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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Seria a religião uma saída para a toxicomania? Uma abordagem psicanalítica1

 

Is religion a solution to the drug-addiction? A psychoanalytical approach

 

 

Maria Augusta de Mendonça GuimarãesI; Victor Eduardo Silva BentoII

IAssociação Psicanalítica de Curitiba
INúcleo de Estudos da Adolescência da Associação Serpiá/ Curitiba
IEscola Superior de Estudos Empresariais e Informática
IIDepartamento de Psicometria do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há inúmeros relatos de toxicômanos que conseguiram se manter em abstinência das drogas devido a um vínculo extremamente forte com a religião. O presente trabalho tem como objetivo estudar que mecanismos psicológicos estão presentes nesses toxicômanos que buscam uma solução para o abuso de drogas por meio do vínculo excessivo com uma entidade religiosa. Uma das hipóteses é a presença de uma necessidade de estar dependente de algo, que é provavelmente a característica mais forte do toxicômano. O método do trabalho consiste de revisão de literatura.

Palavra-chave: Toxicomania, Religião, Psicanálise, Narcisismo, Dependência.


ABSTRACT

There have been lots of reports of drug addicts who succeeded in getting free form dugaddiction due to a new commitment to religion. The following work aims at studying the psychological mechanisms that are present in these drug addicts who search for a solution for drug abuse through the excessive link to a religious institution. One of the hypotheses is the presence of a necessity of being dependant on something, which is probably the strongest characteristic of the drug addict. This paper methodology consists on reports from psychoanalytical papers.

Keywords: Toxicomania, Religion, Psychoanalysis, Narcisism, Dependence.


 

 

Introdução

É comum se ouvir dependentes químicos dizendo que após passar por diversos tipos de tratamento, apenas conseguiram se abster das drogas quando começaram a freqüentar comunidades religiosas. Alguns exemplos a esse respeito podem ser encontrados no livro de Oliveira, no qual o autor destaca alguns depoimentos de toxicômanos que conseguiram se manter abstinentes com a ajuda da religião, como por exemplo: “você tendo uma fé, você tendo Jesus, seguindo a Jesus, tudo começa a ficar mais fácil” (1997, p. 112). Poder-se-ia então questionar: existiria uma dependência psicológica da religião nesses toxicômanos que só conseguiram se abster das drogas quando se tornaram “ferrenhos religiosos”? Seria esta busca da religião própria do funcionamento do toxicômano, como se fosse uma necessidade de ele estar dependente de algo para viver, seja da droga, seja da religião? Existiria alguma equivalência entre a droga e o Deus todo-poderoso, ambos no lugar de um objeto investido com exclusividade e intensidade? Esta vinculação exclusiva e intensa com a religião permitiria afirmar que o toxicômano está livre da dependência, já que não estaria fazendo uso de drogas? Como se poderia pensar esta troca da droga por Deus? Seria a dependência psíquica algo próprio do toxicômano, e assim, aquilo que o diferencia dos indivíduos ditos “normais”? Até que ponto se poderia considerar a substituição do abuso de drogas pelo excesso de religião saída para a toxicomania? Seriam essas pessoas, cuja vida gira em torno dos mandamentos de uma determinada religião, adictas também?

O tema do presente trabalho é este fenômeno social tão freqüentemente observado: a busca dos toxicômanos por instituições religiosas para se livrarem do vício das drogas. Pretende-se discutir a seguir o que ocorre nesse movimento de buscar a religião como “cura” para a toxicomania. Sendo assim, a problemática central do presente trabalho é: seria a religião uma saída para a toxicomania?

