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Revista Psicologia Política
Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.43 São Paulo Sept./Dec. 2018
EDITORIAL
Retratos transnacionais e nacionais das cruzadas antigênero
Transnational and national portraits of the anti-gender crusades
Retratos transnacionales y nacionales de las cruzadas antigénero
Portraits transnationaux et nationaux des croisades anti-genre
Marco Aurélio Maximo PradoI; Sonia CorreaII
IDr. em Psicologia Social pela PUCSP com pós-doutorado pela University of Massachusetts/Amherst na Cátedra de Estudos Brasileiros da Fundação Fulbright/EUA. Professor Associado IV da Universidade Federal de Minas Gerais onde é o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). Tem participado de atividades acadêmicas internacionais junto a UNSL/Argentina, ao CES/Coimbra e a Umass/Amherst. Bolsista CNPq
IIArquiteta e com pós-graduação em Antropologia. Coordena com Richard Parker o Sexuality Policy Watch (SPW) sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). Em 2006 integrou o grupo que elaborou os Princípios de Yogyakarta para Aplicação das Normas Internacionais de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Tem participado de atividades acadêmicas no NEPO/UNICAMP, no CLAM/IMS/UERJ, no Colégio do México, no Center for Population and Development na Harvard University e, mais recentemente, no Gender Department da London School of Economics
Em 2013, milhares de pessoas, mobilizadas pela igreja católica e as forças da direita, se manifestaram contra o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo em Paris e em outras cidades francesas, colorindo as ruas com o rosa e o azul de suas bandeiras. No mesmo ano, o presidente do Equador, Rafael Correa, ícone da esquerda, em um de seus programas televisivos semanais, denunciou a "ideologia de gênero" como um instrumento destinado a destruir as famílias. Nesse mesmo ano então, no Brasil, forças católicas e evangélicas conservadoras e o movimento Escola sem Partido juntaram esforços para incidir, de forma coordenada, nos debates do Plano Nacional de Educação com o objetivo de excluir o termos gênero do documentos em debate. Em 2016, o ataque ao gênero, como ideologia "diabólica e marxista" impactou, negativamente, no referendo sobre o acordo de Paz na Colômbia. Um ano mais tarde, a filósofa feminista Judith Butler, ao visitar o Brasil, foi objeto de um virulento ataque antigênero. No começo de 2018, a mesma diatribe levou um candidato, representando a cruzada antigênero, ao segundo turno das eleições presidenciais. Alguns meses depois, o tropo "gênero" esteve no vórtex central do furacão eleitoral brasileiro e, no país, o ano de 2019, se iniciou com o anúncio feito no discurso presidencial ao congresso de que um dos objetivos do governo recém eleito é combater a "ideologia de gênero"
De onde vem e o que significa essa onda transnacional? Qual seu lugar e função no arco mais amplo dos processos de desdemocratização que caracterizam a segunda década do século 21? Seria adequado nomear o fenômeno como um novo contra-movimento social? Ou seu caráter marcadamente institucional, religioso e partidário, exige outra clave de leitura? Autores e autoras que têm estudado essas mobilizações na Europa e na América Latina as nomeiam como campanhas ou ofensivas antigênero, entre outras razões para evitar a normalização semântica da terminologia "ideologia de gênero". Essas análises reconhecem que essa nova ofensiva tem um lastro mais antigo que pode ser identificado nos ataques do conservadorismo religioso contra as alterações das estruturas familiares e reformas legais no campo do direito ao aborto e dos direitos das pessoas LGBTI que estão em curso desde os anos 1970, ou seja, a reação à democracia do gênero e da sexualidade. Contudo, também sublinham que essa nova onda difere do que veio antes em termos da semântica e repertórios de mobilização utilizados e, sobretudo, nos que diz respeito a heterogeneidade de forças sociais envolvidas.
Originadas em berço católico, essas ofensivas são hoje decididamente ecumênicas, mesmo quando o perfil de sua composição possa variar entre países. Embora em toda parte envolvam grupos religiosos cristãos, há movimentações que se articulam com outros grupos e organizações reacionárias e ultraconservadoras como partidos de extrema direita, colégio de pediatras antidireitos LGBTI, grupos de psiquiatras e psicólogos/as que defendem as chamadas terapias de reversão da homossexualidade e a manutenção de categorias patologizantes para nomear a experiência de pessoas trans e intersexuais, ginecologistas que são contra o aborto, pedagogos que repudiam a educação sexual, juristas e operadores de justiça que preconizam concepções ortodoxas do direito, mas também vozes de esquerda, psicanalistas e psicólogas, como também grupos feministas marcam a heterogeneidade das articulações desta ofensiva.
