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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p99-114 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p99-114

ARTIGO

 

A criança, a palavra e o brincar: um enlaçamento clínico

 

El niño, la palabra y el juego: posibles enlaces

 

The child, the word and the play: possible links

 

L'enfant, la parole et le jeu : liens possibles

 

 

Tharso Peixoto SouzaI

IPsicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Docente da Faculdade de Saúde e Humanidades Ibituruna (FASI), Montes Claros, MG, Brasil. E-mail: tharsopeixoto@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Psicólogos e psicanalistas de crianças concordam que o brincar é uma atividade comum nos atendimentos clínicos. Contudo, quais seriam as especificidades dessalínica e qual seria a função do brincar nos atendimentos clínicos? Partindo do campo bibliográfico de autores cuja orientação é a psicanálise lacaniana, este artigo pretende explicar o lugar do brincar no atendimento clínico infantil e sua relação com as especificidades que envolvem a criança, enquanto sujeito do inconsciente atravessado pela palavra. É pelo que diz de si mesma e do mundo a seu redor que a criança pode reconhecer seu próprio desejo em análise, utilizando do brincar como um suporte da cadeia significante. Ademais, o psicanalista de crianças precisa atentar para os novos modos de brincar e sua relação com os novos sintomas, enquanto respostas frente ao real da contemporaneidade, oportunizando uma reflexão acerca de seu fazer na clínica psicanalítica com crianças, sua postura e suas intervenções.

Palavras-chave: criança; brincar; palavra; simbolização.


RESUMEN

Los psicólogos y los psicoanalistas de niños están de acuerdo en que jugar es una actividad común en la atención clínica. Sin embargo, ¿cuáles serían las peculiaridades de esta clínica y cuál sería la función del jugar en la atención clínica? Partiendo del campo bibliográfico de autores cuya orientación es el psicoanálisis lacaniana, este artículo pretende explicar el lugar del juego en el cuidado clínico de los niños y su relación con las especificidades que involucran al niño, como sujeto del inconsciente atravesado por la palabra. Es por lo que dice de sí mismo y del mundo que le rodea, que el niño puede reconocer su propio deseo en el análisis, usando el juego como soporte de la cadena del significante. Además, el psicoanalista de niños debe prestar atención a las nuevas formas de jugar y a su relación con los nuevos síntomas, como respuestas a el real de la contemporaneidad, al proporcionar una oportunidad de reflexionar sobre su clínica psicoanalítica con los niños, su postura y sus intervenciones.

Palabras clave: niño; juego; palabra; simbolización.


ABSTRACT

Child psychologists and psychoanalysts agree that playing is a common activity in clinical attendance. However, what would be the specifics of this clinic and what would be the function of playing in clinical services? Starting from the bibliographic field of authors whose orientation is the lacanian psychoanalysis, this article intends to explain the place of playing in the clinical care of children and its relation with the specificities that involve the child, as a subject of the unconscious transversed by the word. It is by what it says of itself and the world around it, that the child can recognise its own desire into analysis, using of the play as a support of the signifier's chain. In addition, the psychoanalyst of children needs to pay attention to the new ways of playing and their relation with the new symptoms, as responses to the real of contemporaneity, by providing an opportunity for reflection on his doing in the psychoanalytic clinic with children, his posture and his interventions.

Keywords: child; play; word; symbolization.


RÉSUMÉ

Les psychologues et les psychanalystes pour enfants s'accordent à dire que le jeu est une activité courante dans les soins cliniques. Cependant, quelles seraient les spécificités de cette clinique et quelle serait la fonction de jouer dans les soins cliniques ? Partant du champ bibliographique d'auteurs dont l'orientation est la psychanalyse lacanienne, cet article entend expliquer la place du jeu dans les soins cliniques de l'enfant et son rapport avec les spécificités qui impliquent l'enfant, comme sujet de l'inconscient traversé par la parole. C'est par ce qu'il dit sur lui-même et sur le monde qui l'entoure, que l'enfant puisse reconnaître son propre désir dans l'analyse, en utilisant le jeu comme support de la chaîne signifiante. Par ailleurs, le psychanalyste des enfants doit prêter attention aux nouveaux modes de de jouer et à leur relation avec les nouveaux symptômes, comme réponses au réel de la contemporanéité, en offrant l'opportunité de réfléchir sur votre clinique psychanalytique avec les enfants, votre posture et vos interventions.

Mots clés: enfant; jeu; parole; symbolisation.


 

 

Desde as concepções iniciais de Freud, a criança da psicanálise se apresenta marcada pelo inconsciente, o qual incide sobre ela com sua dinâmica pulsional e suas formações. Trata-se de uma criança ativa e atravessada pela linguagem e quea teorização freudiana, assume a nomeação de pequeno perverso polimorfo (Freud, 1905/1982). De sua dimensão de sujeito falante, advêm todos os desdobramentos dos efeitos da linguagem sobre si mesma, sobre seu ser de criança, dentre eles, o desejo – potencial fonte do mal-estar apresentado pela criança na clínica. Por esta razão, pensar a clínica psicanalítica com crianças envolve a importante tarefa de tomá-las em sua dimensão de sujeito, afastando-se de uma concepção na qual a criança é tida tão somente como objeto de alguma interpretação vinda do psicólogo, da escola ou mesmo dos pais.

Ademais, Freud aproxima a criança do adulto quando nos ensina que o inconsciente, sendo atemporal, não amadurece nem se desenvolve, permanecendo na mesma condição encontrada na criança e no adulto, o que ocasiona a máxima de que toda análise é, por natureza, infantil.

Posto isso, é possível pensar a clínica com crianças a partir do modelo da clínica com adultos, uma vez que ambas lidam com o infantil? O modelo é único ou há especificidades no atendimento infantil? Uma vez que há uma necessidade imperiosa de escutá-las em seu desejo, permitindo que ali na clínica as crianças possam expressar-se enquanto sujeitos do inconsciente, o que o analista dispõe como instrumental nesses atendimentos?