 

Toxicômanos e fanáticos religiosos &– funcionamento psíquico

Quando se fala aqui em toxicômano e em “fanático religioso” tornam-se necessários alguns esclarecimentos a fim de evitar equívocos e delimitar melhor os objetivos deste trabalho. Não se trata aqui do sujeito que trabalha durante a semana e aos domingos vai à missa, confessa os pecados e evoca o nome de Deus quando não consegue explicar um fato racionalmente. Não se trata também do sujeito que esporadicamente faz uso social de entorpecentes na companhia de amigos ou exagera no uso de álcool em uma situação festiva. Trata-se aqui do sujeito toxicômano, que em um primeiro momento está “totalmente dependente” da droga, e em um segundo momento, livra-se dela voltando toda sua atenção para uma crença religiosa, a qual tem a particularidade de ditar uma maneira de viver e também de pensar. É necessário aqui destacar essa característica do toxicômano de estar “totalmente dependente”, obcecado pelas drogas, e do fanático religioso, obcecado por Deus. Para abordar esta característica, pode-se evocar Ingold, que prefere entender a toxicomania como “estado de dependência”, ao invés de defini-la como comportamento de abusar no uso de drogas:

A dependência pode ser definida como o fato de uma pessoa não mais poder passar sem a droga. Essa definição não nos satisfaz. Parece-nos, ao contrário, que o que caracteriza a dependência é muito mais o fato de que, num momento dado (...), uma pessoa se acha encerrada não mais apenas num comportamento de busca da droga, porém, antes de mais nada, numa maneira de ser: é isso que se manifesta ao nível do corpo, mas é o que se manifesta, igualmente, ao nível do modo de pensar (1983, p. 60).

Ao contrário do que geralmente é evocado como critério para afirmar se um sujeito é dependente ou não, a saber, as características de seu comportamento, o autor introduz uma outra maneira de se pensar a dependência, centrando-a não no comportamento, mas no “modo de pensar”. Que “modo de pensar” seria este, então, característico dos toxicômanos? E que relação este “modo de pensar” teria com os sujeitos que abandonam o abuso de drogas, substituindo-o pelo fanatismo religioso? Freud falava que os vícios nada mais eram do que substitutos de um hábito primário, a masturbação: “comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o ‘vício primário’, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios &– álcool, morfina, tabaco etc &– adquirem existência” (1950[1897], p. 323). Evidente que não se trata de pensar aqui no ato masturbatório em si, mas sim no que ele representa no psiquismo do sujeito. A masturbação indica a sexualidade auto-erótica, pré-genital, de alguém obcecado por uma determinada idéia. Ou seja, o sujeito está se satisfazendo sem a presença de um outro semelhante. Conseqüentemente, não há uma busca por uma relação objetal que supostamente lhe traria sua completude, pois ele já se supõe completo. Não seria possível, então, fazer um paralelo entre esse “modo de pensar” do toxicômano e o “modo de pensar” do fanático religioso, pois esse tipo específico de religioso tratado aqui, não estaria ele também com um funcionamento psíquico semelhante ao do toxicômano, visto que ele supõe ser sua crença aquilo que lhe trará toda a completude, preenchendo todos os seus vazios?

Logo, o toxicômano é caracterizado não somente como aquele que se não tiver a droga terá crises de abstinência, manifestações fisiológicas e outras atitudes no âmbito do comportamento, mas também como alguém cuja subjetividade está anulada, em quem impera a dificuldade de encontrar um sujeito desejante, o qual parece estar mascarado por sua adicção. Parece ocorrer, então, uma obsessão por um objeto único e exclusivo, que anula qualquer outro interesse desses sujeitos. Além disso, sua angústia só se presentifica na falta do objeto de sua obsessão &– a droga. Ao privilegiar este objeto, o toxicômano parece não mais fazer parte desse universo de troca com o semelhante; seu ideal de completude estaciona quando sente os efeitos da droga no organismo. Não se trata, evidente, de fazer uma apologia à independência, mas de opor a dependência “tóxica” à dependência do neurótico “comum”. Esta diz respeito à própria condição humana, faltante, inserida no mundo da linguagem, ou seja, dependente do outro, do semelhante, visto que são as relações humanas que basicamente constituem o sujeito.

