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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.11 no.22 São Paulo Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

Psicologia, violência contra mulheres e feminismo: em defesa de uma clínica política

 

Psychology, violence against women and feminism: in defense of a political clinic

 

Psicología, violencia contra mujeres e feminismo: en defensa de una clínica política

 

 

Flávia Bascuñán Timm*,I; Ondina Pena Pereira**,I; Daniela Cabral Gontijo***,I,II

I Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil
II Sistema Penitenciário do Ministério da Saúde, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, busca-se realizar uma articulação entre a escuta clínica em psicologia e o feminismo, buscando, como resultado dessa articulação, explicitar a proposta de uma metodologia engajada e politizada para o atendimento às mulheres em situação de violência. Tal articulação tomou forma em trabalho de atendimento realizado com mulheres em situação de violência conjugal cujo processo evidenciou a necessidade de um olhar crítico sobre a onipresença das interpretações psicologizantes, centradas na ideologia da intimidade (Sennett, 1998), que impossibilitam a construção da ação clínica como ação política. Buscamos, à luz de Arendt (1993), elucidar as relações entre as dimensões política e privada do mundo antigo e suas diferenças em relação ao mundo moderno, com o intuito de contextualizar a reivindicação feminista de politização do privado.

Palavras-chave: Feminismo, Psicologia, Violência contra mulheres, Clínica, Política.


ABSTRACT

The present article intends to connect psychological clinical practice to feminist epistemology, proposing, as a result, a politically engaged methodology for treatment (psychotherapy) of women under violent situations. Such practice was achieved in the course of a clinical project developed with a group of women experiencing conjugal violence. This process exposed the need for a critical view over the omnipresence of psychological (individualizing) interpretations, centered in the intimacy ideology (Sennett, 1998). Such interpretations hinder the construction of clinical action as political action. Finally, we intend to, according to Arendt (1993), elucidate the relations between the political and private dimensions of the ancient world and its differences in relation to the modern world, with the purpose of inserting into context the feminist quest of turning what is private into political.

Keywords: Feminism, Psychology, Violence against women, Clinic, Policy.


RESUMEN

El presente artículo pretende realizar una articulación entre la psicología clínica y la epistemología feminista, buscando, como resultado de dicha articulación, explicitar la propuesta de una metodología comprometida y politizada para la atención de las mujeres en situación de violencia. Dicha articulación tomó forma en un trabajo de atención realizado con mujeres en situación de violencia conyugal cuyo proceso evidenció la necesidad de una mirada crítica hacia la omnipresencia de las interpretaciones psicologizantes, centradas en la ideología de la intimidad (Sennett, 1998). Dichas interpretaciones esconden la construcción de la acción clínica como acción política. Finalmente, lo que intentamos, de acuerdo con Hannah Arendt (1993), es elucidar las relaciones entre la dimensión política y privada del mundo antiguo y sus diferencias con el mundo moderno, con el propósito de contextualizar la reivindicación feminista del carácter político de lo privado.

Palabras clave: Feminismo, Psicología, Violencia contra mujeres, Clinica, Política.


 

 

Introdução

O objetivo do presente trabalho é o de realizar uma articulação entre a escuta clínica em psicologia e o feminismo, buscando, como resultado dessa articulação, explicitar a proposta de uma metodologia de atendimento engajada e politizada para o atendimento às mulheres em situação de violência.

O interesse pelo tema surgiu em trabalho de atendimento realizado com mulheres em situação de violência conjugal que, por se verem frequentemente nessa situação, decidiram buscar algum tipo de ajuda ou intervenção exterior às suas vidas privadas e, quem sabe, psíquicas. Tal apelo mobilizou um olhar crítico sobre a onipresença das interpretações psicologizantes que, centradas na ideologia da intimidade em Sennett (1998), despolitizam a atuação clínica e impossibilitam a articulação entre o cultural, o social, o político e o psíquico.

A forma de atendimento que se deu a essas mulheres permitiu a articulação entre tais dimensões, tornando visíveis as diferentes formas de violência que se entrelaçam no cotidiano das agressões privadas, formas muitas vezes tornadas imperceptíveis por serem naturalizadas e transformadas em hábitos socialmente legitimados, como as cenas de ciúmes, o confinamento à esfera doméstica, entre outras. Tal processo é dificilmente percebido como construto social e moral. No entanto, mesmo que o seja, é ainda eficazmente reproduzido, dada a lógica da compreensão de construtos como entidades fixas, naturais.

