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Revista Psicologia Política
On-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo Dec. 2022
ARTIGO ORIGINAL
Capital-trabalho-educação: criatividade, habilidades socioemocionais e (con)formação do sujeito empreendedor de si mesmo
Capital-work-education: creativity, socioemotional skills and (con)formation of the self-entrepreneur
Capital-trabajo-educación: creatividad, habilidades socioemocionales y (con)formación del sujeto autoemprendedor
Daniele Nunes Henrique SilvaI; Lavinia MagiolinoII
IDoutorado Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas UNICAMP - Campinas/SP. E-mail: daninunes74@gmail.com
IIDoutorado Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas UNICAMP - Campinas/SP. E-mail: lamagiolino@gmail.com
RESUMO
Este trabalho discute a problemática da criatividade e das habilidades socioemocionais nas políticas educacionais neoliberais em sua relação com a psicologia. A partir de uma metodologia documental, são analisados: o Programa Nova Escola (1999-2007), o Projeto SENNA (2014) e o Inova Educação (2019). Objetiva-se demonstrar criticamente os elementos que sustentam as propostas e como se articulam aos interesses empresariais em conformidade com as leis do mercado por meio da instrumentalização dos temas aqui destacados. Os resultados estão organizados em dois eixos: a) caracterização analítica das propostas inseridas em políticas educacionais neoliberais focalizando a criatividade e a habilidade socioemocional; b) processos de subjetivação da classe trabalhados na escola submetidos à logica mercantil e neoliberal: autoempreendedorismo, autocontrole e domínio de si. Tais propostas (auto)denominadas inovadoras ocultam processos de exclusão perversos que, na verdade, investem na reprodução de velhas fórmulas de subjugar a classe trabalhadora.
Palavras-chave: Capital-trabalho; Educação; Neoliberalismo; Habilidade socioemocional; Criatividade.
ABSTRACT
This paper discusses the issue of creativity and social-emotional skills in neoliberal educational policies in their relationship with psychology. Based on a documentary methodology, the following are analyzed: the Nova Escola Programme (1999-2007), the SENNA Project (2014) and the Inova Educação (2019). The aim is to critically demonstrate the elements that support the proposals and how they are articulated to business interests in accordance with the laws of the market through the instrumentalization of the themes highlighted here. The results are organized in two axes: a) analytical characterization of the proposals inserted in neoliberal educational policies focusing on creativity and socioemotional skills; b) processes of subjectivation processes worked at school submitted to mercantile and neoliberal logic: self-entrepreneurship, self-control and self-mastery. Such (self) so-called innovative proposals hide perverse processes of exclusion that, in fact, invest in the reproduction of old formulas order to subjugate the working class.
Keyword: Labor capital; Education; Neoliberalism; Socioemotional skill: Creativity.
RESUMEN
Este artículo aborda el tema de la creatividad y las habilidades socioemocionales en las políticas educativas neoliberales en su relación con la psicología. Con base en una metodología documental, se analizan el Programa Nova Escola (1999-2007), el Proyecto SENNA (2014) y el Inova Educação (2019). El objetivo es demostrar críticamente los elementos que sustentan las propuestas y cómo se articulan a los intereses empresariales acuerdo con las leyes del mercado a través de la instrumentalización de los temas aquí destacados. Los resultados se organizan en dos ejes: a) caracterización analítica de las propuestas insertas en las políticas educativas neoliberales centradas en la creatividad y las habilidades socioemocionales; b) procesos de subjetivación de clase trabajados en la escuela sometida a la lógica mercantil y neoliberal: autoemprendimiento, autocontrol y autodominio. Tales propuestas (auto)llamadas innovadoras esconden procesos de exclusión que, de hecho, invierten en la reproducción de viejas fórmulas sometimiento de la clase trabajadora.