É muito comum encontrarmos nessa clínica psicólogos e psicanalistas munidos dos mais diversos recursos lúdicos – brinquedos, material de pintura, colagem, fantoches – os quais são apresentados à criança para que ela brinque na cena do atendimento, crendo-se que, a partir dissoalgo possa se operar, tendo como linha guia a interpretação do profissional sobre o brincar da criança. Neste modelo, é o psicólogo ou o psicanalista quem diz daquilo que sofre a criança. E a criança pode falar daquilo que lhe causa sofrimento? Estaria, assim, o brinquedo ocupando o lugar onde deveria estar o discurso da criança? Nesse contexto, qual seria o estatuto do brincar para a criança e de que forma essa atividade se relaciona à demanda inconsciente do atendimento psicanalítico?

Partindo daquilo que a psicanálise de orientação lacaniana ensina e articulando-a, de modo não exaustivo, a fragmentos clínicos de atendimentos de crianças que realizamos, este artigo pretende refletir sobre o lugar do brincar no atendimento clínico infantil e sua relação com as especificidades que envolvem a criança, enquanto sujeito do inconsciente atravessado pela palavra. Como consequência dessa argumentação, que ora se apresenta neste texto, será possível refletir sobre o fazer de cada profissional na clínica com crianças no sentido de promover, em consonância com cada contexto, as próprias crianças e o saber que elas trazem a respeito de si mesmas e de suas relações.

 

O psiquismo da criança: especificidades

A criança sempre se fez presente nos textos de Freud, seja pela via do sofrimento adulto, seja por suas teorizações acerca do romance familiar e da constituição do psiquismo humano. Contudo, a marca memorável de sua presença no texto freudiano é a desconstrução da representação da criança em sua época, tida como um ser incapaz e ingênuo por natureza. Já nos "Três Ensaios sobre a Sexualidade", Freud (1905/1982) nos apresenta a criança como um perverso polimorfo, atravessada pela sexualidade, indicando assim o efeito da vida pulsional sobre a criança. Ele compreendia que "o corpo da criança, sendo um corpo atravessado pela pulsão (...) é um corpo de desejo" (Ferreira, 2017, p.54). Diante disso, a criança freudiana não é passiva ou inerte, mas um sujeito marcado por um desejo (Morgenstern, Ferreira & Ferreira, 2013). E esse desejo se apresenta diante dos pais, do analista e de si mesma como uma demanda que precisa ser escutada, ainda que a princípio possa parecer incompreensível.

Inicialmente, Freud (1900/1982) compreendia que o psiquismo infantil seria incapaz de produzir algoa ordem de um enigma. Foi em "A Interpretação dos Sonhos" que ele definiu o sonho infantil como aquele que não carecia de interpretação, uma vez que o conteúdo latente e o manifesto se coincidiam, diferenciando-o do sonho adulto; este caracterizado pela complexidade ecolorido de sua construção, o qual, como um enigma, carecia de interpretação. Esse postulado freudiano parecia sustentar a ideia corrente de que o psiquismo infantil é mais primitivo e quese desenvolveralcançaria a plenitude de seu funcionamento. Contudo, uma nota de rodapé de 1925 (Freud, 1900/1982, p.193), acrescentada por Freud à "Interpretação dos Sonhos", assegura que crianças podem ter sonhos de outros tipos, que não somente os infantis, bem como os adultos podem ter sonhos infantis. A conclusão de Freud, portanto, indica que o trabalho psíquico na criança é "intenso e complexo, tal qual damos testemunho do trabalho psíquico no adulto" (Ferreira, 2017, p. 57). Mas, sendo assim, qual seria – se existir – a especificidade da criança em relação ao adulto?

Foi na Conferência XXXIV que Freud (1932/1982) apresentou algumas especificidades da criança, possibilitando uma melhor compreensão da infância. Suas conclusões apontam a importância dos cinco primeiros anos de vida da criança, nos quais se dará a entrada da sexualidade infantil cujos efeitos serão vistos na sexualidade adulta. Outra especificidade está no trabalho de adaptação e tratamento da pulsão dispensado pela criança nos seus primeiros anos de vida frente ao outro social e às exigências da vida em sociedade. Será pelas vias da educação que a criança dará sua resposta a isso.

Ainda em sua Conferência, Freud destaca que tais exigências incidem sobre o eu da criança como um trauma, uma vez que esse eu é imaturo. Acrescenta-se a isso que a criança tem seu funcionamento psíquico diferente do adulto por não apresentar ainda um supereu (Freud, 1932/1982), o que irá ocorrer quando das identificações operadas pelo eu a partir do complexo de Édipo (Freud, 1923/1982).

O que Freud postula é um aparelho constituído de fraturas, de hiâncias e incoerências, ou seja, um aparelho constituído numa dimensão de falta, de ruptura, de cisão, sendo, por isso mesmo instável, e não um aparelho capaz de se fazer maduro e completo com o passar do tempo. (Ferreira, 2017, p.60).

Sendo assim, o psiquismo da criança não está relacionado a um sistema operacional que irá amadurecer à medida que o próprio corpo amadurece, mas diz de "uma estrutura de descontinuidade na qual elementos e ações psíquicas persistem, insistem, retornam" (Ferreira, 2017, p.61).

 

O fort-dá: a invenção do desejo

Avançando no ensino da psicanálise sobre o tema, já em 1920, Freud (1920a/1982) descreve, em seu texto "Além do Princípio do Prazer"suas conclusões a partir da observação de seu neto Ernest, trazendo importantes considerações sobre aquilo que está em jogo no brincar. Ernest jogava seus brinquedos debaixo da cama ou num local onde não poderiam ser vistos, a fim de ver os adultos se abaixando para recolhê-los novamente. Freud considerava isso uma brincadeira incômoda: enquanto a criança brincava, os adultos trabalhavam. A princípio, com cerca de um ano e meio, Ernest produzia um som "o-o-o-o" ao arremessar para longe os brinquedos, ao que sua mãe e Freud compreenderam como sendo o som da palavra alemã "fort" (fora, longe, lá) (Gueller, 2013).

