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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

A divisão do sujeito: a hipótese de uma Urverleugnung (desmentido primordial)

 

The self’s division: the Urverleugnung hypothesis (the primordial denial)

 

 

Edilene Freire de Queiroz

Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dois temas ocuparam Freud no final de sua obra: a noção de desmentido e a questão da divisão do eu. Concebe-se a Verleugnung como um desmentido da percepção sensorial da falta do phallus feminino, o qual produz como defesa uma convicção contrária: manobra da criança para desmentir a percepção e amenizar a angústia de castração. Ela aparece também conotando uma divisão perceptiva, indicando duas impressões contraditórias: levar em conta a realidade objetiva e negar o que vê. As duas coexistem provocando uma cisão do eu que subsistem na vida anímica com posturas diversas, contrapostas e independentes. Trabalharemos com a hipótese de uma Urverleugnung -(desmentido primordial) que instala a condição de possibilidade de desmentido e dos processos de divisão subjetiva.

Palavra-chave: Urverleugnung, Desmentido, Divisão do eu, Urverdrängung, Sistema perceptivo.


ABSTRACT

Two themes got Freud busy in his final’s work: the notions of denial and that of self division. The Verleugnung is conceived as a denial of the sensorial perception of the absence of a female phallus, which produces, as a defense, a contrary conviction: the child denies the perception and he alleviates the castration anguish. It also appears to connote a perceptive division, indicating two contradictory impressions: one considers an objective reality and the other denies what it sees. Both co-exist provoking a cision of the self and sub-exist in the animus’ life with diverse postures, antagonist and independent. We will be working with a hypothesis of a UrVerleugnung (primordial denial) which installs a condition of the possibility of denial and the processes of subjective division.

Keywords: Urverleugnung, Deny, Self’s division, Urverdrängung, Perceptive system.


 

 

Dois temas ocuparam Freud no final de sua obra: a noção de desmentido e a questão da divisão do eu. Um e outro já vinham sendo tratados de maneira independente: o primeiro apareceu em 1923, em um trabalho sobre a organização genital infantil, e depois, de maneira mais precisa, no artigo sobre o fetichismo, de 1927; o segundo só surgiu em 1924, em dois artigos sobre neurose e psicose.

Em 1938, ele reuniu ambos os temas em um artigo inacabado: A divisão do ego no processo defensivo. Ao tratá-los associados, ele se interroga sobre a qualidade do que vai comunicar: se algo há muito tempo concebido e evidente, ou novo e surpreendente. Como todas as noções freudianas, elas se constroem em um processo de suprassunção, que dá à sua obra um caráter dialético, motivo de sua hesitação. Segundo comentário de James Strachey (Freud, 1938), Freud já se havia ocupado dos dois problemas no segundo trabalho sobre as neuropsicoses de defesa, em 1896, e também no manuscrito K da correspondência com Fliess, do mesmo ano.

Se por razões desconhecidas ele não levou adiante tal discussão, deixando o artigo acima indicado, as aludidas questões aparecerão em textos como Análise terminável e interminável, Construções em análise (ambos de 1937) e, sobretudo, nas últimas páginas do texto Esboço de psicanálise, em 1940.

Vejamos, primeiramente, a Verleugnung como mecanismo de defesa, para em seguida discuti-la como operadora responsável pela divisão do eu.

 

A Verleugnung e a percepção

A Verleugnung, consoante a concepção freudiana (1927), é um desmentido da percepção sensorial da falta do phallus feminino, o qual produz, como defesa, uma convicção contrária, ou seja, a crença em um phallus universal. Perceber a diferença sexual conduz o menino a uma fantasia insuportával, segundo a qual o dele pode vir a faltar. Então, ele ensaia uma posição conciliadora, que se constitui no primeiro desmentido da percepção: o membro existe também na menina, mas ainda muito pequeno e vai crescer. Como essa expectativa não se cumpre, ele lança mão de outra manobra para continuar desmentindo a percepção: o membro já esteve presente na menina, porém foi cortado. A teoria da castração na menina traz conseqüência para o menino, que se vê ameaçado igualmente de ser castrado. Uma das saídas para amenizar a angústia de castração é dotar a mulher de um pênis imaginário, constituindo-se, então, o objeto fetiche.

O fetiche é apontado por Freud como seqüela da experiência traumática de percepção do corpo da mulher. No entanto, para a formação do fetiche, faz-se necessário, além do desmentido, ocorrer a formação de compromisso com a ajuda do deslocamento. Afirma ele:

seria incorreto chamar de “divisão do eu” ao que sobrevém à raiz da formação do fetiche; é uma formação de compromisso com ajuda de um deslocamento (descentramento) (...). A criação do fetiche tem obedecido ao propósito de destruir a prova da possibilidade da castração, de sorte que um poderá escapar da angústia de castração... Portanto, em seu comportamento se expressam ao mesmo tempo duas premissas contrapostas. Por um lado, desmentem o fato de sua percepção, a saber, que nos genitais femininos não têm visto pênis algum; por outro, reconhecem a falta de pênis da mulher e daí extraem as conclusões corretas. As duas atitudes subsistem uma junto à outra durante toda a vida sem se influírem reciprocamente. É o que se tem direito a chamar uma divisão do eu 1 (1938, p. 204 &– tradução nossa).