Trata-se, então, de discutir como o hiper-investimento na esfera privada e o esvaziamento gradual do mundo público exercem efeito violento na existência das mulheres, pois, ao legitimar a privatização dos afetos e reduzir o entendimento da situação de violência em que se encontram a apenas uma questão psicológica, deixam-nas ainda mais vulneráveis ao sistema de dominação.

Veremos, aqui, que a violência praticada na esfera privada, longe de ser um fenômeno meramente psicológico a ser mantido escondido nos confins da esfera íntima, é um dos efeitos da hierarquia através da qual os gêneros estão organizados na cultura patriarcal. Trata-se de interpretá-la como uma questão política, devendo, pois, ser levada à evidência no mundo público, comum, isto é, ser partilhada como um problema a ser discutido e solucionado pela coletividade na qual se manifesta.

 

1. Relação público/privado e violência

A questão da relação entre mundo público e mundo privado tem sido historicamente abordada por diversos autores e autoras, modernas/os e contemporâneas/os (Arendt, 1993; Sennett, 1998). Com o objetivo de compreender algumas implicações, para as teorias feministas, da relação entre essas duas dimensões da existência e a sua importante afirmação de que "o privado é político", faremos, a seguir, uma breve discussão sobre a dimensão ético/política da violência doméstica.

Assim, a violência doméstica foi considerada normal na antiguidade grega. Segundo os termos de Arendt (1993), a organização política – polis – no pensamento grego, opõe-se a associação natural centrada em torno do lar e da família (oikos). Este lugar, o lugar do privado, tem o sentido de privação: privação de pertencimento à esfera considerada propriamente humana – a polis. Nesta, obtinha-se acesso a outra vida, diferente da vida de família, da vida privada: uma vida propriamente política. Cada cidadão – no masculino, já que não existiam cidadãs – pertencia a duas ordens de existência: a que lhe era própria – privada – e a que era comum aos outros cidadãos. Ser político, viver na polis, significava fazer parte de um espaço onde todas as coisas eram decididas através do discurso e da persuasão e nunca através da força e da violência, categorias estranhas à atividade política, que, no entanto, eram praticadas na esfera privada, na forma de violência do homem sobre a mulher e os(as) filhos(as). No mundo privado, era legítimo comandar, isto é, nessa esfera era exercido um método considerado pré-político, como nos impérios bárbaros, nos quais o chefe exercia poder absoluto. A justificativa do uso da força e da violência no mundo privado – tornado, assim, um mundo desigual – é o fato de este pertencer à esfera da necessidade, considerada um fenômeno pré-político. Não há, aí, pois, lugar para a liberdade, que deveria ser reservada ao mundo público, onde conviviam os iguais, os cidadãos.

Assim, o mundo político, na Grécia, foi constituído como um mundo inteiramente distinto do mundo privado. No entanto, guardava com este íntima relação, já que só poderiam ser iguais aqueles que tivessem garantido o suporte na vida privada, isto é, tivessem à sua disposição mulheres e escravos que se dedicassem a suprir as suas necessidades, garantindo, assim, o seu direito à vida pública.

Dessa forma, tudo o que era considerado como pertencente à ordem do econômico dizia respeito à vida do indivíduo e da espécie e era, por definição, não político, assunto de família, assunto privado. O pré-requisito para entrar na esfera pública era o de ser proprietário, no sentido de ter um lugar. Mas a propriedade privada é mais do que simplesmente uma condição para admissão na esfera pública. O privado seria como a face sombria, escondida, da esfera política, pois, se ser político significava atingir a mais alta possibilidade da existência humana, a privação desse espaço por não possuir mais um lugar no mundo (casa, propriedade) implicava em deixar de ser alguém. Poderíamos, aqui, dizer, nos termos de Agamben (1992), que estes seriam os Homo Sacer de hoje, privados da humanidade completa. Da mesma forma, todas as mulheres e todos os escravos seriam constituídos como Homo Sacer, já que, apesar de serem humanos vivos, eram excluídos da comunidade política.