Palabras clave: Capital-trabajo; Educación; Neoliberalismo; Habilidad socioemocional; Creatividad
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é fortemente marcada por uma nova era industrial com ressonâncias - e dissonâncias - na esfera social, cultural, política e econômica. Tal configuração avança, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, principalmente na Europa e na América do Norte, com impactos diversos nos países periféricos. O boomtecnológico - expressão importante desse momento histórico - altera radicalmente também os modos de vida existentes até então. Daí decorrem novas organizações e modalidades nas relações capital-trabalho, que acarretam a original composição da subjetividade e da expressividade humanas, o que afeta tanto o campo da ciência - conhecimento/epistemologia - quanto o da arte - estética - e, especialmente, o da educação.
No âmbito científico, o acesso ao conhecimento na contemporaneidade passa por vias nunca antes vistas, pois está atrelado ao campo da diversificação e da expansão da informação, via dispositivos instrumentais tecnológicos. As redes inteligentes - internet -, os problemas de comunicação etc., estão em pauta como questões centrais para o desenvolvimento da pesquisa e da transmissão do conhecimento. De fato, o acesso às informações se apresenta por uma trajetória original, pois no âmbito da divulgação dos saberes tem-se como condição sine qua non a sua adequação - ou não - à linguagem das máquinas e, em consequência, a submissão aos efeitos produzidos pela explosiva exteriorização do saber, que se desloca em relação àquele que sabe - sachant -, perdendo seu valor de uso e tornando-se valor de troca. Dessa maneira, o processo de conhecer se aliena do procedimento de formação, transformando-se em mercadoria.
A esse respeito, Joaõ Evangelista (2006) expõe:
Essas transformações incidiram diretamente sobre as formas através das quais os homens sentiam e representavam para si mesmos o mundo existente. Há uma sensação cada vez mais disseminada de irrealidade, de vazio e de confusão. A razão humana é desafiada pelo avanço de processos "imateriais" e pela constituição de novas esferas de existências virtuais, que se sobrepõem à realidade objetiva. A velocidade dos fluxos de imagens e informações e o processo de desterritorialização que lhes abalam os mecanismos cognitivos, axiológicos e estéticos desenvolvidos pela modernidade no Ocidente. (Evangelista, 2006, p. 275)
Nesse panorama, esse sujeito fragmentado pluga-se a um mundo que não deixa definidas posições, que se organiza a partir do risco cotidiano, ao preço da sensação de angústia que se recompõe constantemente, o que reforça a ideia de individualismo. O local de trabalho, por exemplo, é indefinido. Uma pessoa pode se empregar num Estado, ficar desempregada, ir para outro lugar, assumir nova função e, constantemente, ter sua vida redirecionada. Essa condição está diretamente vinculada à produção econômica, que passou a ser mediatizada pelo uso de novas ferramentas tecnológicas e de gestão.
Na nova organização política, econômica e social, mercados foram expandidos em seus limites geográficos e barreiras alfandegárias se romperam, numa lógica de ampliação da exploração do capitalismo que imprimiu um funcionamento global e alterou a paisagem social e a própria configuração da subjetividade em razão das novas dinâmicas nas relações de trabalho. As experiências humanas - tanto profissionais quanto pessoais -, que se desenvolvem nas relações sociais, se articulam às instâncias específicas - o Estado e o Mercado -, que são mediadores dos modos de inserção do indivíduo na sociedade. Nesse contexto, o que se observa é que a subjetividade é atravessada (atropelada?) por múltiplas demandas do capital, que transformam radicalmente - e permanentemente - as práticas sociais, entre elas, os processos de formação defendidos em certas políticas educacionais.