Essas considerações sobre a dependência do toxicômano parecem fazer eco quando se direciona a atenção para o que acontece nos fenômenos religiosos aqui estudados. Da mesma maneira que se definiu o toxicômano não somente como alguém que não pode viver sem sua droga, mas sim como alguém que modifica radicalmente sua visão de mundo e sua maneira de ser &– e de pensar &–, pode-se fazer uma analogia com esse tipo específico de religioso. O que acontece quando alguém se propõe a compartilhar dessas crenças não é somente uma mudança de hábito, como freqüentar a igreja todos os dias e rezar todas as noites. Trata-se também de uma mesma maneira de ser e de pensar, por meio de mandamentos superegóicos que estarão ditando as regras: o sujeito deve incorporar aquilo à sua vida, de modo que tudo o que acontece encontra uma explicação nas vontades de Deus, tudo o que ele pode e não pode fazer é regido também por Suas normas, ou seja, não há sentido na vida se a palavra do Senhor não estiver por baixo de todas as atitudes do sujeito. Não há possibilidades de questionamentos, mesmo porque estes não são necessários, pois há um saber pleno, onipotente e onividente. De certa forma, trata-se também, assim como na toxicomania, de uma anulação da subjetividade, o que corresponde, dessa maneira, à forma de gozo do toxicômano. Sobre isto, escreve Jorge:

a droga (...) supõe a possibilidade de acesso a um mais além do vivido subjetivo e, dessa forma, se assemelha à religião: não será este seu efeito mais nocivo e poucas vezes ressaltado, o engodo inerente a seu ato que, visando despertar, apenas provoca mais letargia? (1994, p. 13).

Este engodo a que o autor se refere pode bem ser exemplificado pelo próprio conteúdo do discurso desses sujeitos. Inclusive o verbo “despertar” é muito utilizado, como se toda a vida pregressa da pessoa não tivesse valor; uma espécie de “renascimento” ocorreria, como se subitamente o sujeito descobrisse o sentido da vida e a chave para a felicidade, seja em Deus, seja na droga. Bittencourt (2000) escreverá sobre isso: “os evangélicos ao levarem mensagens de conversão promovem rupturas marcantes no comportamento de seus seguidores. ‘É preciso nascer de novo’, dizem em suas pregações”. Fazendo um paralelo entre religiosos e toxicômanos, não raro escuta-se na clínica depoimentos de familiares dizendo que com a religião o toxicômano “é outra pessoa”, “não o reconheço mais”. Pois de fato, além da mudança de vestuário, vocabulário, amizades, o toxicômano modifica sua visão de mundo de uma maneira tal que realmente parece ter se transformado em outra pessoa; e ele próprio afirma, muitas vezes, ter “despertado” para a vida.

A partir disso, poder-se-ia perguntar então: mas onde fica a letargia a que o autor citado se refere? Afinal, independente de ser toxicômano ou fanático religioso, parece que, de certa forma, eles encontraram um “sentido” para suas vidas. Tornaram-se pessoas ativas, com iniciativa, trabalhando para a igreja ou fazendo pregações, no caso dos religiosos; ou fazendo novos contatos, descobrindo novos pontos de droga, no caso dos toxicômanos. Entretanto, é justamente aí que se faz necessário explicar o significado desse conceito tantas vezes já citado, que é o de subjetividade. Independente de estarem muito convictos de suas escolhas, os dois tipos não possuem um discernimento sobre suas próprias vontades na ausência do referencial igreja / droga. Parece que é neste sentido que se encontra essa “letargia”; não existe uma diferenciação. É como se todos fossem iguais, com um mesmo objetivo em comum; parece existir uma autêntica irmandade no mundo das drogas e da religião.

Outra característica dos toxicômanos transformados em fanáticos religiosos é o prazer imediato que dizem encontrar na religião. Após sua conversão, o sujeito passa a acreditar em uma proteção divina que lhe trará a salvação em troca de algumas restrições. Assim, é imediatamente avisado de uma série de vantagens e “diferenciações” em relação aos semelhantes. O encontro com Deus é a mais pura forma de prazer que pode alcançar; as angústias da vida desaparecem; não há vazio, somente preenchimento. Para o toxicômano, essa filosofia de vida encaixase perfeitamente em seu dinamismo psíquico, conforme explica Olievenstein: “o toxicômano impulsivo não pode esperar por estarem ausentes os elementos de reflexão, de autocrítica, que possibilitam a contenção do ato; a reflexão e a autocrítica são substituídas pela ação impulsiva, imediata” (1980, p. 70). É claro que não se pode generalizar um funcionamento padrão para todo toxicômano, mas existem algumas peculiaridades, como a impulsividade já citada, que são observadas freqüentemente. A baixa tolerância à frustração, diretamente ligada a esse imediatismo, também remete a algumas reflexões.