No mundo moderno, a relação entre o privado e o público constitui-se de forma completamente diferente daquela do mundo antigo. Isso se deve, dentre outras razões, ao surgimento da esfera social, que é assimilada ao político, mas não pode ser considerada nem pública, nem privada. Há, portanto, no mundo moderno, uma diluição da antiga divisão entre essas duas esferas. Assim, o que chamamos sociedade, para Arendt (1993), é um conjunto de famílias economicamente organizadas na forma de Nação. Nesse sentido, as esferas social e política recaem uma sobre a outra, não se distinguindo mais. O aparecimento do social coincidiu historicamente com a transformação em preocupação pública do que era anteriormente uma preocupação individual com a propriedade privada. A sociedade, a partir do momento que passou à esfera pública, assumiu a condição de disfarce de uma organização de proprietários que, em última instância, busca proteção para acumular riquezas. Nesse sentido, a organização política do processo vital, isto é, as atividades que dizem respeito a nossa sobrevivência foram admitidas na esfera pública, tornando-se esta última mera função da esfera privada. Ainda assim, as mulheres permaneceram com um espaço reduzido no mundo social/público.

Ao ser reduzida ao social, a vida pública sofre um processo de empobrecimento: perde sua caracterização como lugar do exercício da liberdade e torna-se o lugar que deve ser, ao contrário, dominado pelo comportamento, pelo conformismo e pela massificação. Isso quer dizer que a sociedade é normativa e espera de seus membros não a ação – como na polis – mas a reprodução massificada de certo tipo de comportamento. O comportamento substituiu a ação como principal forma de relação humana. Nesse sentido, a esfera social já nasce despolitizada. A única oposição à esfera social seria a esfera da intimidade.

O interesse dos feminismos pela politização do privado torna-se, dessa forma, evidente. Na vida moderna, não se trata mais de entender o privado como privação do pertencimento à esfera pública, mas como esfera da intimidade, pois é esta que acaba se mantendo como espaço privilegiado de ocorrência das diversas violências. Ao mesmo tempo, esta violência, quando recusada, leva à procura por ajuda exterior – para "tratar" a intimidade em sofrimento. É nesse ponto que aparece o interesse pela criação de um tipo de clínica cuja atuação consista principalmente em fornecer apoio à resistência à violência, na medida em que, trazendo à compreensão as raízes políticas do sofrimento, questiona e desestabiliza as normas massificadas, podendo, assim, minimizar culpas enraizadas na ideia de família, maternidade e todos os demais traços relacionados à produção de feminilidade, na qual ocorrem com frequência as violências, de vários níveis, contra as mulheres. A violência doméstica começa a ganhar alguma visibilidade graças às contribuições das teorias feministas que, ao analisá-las politicamente, trazem à tona os interesses patriarcais na reprodução da forma opressiva de constituição das relações de gênero, encorajando, com isso, as denúncias e a forçando o Estado em direção à criação de políticas públicas.

Assim, a politização do privado é uma exigência feminista que objetiva tornar evidente uma prática de violência que persiste na sociedade, ainda que esta já a tenha instituído como crime. Sobrevivem, paradoxalmente, nos costumes dessa mesma sociedade, mecanismos de ocultação desses crimes, muitas vezes ainda considerados legítimos por acontecerem nos limites da esfera doméstica.

O fato de tais crimes acontecerem no privado/íntimo torna a sua punição dependente de uma dimensão subjetiva, que é a decisão, tomada pelas mulheres, de não aceitar se submeter às agressões, de não a ocultarem, mas as tornarem públicas, recorrendo às instituições sociais. Tal dimensão subjetiva está exposta às contradições das relações modernas entre o público e o privado. Se a esfera social/pública, por um lado, cria normas que condenam a violência contra as mulheres, por outro lado, é ainda controlada pelos próprios perpetradores da violência, que permanecem protegidos por um sistema social androcêntrico.

Percebe-se, aqui, uma tensão entre a dimensão subjetiva e a dimensão ético-política: do ponto de vista da subjetividade, é necessário que se faça uma escolha. As mulheres podem decidir denunciar a agressão, mesmo sob o risco de romper o vínculo, o que significaria a conquista da autonomia, a emancipação em relação às normas massificadas. Mas podem também permanecer vinculadas ao agressor, recusando-se a denunciá-lo, por diversos motivos, entre eles, a própria dificuldade de contar com o apoio de instituições sociais, mas também por se tornarem reféns do dispositivo psicológico, que já assumiu as normatizações do mundo social, consolidando a culpa e o sentimento de fracasso por terem acreditado nas promessas de amor do agressor ou por assumir unilateralmente a responsabilidade pelo projeto de família. A construção desses traços rígidos e estereotipados produz as chamadas dificuldades psicológicas, reafirmadas pelo medo e insegurança em romper com valores tão engessados socialmente. Evidente está que a luta feminista segundo a qual "o privado é público" necessitaria, para se constituir como uma prática crítica, ser apropriada pelas mulheres que sofrem violência. A percepção dos elementos distintivos entre norma moral e a construção normativa só se faz possível a partir de um engajamento crítico-político, e o feminismo possibilita essa reflexão. No entanto, desestabilizar normas morais não é uma tarefa fácil quando nos constituímos dentro dessa argamassa de violências.