Subvertendo a função do brinquedo, Ernest fazia-os desaparecerem, irem embora, representando assim o estar longe, a ausência, segundo Freud, da mãe que precisava se ausentar para ir trabalhar. A criança não chorava a ausência materna, mas fazia com os brinquedos um jogo especial de fazê-los desaparecer diante de sua visão, repetidamente. Sendo assim, o jogo representava a mãe se ausentando, deixando o bebê. No vazio deixado pela ausência, algo se fez representar pela invenção do jogo (Gueller, 2013; Ferreira, 2017).

Mas, por que o menino repetia uma situação que lhe trazia dor? Ferreira (2017) elucida partir de Lacan, que o jogo assume uma possibilidade de simbolização frente ao real da ausência materna.

o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio. Um fosso em torno do qual nada resta ao sujeito, senão o jogo do salto. A repetição do jogo, inscrita na ordem do autômaton1, é o jogo da repetição significante. (Ferreira, 2017, p.96)

Sendo assim, há uma dimensão real do jogo, aquela na qual o significante não adentrou e que, na lógica da tiquê2, faz-se repetição numa insistência pulsional. Algo da ordem do trauma e ao mesmo tempo da ordem do gozo. Por isso, nem tudo no jogo é passível de interpretação, ainda que caiba alguma interpretação a partir do relato do jogo e dos significantes que se produzem a partir dele.  É na manipulação dos brinquedos que a criança revive e reinventa sua própria realidade (Souza, 2013).

Ernest também costumava brincar de fazer sua imagem desparecer no espelho. Ao ver sua mãe regressar de um dia de trabalho, a criança dizia: "nenê-o-o-o-o" (fort). A identificação narcísica do menino denunciava que ele próprio, comoobjeto da mãe, desaparecia com sua ausência e ressurgia quando ela retornava. Essa função estruturante é, portanto, apresentada: "A identificação permite unificar experiências diversas, experiências de fragmentação corporal, e permite também conservar uma representação do outro, que servirá de base para a identificação do eu (moi), momento que Lacan denomina estádio do espelho3" (Gueller, 2013, p.156).

Na brincadeira da criança, o jogo dá o suporte necessário para que a matriz simbólica vá se constituindo e assim circulem os significantes. É esse ordenamento em palavras do olhar do Outro sobre o sujeito que caracteriza a natureza fundante do brincar frente à dimensão do real, do vazio (Gueller, 2013, Ferreira, 2017). No exemplo de Ernest, fazer sumir sua imagem no espelho, deixá-la ir, aponta para o tratamento que o simbólico tenta dar ao real do vazio onde foi deixado quando da ausência materna. "O que minha mãe deseja além de mim a ponto de me deixar?" pode ser a pergunta que esboça um certo distanciamento do Outro, já na lógica da constituição do sujeito. Alidiante do espelho, a criança brincava de desaparecer e murmurava "o-o-o" - enunciação da ausência, de poder estar longe do olhar materno. Ele faz a cena de desaparecer e reaparecer. Assume o controle sobre a ausência e presença (Gueller, 2013; Meira, 2003).

Localizar-se no desejo da mãe só se torna possível pela via da ausência, da falta da mãe. Sendo assim, a criança se permite questionar sua posição fálica de preencher a falta dela, o que, até este momentopermanecia absolutamente banhada pela alienação do bebê nos significantes maternos, como indica Lacan (1964/2008)4 no seminário 11. Seguindo essalógica, "a criança brinca para tentar construir um 'isto é mim', um 'sou'. Esses jogos que se produzem ao longo do primeiro ano de vida da criança visam à construção do corpo libidinal do narcisismo primário" (Gueller, 2013, p.157). A esse trabalho, Freud nomeava de jogo5. Primeiramente atribuiu-se termo a uma estratégia da criança em conseguir satisfação, prazer, ao ser mergulhada na dimensão da linguagem materna, quando a criança brinca com o som das palavras ainda que nenhum sentido se abstraia disso (Ferreira, 2017).

No texto "A negativa", Freud (1925/1986) esclarece que as ações de engolir e cuspir a comida - assim como o brincar de Ernest diante do espelho - indicavam a tentativa de estabelecer uma representação psíquica do que é "dentro de mim" e do que é "fora de mim", uma vez que, inicialmente, o que é estranho ao eu e o mundo externo são idênticos.

Freud (1920a/1982) continuou observando seu neto enquanto brincava. Porém, Ernest acrescentou algo à brincadeira original: ele jogava seu brinquedo amarrado a um fio, fazendo-o desaparecer ao som das palavras "fort" (fora, longe, lá) e o trazia de volta a sua própria vista com o som da palavra "" (aqui). Um acréscimo fundamental. Através desse movimento de jogar e puxar o carretel, Freud observou que o jogo se completara – nos movimentos de desaparecer e reaparecer. A completude simbólica se firmava na alteridade do estar e do não estar, tendo no recurso da palavra, dos fonemas – fort/dá – seu estatuto de simbolização do que estava em jogo: presença/ausência (Gueller, 2013).

Freud (1920a/1982) observou que inicialmente a criança chorava quando a mãe saía para o trabalho, masuando iniciou o jogo do fort-dáá não chorava mais. Algo foi metaforizado pela criança no ato de brincar:

em conexão com a mais importante cultura da criança, isto é, com a renúncia à pulsão (renúncia à satisfação da pulsão) por ela levada a cabo ao permitir sem resistência alguma a saída da mãe. A criança se ressarcia no ato, colocando em cena a mesma desaparição e retorno com os objetos que encontrava a seu alcance. (Freud, 1920a/1982, p.26)

Nota-se um encadeamento entre esses elementos no brincar: a criança, a metaforização, a repetição, a linguagem, a imagem especular e o fosso do real da ausência materna. Lacan (1953-1954/1981), no Seminário 1, expõe que a palavra representa a renúncia da coisa, isto é, que há uma perda da relação direta com a coisa a partir do advento da linguagem. Sendo assim, na ausência se evoca uma presençacomo visto no caso do jogo do fort-dá, isto é, a palavra assume no jogo a tentativa de reparar aquilo que, na dimensão da perda, não se faz presente, mas insiste em se representar. Ernest renuncia sua satisfação pulsional de estar com mãe, acedendo ao universo simbólico da palavra no brincar, deixando-a ir e trazendo-a quantas vezes desejasse, o que para Freud representava um grande progresso cultural.

