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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.12 no.23 São Paulo Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

Extrair sentido, traduzir, interpretar: um paradigma na clínica psicanalítica com a criança autista

 

Extracting meaning, translating and interpreting: a paradigm in the psychoanalytic treatment of the autist child

 

 

Maria Izabel Tafuri I; Gilberto Safra II,III

I Universidade de Brasília/UnB; Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise/UnB
II Instituto de Psicologia da USP
III Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP; Laboratório de Estudos da Transicionalidade

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na década de 30, Klein demonstrou a eficácia das interpretações no caso do pequeno Dick estabelecendo um paradigma clássico na psicanálise com crianças autistas: as interpretações de gestos pouco representativos são essenciais para a criação da relação transferencial com uma criança ensimesmada. Este texto pretende discutir as implicações do paradigma kleiniano na clínica psicanalítica contemporânea a partir do contexto histórico no qual ocorreu a análise de Dick e da evolução do pensamento psicanalítico a respeito da clínica com a criança autista. Chega-se à conclusão de que a clínica psicanalítica com a criança autista pode ser pensada para além da técnica clássica - as interpretações.

Palavras-chave: Autismo; Psicanálise; Interpretação; Transferência; Holding.


ABSTRACT

In the 30’s, Klein described the efficiency of interpretations in little Dick’s case, establishing a classic paradigm in the psychoanalysis with autistic children: the interpretation of almost unrepresentative gestures is essential for the development of a transference relationship with the self-absorbed child. This paper seeks to discuss the implications of the Kleinian paradigm in the contemporary psychoanalytic treatment with children, based on the historical context of Dick’s analysis and the evolution of psychoanalytic thought on the treatment of autistic children. The conclusion arrived at, is that the autistic child’s psychoanalytic treatment can be thought of beyond interpretations.

Keywords: Autism; Psychoanalysis; Interpretation; Transference; Holding.


 

 

A clínica psicanalítica com a criança autista tem como seu primeiro registro o caso clínico de um garoto de quatro anos, Dick, publicado por Melanie Klein em 1930. À época, a síndrome do autismo infantil precoce ainda não era conhecida, fato que somente veio a ocorrer na década de 1940, com Léo Kanner. Mas a noção de autismo, sim, desde sua descrição original por Bleuler em 1911, ao publicar Dementia Praecox oder Gruppe der Schizophrenien, livro que se tornaria um clássico da psiquiatria.

O pequeno Dick fora diagnosticado pelo psiquiatra, Dr. Forsyth, como demente precoce, e em seguida, encaminhado a Melanie Klein com o pedido de tratamento psicoterápico, conforme a recomendação do médico. Klein percebeu que o caso de Dick era similar, mas não se enquadrava completamente nas classificações de demência precoce de Kraepelin nem na de esquizofrenia de Bleuler. Segundo a autora, a ausência de pensamentos fantasiosos nas brincadeiras de Dick refletia uma característica impressionante e distinta de outros casos já relatados de crianças ensimesmadas.

Para a psicanalista, seria natural imaginar a impossibilidade de analisar Dick, devido à ausência da fala, a falta de relação afetiva, o ensimesmamento e o desinteresse pelos brinquedos. No entanto, Klein observou que o simbolismo, revelado por detalhes do comportamento da criança, seria o bastante para dar início ao tratamento do pequeno garoto. Klein (1930) considerou a possibilidade de analisar Dick por meio da técnica do jogo, que naquele tempo estava sendo empregada em crianças neuróticas. Dessa forma, conferir sentido simbólico ao comportamento generalizado de uma criança ensimesmada passou a ser designado por Klein uma ação interpretativa essencial. Assim foi criado o modelo kleiniano de interpretação na clínica com crianças, que acabou por constituir um pilar de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria e da clínica psicanalítica.