Do ponto de vista da ordem pública, social, a norma jurídica criminaliza a agressão. No entanto, essa mesma ordem social preserva resquícios dos antigos padrões de masculinidade, já que os homens ainda detêm o protagonismo absoluto do espaço público. Vista por esse prisma, a intervenção do Estado na esfera íntima, privada, não seria mais que um dos milhares mecanismos jurídicos, normativos e androcêntricos, de controle social. Por que recorrer a uma ordem jurídica para enfrentar a violência contra mulheres? Isso de fato diminui a ocorrência da violência doméstica? A lei sem dúvida representa uma importante conquista do movimento feminista, por acreditar na eficácia simbólica da lei ao longo dos anos, mas nem de longe será responsável pela diminuição dessa prática. Pelo contrário, o que vemos no cenário atual é um recrudescimento da violência: quanto mais avançamos em termos de denúncias e resistência às agressões, maior o ódio dirigido às mulheres. Por outro lado, há um cinismo nessa prática moderna de dizer que o que se passa na esfera privada, doméstica, deve permanecer aí, justamente porque, por outro lado, a deterioração do mundo público, político, nos obriga a investir nossas intensidades e paixões no mundo privado (Sennett, 1998), o que o torna um lugar bastante vulnerável à violência.

Assim, a questão da denúncia ou não da violência doméstica contorna um lugar próprio da constituição de subjetividades que se encontram numa posição de tensão entre o privado e o público, entre o antigo e o moderno, entre a barbárie e a política, entre a heteronomia e a autonomia.

A aposta em um encontro terapêutico que constitua subjetividades políticas permite articular os aspectos socioculturais e os aspectos psicológicos implicados na prática da violência. Nesse sentido, dissolve o que parece ser uma oposição entre cultura e psiquismo, implicando as relações de gênero com a exigência, própria do mundo moderno, da autonomia em relação a determinações alheias à cultura humana. Dessa forma, fica desautorizada a manobra da razão patriarcal de fundar na natureza a oposição hierárquica entre os sexos – origem das mais distintas formas de violência contra as mulheres –, ainda que essa natureza seja uma segunda natureza, uma estrutura que se apresenta como fixa e insuperável.

Torna-se necessário e urgente o desenvolvimento de uma forma especial de escuta da narrativa das mulheres que procuram ajuda por sofrerem violência. Ao narrarem suas vidas, as mulheres expressam uma multiplicidade de sentidos, tanto aqueles já fixados pela estrutura patriarcal, como sentidos genuínos, ainda que precários, que resistem a serem reintegrados nos significados e estereótipos da 'velha' estrutura. Tal como Anzaldúa (2000) escreve para registrar o que os outros apagam, as mulheres narram suas histórias para que reapareçam os sentidos sempre apagados pelos mesmos velhos valores hegemônicos.

Nesse ponto, torna-se necessário lidar com a ambiguidade que se expressa na posição da subjetividade. Distinguiremos, com base nos argumentos de Zizek (2003), entre subjetividade – que se constitui dentro dos limites de um quadro normativo das práticas sociais, ainda que este possibilite uma multiplicidade plástica de formas contemporâneas de subjetivação – e sujeito – que resiste à simbolização e, portanto, à consideração de normas. Assim sendo, o sujeito denotaria uma partícula de liberdade que ainda resta em uma sociedade extremamente normatizada, ocupando o lugar da negatividade em sentido hegeliano. Assim articulados, sujeito e negação constituiriam a possibilidade de recuperação do projeto emancipatório próprio da modernidade. É a partir da aposta nessa noção de sujeito que é possível pensar em uma clínica plena de consequências políticas.