Tal progresso se relaciona à posição tomada pela criança frente ao trabalho psíquico operado no brincar. O "fort-dá" tornava a criança ativa diante do inevitável da ausência materna, posto queo arremessar o brinquedo – "fort", ir –stava dizendo "", "eu mando você ir" (Ferreira, 2017, Gueller, 2013). Ao mudar da posição passiva para a ativa, a criança pôde transformar uma experiência penosaarcada pelo desprazeruma experiência de prazer. Isso parece apontar para um certo domínio da criança diante do insuportável da experiência.

Contudo, o mais importante no jogo não é a dominação da criança sobre o desprazer que experimenta, mas sim a repetição como meio de enlaçamento pulsional do objeto. Para uma devida compreensão sobre isso, é preciso retomar o ensino de Lacan (1964/2008) sobre as operações de alienação e separação. Segundo Lacan, o que está em jogo no fort-dá é o processo de separação frente à alienação do Outro primordial. Alienado aos significantes do Outro, a criança só consegue operar o segundo tempo – o da separação – quando algo da ordem do desejo se estabelece nesse circuito. É devido à contemplação da falta no Outro que a separação é possível, produzindo um resto – o objeto a – que faz a intercessão dos conjuntos (sujeito e Outro), objeto que miticamente cobre a falta no sujeito e no Outro.

Há duas faltas em questão nessas operações, como diz Lacan (1964/2008). A falta no sujeito é produzida quando este é intimado pelo Outro a adentrar à linguagem, conferindo-lhe o estatuto de humano na alienação ao S1. A segunda falta se apresenta nas hiâncias do discurso do Outro, das quais é suscitada a questão do desejo do Outro, quando a criança questiona: "que quer de mim?". Por isso, é possível compreender que a ausência, como favorece a emersão do desejo. Gueller (2013) lembra o quanto é comum a situação na qual a criança lança seus porquês aos adultos na tentativa de encontrar ali o lugar onde o Outro vacile, mostre-se resposta.

Tal tentativa de fazer vacilar o discurso adulto pode ser exemplificada o primeiro atendimento de uma criança de sete anos, que vivia uma situação dolorosa de disputa judicial entre os pais, que envolvia troca de ameaças, agressões físicas e ditos que interpretavam a inclinação da criança para um dos lados da disputa. Marcos6 chega falante sem demonstrar apreensão. Ele e o analista decidem brincar com um jogo de cartas em que havia perguntas diversas. Ao perguntar-lhe o que não tinha em seu quarto, Marcos responde: "tenho tudo! Ah! Me lembrei. Queria ter uma 'nurf'!". O analista então lhe pergunta o que é "nurf". "Você não sabe o que é uma 'nurf'? Você não estudou?". Marcos ri do não saber do analista. Este exemplo ilustra que a criança está às voltas com o não simbolizável do objeto perdido instalado na hiância do discurso do analista e que aponta, concomitantemente, para o lugar no qual seu próprio desejo poderá advir – o que tangenciava sua própria questão de que lado da disputa teria que estar. Em outras palavras, o que está em questão para criança, neste recorte clínico, é queo apontar a falta de resposta do analista, a insuficiência de seus estudos para compreender o significado da palavra "nurf", fura o discurso do Outro e desvela-lhe a falta, abrindo assim o campo daquilo que lhe poderá dar consistência de ser: seu próprio desejo. Toda essa operação elucida o ensino de Lacan (1957-58/1999; 1964/2008) quando defende que é frente às lacunas do discurso do Outro, lugar subjetivo onde um dia pôde encontrar a questão do que deseja esse Outro, que a criança se constituiu um dia como um falasser – sujeito atravessado pela linguagem.

Já que a linguagem divide o sujeito e acompanha o brincar, sendo este o suporte da cadeia significante, um objeto cai de suas hiâncias, metaforicamente representado na invenção do brincar de Ernest ao amarrar um carretel com um fio e arremessá-lo. "Assim, se o fort-da indica, para Lacan, o exercício do sujeito na alienação, a queda do carrete irá lhe servir para pensar aquilo de que o sujeito se deve desprender para que se opere a separação, segundo momento constitutivo do sujeito" (Gueller, 2013, p.163). Isso que se desprende da cadeia significante na operação de separação é o objeto a, objeto perdido, causa de desejo, não simbolizável, em torno do qual gira a pulsão, marcando assim toda experiência de vida do sujeito.

Mas o brincar não é do mesmoara todas as crianças. Consideremos, por exemplo, o brincar das crianças psicóticas. Teria a mesma constituição? Alguns autores defendem a incapacidade da criança psicótica de brincar no sentido pleno da palavra, uma vez que seria incapaz de operar a metaforização que ocorre no jogo. Para compreender melhor essa questão, faz-se necessário distinguir o jogo com regras – regido pela metáfora paterna - e o jogo sem regras – marcado pela foraclusão do Nome-do-Pai. Este último como característico do brincar na psicose (Ferreira, 2017). Mas qual seria sua função?

Segundo Ferreira (2017, p.101), "mesmo que seja um jogo bizarro, insistente, aparentemente sem sentido, ele tem uma função de certo apaziguamento pulsional e, porque não, de animação pulsional". Para a autora, o brincar na psicose assume uma função de suplência à ausência de divisão subjetiva da criança. Dentre os exemplos desse tipo de brincar, podem-seincluir os movimentos repetitivos das crianças autistas. Na clínicaom essas criançasorna-se fácil encontrá-las jogando sem a dimensão do outro. Um exemplo: Ana, 3 anos, suspeita de autismo, olha desconfiada para o analistaque conversa com um fantoche. Sem sustentar o olhar, Ana se vira de costasdesinteressada. Contudo, quando o analista se distancia, ela pega um dos fantoches e gesticula-o numa conversa particular, na qual o analista não entra. Na impossibilidade de separar-se, Ana permanece imersa no ideal de completude com o Outro. Como se possuísse o objeto, ela brinca sem demandar do analista, sem fazer-lhe qualquer apelo.  Como alerta Ferreira (2017), o analista deve sempre estar disposto a interrogar o sentido de tais jogos.