Tomando esses argumentos iniciais em consideração, pretende-se analisar neste texto, a partir de uma pesquisa documental, três propostas eriçadas no escopo de políticas neoliberais voltadas para à educação pública, são elas: (a) O Programa Nova Escola (Rio de Janeiro, 1999-2002); (b) A Proposta de Avaliação das Competências Socioemocionais do Instituto Ayrton Senna - Projeto SENNA - explicitada no relatório de Daniel Santos e Ricardo Primi (2014) e; (c) O atual projeto educacional para o ensino médio, do Estado de São Paulo, denominado: Inova Educação (2019). A escolha dessas propostas deve-se ao fato de elas defenderem explicitamente uma instrumentalização das potencialidades especificamente humanas - como: a criação e o afeto - para fins de conformação aos ideários hegemônicos, de cunho neoliberal, dentro do contexto escolar. O objetivo desta investigação é de demonstrar criticamente os elementos que sustentam cada proposta e como eles se articulam aos interesses empresarias e a conformidade com as leis do mercado por meio da instrumentalização na conceituação de temas como: a criatividade e as habilidades sócioemocionais. Conforme será explicitado ao longo do artigo, tais interesses se articulam ao projeto da burguesia mercantil e financeira que pretende inviabilizar as contradições que emergem do próprio sistema capitalista, configurando modos sutis e sedutores de alienação no contexto de formação da classe trabalhadora.
NEOLIBERALISMO NO SÉCULO XXI: CRISE DO CAPITAL E NOVAS FORMAS DE EXPLORAÇÃO DO TRABALHO
Em termos gerais, o modo de organização da sociedade atual está atrelado ao esgotamento do regime de acumulação de capital baseado no modelo fordista de produção, somado à urgência de recomposição das regulações entre o capital e o trabalho (Tonet, 2018). O surgimento da microeletrônica inaugura um estilo de gestão que permite a expansão das ações mercantis num plano transnacional, global. A tecnologia e o avanço nos sistemas de comunicação viabilizam a produtividade para além dos territórios regionais e até dos Estados Nacionais. Nesse contexto, o Estado não pode ser um entrave ao sistema capitalista. As crises do Petróleo (1970), a crise do sistema financeiro (2008) e, mais recentemente, a crise derivada da Covid-19 (2020) revelam a plasticidade do sistema capitalista. Uma capacidade de se reinventar diante das dificuldades cada vez mais agudas, impondo uma agenda paulatina mais perversa e ideológica de exploração da classe trabalhadora, expropriando dela o sentido marxiano do trabalho vivo.
O próprio Estado moderno burguês liberal tornou-se um entrave às iniciativas mercantis. As políticas sociais do Estado passaram a ser concebidas como fardos financeiros, que oneravam e impediam o livre desenvolvimento do mercado. Ocorre que, ainda que considerasse sua precariedade, o Estado liberal amortecia as desigualdades sociais por meio de suas políticas públicas. Ineficiente para lidar com os conflitos sociais e com o gerenciamento econômico de suas instituições, a defesa dos teóricos neoliberais é a de que o Estado precisa reorganizar sua gestão, flexibilizá-la, nos moldes das empresas privadas, para redução de custos. Sob essa perspectiva, a gestão, na esfera pública, precisaria ser conduzida à luz dos preceitos de nova cultura mercantil baseada em produtividade e competitividade. Seria necessário 'racionalizar a prestação de serviços públicos' de caráter eminentemente social, evitando desperdícios e inchaços orçamentários.
De acordo com Pablo Gentilli (2001), o neoliberalismo não é somente uma política econômica característica da época dos avanços da comunicação, da informática e, consequentemente, da globalização. A filosofia neoliberal encerra valores culturais hegemônicos, pertencentes à classe social dominante, representada pela burguesia empresarial. É a inauguração de uma 'nova ordem cultural'. Nela, "a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta da empresa como modelo de subjetivação", afirmam Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 17).
Não obstante, há uma inovação na gestão neoliberal, que não se trata somente de sujeitos governados, mas de sujeitos que "se governam" (Dardot & Laval, 2016, p. 333 - grifo do autor). Na fase do capitalismo neoliberal, defendem esses autores, os estados são guiados pela lógica empresarial da concorrência, estabelecida em outro patamar, à medida que os países passam a concorrer globalmente pelos capitais estrangeiros. Enquanto isso, os grandes oligopólios internacionais também mudam seus status quo e passam a exercer influência decisiva nessa disputa, o que desvela a faceta mais perversa do capitalismo: a exploração selvagem das riquezas naturais e humanas.