Uma possibilidade de ilustrar essa posição de sujeito resistente às normas é a interpretação de Antígona realizada por Butler (2000), que supera tanto a interpretação de Hegel como a de Lacan. Para Hegel (1980), trata-se de um conflito interno da substância ética, dividida entre esfera pública, ordem da Lei, do Estado (masculina) e esfera da família (feminina), que é subterrânea. Para Lacan (1988), o gesto de Antígona é realizado a partir de uma posição que fica no limite, na fronteira da ordem simbólica, quase fora, mas ainda dentro, dada a impossibilidade de se produzir sentido a partir do grau zero da ordem simbólica existente. Já em Butler (2000), o gesto de Antígona se realiza a partir de uma exterioridade radical a essa ordem, buscando rearticulá-la radicalmente, assumindo publicamente uma posição indefensável.

 

2. A prática clínica e a razão patriarcal

As reflexões sobre a prática clínica em psicologia tornam evidentes determinadas questões que ficam escondidas pela razão patriarcal que determina a maior parte das teorias psicológicas. Quando as reflexões levam em conta diferentes teorias feministas, a perspectiva de neutralidade e de universalidade do pensamento androcêntrico dá sinais de fragilidade e torna-se necessário explorar os seus limites, apontar suas fissuras e aquilo que deixam entrever.

Em um primeiro momento, salta aos olhos a negligência do campo psicológico para com qualquer questão que leve à percepção da hierarquia de gênero. Em seguida, torna-se perceptível como as próprias metodologias utilizadas fecham as portas ao surgimento de outras possíveis leituras sobre a situação de violência, que não só atomiza o(a) sujeito(a), como o fragmenta em dicotomias persistentes: bom/mau, agressor/vítima, normal/patológico, saudável/sintomático, entre outras, como se a maldade, a agressividade ou vitimização, o sintomático e o patológico não fossem elementos também produzidos pelo jogo hegemônico das diferenças. Assim, dar conta daquilo que escapa aos métodos tradicionais, com sua pretensão de distanciamento asséptico do(a) pesquisador(a), exige o desenvolvimento de formas metodológicas alternativas, nas quais, ao contrário, se valorize as emoções e o comprometimento do(a) entrevistador(a)/pesquisador(a)/terapeuta com o problema. Estas são ferramentas importantes para o entendimento das causas da violência e, em consequência, a consolidação de um espaço de confiança que possibilite a percepção e mudança de atitude frente à determinada situação.

A prática clínica psicológica que nasce sem elaboração crítica ao pensamento androcêntrico é, em geral, pautada na experiência subjetiva individual, privatizando a dor e o sofrimento das pessoas. A história dessa prática, que é hegemônica, atomiza, dissocia, fragmenta e patologiza a experiência subjetiva como se ela não estivesse relacionada ao contexto social, como se tudo se tratasse de questão de 'foro íntimo'. A proposta de uma abordagem psicoterapêutica feminista, ao contrário, opõe-se à centralização da individualidade, abrindo-se para outra forma de atendimento, na qual as experiências subjetivas ganham mobilidade na medida em que são resgatadas como parte de um contexto maior, podendo ser lidas como uma vivência intersubjetiva, social, partilhada em maior ou menor grau entre mulheres, sociedade e cultura. Isso cria possibilidades efetivas de mudança. A perspectiva feminista é inserida neste debate para evidenciar o impacto da cultura patriarcal hegemônica na estruturação do pensamento, na produção de sintomas e na permanência das mulheres em situação de violência.

A análise crítica do patriarcado demanda repensar o impacto da cultura no processo de constituição das identidades de gênero e seus desdobramentos, como as subjetividades individuais. A universalização e a naturalização dos papéis de gênero na cultura ocidental atribuíram às mulheres um lugar simbólico de resignação, responsabilidade sobre as estruturas ideais de família, incluindo a filiação e a maternidade, e de investimento permanente para se fazerem perceptíveis e atraentes ao olhar de um homem. A mulher, nessa cultura patriarcal ocidental, constitui-se pelo olhar do homem, sentindo-se profundamente desamparada quando não é notada e muitas vezes se conformando com a cena familiar ou conjugal violenta para 'não ficar sozinha'. Esta última foi uma fala recorrente nas mulheres entrevistadas. Ao analisar as dinâmicas psíquicas e socioculturais envolvidas no processo de agressões, Segato (2003) reforça que não se trata simplesmente das consequências psicopatológicas individuais ou do resultado automático da dominação masculina, mas de uma inscrição que reproduz o modelo patriarcal nas sociedades e que estabelece a diferença hierárquica dos corpos em diferentes contextos culturais. Segato (2003) insere o termo violência moral, preferindo-o ao invés de intitulá-lo violência psicológica. A autora justifica essa escolha por "denominar o conjunto de mecanismos legitimados pelo costume que garante a manutenção dos estados relativos aos termos de gênero" (Segato, 2003:107).