Com relação ao caso Dick, vale a pena sublinhar duas observações importantes feitas por Klein. A primeira, que o garoto não desenvolvera o simbolismo. Em parte porque lhe faltava uma relação afetiva com as coisas de seu ambiente, às quais era quase completamente indiferente. A segunda, que a mente de Dick poderia ser descrita como vazia de símbolos e fantasias. Por isso, Klein concluiu que o desinteresse de Dick era resultado da falta de relação simbólica da criança com os objetos da realidade. Frente ao obstáculo fundamental da análise de Dick – a falta de relação simbólica com as coisas –, Klein resolveu fazer contato com a criança por meio de um jogo criado por ela mesma, a partir do interesse específico de Dick por trens e estações.

Klein relatou que o garoto começara a apresentar sinais de angústia e dependência já na terceira sessão do tratamento. Naquele momento, houve o aparecimento de ansiedade acompanhada de sentimento de dependência, primeiramente para com ela, a analista, e a seguir, para com a babá. Ao mesmo tempo, ele começara a se interessar pelas palavras tranqüilizadoras" e pelos brinquedos, o que indicava a ultrapassagem do obstáculo fundamental da análise do pequeno: o surgimento dos sinais de angústia, os jogos, as brincadeiras fantasiosas e a relação transferencial com a analista. A partir daí, a análise tomou o curso natural, como acontece com outras crianças.

Klein concluiu que as "palavras tranqüilizadoras", provenientes da interpretação da angústia mal simbolizada, haviam permitido ultrapassar o obstáculo fundamental da análise do garoto. A autora constatou que "à medida que Dick ia aumentando seu interesse pelos objetos, simultaneamente enriquecia seu vocabulário, pois começava a demonstrar interesse cada vez maior não só pelas coisas em si, mas pelos seus nomes" (Klein, 1930, p. 243).

Quanto aos resultados da análise de Dick, Klein descreveu que o garoto, depois dos seis primeiros meses de tratamento, já assumira novas atitudes para com a babá, os pais e a analista ? ele podia demonstrar uma relação afetiva prazerosa com todos eles, e ao mesmo tempo, apresentar sinais de angústia no contato com pessoas estranhas. Ou seja, Dick havia adquirido a possibilidade de expressar seus desejos: ser compreendido, amado e desejado, sentimentos que antes eram nulos.

Para compreender a técnica da interpretação do jogo como essencial na análise de crianças, deve-se levar em conta o forte desejo da analista de "curar" o pequeno Dick, que pode ser entendido no contexto histórico no qual se deu o tratamento. Para Klein, estabelecer uma relação analítica com Dick foi muito mais do que realizar uma simples análise. Ela enfrentou vários desafios, principalmente o de tratar uma criança ensimesmada, diferente de todas as outras que conhecia. Em verdade, Klein estava fortemente motivada para estabelecer um método novo, pelo qual lutava bravamente para validar no contexto institucional da psicanálise. E mais, com tal método buscava comprovar a teoria do símbolo, sendo o caso Dick a comprovação de suas conclusões teóricas.

 

A evolução da noção de autismo no contexto psicanalítico

A clínica psicanalítica com a criança autista foi tradicionalmente desenvolvida a partir de um eixo básico: atribuir sentido ou valor significante e interpretar os comportamentos gestuais e sonoros do infans. Essa fórmula, uma vez contextualizada nas várias psicanálises existentes, produziu diferentes formas de interpretação ? interpretação do jogo (Klein), interpretação das figuras e objetos autistas (Tustin, Meltzer, Haag e Ogden) e interpretação ou tradução dos significantes (Lefort, Dolto, Mannoni, Jerusalinsky e Laznik-Penot). Ou seja, foram criadas diferentes formas de interpretar a criança autista, mas o princípio básico ? a interpretação verbal ? persistiu como ferramenta primordial do psicanalista.

Como mencionado anteriormente, as interpretações iniciais de Klein, no caso Dick, aproximaram-se mais de uma ação de mostrar significado ou significar (Bedeutung ou gesto explicativo de mostrar com o dedo da mão) do que traduzir um texto estrangeiro. Nas palavras de Klein:

desejaria sublinhar que, no caso de Dick, modifiquei a minha técnica habitual.
Em geral, eu não interpreto o material até que ele tenha encontrado expressão
em várias representações. Neste caso, entretanto, onde a capacidade de
representá-lo estava quase inteiramente ausente, senti-me obrigada a fazer
minhas interpretações à base de meu conhecimento geral, sendo as
representações do material de Dick relativamente vagas (1930, p. 273).