Bergeret destaca esta impulsividade ao escrever sobre o atendimento do toxicômano: “é freqüente que as passagens ao ato [acting out] com novas utilizações de tóxicos (ou de álcool) apareçam no momento em que a frustração imposta pelo terapeuta se torna demasiado intensa” (1983, p. 34). Levando-se em conta essas características típicas dos toxicômanos, torna-se mais claro o entendimento da busca da religião para a saída das drogas. As frustrações podem ser curadas pela adesão ao credo em Deus, pois o seguimento de Seus preceitos pode levar a uma vida “abençoada” e a uma pós-vida mais enriquecida ainda. Ou seja, o alívio é imediato. Não se poderia, então, dizer que este alívio é análogo a uma morte psíquica letal, ou letargia, pelo acesso ao mundo de Deus?

 

A droga e a religião como objetos de substituição do gozo masturbatório primário

Para iniciar esta discussão pode-se evocar a seguinte passagem de Freda: “a substituição freudiana não faz do objeto de substituição, ou seja, a droga, o agente da dependência, e conseqüentemente torna o gozo responsável por essa operação” (1994, p. 42). Se esse autor está falando da droga como objeto de substituição, deve-se esclarecer então a que tipo de substituição ele está se referindo, a qual diz respeito a uma substituição das atividades masturbatórias da infância, tal qual foi mencionado anteriormente na citação de Freud (1950[1897]). Dessa maneira, pelo impeditivo advindo da socialização, o sujeito seria obrigado a substituir seu “vício primário” por alguma coisa, ou hábito, ou objeto. E seguindo o raciocínio que se vem desenvolvendo, será que se poderia afirmar, então, que o sujeito que se aliena em uma religião também está buscando uma forma de substituição desse “vício masturbatório primário”? Parece que a resposta não é tão simples assim. Sobre isto, Freda escreve:

O conceito de substituição para a psicanálise é o que recobre o laço entre a vida e a marcha do mundo, pois é bem a marcha do mundo que oferece à vida o produto para atenuar o que do gozo narcísico, ou seja, a masturbação, fará falta a partir do momento em que o ser falante entra na aventura, sempre fadada ao fracasso, da relação sexual (1994, p. 41-42).

O fato do ser humano ser obrigado a lidar com uma realidade frustrante e angustiante pode, muitas vezes, levá-lo a buscar os mais diversos tipos de saídas para esse impasse. E parece que é disso que o autor está falando ao mencionar o fracasso de adentrar na esfera da relação sexual, ou seja, o fato de não sermos completos e de percebermos nossas falhas e as dos semelhantes quando com eles nos relacionamos.

Este gozo masturbatório parece dizer respeito menos a uma sensação fisiológica do que ao simbolismo que ele representa, ou seja, a possibilidade de se alcançar um gozo completo, único, ideal e perfeito. Escreve Freda: “o gozo masturbatório é a verdadeira dependência do ser humano, na medida em que ele representa com a maior perfeição a menor distância entre o desejo e sua realização” (1994, p. 42).

 

A economia narcísica da toxicomania e do fanatismo religioso

A toxicomania está diretamente relacionada a um grau excessivo de narcisismo, de auto-investimento, já que remete à masturbação em última instância. O investimento nesse “narcisismo auto-erótico”, masturbatório, correspondendo à libido investida em um estado rudimentar do ego, anterior ao seu surgimento como unidade, parece ser mais o mais importante viés para que se possa fazer uma aproximação entre toxicômanos e fanáticos religiosos. Para a discussão desta polêmica noção freudiana de “narcisismo auto-erótico” e sua relação com as toxicomanias, ver Bento (1996).