Ainda conforme Dardot e Laval (2016), duas mudanças decorrem daí: a relativização do papel do Estado como entidade integradora de todas as dimensões da vida coletiva, e a gerência de todas as dimensões do Estado pela ótica da concorrência. Isso implica que o Estado se configura como mais uma entre as entidades que buscam maximizar seus resultados: torna-se uma empresa em concorrência no mercado global. Nesse processo, os dois autores argumentam:
Além dos fatores sociológicos e políticos, os próprios móbeis subjetivos da mobilização são enfraquecidos pelo sistema neoliberal: a ação coletiva se tornou mais difícil, porque os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de subjetivação. (Dardot & Laval, 2016, p. 9)
As mudanças na configuração do Estado - além de trazerem como consequências a escassez de serviços básicos e a perda do sentido de público - põem em xeque a própria ideia de sujeito político, já que o que está em jogo é a própria dimensão do que seja política, ao se desprezar a esfera do coletivo e do bem comum, em favor do consumo egoísta imediato (Dardot & Laval, 2016).
De maneira radical, não é somente o Estado que se adequa à 'nova racionalidade neoliberal', mas toda a sociedade passa a ser concebida como um 'mercado', no qual cada sujeito torna-se uma 'empresa' em concorrência contínua. Dessa maneira, "o homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial" (Dardot & Laval, 2016, p. 322). Ou seja, a razão neoliberal não se limita à esfera econômica, mas perpassa e envolve todas as dimensões da vida humana e da constituição da subjetividade porque atinge o sentido profundo da alma do trabalhor: o trabalho vivo.
Conforme sinalizado anteriormente, o novo modelo de gestão do trabalho vivo, que se consolida no neoliberalismo, abarca inovações tecnológicas do capital e das possibilidades técnicas na produção. Giovanni Alves (2011) nomeia essa nova fase do capital de "Quarta Idade da Máquina": as máquinas microeletrônicas informacionais integradas em rede produzem dinâmicas de virtualização nas instâncias de consumo e manipulação social que não somente contemplam as operações da sociedade em rede, mas também toma como matéria suas próprias inovações 'sociometabólicas'. Elas instauram novas formas de relação homem e máquina, implicando na produção de subjetividades "no sentido de colocar, como condição indispensável do processo sistêmico, as habilidades subjetivas (e cognitivas) do homem (mesmo que sob forma estranhada)". Elas também constituem as medições das práticas formativas e de controle do trabalho, criando a base material de uma nova hegemonia do capital na produção social, na qual se configura uma das dimensões da captura da subjetividade pelo trabalho. Surge, assim, uma nova lógica de controle e organização do trabalho, designada pelo autor como a 'captura da subjetividade' em substituição ao 'processo de coisificação', característico da produção maquinal do taylorismo-fordismo, que configurou a chamada sociedade industrial.
Esse processo - como ação de dessocialização e 'desefetivação' do homem em meio à degradação ampliada no mundo do trabalho - promove o substrato simbólico e emocional, em torno dos consentimentos hipotéticos do novo modo de produção do capital, como também assinala Alves (2011). Isso ocorre pelos próprios mecanismos estabelecidos no interior das empresas - as novas formas de jornadas e contratos de trabalho, a emergência de células produtivas, as polivalências e as multifuncionalidades do trabalhador - com implicações salutares da 'desefetivação' do trabalho vivo no capitalismo flexível, como a disseminação, por exemplo, do estresse e das doenças laborais contemporâneas.