Dessa observação, surge naturalmente uma pergunta: o que levou Melanie Klein a se sentir forçada a interpretar uma criança que não brincava e quase não falava? E mais, se o pequeno garoto não apresentou o material clínico usual ao analista ? o jogo e a transferência ? por que a analista precisou criá-los? Como o pequeno paciente não havia trazido o material clínico usual à interpretação (o jogo e a transferência) no princípio do tratamento, Klein se incumbiu de apresentar o jogo simbólico à criança, não esperando a emergência de um material clínico mais representativo. Esse panorama clínico começou a ser criticado na década de 50 com os trabalhos de Tustin, Lefort, Dolto, entre outros. Influenciada pelas teorias de Klein, Winnicott e Bion e pela clínica com crianças autistas, Tustin teceu considerações sobre a técnica kleiniana da interpretação do jogo quando aplicada à criança autista. Para ela, as palavras do analista são percebidas pela criança autista como um emaranhado de sensações, entre elas, a sensação de ser tocada pela palavra.

Tustin se referiu à necessidade do analista ter um cuidado redobrado com as palavras a serem proferidas na clínica com a criança autista. A autora observou que no estado encapsulado, autista, a "transferência é dirigida para dentro do terapeuta". As experiências, geralmente chamadas de contratransferências, podem ser vistas, segundo ela, como formas primitivas de relacionamentos objetais. O analista que é levado a abraçar e confortar a criança em demasia pode impedir que ela perceba o outro fora de seus controles mágicos, pois a criança encapsulada tende a sentir que o analista faz parte de seu corpo e está sob seu controle.

A constatação de Tustin sobre a função da palavra na clínica com a criança autista traz para a pesquisa em psicanálise uma questão importante sobre a interpretação: a função da palavra no tocante à sensação que ela produz na relação com o outro. O que muda de forma significativa a vertente da pesquisa psicanalítica tradicionalmente marcada pelo sentido da palavra na tradução da linguagem do inconsciente.

Tustin (1972) considerou a transferência infantil o mais importante agente de transformações, mas advertiu que as interpretações prematuras de transferência podem também se transformar em obstáculo ao tratamento. As interpretações podem ser intrusivas à criança autista se realizadas sem nenhuma base para elas. Isso porque, segundo a autora, essa patologia surgiu de uma defesa relacionada a uma mãe "não-eu", sentida como cheia de dureza, aspereza, irritação, escuridão e coisas desagradáveis. A situação de transferência não pode ser estabelecida apenas pelo uso de interpretação, concluiu Tustin na década de 1970.

Em 1975, Donald Meltzer publicou um trabalho extenso sobre o tratamento psicanalítico de crianças autistas a partir do referencial teórico de Klein, Tustin, Winnicott e Bion. Nessa publicação, intitulada Explorations in Autism, o autor considerou que o pensamento da criança autista é atraído, de forma desordenada, pela percepção dos objetos, as qualidades visuais, a audição dos sons, a experiência corporal com os objetos, o paladar dos alimentos etc. A criança autista não consegue ter uma atenção dirigida para o objeto em si; ela é atraída por características visuais, olfativas ou auditivas, e o reconhecimento do objeto fica temporariamente suspenso. Nas palavras de Meltzer (1975): a criança autista demonstra uma estrutura mental sem vida mental (...), "uma estrutura desmantelada (dismanthing) do ego-id-superego, incapaz de se ligar a outros acontecimentos mentais" (p. 19).