Mais adiante, ele complementa:

E completemo-lo agora mediante esta outra comprovação: que o eu, nesse mesmo período da vida, com bastante freqüência da na situação de se defender de uma advertência do mundo exterior sentida como penosa, o qual acontece mediante o desmentido das percepções advindas da realidade objetiva. Tais desmentidos sobrevêm muito freqüentemente não só em fetichistas; e toda vez que temos oportunidade de estudá-las, revelam-se como medidas tomadas a meias extensões incompletas de desprender-se da realidade objetiva. A desautorização é complementada em todos os casos por um reconhecimento; estabelecem-se sempre duas posturas opostas, independentes entre si, que lançam por resultado a situação de uma excitação do eu 2 (p. 205 &– tradução nossa).

Vê-se que no processo de formação do fetichismo, o desmentido surge como um primeiro mecanismo para negar a percepção, embora a reconheça; mas a criação do objeto fetiche se produz com a ajuda do deslocamento e da formação de compromisso. Portanto, não basta o desmentido para se estruturar o fetichismo. Livrar-se da angústia de castração requer o recurso da formação de compromisso, gerador do objeto fetiche, capaz de “destruir a prova da possibilidade de castração” (Freud, 1940[1938], p. 204).

Henri Rey-Flaud (1994), estudioso do fetichismo em Freud, considera-o um modo particular de perversão, e o encara como uma posição intermediária entre a perversão e a neurose. O fato de o objeto fetiche ser um substituto simbólico do pênis que falta à mulher pressupõe certo recalcamento. Para o autor, o perverso propriamente dito manteria sua satisfação sem recalcamento. Portanto, a presença exclusiva da Verleugnung não responde pela formação do fetiche. Como defesa, tal mecanismo aparece em várias passagens da obra freudiana, nem sempre referente ao phallus.

Em Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910), Freud identificara essa mesma postura, não em relação ao phallus, mas ao nascimento. Observa ele que a incredulidade da criança com relação à fábula da cegonha, de sentido mítico tão rico, por um lado indica a recusa (Verleugnung) da criança em aceitar a presença de um terceiro, visto como ameaçador para a sua relação dual com a mãe, e por outro, mostra o quanto é difícil para ela implicar o pai nessa relação, quando toda sua experiência se sustenta na vivência sensitiva oral com a mãe.

Na análise do sorriso de Mona Lisa e da duplicidade de expressão do rosto materno em Sant’Anne, Freud realça a inscrição das primeiras impressões perceptivas. Consoante o autor, Leonardo reproduziu, na pintura, o sorriso enigmático percebido no rosto materno, e reencontrado na expressão de Gioconda. Na tela de Sant’Anne, supõe Freud, retratam-se duas impressões primitivas: o sorriso materno expresso no rosto de Maria indica sua satisfação ao amamentar o filho; e a expressão de descontentamento e de inveja, projetada no rosto de Anne, revela o sentimento vivido por ela ao entregá-lo a sua rival, para que fosse criado pela família do pai. A pintura dá a ilusão de haver um só tronco que se desdobra, à altura da cintura, em duas figuras. A hipótese desses dois registros diferentes do rosto materno denuncia a capacidade do bebê perceber sentimentos antagônicos e contraditórios no rosto materno. O fato de Freud atribuir as impressões a momentos distintos na vida de Leonardo não invalida o argumento de que ambas possam também ser manifestações contraditórias de uma mesma expressão, o que dá ao sorriso de Mona Lisa uma conotação enigmática. A genialidade do artista se encarregou de tornar visíveis, por meio da pintura, as variações das expressões maternas percebidas por ele na fusão das duas figuras de mãe, vale dizer, na figura dupla de Santa Ana e Maria em Mona Lisa, e no jogo facial que integra os opostos. Da Vinci mostrou a condição dupla e desmentida que enseja a satisfação/insatisfação vivida pela mãe e pelo bebê nessa relação.