No caso brasileiro, é flagrante, por um lado, o perfil católico-evangélico da ofensiva, mesmo quando a forte frequência do Vaticano, como mentor intelectual dessa cadeia discursiva, seja obscurecida pela estridência evangélica. Por outro lado, também é fundamental, reconhecer a contribuição da participação de outras vozes religiosas como kardecistas e judeus de direita e de setores seculares, como os ditos liberais do Movimento Brasil Livre (MBL), juristas, médicos/as, professoras/es e políticos que não são necessariamente religiosos do qual um exemplo é o Escola sem Partido. Essas mobilizações, cada vez mais intensas desde 2016, não apenas compuseram o cenário eleitoral e pós eleitoral como, desde antes, têm implicado ataques à liberdade de cátedra de professores e professoras, denúncias extrajudiciais contra escolas, proibição de materiais didáticos sobre os temas em sexualidade e gênero e projetos de lei que visam restringir não só a educação em gênero e sexualidade, como os direitos reprodutivos e sexuais de mulheres e das pessoas LGBTI.
Nesse sentido, a publicação desse dossiê, cuja elaboração começou a ser pensada ao final de 2017 é, ao nosso ver, urgente em razão dos efeitos deletérios das ofensivas antigênero, não apenas em termos de grupos e pessoas mais diretamente afetados, mas também sobre dimensões estruturais da vida política e social. Ousamos sugerir que, diante da escala e significados desses efeitos, de fato, o dossiê chega ao público com algum atraso. Embora a produção brasileira sobre essa ofensiva tenha se intensificado nos últimos dois anos ela é ainda relativamente limitada. Nesse sentido, o dossiê pode vir a se constituir em mais uma fonte de referência para um amplo número de analistas externos ao campo dos estudos de gênero e sexualidade que hoje procuram informações e análises qualificadas para melhor compreensão da onda antigênero que assolou o país em anos recentes. O que caracteriza, esse novo esforço, é que ele oferece um excelente resgate genealógico acerca de como a "ideologia de gênero" se gestou em seu berço no Vaticano e também uma visão transnacional das políticas antigênero na Europa, antes de examinar trajetórias e efeitos dessas ofensivas no contexto brasileiro. Dito de outro modo, trata-se de uma mirada que é, ao mesmo tempo, microscópica e macroscópica que em vários aspectos contribui para compreender de maneira mais fina os significados e efeitos das cruzadas antigênero.
Este número temático, que intitulamos Retratos transacionais e nacionais da cruzada antigênero, foi originalmente inspirado pela leitura crítica do texto de Rogério Diniz Junqueira - A invenção da "ideologia de gênero": a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero - que suscitou, mesmo antes do ataque a teórica feminista Judith Butler, a urgência de oferecer ao público brasileiro um resgate genealógico das ofensivas antigênero e uma perspectiva global sobre essa onda de conservadorismo sexual. Nesse sentido, o escopo deste número temático foi, em grande medida, determinado por essa análise genealógica seminal que, entre outras coisas, estabeleceu conexões com trabalhos acadêmicos que já estavam sendo produzidos em outros países, principalmente europeus, assegurando assim uma perspectiva transnacional.
Entre outras coisas, o artigo aponta algo ainda pouco observado por estudiosos europeus: a importância da América Latina no processo de construção do discurso antigênero e de sua retórica. De fato, fica clara a intensa participação, desde o início, de atores latinoamericanos ou de estrangeiros que aqui viveram. Mostra, ainda, que o Vaticano e outros movimentos eclesiais organizados em bases transnacionais se valeram de estruturas e espaços na região para a produção preliminar de textos e documentos que, nos anos seguintes, desempenhariam um papel central no discurso e na ofensiva antigênero. Além disso, o autor ressalta que as posições doutrinárias de papa Francisco sobre a matéria não se afastam substancialmente do ideário elaborado pelo cardeal Ratzinger, mesmo quando possam existir fortes divergências entre eles em outros tópicos. Aliás, em relação aos conflitos e às disputas políticas, o autor também mostra que, nos espaços vaticanos, o discurso antigênero tem sido acionado de maneira ambígua por Francisco e tem servido como munição nas disputas internas tanto por parte dos "guardiões da ortodoxia" quanto pelos assim ditos "reformadores".