Segundo Meltzer, o desmantelamento é diferente dos processos de clivagem, pois estes empregam impulsos destruidores com a finalidade de atacar os vínculos. O desmantelamento parece ocorrer de forma passiva; consiste em deixar os vários sentidos, internos e externos, se ligarem às qualidades do objeto mais estimulante no momento. Assim, o objeto não é percebido como um todo. Essa dispersão parece produzir o desmantelamento do self como aparelho mental. Nas palavras do autor:

Seria necessário ao terapeuta ser capaz de mobilizar a atenção da criança,
suspensa no estado autístico, para levá-la ao contato transferencial. Para este
fim, seria necessário continuar a interpretar o estado de transferência que
precedia à queda no autismo e, ao mesmo tempo, utilizar as técnicas
apreendidas intuitivamente, de uso da voz, da atenção e da postura. Estas
últimas incluíam um grau de permissividade em relação ao contato físico pelo
toque, o olhar, o cheiro e o paladar, que normalmente não se tolerava
facilmente no decorrer de uma análise de criança (p. 23).

Como se pode ver, Meltzer sublinhou a importância da relação não-verbal na relação analítica com uma criança autista. Apesar disso, ele continuou a defender o uso da interpretação verbal na clínica com a criança autista como ferramenta indispensável ao analista. Nesse sentido, tanto em Meltzer quanto em Tustin pode-se ver que o paradigma kleiniano sobre o papel imprescindível da interpretação verbal na criação da relação transferencial permaneceu inalterado na clínica psicanalítica com a criança autista.

As conclusões de Meltzer e Tustin confrontadas com o paradigma kleiniano levam às seguintes indagações. Considerando-se, por um lado, a ausência de um material simbólico a ser interpretado, e por outro, a importância dos elementos sensórios da palavra, por que permanecer no lugar de analista intérprete de representações vagas? Se o tom da voz do analista foi considerado elemento importante na relação analítica com a criança autista, seu uso não seria suficiente para a criação da relação transferencial?

A natureza da relação transferencial com a criança autista pode ser compreendida para além do paradigma kleiniano, desde que se retome a real investigação psicanalítica: a condição do analista de estar sempre aberto para o novo. Como se pôde ver, Tustin e Meltzer deram exemplos de interpretações em que enfocaram a importância do vínculo sensorial não-verbal estabelecido entre a criança autista e o analista. E mais, chamaram a atenção para a função da voz do analista na relação analítica com a criança autista, para além do sentido da palavra. Apesar disso, a interpretação verbal continuou a ser enfocada como essencial à criação da relação transferencial com a criança autista. O esforço aqui é o de compreender o fenômeno da transferência para além do enfoque causal estabelecido entre interpretação e transferência.

 

Extrair sentido, traduzir, interpretar: é possível ir além?

Mais recentemente, Thomas Ogden (1986) desenvolveu a noção de posição autística-contígua (position autistic-contiguos) para descrever uma organização psicológica mais primitiva do que aquela descrita por Melanie Klein (posição esquizo-paranóide). Segundo o autor, a posição autista-contígua está associada ao modo mais primitivo de atribuir significado à experiência do self. A posição autística-contígua é uma "subdivisão" (underbelly) da posição esquizoparanóide, é pré-simbólica, dominada pelo registro das experiências sensoriais, particularmente as sensações provenientes da superfície da pele.

A posição autística-contígua "caracteriza-se por sua própria forma particular de relação de objeto, no qual o objeto é uma experiência sensorial (particularmente na superfície da pele). Tal experiência sensorial é uma experiência de ser-sensação (being-in-sensation)" (Ogden, 1986, p.169). Influenciado pelo pensamento de Tustin sobre os objetos autísticos e as formas autísticas, Ogden reconheceu na clínica as formas que provêm do toque suave das superfícies e provocam impressões sensoriais na superfície cutânea do corpo. Em suas palavras,

Uma bola de borracha não é um objeto redondo que percebemos com a visão e
o tato; é a sensação de uma área (os primórdios de um lugar) de maciez firme
que se cria quando o objeto entra em contato com a pele. Formas autísticas são,
predominantemente, experiências de objetos macios (desprovidos de qualquer
sentido de "coisidade") e de substâncias corporais (por exemplo, saliva, fezes,
urina). Tais experiências primitivas "relacionadas com objetos" (experiências
de contigüidade de superfícies) são reconfortantes e calmantes por natureza. (p.
136)

Nessa mesma linha de pensamento, Geneviève Haag (1990) considerou que o setting analítico com a criança autista deveria ser estabelecido com a caixa de brinquedos habitual, acrescida de mais alguns objetos, como embalagens, balões, piões, caixa de jogos construtivos de etapas primitivas etc. A estabilidade do quadro espacial e temporal oferecidos pelo consultório do analista é essencial para se trabalhar com os níveis arcaicos da criança, pois, segundo Haag, não se pode esquecer que os elementos arquitetônicos e os móveis são equivalentes simbólicos do Ego corporal. Para a autora, a criança autista tem uma organização espacial que não permite a projeção.