Ora, uma coisa é contraditória quando apresenta ao mesmo tempo duas impressões, na qual a presença de uma desmente a da outra. Vê-se, então, subjacente à discussão de Freud sobre a lembrança infantil de Leonardo, a ação da Verleugnung como um mecanismo que opera essa divisão perceptiva. Assim, a Verleugnung, concebida como um mecanismo próprio do fetichismo, passa a ter um alcance metapsicológico mais amplo, pois Freud já intuía que tal mecanismo era responsável pela condição dupla e dividida do eu. A prática constante de tentar compreender a vida anímica normal a partir das perturbações psicopatológicas o levou a supor que o mecanismo do desmentido não é exclusivo do fetichismo. Observa ele: “não se creia que o fetichismo seja uma exceção, com respeito à cisão do eu: não é mais do que um objeto particularmente favorável a seu estudo” (Freud, 1940[1938], p. 205). Assim, tal defesa constitui um modo de lidar com o conflito entre a exigência pulsional e a percepção da realidade objetiva, conservando ao mesmo tempo as duas impressões.

Segundo Freud, sob a influência da Verleugnung se formam duas posturas psíquicas em vez de uma única; uma que leva em conta a realidade objetiva, isto é, o percebido, e outra que, tomada pelas exigências pulsionais, nega o que vê. As duas coexistem, provocando uma cisão do eu, que subsiste na vida anímica, com duas posturas diversas, contrapostas e independentes. É próprio do ego da criança, sob o domínio do mundo real, livrar-se das exigências pulsionais indesejáveis por meio do recalque, mas com bastante freqüência ele desvia-se das exigências aflitivas do mundo exterior pelo desmentido das percepções (1938, p. 205). Na neurose e na psicose o conflito é resolvido negando-se uma das posturas. Na primeira, o eu sufoca as exigências pulsionais porque está a serviço da realidade; na segunda, o eu se deixa arrastar por tais exigências e rompe com a realidade. Na perversão, as duas posturas contrapostas coexistem representadas pela escolha do objeto fetiche, que as cobre e desvela ao mesmo tempo.

O estudo de Freud sobre a fantasia, Bate-se numa criança (1919, p. 179), revela o traço primário da perversão que emerge na tenra infância e de maneira prematura. Destaca-se, nessa fantasia, a presença do olhar e do desmentido na passagem de um movimento, que vai de um para outro. Primeiro alguém vê um Outro (adulto) que bate em uma criança. Em seguida, o sujeito que olha deslocase para a posição daquele que é batido. E no terceiro movimento, ele volta à posição anterior de espectador, mas a pessoa que bate torna-se indeterminada &– “bate-se em uma criança”. Freud considera o segundo movimento como o mais importante, contudo reconhece tratar-se de uma construção, e não de uma percepção. Concebe ele que a troca de posição do sujeito, de espectador para objeto da ação do Outro, ocorre por meio do sentimento de culpa, ou seja, o castigo dirigido a seu rival (uma outra criança) volta-se agora para si, transformando o sadismo inicial em masoquismo.

Entretanto, tratando-se de uma fantasia tão primária, não seria pertinente considerar que tal mudança poderia decorrer do transitivismo presente nos bebês? Diante de um outro, o bebê reage como se o outro fosse ele próprio. Na fantasia em questão, a criança vê-se na outra: a que olha transforma-se naquela que é batida. Assim, ela transita em duas posições. O indeterminismo de quem é batido estende-se, no terceiro movimento, à pessoa agente da ação. A expressão “bate-se em uma criança” indica a ambigüidade de quem recebe e pratica a ação. O vínculo entre a criança e o Outro se dá de forma reflexiva, tendo o olhar como o elemento que intermedeia tal ação. Essa fantasia originária conserva-se na vida adulta como um núcleo do inconsciente anímico, uma herança arcaica. Lacan sublinha, nela, a condição constitutiva da vida fantasmática do sujeito. O jogo entre a criança e o Outro, testemunhado pelo olhar de um terceiro, pode ser comparado à situação descrita no estádio do espelho, que se desenrola entre duas crianças &– a real e a da imagem especular &– sob o olhar materno.

O olho, portanto, ocupa um lugar central na fantasia perversa. Clavreul (1990) associa a necessidade de ver do perverso à importância do olhar da mãe nesse momento decisivo e traumático da descoberta dos sexos, também como antecipadora da organização do eu.

A compreensão do desmentido como uma defesa arcaica e pertencente à vida anímica normal nos faz adotar a metáfora empregada por Pierre Kaufmann de que a Verleugnung funciona tal qual uma espécie de “placa giratória entre neurose, psicose e perversão” (1996, p. 223). Ele põe em relevo a plasticidade e a abrangência desse conceito, que mantém ao mesmo tempo seu caráter defensivo e de primeira negativa, a partir da qual outros mecanismos, como o recalque e a forclusão, podem também agregar-se.