Le Poulichet fez um extenso estudo sobre a natureza da toxicidade relacionada ao narcisismo, partindo das mais antigas considerações de Freud sobre adicção, mas sem que tal hábito estivesse vinculado à droga, mas sim à adicção que poderia se instaurar na relação do hipnotizador com seu hipnotizado: “em suma, se a relação com o hipnotizador é suscetível de romper os ‘hábitos mórbidos’, ela pode por sua vez constituir uma nova forma de adicção. Assim, os primeiros indícios das manifestações de um amor de transferência se manifestam em referência à adicção!” (1987, p. 72 &– tradução nossa).

Segundo essa autora, o que Freud havia percebido em suas primeiras experiências, ainda com o método da hipnose, foi que não raro poderia acontecer uma espécie de dependência, uma “adicção” por parte do hipnotizado em relação a seu hipnotizador. E mais: tratava-se de um “excesso”, excesso de investimento nessa relação de dependência, o que já poderia suscitar questionamentos envolvendo a adicção não somente de um determinado objeto ou, como é mais referenciado, de uma droga, de algo tóxico, nocivo, mas sim de uma pessoa. A autora escreverá a esse propósito: “mas observemos desde já que se esta relação pode se tornar ‘tóxica’, é sobretudo porque o corpo ali se encontra situado em uma relação particular com um outro” (Le Poulichet, 1987, p. 73 &– tradução nossa).

Percebe-se então a presença de uma noção fundamental que perpassa todas as questões levantadas no presente trabalho, e que possibilita fazer a passagem da dependência do toxicômano de sua droga à dependência do religioso de seu Deus: trata-se da noção de uma relação tóxica, e não simplesmente de uma mudança de comportamento, ou até mesmo de um comportamento semelhante com variáveis diferentes, como poderia ser o caso aqui. O que está imperando por baixo de todas as características já levantadas &– baixa tolerância à frustração, anulação de subjetividade, fusão com o objeto &– nada mais é do que uma “relação tóxica” que está sendo estabelecida. A grande questão, então, não é de qual objeto se está falando (o álcool, a droga, a religião etc), mas do tipo de relação que se estabelece, do tipo de posicionamento que o sujeito toma em relação ao outro, da natureza do vínculo que realiza. Le Poulichet escreve a esse respeito: “já se pode pressentir que o verdadeiro tóxico &– este do qual nos ocupamos na clínica psicanalítica &– não é provavelmente a droga em si!” (p. 73 &– tradução nossa).

Mas antes falava-se de narcisismo, de auto-investimento. Em seguida passou-se a falar da relação tóxica que um indivíduo estabelece com um outro. Falava-se também de um excesso de investimento. Qual a ligação, então, entre essa relação tóxica, o narcisismo e esse excesso de investimento? É necessário então fazer a relação entre essas noções para esclarecer mais adequadamente algumas questões. Para tal, pode-se evocar novamente Le Poulichet (1987) ao comentar duas passagens do início da obra de Freud, quando ele falava de reações tóxicas que poderiam ser provocadas por um excesso de substâncias sexuais, tal como a enxaqueca ou os ataques de angústia. Tais exemplos são pertinentes para as questões aqui estudadas, não para saber as causas dessas patologias, mas pelo fato afirmado por Freud de que poderia existir um excesso de sexualidade prejudicial à saúde do ser humano, ou seja, uma “sexualidade tóxica”, conforme comenta Le Poulichet:

Um retorno maciço de uma teoria da intoxicação se opera aqui, sob uma forma mais precisa: é o sexual ele próprio que é considerado “corpo estranho tóxico”. Assim, em março de 1895, Freud definia a enxaqueca como uma reação tóxica provocada pelas substâncias sexuais excitantes. E, em 1896, ele aborda em vários momentos a questão de um “excesso de sexualidade” (1987, p. 80 &– tradução nossa).