Segundo a autora, no plano da transferência, deve-se levar em conta os modos de identificação precoce no quadro das relações ditas de objeto parcial; no plano da contratransferência, torna-se necessário ampliar o conceito, pois ocorre um jogo de "projeções identificatórias e de difusões ou contaminações adesivas" (Haag, 1990, p. 78).

Haag utilizou essa expressão para demonstrar como o analista de uma criança autista necessita "reparar suas respostas tônicas, sensoriais e possivelmente alucinatórias, eventualmente somáticas e sociais, no sentido de ser tocada em zonas profundas do ego corporal e grupal, uma parte que contém nossa identificação adesiva normal e eventualmente patológica" (p. 78).

Apesar de suas observações, Haag considerou a interpretação do analista a ferramenta indispensável à dissipação das angústias do ego corporal, para que a criança possa se sentir contida. Para ela, torna-se necessário combinar as sensações de tato das costas, o envelope sonoro e as sensações de proximidade com a penetração do olhar/psíquico. A interpretação da contratransferência é importante para levar a criança a se sentir mais segura e reconhecer os afetos.

Em síntese, os autores referidos até esse ponto, Tustin, Meltzer, Ogden e Haag enfatizaram o papel das ações do analista referentes ao tom de voz, gestos e ambiente do setting na relação transferencial com criança autista. A clínica descrita por Tustin, Meltzer e Haag permite abrir uma vertente de pesquisa que, segundo Ogden, não é muito reconhecida no contexto psicanalítico: as interpretações transferenciais, transmitidas ao analisando por meio de ações interpretativas não-verbais do analista. O conceito de ações interpretativas elaborado por Ogden diz respeito "à comunicação que o analista faz ao analisando de sua compreensão de um aspecto da transferência-contratransferência, por intermédio de uma atividade outra que não a simbolização verbal" (1986, p. 104).

Um exemplo de ação interpretativa do analista é encontrado em Gilberto Safra (2005), em sua tese de Livre-Docência intitulada A face estética do self, na qual o autor demonstrou a eficácia das ações interpretativas, para além da decodificação e tradução, no tratamento de um rapaz autista de 15 anos chamado Ricardo. Conforme as palavras do autor:

Ele não conseguia se comunicar nem com palavras nem com brinquedos. Sabia
algumas palavras que pareciam ser importantes mais pelas suas sonoridades do
que pelos seus significados. Eram freqüentes a ecolalia, o balanceio do corpo e
os risos sem contexto (...). As diferentes tentativas de interpretação frente ao
que ocorria nas sessões eram infrutíferas (...). A minha fala entrava na
circularidade da ecolalia. Em uma sessão em que o desânimo me acompanhava,
disse-lhe alguma coisa tentando mais uma vez fazer uma intervenção. Ele a
repetiu, como sempre, mas algo, pela primeira vez, chamou-me a atenção: não
se tratava de uma mera repetição, a melodia da frase que ele dizia era diferente
da melodia de minha fala. Era uma melodia que eu reconhecia ter ouvido ele
usar inúmeras vezes. Fiquei perplexo com o que eu estava observando! Pensei:
aí está ele ? na melodia. Cantarolei a melodia que ele tinha usado, sem utilizar
as palavras da frase. Ele me olhou, pela primeira vez, fixamente nos olhos,
sorriu, bateu palmas e emitiu uma outra melodia para que eu a repetisse.
Devolvi-lhe a melodia e, em resposta, ele pulou alegremente pela sala, criou
uma outra melodia e o jogo se repetiu. Estávamos nos comunicando!
Estabelecia-se o objeto subjetivo (p. 28).