Também Luís Cláudio Figueiredo, no II Encontro Psicanálise e Universidade, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, em junho de 2000, discutiu tal mecanismo, considerando-o como uma defesa básica na constituição normal do psiquismo. Ele compreende a Verleugnung como uma desautorização3 do processo perceptivo. Reconhece que certa recusa da realidade é determinante, e que se desmente um dos aspectos da realidade percebida. No entanto, acredita ele, não se recusa uma dada percepção, mas o que vem ou viria depois dela, ou seja, a possibilidade associativa da vinda de uma segunda percepção, requisito para a simbolização. Assim, a frase que expressa a posição subjetiva do perverso &– “eu sei, mas mesmo assim” &– denuncia seu saber sobre a falta, porém algo o impede de inferir daquilo que foi visto, a refutação de uma impressão anterior. Há uma espécie de ruptura da continuidade do processo perceptivo, e por isso, podem coexistir mais de uma impressão perceptiva, sem elo associativo entre elas. Desse modo, as imagens são formadas, porém sem significância. A Verleugnung, interpretada como uma desautorização do processo perceptivo, conota certa obstrução do processo de simbolização que impede o trânsito de uma percepção para outra, condição para se formarem cadeias associativas. Tais percepções dissociadas permanecem no psiquismo como “quase coisa” (expressão do autor). Em Leonardo da Vinci, as impressões “quase coisa” retornam por meio da representação dupla e contraditória do olhar materno em Maria e Ana, figuras dissociadas, mas conjugadas em uma só cena no pincel do artista.

Os argumentos de Figueiredo reforçam a leitura que fizemos da carta 52 de Freud a Fliess (de 6 de dezembro de 1896), na qual propõe o esquema do aparelho psíquico.

Cada sistema neuronal apresenta uma maneira diferente de registro e, a cada passagem, dá-se um novo reordenamento, uma retranscrição. No início do circuito está a percepção. As Wahrnehmungszeichen (indicações da percepção) constituem o primeiro sistema no qual toda inscrição fica registrada como signo. Enquanto não entram em jogo as relações causais, efeito da diacronia, atribuição do segundo registro, as associações dos traços perceptivos coexistem simultaneamente &– sincronia primitiva necessária à formação do significante. De acordo com Lacan, Freud se antecipa aos lingüistas, pois esse autor vê uma correspondência das Wahrnehmungszeichen freudianas com o significante. O registro no terceiro sistema implicaria a função de julgamento determinando o acesso à consciência. Observa Freud que se falta uma transcrição subseqüente, a excitação é manejada segundo as leis vigentes no período anterior. Cada sistema apresenta um modo de funcionamento regido por leis próprias (Queiroz, 2000, p. 125).

Entendemos que na hipótese de Figueiredo, desmente-se a percepção e se recusa o que viria depois dela, ou seja, a entrada no jogo das relações causais, própria do segundo sistema. As contribuições desse autor juntam-se às de Assoun, reforçando nosso propósito de discutir tal mecanismo como uma defesa arcaica que está na raiz da constituição do eu, antes mesmo de o sujeito ser capaz de ter uma gestalt do próprio corpo.

Assoun (2004) realça que o termo Verleugnung designa a ação de esconder alguma coisa ou de fazer alguma coisa não estar presente: não admitir sua existência ou cancelá-la. Trata-se de uma negação que designa mais do que um desconhecimento e um desmentido. Ela é uma operação psíquica que não cessa de se re-produzir, diferente da Verwerfung, uma negativa com uma ação mais drástica e definitiva, que exclui o significante do sistema simbólico. A Verleugnung desmente a realidade da diferença sexual, e ao mesmo tempo inscreve a experiência traumática do real impensável, que é a castração. Sua ação deixa um resto possível de sempre refazer-se, cada vez que o real impensável da castração se re-atualiza em uma nova experiência. Essa operação, impossível de ser concebida inseparável de seu contexto, ou seja, da castração, está presente na vida do sujeito antes de ele se deparar com o enigma dos sexos. O nascimento inscreve a primeira experiência de castração, instituindo uma falta constitutiva, que segundo Figueiredo, representa “uma vivência original muito precoce, mesmo que, paradoxalmente, não-vivenciada (ou não concebivelmente vivenciada) da angústia” (1999, p. 54). Somente no a posteriori (Nachträglichkeit) essa vivência primeira é entendida como a primeira ruptura do ideal narcísico de plenitude e completude. Pode-se dizer que nesse momento ocorre uma primeira clivagem, ao romper a unidade mãe-filho. Assim, antes de a criança perceber a falta no corpo do Outro, trauma que a leva a desmentir a realidade objetiva do corpo materno, ela vive a experiência da falta do Outro. Ora, vive-se todo esse primeiro momento da organização psíquica em um estado de ambivalência, de presença e de ausência do Outro, constituindo os rudimentos de uma experiência de alteridade, efetível não só por meio dos cuidados maternos, mas fundamentalmente por intermédio do olhar da mãe, que pode confirmar ou não a existência do pequeno ser.

Em um trabalho publicado em dezembro de 2006, pude discutir mais detidamente a separação mãe-bebê, tomando como referência o jogo do fort-da, descrito por Freud ao observar a brincadeira de um de seus netos. Nosso propósito foi mostrar a anterioridade do desmentido, presente já nas primeiras relações do pequeno ser com sua mãe5.