 

O brincar, o corpo e o eu

Como já exposto, o jogo tem uma função importante não apenas no tratamento do real com que se depara a criança, mas também como suporte material para o processo interno de constituição do sujeito. Antes mesmo de a criança brincar nos modos do fort, o jogo se apresenta como possibilidade da criação e da extração de superfíciespara representar um corpo - como parte desse processo de subjetivação (Gueller, 2013).

O primeiro momento é aquele em que o corpo do bebê é como uma superfície contínua – sem dentro e fora – com o Outro primordial. Lacan (1949/1998) menciona em seu estádio do espelho um tempo no qual a criança não se reconhece indistinta do outro. É o tempo do eu especular, formado na mirada de um outro. Como na banda de Moebius, uma figura matemática que não tem volume nem interior ou exterior, sendo algo contínuo, a criança e o outro do espelho são indistintos: o outro é a exterioridade do eu. O bebêlambuzandoe papinha o exemplo emblemático desse tempo em que procura simbolizar o corpo. A procura por simbolizar um dentro e um fora em seu corpo erógeno é sustentada por inúmeros jogos, como, por exemplo, aqueles nos quais a criança põe e tira ou tenta encaixar um objeto grande num espaço pequeno sem noção da impossibilidade dessa tarefa (Gueller, 2013).

Num segundo momento, uma nova série se apresenta – são os jogos de borda. São aqueles nos quais a criança explora os limites, as fronteiras. Fazem-se comum, nesse tempo, brincadeiras de se meter em lugares apertados, andar nas beiradas, brincar de cair, dentre outros. Segundo Jerusalinsky (1994) citado por Gueller (2013), tais jogos se constituem na tentativa de limitar a superfície contínuaando-lhe bordas.

O terceiro momento é o do fort, no qual já existe a alteridade do dentro e fora, interno e externo, sujeito e Outro. A criança joga os brinquedossimbolizando a dimensão do fora – fora de mim. Como descrito no estádio do espelho, a partir da imagem especular do corpo unificado com entrada e saída, o eu igualmente se unifica (Gueller, 2013).

Importante observar que os jogos podem assumir sentidos diferentes ao longo da vida da criança. Por esta razão, "devemos estar atentos para não interpretar em função do que vemos, mas antes tentar entender em que momento da estruturação psíquica se encontra a criança e o que ela está tentando simbolizar em cada momento de sua constituição" (Gueller, 2013, p.160). A menina Ana de 3 anos, já citada, passou a brincar de arremessar os objetos que encontrava. No consultório, costumava atirar os brinquedos da caixa pelo espaço afora, divertindo-se. Na escola, descobriu a bolsa da professora e atirou todos os objetos pela salacausando-lhe assombro. Em casa, costumava atirar os biscoitos do pote. Seria apropriado considerar que essasões seriam travessuras da criança ou estaria ela tentando, ainda que tardiamente, simbolizar a alteridade?

 

O enlace da palavra e do brincar na clínica psicanalítica

Sendo algo tão importante na constituição do sujeito, bem como na amarração dos três registros – real, simbólico e imaginário - durante a infância, é praticamente unânime dentre as várias escolas de psicanálise a ideia de que o atendimento psicanalítico de crianças deva considerar o brincar como possibilidade. "Todos concordam que o brincar tem uma função" (Ferreira, 2017, p.91). Mas é preciso cautela em sua instrumentalização. Elevar o brincar à única possibilidade de atuação com a criança na clínica psicanalítica seria um erro, uma vez que essa atividade não exclui o apelo de muitas crianças de simplesmente falar durante os atendimentos. O fazer clínico testemunha sobre as criançasrmurando frases quase inaudíveis, às vezes incompreensíveis, quando estão brincando. E, além disso, elas mesmas podem falar, pondo em circulação seu próprio saber de si, suas ficções e fixações.

O brincar está para a criança assim como a poesia está para o poeta. Em outras palavras, a criança é capaz de criar metáforas com o intuito de ordenar seu mundo de um modo prazeroso, como o artista habitualmente faz. A arte, ainda que capte um fragmento de uma realidade tenebrosa, consegue abstrair a beleza e a emoção do momento. E ela o faz pela via da estética artística. Do mesmo modo, o brincar é a invenção da criança para transformar sua realidade, tratando prazerosamente do que foi perdido e do real que não se inscreve. Por isso, o brincar se constitui em sua atividade mais intensa nesse período de vida que se chama infância (Magalhães, 2013; Ferreira, 2017).

Sendo assim, o brincar assegura o suporte necessário para que a criança encontre a fantasia, dando um tratamento aos efeitos da linguagem sobre seu ser. Seria um grande equívoco instaurar a clínica com crianças como um lugar de brincadeiras somente ou onde um Outro fala por ela simplesmente, reproduzindo aquilo que a alienação sustenta. "Criar metáforas é, pois, um modo que temos, os falasseres, de nos distanciar e nos distinguir dos significantes que nos representam na alienação" (Gueller, 2013, p.166). Portanto, o analista é aquele que oferece seu corpo, sua escuta, para as produções da criança na clínica.

No texto "Associações de uma criança de quatro anos de idade", Freud (1920b/1982) compreende que as indagações de uma menina de quatro anos e suas ponderações se tratam de verdadeiras associações, tais como ocorrem com adultos. E, de fato, a própria clínica psicanalítica com crianças testemunha que elas se utilizam do ambiente analítico para falar, fantasiar, associar. Isso, por sua vez, convoca o analista a uma posição de escuta. Castro (2017, p.119) destaca: "onde o ouvinte falha pode bem ser onde as palavras encontram seu limite". O limite na compreensão daquilo que a criança está comunicando se encontra também na capacidade do analista de suportar a dureza dessa revelação. Trata-se de sua capacidade em acolher a angústia promovida, por vezes, pela ausência da palavra, mas que é comunicada na brincadeira de um modo mais sutil e leve, favorecendoe algum modo simbolização daquilo que for possível. Mas de que modo incide a interpretação do brincar?