Parece ser possível aqui fazer alguma associação entre esse “excesso de sexualidade” e as características narcísicas dos toxicômanos e dos fanáticos religiosos anteriormente levantadas. Antes é necessário definir adequadamente esse excesso de sexualidade, a fim de evitar futuros equívocos. Trata-se de um excesso de energia que visa, naturalmente, sua descarga, e que não encontrando uma maneira para fazê-lo, pode provocar distúrbios como a enxaqueca ou os ataques de angústia. O funcionamento “normal” do psiquismo humano seria buscar a descarga da energia pelo investimento no objeto. Mas, e no caso em que essa energia não está sendo investida em objeto algum, mas em si mesmo? Pode-se pensar que este investimento narcísico, em grau elevado, poderia ser considerado tóxico. Na toxicomania e no fanatismo religioso não há perspectiva de um encontro objetal, de um encontro com o diferente, de uma relação propriamente dita; há uma relação de dependência, que até pode parecer paradoxal se for questionado onde está o narcisismo, já que a pessoa está tão “entregue” ao seu “objeto”. No entanto, é uma relação narcísica e tóxica no sentido de que se busca o objeto apenas para preencher faltas, iludindo-se com a falsa idéia de reencontrar o suposto UM, que outrora se imaginou possível quando da fusão com o objeto primário de amor. Trata-se aqui de um “objeto” entre aspas, pois ele não é propriamente um objeto sexual de amor; é apenas um “objeto narcísico”. Para a discussão desta noção freudiana de “objeto narcísico” e sua relação com as toxicomanias, ver Bento (1996).

A este propósito, Le Poulichet escreve: “os pacientes toxicômanos associam o abandono da droga a uma catástrofe narcísica, o ‘exterior’ aparecendo então como uma ameaça permanente, da mesma maneira que as angústias” (1987, p. 85 &– tradução nossa).

 

Religião &– uma saída para a toxicomania?

Existem muitos defensores da prática da redução de danos no tratamento dos toxicômanos. Bastos é um deles, e assim escreve sobre isto:

Usuários problemáticos e não-problemáticos das diversas substâncias psicoativas sempre existiram e sempre existirão no horizonte do humano, e tantos mercados existirão e serão criados desde que as necessidades que engendram o consumo se desloquem para novos produtos, por força da dinâmica social espontânea ou por força das injunções jurídicas, policiais ou de outra natureza (1994, p. 72 &– grifos nossos).

Seria possível supor que a busca por uma determinada religião seja uma espécie de deslocamento ao qual este autor se refere? E em relação a essas “necessidades que engendram o consumo”, estaria ele se referindo a um funcionamento psíquico típico, sem possibilidade de mudança? Ou seja, a um funcionamento relacionado às características profundamente enraizadas no sujeito, por que não dizer às necessidades mesmo? Afinal, pelo que se discutiu acima, já se pode perceber que há certa dificuldade para esses sujeitos dependentes transitarem pela esfera da demanda e do desejo. Logo, sua única saída possível seria um deslocamento que fosse conveniente a suas necessidades, o que parece coerente com a substituição da droga pela religião.

De Félice apresenta um convicto ponto de vista relacionado a essa problemática: “nós nos acreditamos então estar autorizados a repetir mais uma vez que a solução para o problema das intoxicações deve ser procurada no âmbito religioso” (1936, p. 77 &– tradução nossa). Baseado em suas observações sobre as semelhanças profundas entre os efeitos das substâncias tóxicas e aqueles produzidos pelos rituais religiosos, o autor escreve:

Estes [os fatos] atestam inicialmente que, no domínio religioso, não é suficiente “tapar o sol com a peneira” para suprimir as necessidades profundas, que deram origem à religião em si mesma. Eles [os fatos] provam igualmente que se privamos o homem dos alimentos espirituais que lhe são necessários, ele se volta fatalmente na direção dos produtos de substituição, dentre os quais os tóxicos intervêm em grande parte (p. 88 &– tradução nossa).