Se o bebê olha o rosto da mãe e não se vê nele, será um caos. O olhar materno reassegura a existência do bebê. A capacidade de ver e capturar o rosto do Outro é precedida pela possibilidade de ser capturado pelo Outro.

O olhar alheio do Outro não deixa no sujeito espaço de liberdade algum, apagando toda a distância entre o “ser” e o “ter que ser”. Um olhar alheio, como o da mãe na psicose, não capta nem se deixa captar. Observa Clavreul (1990) o quanto é importante o olhar da mãe para a criação do campo da ilusão, condição necessária para que esse olhar, vindo do Outro/mãe tenha uma função organizadora não só na Gestalt do corpo, também como uma referência antecipatória.

Entretanto, os efeitos do olhar parental, em especial o da mãe, variam ao infinito, tanto em qualidade quanto em intensidade. E tal variação está em proporção direta com a capacidade do Outro em interpretar e perceber as manifestações corporais do pequeno ser. O captado pode ser um desmentido do percebido, porque em nível pré-verbal sempre se está no plano das suposições. Além do mais, tal ação depende do ângulo no qual está o olho no momento da captura. Observa Piera Aulagnier que a relação mãe-criança/sujeito-Outro se organiza em uma dialética imaginária, cujo olhar antecipa a palavra, a começar pela imagem antecipada feita pela mãe do corpo da criança esperada. O eucorpo da criança se oferece ao olhar da mãe com manifestações de bem-estar ou de sofrimento, e corre o risco de ser por ela mal interpretado: a mãe pode desmentir o que vê, manter-se cega ou surda ao que acontece com o corpo do pequeno ser. A autora destaca o papel da sensorialidade para dar vida ao aparelho psíquico (1999, p. 25).

As marcas dessas experiências iniciais constituem uma primeira moldagem do eu. A massa energética que constitui o corpo do bebê, ao ser marcada pelo olhar materno, transforma-se em corpo erotizado e imaginado em uma gestalt, mas também em corpo cindido, como sublinhou Freud ao analisar as pinturas de Leonardo Da Vinci, indicando a ação da Verleugnung como um mecanismo responsável por essa divisão perceptiva.

 

A divisão do sujeito

Vê-se que o tema da divisão do eu é anunciado por Freud muito antes de ele se propor a discuti-lo. Em A divisão do eu no processo defensivo, Freud (1938) observa que quando o menino se vê sob a ameaça da castração, com a visão dos órgãos genitais feminino (difícil de suportar), ele renuncia à satisfação pulsional, desmentindo a percepção objetiva, porque encontra um substituto do pênis na mulher &– o objeto fetiche. Assim, nele instala-se a crença de que não existe razão para ter medo. Ele responde ao conflito com duas reações contrárias: recusa a realidade objetiva e reconhece seu perigo. As duas reações contrapostas frente ao conflito subsistem como núcleo de uma divisão do eu. Consoante Freud, alucinando um pênis onde este não existe, o menino não contradiz simplesmente sua percepção; ele desloca o valor dado a esse objeto para outra parte do corpo. Tal deslocamento se acompanha de uma regressão à fase oral, da qual Freud lançará mão mais adiante ao comentar a angústia de castração, que aflora simultaneamente à criação do fetiche. Trata-se da angústia de ser devorado pelo pai.

As fantasias de ser devorado são bem primitivas e remontam sempre a um estado inicial de vínculo materno. Portanto, a ameaça de ser castrado pelo pai mobiliza na criança uma regressão a esse estágio.

Em um texto escrito um ano antes &– Análise terminável e interminável (1937) &–, Freud expõe que a tarefa própria do eu é mediar entre as exigências pulsionais do Id e o mundo exterior, adotando uma atitude defensiva frente a qualquer ameaça. Quando a percepção da realidade objetiva traz desprazer, ela tem que ser sacrificada. Isso porque a criança, em virtude de suas limitações, não possuindo condições de alterar a realidade, vê-se paralisada. A imaturidade biológica da criança para enfrentar os perigos do mundo exterior, e a instalação da negativa que opera a divisão do eu, serão mais bem explicitadas no final do artigo sobre Esboço de psicanálise, em 1940. Aí se diz que é justamente a imaturidade que produz duas posturas psíquicas &– a que leva em conta a realidade objetiva e a outra que separa o eu da realidade. Embora também atribua tal divisão à psicose é à perversão, mais especificamente, ao fetichismo, deve tal descoberta. Neste último, a percepção desmentida não deixa de exercer sua influência, ao passo que, na psicose, a forclusão &– como uma negativa mais drástica &– exclui do campo da representação a realidade insuportável. Podemos dizer, então, que o estudo do fetichismo revelou a Freud a lógica própria da clivagem do eu, do mesmo modo que o estudo da histeria lhe revelou a lógica do recalcamento e do inconsciente.