Para Melanie Klein (1929)citada por Souza (2013), o brincar é um meio de representação indireta de fantasias, desejos e experiências da criança. Sendo assim, através da brincadeira, a criança pode sublimar mediante a simbolização que o ato enseja, consegue transferir "suas ansiedades, fantasias e culpas para os brinquedos como representantes externos de seu mundo interno" (Souza, 2013, p.130). Contudo, não apenas o conteúdo da brincadeira é importante, mas também o modo como se brinca. Segundo Klein, é preciso que o analista se atente aos detalhes do brincar de uma criança: papéis atribuídos, interrupções, mudanças de atividade, dentre outros (Souza, 2013). Sobre isso, Klein indica que"ao encenar determinadas situações, a criança não só atribui um papel ao analista como põe-no a viver aspectos de sua experiência subjetiva" (Souza, 2013, p.135). A criança projetaara dentro do analistasuas fantasias, medos, angústias. E ela o faz, segundo Klein, através do brincar prioritariamente.

Ferreira (2017) elucida que a concepção kleiniana do brincar envolve também um modo peculiar de interpretação, na qual os detalhes do jogo se tornam importantes e "o jogo com os objetos é tomado como discurso" (Ferreira, 2017, p.99). A dificuldade no método kleiniano, a que comumente se levantam questões, é que há uma universalização do conteúdo interpretativo, tendo o signo como prioridade, apagando (ou negando) o Um do sujeito em questão. Esta advertência já é por si mesma suficiente para se ter cautela quanto a interpretações das ações da criança durante os atendimentos.

Winnicott (1975) defende que uma brincadeira, para exercer sua função aqui exposta, deve ser um fenômeno transicional. Ou seja, "algo que acontece no espaço psíquico que está entre a interioridade e a exterioridade, onde o subjetivo e o objetivo se mesclam num paradoxo fundamental para o desenvolvimento do sujeito" (Castro, 2017, p.123). O objeto transicional permite a experiência infantil de lidar com algo que esteja de fato ausente naquele momento, porém presentificado no objeto com que se brinca, o qual simboliza o objeto primário, o seio materno nutritivo, apaziguando a angustia infantil. "O fenômeno transicional só é possível porque conserva virtualmente um caráter relacional" (Castro, 2017, p.125). Nesse ponto é que o analista é convocado como aquele capaz de formar um par analítico ecolher a demanda trazida pela criança, segundo Winnicott.

Para a Psicanálise de orientação lacaniana, a clínica com crianças e com adultos segue o mesmo parâmetro (Morgenstern, Ferreira & Ferreira, 2013). Como o adulto, a criança sonha, produz atos falhos e chistes, além de sintomas. Por esta razão, nos atendimentos com crianças, é possível considerar que o brincar já carregue em si uma certa interpretação operada pelo inconsciente sobre o inconsciente. Não se interpreta o brincar propriamente, uma vez que nele se encontram imbricados os registros do simbólico e do real. Em outras palavras, qualquer interpretação que possa advir do brincar deixará algo de fora. Que interpretação mais caberia senão aquela que se apoia na cadeia significante que advém do brincar?

A interpretação, em Lacan, não opera pela via da significação, mas da equivocação e do corte, sempre no nível do dito e não do comportamento ou da ação. (...) Ela não visa trazer uma significação como resposta, mas um sem-sentido. Não trazer a resposta implica deixar vazio o lugar da causa de desejo. (Ferreira, 2017, p.100)

Na clínica lacaniana com crianças, o importante é a articulação que se dá entre o brincar e o discurso. Quando a criança brinca, cria um distanciamento da demanda do Outro, tendo o jogo como resposta do real. Assim, cabe ao analista fazer do discurso operado em torno do brincar um enigma para a criança (Ferreira, 2017).

Um exemplo clínico: o jogo proposto pelo analista a George, de nove anos, era muito simples. Uma torre de pequenas peças de madeira deveria ser desmontada peça por peça sem que a torre caísse. George, um garoto muito inteligente, bem articulado nas palavras, mostrou-se apreensivo. Foi ao analista porque sofria de uma angustiante fobia de fogos juninos e balões de aniversário, o que logo se revelou como fobia ao barulho do estouro. Diante do jogo da torre, George parecia assustado e inseguro. O analista lhe perguntou o que temia, o barulho das peças caindo sobre a mesa? George respondeu que não tinha gostado daquele jogo elogo em seguidameçou a relatar que tinha criado – como o jogo indicava na montagem da torre – um mundo seu, chamado georgelândia, um lugar sem regras. O analista indagou: "sem regra nenhuma?". Foi quando George respondeu que havia apenas uma regra: nenhuma menina poderia entrar naquele mundo, exceto sua mãe. O analista pergunta se o pai poderia entrar nesse mundo e a criança responde que ele estava lá (nesse mundo de imaginação), mas que seguia uma direção oposta à dele. Ao indagar sobre as regras desse seu mundo, bem como o motivo de o pai tomar uma direção oposta, o analista estabelece o enigma para o menino. Enigma que advém do seu próprio discurso e que lhe possibilita falar de sua relação com a mãe através da identificação ao lado do pai, ainda que o afastasse, como descrito em seu fantasioso mundo. O brincar deu vazão à fantasia que os aproximou – analista e paciente – do tema sobre sua relação com os pais e que apontou uma direção ao tratamento.

O sentido do brincar é considerado, mas sempre no "encadeamento significante produzido pelo sujeito no seu discurso" (Ferreira, 2017, p.100), bem como em seu caráter de gozo frente àquilo que é vivido na relação da criança com o Outro. Algo da ordem do fantasma se apresenta, portanto, no brincar. Mantendo uma relação com a construção fantasmática do sujeito, o brincar assume o estatuto de interpretação diante daquilo que Lacan (1957-58/1999) nomeia como o enigma da castração e do desejo do Outro. É preciso ouvir o que nos diz a criança em seu enfrentamento a esse enigma.

Como no exemplo do fort-dá, "mostramos que, num jogo, é preciso esperar, se possível, as associações verbais da criança, para que os objetos indiquem que função têm e ainda que se mantenha a atenção flutuante, para não fazer dos objetos signos" (Gueller, 2013, p.164). Assim, os brinquedos funcionam como suportes dos significantes. A brincadeira na clínica pode abrir espaço para a construção de uma nova cadeia significante pela criança – a isso deve atentar analista.