Na perspectiva de Segato (2003:14) patriarcado é, ao mesmo tempo, "norma e projeto de autoreprodução", isto é, não apenas produz sua difusão massiva a partir de valores morais socialmente justificados, como garante sua naturalização pela reprodução automatizada dos hábitos, produzindo uma "violência invisível" mantenedora das hierarquias de gênero e do controle totalitário da sociedade em parâmetros arbitrários e desiguais, em especial entre mulheres e homens. Essa violência invisível é aqui percebida como fonte da violência conjugal.

 

3. Em busca de saídas

Para avançarmos na reflexão sobre o problema endêmico da violência conjugal, não basta traçarmos os fatores individuais que remontam a história familiar ou atribuir causalidades para a violência, tais como o uso abusivo de álcool ou drogas pelos homens, transtornos de personalidade, fatores de relacionamento versus dificuldade econômico-financeira, entre outros. A extensão do problema requer esforços muito maiores, que demandam um olhar crítico sobre a manutenção do patriarcado, a forma de organização social do capitalismo, a herança burguesa e cristã, e obviamente, o etnocentrismo a que estamos submetidos(as) diariamente, inclusive nas teorias em que nos apoiamos para pensar os problemas no Brasil.

Sem dúvida, as lógicas binárias e biológicas naturalizadas servem como elementos de análise para começarmos a pensar na situação de constante vulnerabilidade às quais milhares de mulheres são submetidas. Para ilustrar tal vulnerabilidade, basta colocarmos um exemplo prático e ainda persistente: o medo do estupro. A construção da ideia de que o corpo da mulher é violável, impedindo, inclusive, o seu direito de ir e vir ao restringir seu trânsito em determinados locais e horários, e, ainda, associado ao tipo de vestimenta que utiliza, podem se tornar, na percepção estereotipada social, como fatores desencadeantes da violência sexual.

Mas será que os homens se tornam mais vulneráveis ao estupro pelo horário em que transitam pelas ruas? Por que julgamos que a mulher se colocou em risco? Por que o risco é entendido como produzido por ela? A lógica da intimidade também recai sobre esse fenômeno, uma vez que diferentes teorias poderão abordá-lo a partir da perspectiva interna da mulher violentada, questionando as suas ações que a colocaram na situação vulnerável. Provavelmente investigarão, ainda, os mecanismos psíquicos que produziram tal exposição. Muitas mulheres estupradas revelam a vergonha de relatar episódios de violência sexual com medo de serem acusadas ou levadas a entender que se colocaram em tal situação. Alessandra, 28 anos, relata:

"Eu sofri violência sexual aos 14 anos de idade. Eu me calei por medo e vergonha, deixei a vergonha falar mais alto... também não procurei me aprofundar nisso na época porque doía muito, por medo [...]. Fui violentada por quatro homens". (entrevistada em 2007).

Como se origina essa vergonha? As pessoas não têm vergonha de dizer que já foram assaltadas, mas, quando o crime é sexual, a mácula fica no corpo que se faz roubado. De imaculada a mulher passa a ser maculada, sem valor. Como e quando foi construída a ideia de que o corpo pode ser roubado por um ato sexual?

Enfim, essa tensão entre o silenciamento e a confissão do estupro, narrada por Alessandra, é também sustentada pelo patriarcado simbólico. Esta lógica do confessionário, auxilia-nos Foucault (1976), imputa às pessoas a constante necessidade da revelação e a busca de uma figura de autoridade que possa lhe dizer a verdade sobre o seu sentimento, como se fosse possível existir um legislador externo capaz de codificar a experiência e levá-las através da fala à liberdade e ao expurgo da maldade que a persegue. A ideia de confissão por parte da igreja ou do juiz a amedronta, pois a liberdade através da fala pode vir seguida de um castigo moral através do poder de um legislador, como o fez seu ex-companheiro, ao ofendê-la de "impura" a cada vez que se sentia contrariado em seus desejos. Ou ainda, pela interpretação de um(a) profissional da área psi que poderá conduzir as sessões para recolocá-la numa posição de agente da própria violência. Perguntamos, como foi construída a fundamentação teórica que coloca as mulheres na posição de agentes da própria violência doméstica e sexual? Como fazer uma releitura dessas teorias a partir do feminismo?