Safra comentou não ter percebido, no início, que na melodia apresentava-se o que potencialmente poderia constituir a relação transferencial: "a sonoridade da fala ecolálica de seu paciente autista. Nas palavras do autor: a sonoridade era a maneira peculiar deste garoto criar o objeto subjetivo" (p. 31). Na medida em que o analista pôde repetir o perfil sonoro que Ricardo emitia, era como ecoar a singularidade da existência dele.

O terrível, segundo Safra, "é emitir um som sem que ele jamais seja ecoado por outro ser humano, o que significa perder-se em espaços infinitos, aniquiladores de qualquer registro de vida psíquica" (p. 31). Ele concluiu que "ecoar a sonoridade era possibilitar que o paciente encontrasse ou reencontrasse a sua criatividade primária, era o estabelecimento do objeto subjetivo que daria ao paciente a condição de encontrar o gesto criador, o suporte para o surgimento de uma vida pulsional pessoal" (p. 32).

Enfim, segundo Safra, a sonoridade foi a maneira de o garoto preservar sua criatividade primária, pois do ponto de vista das concepções de Winnicott, a criatividade jamais é destruída. Como se pode ver, Safra pôde se despir das palavras e encontrar, em sua voz, um elemento indispensável à interpretação de Ricardo. Assim, o paciente reencontrou sua criatividade primária sem a necessidade de ter sido antecipado pelo analista no sentido da significação simbólica, como no caso Dick. Safra permitiu ao jovem paciente se apresentar em sua sonoridade, que por si só era significativa. Nesse sentido, a voz do analista no setting analítico permitiu o advento do sujeito sem a necessária decodificação antecipada.

Também no caso de Maria, apresentado por Tafuri (2003), em sua tese de doutorado orientada por Gilberto Safra, foi priorizada a noção de holding desenvolvida por Winnicott (1960) para pesquisar a relação transferencial com a criança autista. A autora enfatizou a importância do conceito de mãe-holding para a clínica psicanalítica com a criança autista: a forma como o analista oferece seu corpo à criança para que ela possa criar o objeto subjetivo. Essa noção de criação do objeto subjetivo pode ser compreendida na clínica psicanalítica com a criança autista desde que o analista possa ocupar um outro lugar – o do "analista-não-intérprete" (Tafuri, 2003, p. 205). Tafuri chegou a essa constatação a partir do encontro clínico com Maria, uma criança autista de três anos, descrito a seguir.

 

A função da voz no fazer analítico

No início do tratamento de Maria, a ação interpretativa da analista foi a de ecoar os sons da pequena criança nos momentos em que ela se encontrava no "ensimesmamento prazeroso". Nesse tipo de ensimesmamento, a criança ficava mais absorvida com as sensações oriundas de seu corpo, parava de correr pela sala e de jogar as coisas no chão. O sons de seus "grunhidos" eram menos estridentes, os maneirismos com as mãos pareciam ser contemplados por ela e os movimentos do corpo eram ritmados. Segundo a analista, havia nesse tipo de ensimesmamento uma expressão de tranqüilidade e felicidade no rosto da pequena.

Os sons de Maria alcançavam a analista em qualquer ponto da sala de análise, e atravessavam a analista sem que ela pudesse exercer qualquer controle sobre eles. Tratava-se, na verdade, de um ambiente sonoro criado pela criança, que a princípio foi escutado como um texto a ser decifrado, segundo a tradição da escuta psicanalítica clássica. Entretanto, ocorreu uma novidade no encontro com Maria. A analista estranhou a forma automática em que os pensamentos interpretativos lhe vieram à mente. Ela se deu conta de que na verdade não existiam palavras para decifrar aqueles sons anárquicos presentes no "ensimesmamento prazeroso" daquela criança. A analista passou então a imitar os sons da pequena e deixou as interpretações em suspenso, na tentativa de esperar por um material clínico mais representativo.