A hesitação de Freud em classificar tal tema como novo e surpreendente, ou já há muito tempo concebido, procede quando retornamos no tempo ao texto Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910) e dele fazemos uma nova leitura. Escrito quase vinte anos antes, paradoxalmente ele esclarece não só a anterioridade de tal construção, mas também o caráter primitivo do mecanismo, e conseqüentemente, da operação de clivagem do eu, conforme já tivemos oportunidade de discutir. Somente uma leitura dialética de sua obra pode esclarecer esses pontos.

Do mesmo modo, o tema do duplo e do olhar, discutido no texto Bate-se numa criança (1919), corrobora tais construções, mostrando que a questão da divisão sempre esteve presente na concepção desse mecanismo.

Portanto, a Verleugnung, tal qual a Verdrängung (recalque), não constitui apenas um modo de defesa contra a realidade &– são operações psíquicas que não cessam de se re-produzirem.

Não interessa o que empreenda o eu em seu afã defensivo, seja desmentir um fragmento do mundo exterior real e efetivo [ação da Verleugnung] ou rechaçar uma exigência pulsional do mundo exterior [ação da Verdrängung], o resultado nunca é perfeito, sem resíduos, senão que sempre se seguem duas posturas opostas, das quais também a subjacente, a mais débil, conduz a ulterioridades psíquicas (Freud, 1940[1938], p. 206).

A noção de recalque também apareceu primeiramente como uma defesa. De início, Freud (1915a) empregava “recalque” como sinônimo de “defesa”; outras vezes, indicava o primeiro termo como o motivo gerador e o segundo como o processo real. Depois o concebeu como uma defesa própria da neurose, e admitiu a relação entre formas especiais de defesa e doenças específicas. Ao formular o recalque como um conceito metapsicológico, viu-se obrigado a distinguir o recalque originário (Urverdrängung) do recalque propriamente dito [die eigentliche Verdrängung]. Isso porque, do ponto de vista econômico, no recalcamento “há uma retirada da catexia pré-consciente, uma retenção da catexia inconsciente, ou uma substituição da catexia pré-consciente por uma inconsciente” (Freud, 1915b, p. 207), mas precisava indicar de que forma o material recalcado se manteria no inconsciente. Indicou a existência de uma anti-catexia [contra-investimento] como força de atração do material recalcado. Do ponto de vista tópico, a repressão [o recalque] afeta as idéias na fronteira entre os sistemas Inconsciente e Préconsciente/ Consciente, empurrando para o primeiro sistema as idéias recusadas. O que garantiria a permanência da repressão [recalque] e do material recalcado no inconsciente é justamente o recalque originário. Trata-se de um artifício lógico, construído por Freud para indicar a primeira fase do recalcamento, que assegura o estabelecimento do recalque e sua continuidade: consiste em negar entrada no consciente ao representante psíquico da pulsão. Com isso, estabeleceu-se a fixação de uma idéia que ainda não havia recebido qualquer catexia [investimento] do pré-consciente, mantendo-a no inconsciente como pólo de atração para futuros recalques, que por sua vez, se manteriam ligados à primeira idéia recalcada por elos associativos. Para distinguir o recalque originário [Urverdrängung] do recalque propriamente dito [die eigentliche Verdrängung] ou recalque posterior [Nachdrängen], Freud acrescentou ao termo Verdrängung o prefixo “Ur”. Assim, ele também marcou a diferença da Verdrängung como mecanismo de defesa, da Verdrängung como operador fundante. O prefixo “Ur” designa as origens, a ancestralidade, o momento mítico e inaugural da cadeia, momento que inaugura o inconsciente. Dessa forma, Freud definiu a Urverdrängung como um recalque originário &– portanto, o primeiro de uma linhagem, condição de possibilidade dos demais.

A hipótese de uma origem, de uma vivência primeira, mesmo que não vivenciada, ou seja, uma vivência arquetípica, ou a de apoiar-se em vivências de satisfação anteriores, sempre esteve presente na lógica do pensamento freudiano. Quero crer que em quase todos os conceitos fundamentais da Psicanálise ele introduziu tal noção. Conceitos como o de angústia, o de desamparo, o de narcisismo, o de masoquismo, o de fantasia são exemplos disso. No texto de 1914 sobre o narcisismo, ele fala das pulsões auto-eróticas como sendo primordiais (Freud, 1914, p. 74). No Complexo de Édipo, também ele deu às fantasias edipianas uma dimensão originária [Urphantasie] quando reportou o Édipo à pré-história da humanidade e quando criou o Mito da Horda para indicar que “o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos” (Freud, 1913, p. 171).