Esta passagem parece destacar a existência de uma espécie de deslocamento da toxicomania para o fanatismo religioso, ou vice-versa, com a finalidade de manter o movimento de satisfazer as necessidades desses sujeitos dependentes, ao invés de anulá-lo. Percebe-se aqui uma equivalência funcional entre os tóxicos e as religiões quando o autor fala do “alimento espiritual” como uma espécie de prevenção para as toxicomanias. Ao retirá-lo, fatalmente o sujeito buscaria outros “produtos de substituição, dentre os quais, os tóxicos”.

Dessa forma, conclui-se que se for considerado uma saída para a toxicomania o fato do sujeito se manter abstinente das drogas, obviamente a religião seria, sim, uma alternativa. E considerando a lógica da redução de danos, parece mesmo que a religião é uma das possibilidades mais eficazes, pelo fato do sujeito nela encontrar uma resposta para suas necessidades profundas, diminuindo, assim, as probabilidades de voltar a consumir drogas.

No entanto, se o objetivo fosse ir mais além da abstinência das drogas, no sentido de propiciar ao sujeito uma autonomia possibilitadora de um questionamento do seu estado de dependência (conforme conceituado por Ingold), parece então que a saida religiosa não seria indicada. Ela estaria mantendo o mesmo funcionamento de dependência a partir da substituição da dependência de um objeto (da droga) pela dependência de outro (da religião).

Resta então uma pergunta: de que tipo de saída se está falando acima ao se destacar a autonomia para pensar a dependência? Na saída pelo tratamento analítico! Freud escreveu em Análise terminável e interminável:

Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter humano em benefício de uma “normalidade” esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que foi “completamente analisada” não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa (1937, p. 266-267).

Logo, não se trata de proporcionar ao indivíduo o fim de todas as suas angústias e conflitos, mesmo porque isso seria impossível. O que Freud está falando aqui é que o objetivo da análise nada mais é do que fortalecer as capacidades egóicas dessa pessoa. E de que se trata esta força do ego? Lacan responde: “o ego nunca é apenas o sujeito, (...) ele é essencialmente relação ao outro, (...) ele toma seu ponto de partida e de apoio no outro. É a partir deste ego que todos os objetos são olhados” (1954-55, p. 224). Logo, essas funções egóicas fortalecidas dizem respeito às possibilidades do sujeito pensar suas relações cotidianas com o outro, com o mundo. E para tal, pressupõe-se que também estará livre para experienciar o sofrimento produzido pelo contato com suas limitações, com sua solidão e com sua própria imperfeição.

Seria possível dizer então que houve uma mudança profunda nos toxicômanos que estão buscando uma saída para a toxicomania na religião?Obviamente que a mudança de hábito é visível ao se trocar a droga pela religião. Mas e quanto ao funcionamento psíquico profundo? Houve alguma mudança nesse funcionamento? Freud assim responde este questionamento:

a necessidade sexual, uma vez que tenha sido despertada e satisfeita por um longo período, não pode mais ser silenciada; pode apenas ser deslocada por outro caminho. Aliás, o mesmo se aplica a todos os tratamentos para quebrar um vício. Seu sucesso será apenas aparente na medida em que o médico se contentar em privar seus pacientes da substância narcótica, sem se importar com a fonte da qual brotava sua necessidade imperativa. (...) Nem todos que têm oportunidade de tomar morfina, cocaína (...) por algum tempo, adquirem dessa forma um “vício”. Uma pesquisa mais minuciosa mostra usualmente que esses narcóticos pretendem servir &– direta ou indiretamente &– como substitutivo para uma falta de satisfação sexual; e, quando a vida sexual normal não pode mais ser restabelecida, podemos prever, com certeza, uma recaída (1898, p. 302-303).

Pelo que se lê acima, pode-se entender que, segundo Freud, enquanto o objetivo do tratamento for apenas privar o paciente da droga, sem questionar e pensar “a fonte da qual brotava sua necessidade imperativa” de tóxico, se poderá “prever, com certeza, uma recaída” do paciente.

