-lo. “Na união das duas palavras Traum &– deutung, a deutung [interpretação] pretende dissipar o mistério do traum. A interpretação ganha esse lugar de destaque porque é a partir da narrativa do sonhador, daquilo que ele conta sobre o seu sonho &– um contar que encontra no seu movimento um trabalho interpretativo &– que está o caminho para o enigma do sonho. Freud não escreveu um livro sobre os significados do sonho, ao contrário, desde o início a palavra era interpretação. E, se o sonho traz um ponto que parece barrar o trabalho interpretativo, esse não deve ser o ponto de fuga dos analistas. Talvez seja esse o ponto em que se inicia o trabalho analítico, lugar em que um texto é interpretado por outro texto” (p. 46).
4. A partir daqui indicaremos apenas a página do livro Ópera dos mortos.
5. Não sem razão são títulos de livros de Autran Dourado.