Essa necessidade de Freud de compreender os processos psíquicos em uma temporalidade do aprés coup gera incompreensões em alguns contextos. Sobre isso Figueiredo (1999) traz importantes contribuições ao comentar duas passagens de Freud sobre a angústia sentida no nascimento. Observa ele que ora Freud afirma que “o recém-nascido repetirá o afeto da angústia em todas as situações que o recordem do nascimento” (Freud, 1920, p. 128), portanto, uma vivência do plano ontogênico, ora indica a angústia sentida no nascimento como sendo arquetípica, por conseguinte, do plano filogenético. Para Figueiredo, não fica claro como o episódio de origem da angústia &– em que teoricamente não houve vivência de angústia como sinal (o que pressupõe o Eu constituído) &– possa, ainda assim, fazer parte de uma série de vivências de angústias que se seguem. Ele recorre, então, à teoria de Winnicott acerca do medo do colapso, na qual ele fala de uma “agonia inominável” para explicar a resposta defensiva do Eu que reproduz uma vivência de uma época em que não havia sujeito constituído para vivê-la. Reproduzo a explicação dada por Figueiredo:

a “primeira vez” da vivência de angústia, e todas as posteriores, seriam “repetições” da situação dita arquetípica”, mas só na “repetição” o “passado” &– o do indivíduo ou o da espécie &– se constituiria como experiência, ou seja, apenas na posteridades de um Eu constituído se constituiria a “origem arquetípica” de uma experiência, que de alguma forma não podia ter sido vivida antes, mas que, devemos necessariamente admiti-lo, havia deixado traços que funcionavam como um apelo de sentido, como um apelo ao suplemento de sentido que “só depois” se converteria em experiência vivida (1999, p. 54).

A angústia originária ou o recalque originário, mais do que a inscrição de uma primeira vivência, indica um ponto de origem, condição de possibilidade, razão pela qual é também concebido como uma situação arquetípica. No caso da Urverdrängung, seria para sublinhar seu valor metapsicológico como operador fundante do inconsciente? Por que não fez o mesmo com a Verleugnung e com a Verwerfung, também mecanismos básicos da perversão e da psicose, respectivamente? Com relação à Verwerfung, Freud pouco elaborou; foi Lacan quem a destacou como defesa própria da psicose. Já com relação à Verleugnung não podemos dizer o mesmo, pois mesmo que ele só tenha se ocupado desse tema no final de sua obra, ele já vinha sendo tratado desde os primeiros escritos. Como a Verdrängung, a Verleugnung foi inicialmente definida como uma defesa própria de uma manifestação psicopatológica; depois adquiriu um estatuto metapsicológico de mecanismo responsável também pela clivagem do eu: a Verdrängung rechaçando uma exigência pulsional, e com isso dividindo o ego do Id; a Verleugnung, desmentindo uma percepção, divide o campo perceptivo e o campo fantasmático, gerando duas impressões.

A suposição de uma Urverleugnung (desmentido primordial) se sustenta no mesmo princípio: tornar tal mecanismo um operador básico que instala a condição de divisão subjetiva e criar a condição de sucessivas divisões &– Eu/ Outro, Je/Moi, Ego ideal/Ideal do Ego etc. Concordando com Assoun, trata-se de uma operação psíquica que não cessa de se re-produzir. Assim, a Verleugnung desmentiria a realidade da diferença sexual, a Urverleugnung inscreveria a experiência traumática do real impensável que é a castração. Por se tratar de um tema surgido tardiamente na obra freudiana &– mesmo assim de maneira inacabada &–, é justificável que tal hipótese não tenha sido por ele formulada, contudo pôde ser pensada.

Castração e divisão do eu são duas condições constitutivas do sujeito. A Urverleugnung (desmentido primordial) inaugura a experiência de castração e de desmentido da castração, instalando uma condição subjetiva dividida. Similar ao processo de recalcamento originário, a Urverleugnung corresponde à primeira fase, ao que há de primordial na Verleugnung, ao momento mítico e inaugural da cadeia, no qual não há um objeto específico a desmentir, contudo já se criam o duplo e a interpretação dúbia daquilo que vem do Outro.

A vivência primitiva que se torna “condição de possibilidade” das vivências posteriores de desmentido é a relação mãe-bebê. A troca de olhares na relação mãe/bebê propicia enganos e desmentidos e dá a ver [revela] ao bebê sua condição dupla: objeto de desejo da mãe e sujeito separado desta. A interpretação enganosa que a mãe possa fazer dos sinais emitidos pelo corpo da criança e a inscrição contraditória que esta faz do olhar materno inscrevem a Urverleugnung como vivência estruturante da vida psíquica.

 

Considerações finais

A história do conceito, delineada nas páginas iniciais deste artigo, serviu de suporte argumentativo para construir a hipótese de um conceito que em nosso entender ajuda a distinguir o desmentido como defesa própria da perversão &– portanto, do referencial psicopatológico estrito da perversão &–, do desmentido responsável pela clivagem do eu, introduzindo-o em uma discussão metapsicológica da constituição do sujeito.