Seguem nessa perspectiva três artigos sobre a trajetória das políticas antigênero no contexto europeu. O primeiro artigo, de David Paternotte e Roman Kurar, "Ideologia de gênero" em movimento, oferece uma visão panorâmica da situação europeia. Teve como base a introdução e conclusões do livro Antigender Campaigns in Europe: Mobilizing against Equality (Rowman and Littlefilec, 2017) que foram traduzidas e adaptadas, especialmente para esse número. Segue-se o texto de autoria de Monica Cornejo-Valle e Jose Ignácio Pichardo-Galan intitulado Actores y estrategias en la movilización anti-género en España: el desplazamiento de una política de iglesia al activismo laico, que analisa a emergência dos ataques ao gênero no contexto espanhol. Esse bloco se encerra com o artigo A "teoria do gender" na Itália: um posicionamento circunstanciado sobre um significante flutuante de autoria de Lorenzo Bernini, que foi escrito especialmente para este número e traz o exame microscópico dos percursos, impactos e atores que compõem os contornos das campanhas contra gênero na Itália.
O artigo de Patternote e Kuhar também aborda aspectos genealógicos das formações antigênero e, sobretudo, enfatiza a necessidade de lentes analítico-empíricas transnacionais para compreender seus contornos e repercussões. A análise de Cornejo e Pichardo é, por sua vez, muito significativa, pois recupera dinâmicas que se deram no contexto espanhol, nos meados dos anos 2000, que podem e devem ser lidos como laboratórios ou experimentos das massivas erupções antigênero que tomaram forma depois de 2013 na Europa e na América Latina. Não menos importante, o artigo oferece informações estratégicas sobre a gênese e expansão do grupo Hazte Oir que posteriormente se desdobraria na ação global CitizenGo cujos efeitos nefastos na América Latina e no Brasil são inequívocos, como pode ser ilustrado pela campanha digital contra Judith Butler em 2017. Finalmente, o texto de Bernini, oferece uma elaboração capsular inspiradora sobre o caráter desestabilizador das teorias de gênero e queer e, mais especialmente, mapeia a adesão de atores e atrizes de esquerda e feministas à pauta antigênero no contexto italiano, abrindo espaço para um aspecto ainda pouco elaborado no contexto brasileiro.
Já o terceiro bloco faz uma cartografia dos caminhos e efeitos dessa ofensiva na realidade brasileira. Muito embora ela não se restrinja ao campo da educação, esse é o terreno que recebe maior atenção, sendo objeto de quatro artigos, o artigo A tentativa reacionária de censura nos currículos escolares: compreendendo a subversão mutua entre as lógicas de socialização e subjetivação de Fernando de Araujo Penna; o de autoria de Amana Matos intitulado Discursos Ultraconservadores e o truque da "ideologia de gênero": gênero e sexualidades em disputa na educação; o de Ana Paula Vencato, Rafaela Lacerda da Silva e Rodrigo Lessa Alvarenga intitulado A educação e o presente instável: repercussões da categoria "ideologia de gênero" na construção do respeito às diferenças e do texto "Ideologia de gênero": estratégia argumentativa que forja cientificidade para o fundamentalismo religioso de autoria de Tatiana Lionço, Ana Clara de Olveira Alves, Felipe Mattielo e Amanda Machado Freire. Essa ênfase não é apenas circunstancial, mas reflete as condições políticas nacionais em que o campo dos debates sobre educação pública constituíram o primeiro território de propagação sistemática dos ataques ao gênero. Já o artigo de Roger Raupp Rios e Alice Hertzog Resadori intitulado Gênero e seus detratores: "ideologia de gênero" e violações de Direitos Humanos explora as possibilidades de contenção constitucional e em base a premissas de direitos das ofensivas antigênero e, não supreendentemente, também dedica bastante espaço a respostas possíveis aos ataques hoje em curso no campo educacional.
De maneira diversa e caleidoscópica os artigos desse bloco apresentam uma síntese histórica da ofensiva antigênero no Brasil, com especial ênfase para as articulações com o movimento "Escola Sem Partido" e os efeitos negativos no campo dos direitos da educação e dos direitos humanos. Também é possível, com uma leitura dedicada a este bloco, reconhecer os inúmeros elementos que na realidade nacional entram em cena a partir do reconhecimento social e político das ações desta ofensiva antigênero. Tanto o artigo encabeçado por Fernando de Araujo Penna como os textos de Amana Mattos e Anna Paula Vencato e colaboradores se dedicam especificamente a compreender, a partir de referencias teóricas diversas, os efeitos da ofensiva nas várias dimensões educacionais seja dos currículos escolares às relações sociais no interior dos processos de socialização que revelam o quão antidemocrático o ensejo dessa ofensiva tem se consubstanciado no nível microscópico do sistema educacional do país.