Na relação transferencial com Maria, a analista tinha que se deixar excluir, se deixar ser vista como um móvel (como sentira Klein, 1930, na presença de Dick), sem atividade psíquica, sem pensamentos, sem palavras. Ou seja, tolerar a experiência de não existir para a criança ? como Tustin (1972) se referiu no caso de John – e também ter paciência para esperar por um material mais representativo para ser interpretado – conforme propõe Winnicott. E o mais significativo para a analista, tolerar a experiência do "não saber" e não ter palavras justas para interpretar. Nessas situações, as considerações de Winnicott (1952) sobre a mãe-holding e a mãe-objeto tiveram uma importância primordial para a analista.

Com Maria, a analista procurou agir como "mãe-ambiente", estava lá com interesse e admiração, para receber os gestos espontâneos de Maria ? os sons e os maneirismos.

A transferência para a "mãe-ambiente" foi estudada também por Ogden (1986): "o analista precisa ter um modelo teórico com o qual possa conceituar não só a natureza das relações entre figuras transferenciais que ocupam a cena analítica, como também a matriz (ou estado básico de vivência) dentro da qual a transferência-contratransferência está sendo produzida" (p. 133).

Segundo Ogden, as concepções de Winnicott sobre a "mãe-ambiente" realçaram a noção analítica da "matriz transferencial". Para Winnicott, o bebê não se relaciona apenas com a mãe como objeto, mas também, desde o início, possui uma relação com a mãe-ambiente. Conseqüentemente, na transferência, não se trata apenas de transferir a experiência dos nossos próprios objetos internos para objetos externos. "Trata-se também ? e isso é importante ? de transferir nossa experiência do ambiente interno, dentro do qual vivemos, para a situação analítica" (p.133).

Como mencionado, no início do tratamento de Maria, a analista escutava os sons provenientes de um corpo inquieto, ligeiro, que não se permitia tocar nem ser tocado. Eram sons que saíam de uma boca pouco vitalizada, fixada em uma mesma posição, em um mesmo movimento. A impressão da analista era de que Maria soava para o nada. Seu rosto era inexpressivo e gélido. Os sons pareciam ser um fluxo enlouquecido de intensidades variáveis, não expressavam necessidades nem sentimentos. Não existiam gemidos nem sons de apelo; havia uma invariância, os sons tinham sempre as mesmas características. Maria parecia ser uma máscara sonora sem corpo expressivo.

Essa imagem sensorial associada à origem da palavra "persona" ? soar através da embocadura de uma máscara (Moses, 1948) ? conferiu um peso ainda maior à impressão da analista: "a forma encontrada por Maria para estar no mundo era soar" através de uma "boca cristalizada". E mais, para ter o senso de existir, ela precisava também tornar tanto a analista-ambiente quanto a analista-objeto cristalizadas, congeladas, sem existência humana, esta capaz de marcar a imprevisibilidade dos comportamentos das pessoas.

Ao se interrogar sobre a escuta dos sons de Maria, a analista percebeu que eles "contaminavam" todo o ambiente da sala, inclusive ela própria. Se por um lado Maria não olhava, não brincava, não mantinha qualquer contato afetivo com a analista, por outro, sua voz preenchia todo o espaço da sala e atravessava a analista atingindo-lhe todo o corpo, de forma implacável. Isto fazia a analista se sentir isolada, mas afetada pelos sons da pequena.

A partir dessa forma de vivenciar o ambiente sonoro criado pela criança pode-se notar a entrega da analista à disformidade e à atemporalidade da sessão analítica, o que Winnicott denominou de nonsense. Nas palavras de Winnicott,

O nonsense organizado é em si uma defesa, assim como o caos organizado é a
negação do próprio caos. O terapeuta que não consegue levar em conta essa
comunicação fica comprometido em uma tentativa vã de descobrir alguma
organização no nonsense, o que tem como conseqüência o abandono, por parte
do paciente, da área de nonsense, em função de uma desesperança de
comunicá-lo. (...) Sem o saber, o terapeuta renunciou ao seu papel profissional,
e fez isso deixando sua habilidade de lado, vendo ordem no caos (1971, p. 55).

Como afirmou Safra no caso clínico de Ricardo,

Estamos frente a fenômenos que iniciam o sujeito na experiência de ser, para
então poder existir como ser humano. Repetir o perfil sonoro que ele emitia era
ecoar a singularidade de sua existência. O terrível é emitir um som sem que ele
jamais seja ecoado por outro ser humano, o que significa perder-se em espaços
infinitos, aniquiladores de qualquer registro de vida psíquica (2005, p. 31).