Como qualquer discussão nova, com certeza esta também tem pontos que demandam mais elaborações, só viáveis no campo da interlocução; torná-la pública significa submeter a hipótese de uma Urverleugnung à prova da realidade, retirando-a das certezas paranóicas próprias das teorizações solitárias.

Haveria, portanto, uma Urverleugnung, responsável pela primeira divisão vivida na relação mãe/bebê, iniciando a série de outras Verleugnungen, e criando a condição de divisão subjetiva. Como uma defesa própria do sistema perceptivo, ela defende o sujeito da realidade externa, mais precisamente das faltas que esta lhe impõe e se constitui como a primeira defesa vivida na relação com o Outro primordial &– a mãe.

 

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recebido 28/12/05
versão revisada recebida em 04/04/07
aprovado em 06/08/07

 

 

Edilene Freire de Queiroz
Psicanalista; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Pós-doutora (Laboratoire de Psychopathologie Clinique, Université de Marseille I); Professora Titular, Coordenadora do Programa de Mestrado em Psicologia Clínica e Membro do Laboratório de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise (UNICAP); Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.

1. Sería desacertado llamar de “escision del yo” a lo que sobreviene a raiz de la formación del fetiche; es una formación de compromiso con ayuda de un desplazamiento (descentramiento)... La creación del fetiche ha obedecido a propósito de destruir la prueba de la posibilidad de la castración, de suerte que uno pudiera escapar a la angustia de castración... Por tanto, en su comportamiento se expresan al mismo tiempo dos premisas contrapuestas. Por un lado, desmienten el hecho de su percepción, a saber, que en los genitales femeninos no han visto pene alguno; por el otro, reconocen la falta de pene de la mujer el de ahí extraen las conclusiones correctas. Las dos actitudes subsisten una junto a la otra durante toda la vida sin influirse recíprocamente. Es lo que se tiene derecho a llamar una escisión del yo (Freud, 1938, p. 204).
2. Y completémoslo ahora mediante esta otra comprobación: que el yo , en ese mismo período de la vida, con harta frecuencia da en la situación de defenderse de una admonición del mundo exterior sentida como penosa, lo cual acontece mediante la desmentida de las percepciones que anotician de ese reclamo de la realidad objetiva. Tales desmentidas sobrevienen asaz a menudo, no sólo en fetichistas; y toda vez que tenemos oportunidad de estudiarlas se revelan como unas medidas que se tomaron a medias, unos intentos incompletos de desasirse de la realidad objetiva. La desautorización es complementada en todos los casos por un reconocimiento; se establecen siempre dos posturas opuestas, independientes entre sí, que arrojan por resultado la situación de una excisión del yo (Freud, 1938, p. 205).
3. Termo também empregado pela Editora Amorrortu para traduzir Verleugnung.
4. Ao lançar mão de um objeto substituto &– o carretel &–, o bebê desmente a ausência da mãe, colocando em seu lugar um objeto. Em terceiro tempo, pelo significante “bebê, o, o, o” (bebê se foi), é o bebê que se evanesce. Olhando seu bebê, a filha de Freud foi capaz de dar sentido aos gestos dele. E o bebê, vivendo e representando a ausência e a presença da mãe, pelo jogo, foi capaz de se olhar e se perder, sem que isso abalasse a integridade de seu EU corporal. Já havia uma gestalt, um simbólico, porém importa prestar atenção a toda operação lógica anterior a essa condição. O jogo repetido encena a falta da mãe; ao mesmo tempo, encobre-a. (...). Podemos inferir que, no jogo do fort-da, a criança é também o carretel manipulável da mãe. Na reversão da pulsão em seu contrário &– de passivo para ativo &–, a mãe passa a ser o carretel. Ao lidar com a castração do Outro, a criança antecede o confronto com a castração no Outro. Na perspectiva de Lacan, representaria o primeiro significante da castração, o S1, que o reenviaria ao segundo significante ou o trauma da castração propriamente dita, o S2 (...). Originalmente, tudo está no estatuto do “Outro”, que em sua tensão com o um, funda o estatuto do sujeito. Pelo processo de separação, estabelece-se um intervalo de falta, ponto falho do casal primitivo mãe-bebê, que promove o surgimento do primeiro objeto &– o objeto fetiche &–, que, enquanto tal, previne-os da visão de um não-objeto. Vivendo num tempo de ser o objeto que falta à mãe, o próprio bebê produz o fantasma de seu desaparecimento, ao experimentar a frustração do desaparecimento da mãe, como fez o neto de Freud no jogo do fort-da &– “bebê, o, o, o” (bebê se foi). Está aí a raiz da divisão subjetiva e da afânise do sujeito na ótica de Lacan. Há, portanto, nessa relação algo antecedente ao desmentido da castração e à recusa da diferença entre os sexos (Queiroz, 2006, p. 603-604).