Um bom exemplo é apresentado por Freud (1920/1982) ao relatar que seu netoos dois anos, após ser informado de que seu pai havia sido enviado à guerra, brincava de arremessar no chão um brinquedo dizendo: "vai à guerra!". Freud interpretou esse jogo do menino como uma metáfora que simbolizava a rivalidade edípica, acrescentando que ele parecia não se incomodar com a ausência do pai. O jogo do "vai à guerra" dizia do desejo da criança em afastar o pai e assumia um novo sentido. Contudo, é notável como o discurso da criança indica o caminho da interpretação. O Édipo incidindo sobre o desejo incestuoso da criança era experimentado na simbolização do brincar. A ordem lúdica de ir à guerra representava ali um chamamento inexorável ao Nome-do-Pai, o representante da metáfora paterna naquela guerra subjetiva e única vivida pelo menino ante a impossibilidade da realização de seu desejo (Gueller, 2013).

 

Um modo contemporâneo de brincar: o que é possível?

A atualidade, com o enfraquecimento da metáfora paterna, tem produzidoas relações humanascerta fragilidade simbólica, uma quase ausência de palavras. Tal fragilidade se apresenta na dificuldade do brincar como função de metaforização para a criança (Meira, 2003). O que se vê atualmente na sociedade ocidentalm pleno advento de mudanças paradigmáticas, com seus objetos líquidos e fugazes,ma oferta à criança de adentrar no consumo como possibilidade de tamponar a falta pela via do excesso. Nesse caso, diz-se de um excesso – compra-se muito e brinca-se pouco – de brinquedos impessoais, que suportame modo precário construção simbólica que ali deveria existir. "Sintoma social onde prevalece a posição onde ter é a insígnia de ser, em torno do qual se fundem laços que são marcados pelo vazio simbólico" (Meira, 2003, p.52).

São ofertas que já pressupõem um certo fazer – nada de espontâneo que possa favorecer a criação infantil. "Trata-se de uma variedade de objetos que procuram, com toda evidência, antecipar-se a qualquer criação; nossa industriosa sociedade coloca em ato seu princípio: eu o fabriquei antes de você poder imaginá-lo" (Jerusalinsky, 2003, p.38). Essa lógica capitalista vem dificultando que a criança invente suas saídas, seus jogos.

Vê-se hoje uma dedicação intensa a manter a criança sob vigilância, debaixo dos olhos do Outro, ocasionando uma ausência de ausência, em muitos casos, sem demanda de amor (Meira, 2003). Que efeitos isso trará? Que invenções? Meira (2003) adverte que essa privação contemporânea segue regida pela lógica da produção, na qual nenhum tempo deve ser "perdido" e algo novo precisa ser produzido. Busca-se prover tudo para a criança a fim de que nada lhe falte. Sem o estatuto da falta, como advir o desejo?

Para a autora, o brincar contemporâneo tem sido marcado pela angústia. "Literalmente, o olhar do Outro invade a cena do brincar da criança de tal forma que a ela resta abandonar o jogo e buscar algo em torno do qual seus pais desviem o olhar, para ali instalar seu jogo metafórico" (Meira, 2003, p.47). Imersos no universo dos jogos virtuais, as crianças não demandam ao Outro.

Faz-se corriqueiro o hábito de deixar que a tecnologia faça as vezes de "cuidador" de algumas crianças. Ouve-se a queixa comum: "só fica quieto quando está no celular jogando".

Seguindo essa lógica, os brinquedos – e consequentemente a brincadeira – são oferecidos à criança de modo programado, pronto, cuja pressuposição é a de antecipar a criação, eliminando a variação, o deslocamento da imaginação. Apresentam-se vazios de significação, são vendidos em série, impessoais e perfeitos (Meira, 2003). Tal como ocorre com o excesso de medicalização do sintoma da criança na atualidade, esse domínio "suprime a interrogação acerca do valor subjetivo do sintoma" (Jerusalinsky, 2003, p. 39). Desse modo, a criança trilha precariamente o caminho que poderia aceder a construção significante, assim bordejando o real da falta. Essa construção vacila. Esse brincar, que se aproxima da dimensão do gozo, é marcado pela circulação da pulsão sem nada produzir de útil ao sujeito – como se vê na criança que fica horas a fio no tabletu celular jogando, isolada e silente.

Um menino de nove anos entra no consultório com seu celular. Entra atento ao jogo que não pode ser interrompido. Mal consegue andar sem se esbarrar nas paredes e objetos. O analista lhe pergunta se ele vai continuar jogando, ao que responde: "preciso fazer mais pontos". Tem-se, então, o terbvertendo o ser na oferta do gozo imediato que não faz questão ao sujeito, mas o lança num fluxo intenso de consumo, no decorrer do qual o próprio sujeito é consumido (Lacan, 1972/2015). Tais são essas circunstâncias quelucidam o argumento apresentado por Meira (2003, p.44) ao afirmar que o brincar das crianças na atualidade carrega as marcas "do discurso social e familiar, ali onde elas foram deixadas".

Esse discurso social certamente traz seus efeitos sobre o brincar. Os dilemas de cada época, seus encontros e desencontros, fazem-se representar nos jogos e brincadeiras. Um exemplo disso é apresentado por MV Bill no documentário "Falcão, Meninos do Tráfico" (Athayde; MV Bill, 2006), em que meninos e meninas reproduzem com fidelidade a realidade do tráfico naquela comunidade num completo estado de naturalização do crime e da violência. É impossível não notar o peso do "ser deixado ali" nessas cenas que se fazem longe dos olhos dos adultos. Reproduzindo o estado de abandono do Estado para com aquela e outras comunidades mantidas à margem das cidades – compreendendo aqui a polis como lugar de trocas simbólicas –s crianças brincam de serem bandidos, de traficar eutilizar drogas, de sequestro, dentre outros, com um tom de realidade que impressiona. A brincadeira surge como metáfora de um cotidiano de completo desamparo.

É nas ruas da favela, construindo suas próprias regras pela via do jogo, que essas crianças enfrentam o real do Outro tirânico – as mazelas que produz –onstruindo uma fantasia que se aproxima da realidade em que vivem. Ou seria uma história sem fantasia?