Nesse mesmo bloco, Tatiana Lionço e colaboradores nos trazem uma leitura de três textos seminais propagados pela ofensiva antigênero no Brasil e que merecem releituras críticas por parte dos leitores: o texto de Scala, de Vero e de Lobo. Constituem, esses três livros, parte importante da produção discursiva em torno da "ideologia de gênero" tendo sido portanto seminais no processo de propagação e legitimação do sintagma para a mobilização política. Mobilização esta que tem provocado efeitos deletérios no campo dos direitos humanos como bem analisam Roger Raupp Rios e colaboradora ao evidenciar a difamação sistemática como parte da ofensiva. O artigo tanto analisa criticamente as ações da ofensiva antigenero quanto elementos para uma pauta de resposta a esses ataques a partir da perspectiva dos direitos constitucionais e das normas internacionais de direitos humanos. A difamação sistemática, como informam vários dos artigos, é uma das armas usadas pelas forças antigênero e, em geral de maneira perspicaz.
Cabe observar, contudo, que embora esse número temático abarque um razoável espectro da ofensiva antigênero, ele deixa muitas dimensões de fora. Uma lacuna importante no caso brasileiro é, sem dúvida, o drástico efeito político eleitoral dessas mobilizações. Outro aspecto que mereceria maior atenção seria um dimensionamento empírico sólido sobre os impactos negativos dos ataques a professores, currículos, material didático, num momento em que a lógica antigênero deixou de ser uma estratégia de mobilização política dispersa no tecido sócio-institucional para se converter em política pública explícita. Além disso, embora, em um primeiro momento, tenha se buscado de perspectivas latino-americanas sobre as políticas antigênero no dossiê, por razões diversas não foram bem sucedidas, e isso constitui, sem dúvida, uma lacuna. Nesse sentido nos parece fundamental sublinhar aqui que, mesmo com limites, existe hoje no país uma produção sobre o fenômeno que complementa o esforço aqui realizado.
Pensamos também que é importante explicitar alguns os parâmetros editoriais que balizaram nosso trabalho como editor e editora convidadas para a concretização desse dossiê. Por exemplo, adotamos como regra geral, independente de decisão de autores e autoras, que o termo "ideologia de gênero" seria sempre grafado assim, entre aspas. Essa decisão se fundamenta na nossa posição política de não reconhecer o termo como moldura teórica ou expressão que deve ser naturalizada. Muito pelo contrário, pensamos que é vital evidenciar que "ideologia de gênero" não é nem teoria nem descrição de um fenômeno, mas sim um tropos, um campo de disputa política, uma categoria acusatória. Além disso, nosso trabalho editorial teve, de fato, "peso de pena". Todos os artigos passaram por avaliação dupla cega de consultores e consultoras, a quem já agradecemos com muita satisfação. No entanto, como editor e editora convidadas intervimos editorialmente em boa parte dos textos para assegurar clareza e homogeneidade terminológica. Tivemos muitos debates e intercâmbios no que diz respeito a traduções e fizemos propostas de revisão fortes no sentido de refinamento analítico e empírico. Com essa perspectiva, fomos menos organizador/ra do dossiê e mais bem uma editoria comprometida a levar ao púbico mais amplo um conjunto de textos acadêmicos qualificados que poderão contribuir para inspirar respostas às ofensivas antigênero que hoje impactam a política e a sociedade em inúmeros países e, mais especialmente, o Brasil, dada sua penetração vertiginosa no aparato estatal.
Finalmente, agradecemos o reconhecimento dos diálogos e parceria frutíferas. Ao Frederico Viana Machado e à equipe editorial deste periódico, agradecemos a paciência e o permanente diálogo durante o processo. Ao colega Rogério Diniz Junqueira por ter, em primeira mão, disponibilizado seu texto que nos instigou iniciar a construção desse projeto e pelo esforço de tradução conjunta cuidadosa dos textos europeus com Marco Aurélio Máximo Prado. A confiança de Rogério D. Junqueira é, de fato, inestimável. Agradecemos a autoras e autores que aceitaram nosso convite e responderam de maneira sempre positiva a nossas sugestões de alteração. E, sobretudo, queremos agradecer ao Juliano Bonfim, bolsista de doutorado, que nos auxiliou em toda tarefa de revisão do material.
Nossa esperança, ainda viva, é que a leitura desse material possa mobilizar energias e inspirar lutas contra a restrição crescente dos direitos à diversidade, à educação plural e ampla e pela preservação da democracia no Brasil.