Safra considerou que no caso de Ricardo, ecoar sua sonoridade seria possibilitar ao paciente encontrar ou reencontrar sua criatividade primária. Para o autor, o trabalho fundamental do analista é acompanhar as vivências psíquicas que se expressam não apenas pela linguagem discursiva, mas "aquelas que emergem através de símbolos estéticos, como símbolos de self, articulados plasticamente no campo sensorial" (p. 21). A interpretação decodificadora não seria a única forma de trabalhar com a transferência, pois ela pode ser utilizada como "campo do aparecimento do gesto que apresenta o self do paciente" (p. 21). Nesse sentido, a sessão será mais um espaço de experiência do que um "lugar de cognição" (p. 21), concluiu Safra.

Ainda no caso de Ricardo, Safra considerou que a voz do analista, cantarolada e sem palavras, serviu como um gesto inaugurador com potencial simbolizante. Uma voz pronta a ser conectada, mais tarde, às interpretações verbais, quando o paciente já tivesse a capacidade de usar símbolos.

Safra se referiu à noção de reflexo especular (Winnicott, 1967), este oferecido a Ricardo por meio dos ecos sonoros da voz do analista. Essa experiência permitiu que o garoto se organizasse ao redor da melodia e da sonoridade e saísse do estado de funcionamento autístico para um outro, no qual tinha a consciência de si e de seu profundo sofrimento. Segundo Safra (2005), Ricardo "saiu da organização defensiva, que o colocava em um estado de vulnerabilidade, para poder recuperar a memória das ansiedades impensáveis" (p. 34).

Como indicado por Safra no caso de Ricardo, e por Tafuri no caso de Maria, é possível estabelecer uma relação transferencial com uma criança autista sem necessariamente reproduzir o paradigma kleiniano, no tocante à decodificação e tradução de ações pouco representativas. Vivenciar o nonsense com a criança autista permitiu que o analista pudesse presenciar as emissões sonoras da criança autista em uma primeira característica: serem um fenômeno sonoro, caótico e criativo.

Enfim, o paradigma kleiniano quando refletido à luz da clínica com a criança autista, para além da institucionalização das escolas psicanalíticas, merece ser criticado no papel conferido à interpretação, como foi visto em Ogden, Safra e Tafuri. Nesse sentido, a transferência é compreendida muito mais como uma "situação transferencial" na qual o analista necessita manter sua habilidade de vivenciar a área de nonsense com a criança autista sem necessariamente ordenar o caos por meio das interpretações. Como foi visto, as ações interventivas do analista referentes ao tom de voz, gestos, o setting e o holding dizem respeito a uma comunicação que o analista faz ao analisando de sua compreensão de aspectos da transferência-contratransferência, por intermédio de uma atividade outra que não a decifração, decodificação e interpretação. É importante sublinhar que a clínica psicanalítica com a criança autista permanece na trilha principal deixada por Freude Winnicott, a de ser soberana em relação à teoria e à institucionalização da psicanálise.

 

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Endereço para correspondência
Maria Izabel Tafuri
SHIN QL 15 / conj. 9 / casa 18 – 71535-295 – Brasília/DF
Tel.: + 55 61 3368-3689
E-mail: mitafuri@unb.br
Gilberto Safra
Entrada dos Carmos, 333 – 06950-000 – Juquitiba/SP
Tel: + 55 11 4682-1296
E-mail: iamsafra@uol.com.br

Recebido em: 22/06/07
Aprovado em: 27/05/08

 

 

Maria Izabel Tafuri

Doutora em Psicologia Clínica (IPUSP); Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia Clínica (UnB); Coordenadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise (Instituto de Psicologia/UnB).

Gilberto Safra

Livre-Docente (IPUSP); Doutor em Ciências (Universidade de São Paulo); Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia Clínica (IPUSP e PUC-SP); Coordenador do Laboratório de Estudos da Transicionalidade.