A complexa dinâmica que interpela o sujeito a falar sobre si leva milhares de pessoas a procurarem atendimento psicológico, buscando no "aconselhamento profissional" alguém que possa falar sobre elas, o que Pereira (2004) descreve como a procura obsessiva de um saber que fale a respeito do que seriam as nossas psiques, corroborando com a afirmação de Sennett (1998): "O eu de cada pessoa tornou-se o próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo." (Pereira, 2004:119). Muitas mulheres agredidas sentem-se culpadas pela escolha da relação ou pelo descontrole do companheiro, atribuindo ao(à) psicólogo(a) o dever de encontrar a solução do problema. Desloca-o, pois, do contexto social, político e histórico que produzem os sintomas e garantem a manutenção da culpa, focando na esfera íntima, pessoal.

Uma narrativa bastante interessante, de Shenna, revela essa tensão da confissão e expectativa de resposta.

"Fico pensando que tive tantas oportunidades, mas como não saí? Se eu tivesse ficado com outra pessoa, não tinha ficado com ele não. Não sei no que acreditei, eu não gostava dele tanto assim. Mas enquanto ele não consegue uma coisa ele não desiste. E eu achava que isso é que ele gostava de mim. Eu tentei sair e não conseguia. Por que isso? Ele me convencia. Meu futuro, no presente, tá prejudicado pelo meu passado." (entrevistada em 2007).

Essa procura pelo porquê demonstra a necessidade de encontrar a resposta em algum mecanismo interno, psíquico, ainda obscurecido, que ela desconhece.

A ideologia da intimidade produz a exigência da "sanidade mental", da adequação corporal e moral ao modelo hegemônico, com o foco no culto à personalidade e na centralidade da pessoa, que passam a ser objetos prioritários das investigações. Uma investigação científica que se propõe a estudar as características psicológicas das mulheres agredidas ou do agressor desperta grande interesse da comunidade acadêmica, mas um estudo que pretende refletir sobre as estruturas que mantêm toda essa ideologia corre o risco de ficar sempre à margem.

 

4. Experiência do grupo

A proposta de criação de um grupo fundamentado na perspectiva feminista, que colocou a psicologia como seu objeto de estudo, teve como principal objetivo deslocar a centralidade da revelação individual do sofrimento para o compartilhamento das experiências, rompendo com a privatização das emoções e propondo a ressignificação das experiências a partir de um lugar politizado e de interação.

Ao longo dos dez encontros as mulheres relataram como se mantinham vinculadas aos companheiros-agressores. Enquanto algumas justificam a permanência em função dos(as) filhos(as), outras apostam na mudança de comportamento do agressor. Cláudia, por exemplo, tendo sido proibida pelo companheiro de investir na sua formação ou de buscar algum trabalho, foi vítima de agressões físicas violentas nessa relação, mas a manteve para tentar garantir uma vida melhor para os filhos. Alessandra, por sua vez, depois de ser agredida recebia palavras amorosas do companheiro e, acreditando no arrependimento, continuava na relação:

"A gente ta lá apanhando, sofrendo, e voltando para o mesmo lugar. Nunca saí daquele ponto. Você vai lá, você tá alí, e ele bate, xinga, esculhamba e ao pedir perdão, e dizer "amor, eu te amo". Aí no outro dia você vai lá, a mesma vida. Isso passa um ano, dois, cinco, dez, vinte anos." (entrevistada em 2007).

Todas as Margaridas (mulheres que se submeteram ao processo de psicoterapia político-feminista para fins deste estudo) relataram a expectativa da realização do casamento como um caminho para alcançar o amor romântico, a imagem da família feliz e próspera. No entanto, viveram situações intensas de violência doméstica e familiar, e relataram que os companheiros, no início do namoro, eram pessoas carinhosas e ciumentas (este último atributo muitas vezes interpretado como manifestação de amor). Enfatizaram, ainda, que eles sabiam muito bem o que queriam: o casamento.

Estas mulheres foram agredidas psicologicamente, com agressões verbais de desqualificação, suspeição permanente dos seus comportamentos e atitudes, da sua "fidelidade", muitas vezes seguidas de ameaças de morte; agredidas fisicamente com chutes, tapas, socos e pontapés; submetidas a situações de cárcere privado, impedidas de sair em horários em que o companheiro não estava em casa, impedidas até de tomar banho em horários não costumeiros, privadas de qualquer comunicação com a família ou comunidade, entre outras violências. Relatos de estupros conjugais mediante coação e ameaça com faca, gritos ameaçadores seguidos de puxão de cabelo e socos, lançamento de copos de vidro no rosto, esmagamento – com as mãos – de animais domésticos da casa, quebradeira de objetos e subtração de documentos pessoais fizeram parte do cotidiano dessas mulheres, que, lentamente, foram rompendo os silêncios e compartilhando seus segredos mais íntimos (privados) em grupo (público), algumas vezes associados a relatos de estupros e/ou tentativas de estupro na infância e adolescência.