Na reestruturação produtiva do capital no século XXI, um sistema de 'metabolismo social da barbárie' captura em si e para si, de modo contraditório, corpo e mente do trabalhador por meio da mudança radical na base técnica e nos métodos de gestão da força de trabalho. Aliam-se, então, visceralmente as novas práticas empresariais de 'captura' da subjetividade do trabalho vivo e da força de trabalho com a acumulação por espoliação, defende Alves (2011). 'Captura', aqui, não deve ser entendida em seu sentido determinista, pois há sempre linhas de fugas possíveis no contexto da luta social.
Assim:
o processo de "captura" da subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção, consentimento e de manipulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração pelo olhar, mas nas instâncias sociorreprodutivas, como a pletora de valores-fetiche e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-consciência, inconsciência do psiquismo humano. (Alves, 2011, p. 114)
A apropriação/espoliação, segundo o autor, ocorre por meio da criatividade intelectual e mesmo, emocional, não apenas dos trabalhadores, mas de consumidores, clientes e usuários de produtos e serviços na nova 'sociabilidade de predação', que marca o metabolismo social do capitalismo global. Nessa esfera, o processo de subjetivação articula-se não apenas à instância da produção, mas também à instância da reprodução social, o que exige um aprimoramento do mecanismo de 'manipulação social' do neoliberalismo.
Na medida em que privilegiava as habilidades cognitivo-comportamentais, o 'Método Toyota', por exemplo, já se imiscuíra com as estratégias de treinamento empresarial e de marketing, de modo a afetar as instâncias do psiquismo humano para controlar atitudes comportamentais no mundo do trabalho. No neoliberalismo do século XXI, o problema da relação capital-trabalho-educação parece agudizar-se de forma vergonhosamente (im)pertinente. Aquilo que se valoriza no mundo do trabalho - como a necessidade produtiva - se vê refletido, de forma atrofiada, como necessidade formativa. A escola não escapa dessa contradição. Nela está seu epicentro.
EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE DA CLASSE TRABALHADORA: FORMAÇÃO PROFISSIONAL E ESCOLAR
A transformação mais geral das sociedades e das economias capitalistas se atrela a uma concepção instrumental e neoliberal de educação e de escola, como expõe Laval (2019). A escola neoliberal é a designação de certo modelo escolar que considera a educação um bem essencialmente privado, cujo valor é, acima de tudo, econômico. Não é a sociedade que garante o direito à cultura a seus membros. São os indivíduos que devem capitalizar recursos privados, cujo rendimento futuro será garantido pela sociedade. Essa privatização é um fenômeno que atinge diretamente o sentido do saber e as instituições que supostamente transmitem os valores e os conhecimentos, além de afetar, sobremaneira, o próprio vínculo social (Laval, 2019, p. 17). Ao pôr em discussão o estatuto da escola e o papel da educação na nova racionalidade neoliberal, Laval alerta para o fato de que a escola neoliberal é responsável por deslocar a centralidade do conhecimento para a emergência de competências individuais que são necessárias ao mercado.