Um contexto em que crianças são usadas como bucha de canhão – corpos atirados, ignorados, usados, numa regularidade de sentidos que retroalimentam a menos valia, num ambiente em que uma simbolização fica bem limitada, comprometida, já que a fantasia é podada com os explícitos, os espaços para produção simbólica quase que inexistem, e o que pulsa escapa no corpo que padece, que é morto, consome droga e é por ela consumido. (Patty & Romão, 2011, p.272)

Por sua vez, a naturalização do discurso da violência e do crime nas brincadeiras das crianças nada mais é do que uma tentativa de excluir a falta que marca o cotidiano desses meninos e meninas desvalidos do Estado de direito. A palavra, quase inexistente, sucumbe à cena claudicante de criação e fantasia, restando-lhes apenas reproduzir, infinitas vezes realidade do entorno como objeto de gozo de um Outro devastador (Souza, 2017).

 

Conclusão

Em cada uma das situações apresentadas neste artigoobserva-se que o brincar também é um apelo ao Outro da linguagem, da cultura. A criança não brinca simplesmente para se divertir, ainda que isso possa se fazer presente numa brincadeira. Ela faz de seu brincar uma resposta – "a única resposta à disposição da criança para elaborar simbolicamente a exigência de trabalho imposta ao psiquismo pelas pulsões (Freud), pela entrada na linguagem (Lacan)" (Gueller, 2013, p.168).

Por esta razão, como estatuto de uma resposta, o brincar também diz do mal-estar da criança, sendo muito observável que comprometimentos importantes no desenvolvimento infantil e nas relações familiares acarretam dificuldades em uma criança brincar. Vimos que essa atividade da criança se constitui um tratamento ao real que a ela se apresenta. Sendo assim, se o brincar é a resposta que, numa fase mais primária, dá o suporte à entrada da criança na linguagem e a tudo que disso advém, não se constitui seu único recurso num tempo posterior, quando da aquisição da linguagem. A criança descreve, queixa-se, inventa, associa e brinca. Ela fala daquilo que lhe causa horror ou mal-estar. É preciso saber escutá-la e saber promover o devido espaço, na clínica, para que assim também possa expressar-se.

Para elucidar essa questão, um pequeno trecho de um atendimento: André, de oito anos, sentou-se em frente à folha de papel em branco, olhou para ela e para os lápis de cor que ali estavam. O analista perguntou se ele não gostaria de desenhar algo. Ele balança a cabeça afirmativamente, segura o lápis e olha para o analista com uma expressão de apelo. Começa a falar da situação em sua casa, do amigo imaginário, de sua solidão, da ausência dos pais durante o dia, de seus dois animais de estimação. Olhou novamente para a folha de papel que permanecia em branco. Ia iniciar o desenho. Olhou para o analista novamente com a mesma expressão. Começou a relatar seu cotidiano. Isso se repetiu por umas três vezes, até que o analista lhe disse que ele não precisava desenhar se não quisesse, poderia apenas falar. E ele falou durante um tempo. Somente após isso, foi desenhando e relatando sobre sua vida em família à medida que o desenho ia se formando.

Uma clínica com crianças que negligencia a condição do ser falante – como ser desejante – irá calar o sujeito, seja pela via da tentativa de domesticação da pulsão, pelo adestramento das técnicas adaptativas, seja pelo equívoco da universalização da interpretação clínica, que desconsidera o Um de cada paciente. "É no brincar que os resíduos desse desejo silenciado se apresentam, quando não, nas manifestações clínicas que testemunhamos" (Ferreira, 2017, p.66).

Portanto, na clínica não se brinca simplesmente. Não é o brincar o objeto de interesse do analista, mas seu interesse recai sobre o sujeito que brinca – seus silêncios, seus apelos, seu desejo - a fim de queaquele espaço subjetivo construído na clínica pelo brincare produza um saber do sujeito sobre si mesmo. Saber que apazigue seu ser que sofre por não saber o que fazer com seu desejo.

 

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Recebido em agosto de 2020 – Aceito em março de 2021.

 

 

1 Autômaton – termo utilizado por Lacan como sendo a "insistência da cadeia significante". Situa-o no registro do simbólico, portanto passível de interpretação a fim de se saber algo do sujeito (Pena, 2007).
2 Tiquê – este termo foi utilizado por Lacan para designar o encontro com o Real, situando-o no registro do real. Trata-se de uma repetição que diz de uma falta. Estando ligada ao funcionamento da pulsão de morte, não tem representação "mas comporta a verdade do sujeito além do princípio do prazer" (Pena, 2007, p.86)
3 Essa teorização denominada de Estádio do Espelho por Lacan diz da organização do eu a partir da imagem de si refletida no espelho, o Outro. Ao reconhecer-se na imagem refletida – uma imagem especular – o eu se estrutura num modo coeso. Esse percurso que vai da não identificação e do eu fragmentado até o eu coeso é dividido em três tempos, segundo a teoria lacaniana. De modo bastante breve, não se atendo aos importantes desdobramentos dessa concepção, poderíamos apresentar os três tempos do seguinte modo: o primeiro tempo há uma não diferenciação entre a criança e o Outro; no segundo tempo, a criança consegue distinguir que a imagem refletida no espelho não é um outro real, mas sim uma imagem; no terceiro tempo, a criança reconhece que aquela imagem é ela mesma (Dor, 1989).
4 Para fins de facilitar a identificação da obra consultada, utilizaremos para todas as chamadas dos seminários de Lacan a data original de pronunciamento do seminário e a data de publicação do livro consultado. Os demais textos deste autor seguirão com a indicação da data original de publicação e a data da obra consultada.
5 Spiel (jogo) é o termo usado por Freud relativo às atividades das crianças, cuja função está em ser "fonte de prazer e promover uma economia na despesa psíquica" (Ferreira, 2017, p.92).
6 Serão apresentados pequenos recortes dos atendimentos clínicos realizados pelo autor do artigo, nos quais os nomes dos pacientes foram alterados.
Revisão gramatical: Karla Cristinie P. Gomes
E-mail: karlacpg@hotmail.com

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