É impossível não relacionar a estrutura do patriarcado com a perpetuação desse tipo de vínculo. Sendo assim, o problema da violência contra mulheres, antes de ser um problema individual, privado ou psicológico, é social e político. A permanência no vínculo não é somente um problema do casal ou da passividade da mulher que aceita as agressões do companheiro, mas é um dos elementos que compõe o sistema de crenças que significa os corpos de forma desigual e hierarquizada, produzindo desejos, expectativas e sintomas psíquicos.

A ideologia do par amoroso e da heterossexualidade, entendida aqui como modelo estereotipado de gênero que constrói apenas um desejo possível – o desejo compulsório de uma mulher por um homem e vive-versa –, está inserido em todo esse enredo de crenças e expectativas do casamento, que de alguma forma também contribui para produzir subjetividades que suportam o vínculo conjugal violento. Ouvir a queixa de uma mulher que passa por situações de violência doméstica e familiar demanda uma escuta crítica de gênero e todas as suas intersecções com raça, etnia, opressão de classe, sexismo e pobreza.

Escutar essa demanda específica de violência contra mulheres implica em um esforço reflexivo de colocar em pauta a política dos corpos e a produção de subjetividades hegemônicas, elementos estes que produzem sintomas específicos em cada momento da história. Quanto maior o enrijecimento das normatizações de gênero, maior o sintoma da violência de homens contra mulheres e mais protegido às críticas e à desestabilização de crenças estarão os grupos sociais. O índice crescente de denúncias e dos homicídios pode comprovar isso.

 

Notas conclusivas

As narrativas evidenciam que a metodologia de atendimento fundamentada na conciliação ou na individualidade da pessoa não atende as demandas de interrupção do sofrimento psíquico dessas mulheres. Desta forma, este trabalho lança um novo questionamento para as teorias psicológicas, convidando-as a inserir a categoria de gênero nos sistemas teórico-conceituais que manejam, com o intuito de enriquecer sua escuta das experiências de violência. Evidenciar o ranço discriminatório que há em cada teoria ainda é um caminho a ser percorrido. O que sabemos é que as mulheres já não querem mais ser tratadas como deprimidas, histéricas ou coniventes.

A inserção do feminismo na produção de conhecimento em psicologia foi importante para o rompimento com o naturalismo biológico, logo, para a emergência de análises que lancem seu olhar para os sintomas gerados no contexto do sistema patriarcal, para os efeitos psíquicos das práticas discursivas sobre os corpos.

A articulação entre feminismo, violência contra mulheres e psicologia é relevante na medida em que elucida o entrelaçamento das normas culturais da construção dos gêneros e suas restrições à produção de masculinidades e feminilidades, com as subjetividades e, consequentemente, com o adoecimento psíquico e a perpetuação da tolerância a situações abusivas. A proposta de uma psicologia feminista contribui para o rompimento dessas restrições de subjetivação, criando a ideia de liberdade e de espaços alternativos de ressignificação das experiências.

Por fim, tratar o tema da violência contra mulheres, principalmente doméstica e conjugal, como um fenômeno social e cultural é dar historicidade ao que foi apagado pelos costumes, hábitos patriarcais e pela ciência androcêntrica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Flávia Bascuñán Timm
E-mail: fbtimm@yahoo.com.br

Ondina Pena Pereira
E-mail: ondinapena@gmail.com

Daniela Cabral Gontijo
E-mail: danielacgontijo@yahoo.com.br

Recebido em: 11/04/2011
Revisado em: 31/05/2011
Aceito em: 02/10/2011

 

 

* Psicóloga, Mestre em Psicologia, Professora da Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil, na área Social, Jurídica e de Gênero.
** Graduada em Ciências Sociais e mestreado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil, e doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. Atualmente é professora adjunta da Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil.
*** Advogada, Mestre em Direitos Humanos, Doutoranda em Bioética pela Universidade de Brasília, Brasília, DF. É consultora da área técnica de saúde no sistema penitenciário do Ministério da Saúde, Brasil.