Freud não coloca então a ênfase em privar o paciente da droga, mas sim na reflexão sobre a pulsão que o leva a utilizá-la. Conseqüentemente, o tratamento da toxicomania não poderá ser feito apenas por meio da retirada do tóxico. Será necessário pensar a fonte do problema: a falta da satisfação sexual. Novamente aqui se deve entender essa satisfação sexual como a capacidade do indivíduo de investir e pensar em um verdadeiro objeto de amor, seu autêntico objeto sexual.

Lacan vai mais além Freud ao falar sobre término de análise. Ele escreve:

É disso mesmo que se trata, ao termo da análise, de um crepúsculo, de um declínio imaginário do mundo, e até de uma experiência no limite da despersonalização. É então que o contingente cai &– o acidental, o traumatismo, os obstáculos da história &– E é o ser que vem então a se constituir (Lacan, 1953-54, p. 265).

Assim, além de estar mais avisado sobre sua maneira de se posicionar no mundo, de se relacionar, de lidar com sua própria imperfeição, o sujeito está, ao fim da análise, ciente de sua história, do lugar que lhe fora outorgado, cabendo somente a ele escolher se responderá deste lugar ou não. Por isso uma experiência no “limite da despersonalização”, como fala Lacan. Pois tudo aquilo que ele acreditara, tudo que lhe fora dito, é passível de ser questionado; aquilo em que se acreditara ser, já não é mais. Será, então, nessa desilusão essencial que se fundará a possibilidade de aceder ao verdadeiro amor objetal e romper com os hábitos masturbatórios narcísicos, intoxicantes e dependentes.

Mesmo que se considere, então, que ao se tornarem fanáticos religiosos os toxicômanos não “saíram” efetivamente da posição narcísica arcaica em relação ao objeto primordial de masturbação do qual dependem, há que se levar em conta que, apesar de tudo, algumas mudanças provavelmente de fato ocorreram. E essas mudanças possivelmente não remetem apenas à esfera do comportamento. Sem dúvida houve uma redução de danos quando a toxicomania foi transformada em fanatismo religioso. Também terá ocorrido alguma mudança na economia narcísica, alguma redução no grau do investimento narcísico em nome da libido objetal. É bem possível que a quantidade de investimento na libido narcísica seja menor no fanatismo religioso do que na toxicomania. Pois pelo menos o fanático religioso, em sua “irmandade de religiosos”, apesar de continuar investindo narcisicamente, o faz em seus semelhantes humanos, seus objetos-narcísicos, não mais no objetodroga. Conseguindo conviver dentro de uma comunidade humana, possivelmente o fanático religioso tome contato com regras a cumprir, com limites que não podem ser ultrapassados, com uma objetalidade maior do que se estivesse investindo prioritariamente nos efeitos físicos da droga em seu corpo.

 

Conclusão

Se for considerada a saída da toxicomania como sendo o comportamento de se abster da droga em favor do fanatismo religioso, é óbvio que a religião seria uma saída para a toxicomania. No entanto, o objetivo deste trabalho não foi enfatizar a ótica comportamental. A partir de uma ótica psicanalítica, destacou-se que, além da esfera comportamental, existiriam semelhanças entre o toxicômano e o fanático religioso, ambos caracterizados pelo excesso de investimento no “narcisismo masturbatório auto-erótico” em detrimento do investimento em um verdadeiro objeto sexual de amor.

Admitiu-se também que, na passagem do abuso de drogas para o fanatismo religioso ocorreria possivelmente uma diminuição no grau do investimento narcísico, o que permitiria diferenciar o toxicômano do fanático religioso. A redução de danos da toxicomania ocorreria então nessa sua transformação em fanatismo religioso.

 

Referências

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Endereço para Correspondência
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recebido em 21/04/06
versão revisada recebida em 20/04/07
aprovado em 09/05/07

 

 

Victor Eduardo Silva Bento
Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Universidade Paris 7); Professor do Departamento de Psicologia (UFPR, 1984-2005); Diretor do CET (UFPR, 19992005); Professor do Departamento de Psicometria do Instituto de Psicologia da UFRJ.

1. Este trabalho foi retirado da Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em Psicologia (UFPR) da primeira autora, sob a orientação do segundo autor (Guimarães, 2001).