O deslocamento da qualificação para a competência, já fora apontado por Gaudêncio Frigotto (1996), no Brasil, como um rejuvenescimento da teoria do capital humano. Problematizando a educação brasileira após 1960, Frigotto (2009) defende que a teoria do capital humano é incorporada pelas políticas educacionais, o que consiste em seu suporte básico à lógica das competências e das habilidades individuais como forma de investimento produtivo, em substituição à lógica da qualificação formal. Para o autor,
a lógica das competências e da empregabilidade deriva da 'Teoria do Capital Humano', redimensionada com base na 'nova' sociabilidade capitalista. Apoia-se no capitalismo concorrencial de mercado; o aumento da produtividade marginal é considerado em função do adequado desenvolvimento e da utilização das competências dos trabalhadores; o investimento individual no desenvolvimento de competências é tanto resultado quanto pressuposto da adaptação à instabilidade da vida. (Frigotto, 2009, p. 68)
Ou seja: os trabalhadores precisam adquirir competências necessárias e úteis para serem competitivos e se manterem atuantes no mercado de trabalho, mas, especialmente, para dar ao empregador o que ele deseja: produtividade e lucro. O autor assinala: "o investimento individual no desenvolvimento de competências é tanto resultado quanto pressuposto da adaptação à instabilidade da vida" (Frigotto, 2009, p. 68). A ideia geral baseia-se no investimento formativo de um trabalhador que não seja 'especialista', mas, antes, multifuncional, conhecedor de todo o processo de produção da empresa em que está inserido. Em outras palavras:
o capitalismo compreendeu, então, que, ao invés de se limitar a explorar apenas a força de trabalho muscular dos trabalhadores, limitando-os de qualquer iniciativa e mantendo-os enclausurados nos moldes estritos do taylorismo e do fordismo, podiam multiplicar seu lucro explorando-lhes a imaginação, a capacidade de cooperação, os dotes organizativos e todas as virtualidades de sua inteligência. (Pedroso, 2012, p. 125)
Em linhas gerais, os defensores das propostas neoliberais apregoam que o mercado precisa de sujeitos capazes de, valendo-se da imaginação e da inteligência emocional, lidar com adversidades pelo recurso a soluções criativas. A ideia do trabalhador inventivo não está somente articulada à necessidade de idealizar produtos e novas demandas mercadológicas para consumo, mas, principalmente, à necessidade de desenvolver uma concepção de ação criadora à serviço da superação de eventuais crises que o próprio mercado - instável - gera. Ser flexível, criativo e emocionalmente inteligente - ou controlado - tornou-se, portanto, um quesito fundamental para identificar as demandas apresentadas pelo mercado, suas crises e instabilidades:
no novo quadro econômico, a reunificação das tarefas, em oposição aos procedimentos do taylorismo, aponta não para substituição do homem pela máquina, mas para uma nova exigência de qualificação da força de trabalho. Esta não tenderia mais a ser repetidora mecânica de tarefas simples, mas controladora de processos mais complexos, o que exigiria habilidades intelectuais mais apuradas. (Costa, 2000, p. 62)
Nesse contexto, a criatividade humana, aliada ao controle emocional, é quesito de extrema relevância para o desenvolvimento econômico global e, por isso, aspecto centralmente considerado nos processos de qualificação e requalificação vinculados à gestão, seja em empresas, em escolas ou em escolas-empresas. Laval alerta: "o valor social dos indivíduos corre o risco de depender cada vez mais das competências pessoais que o mercado de trabalho sancionará de forma menos institucional, menos "formal" possível" (Laval, 2019, p. 43).
No escopo das competências específicas e fundamentais para a inserção no mercado, dois aspectos se inter-relacionam e se destacam. Por um lado, a emergência de políticas formativas orientadas pela ótica mercantil e menos formal, implementadas no âmbito das próprias empresas ou na esfera de instituições de educação formal e não formal, como as chamadas organizações sociais da sociedade civil. Por outro, a criação de leis, programas governamentais, planejamentos gestores, propostas educacionais etc., que objetivam o desenvolvimento de habilidades consideradas imprescindíveis à inserção do indivíduo no mercado: flexibilidade, versatilidade, liderança e criatividade (Mendonça, 2018).
Seguindo essa linha, além da ênfase na criatividade - que se apresenta em diferentes propostas de política pública educacional -, observa-se, nos últimos anos, destaque especial para as competências e habilidades definidas como não cognitivas ou socioemocionais -perseverança, autonomia, curiosidade e outras -, de um sujeito capaz de se autorregular de maneira eficaz, útil e produtiva.
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
As informações expostas nesta seção, conforme explicitadas acima, se fundamentam em três iniciativas que trazem no seu escopo o problema da criatividade e das emoções como disparadores de competências fundamentais para a formação do sujeito e sua inserção no mercado de trabalho. São elas: (a) O Programa Nova Escola (Rio de Janeiro, 2000); (b) A Proposta de Avaliação das Competências Socioemocionais do Instituto Ayrton Senna - Projeto SENNA - explicitada no relatório de Daniel Santos e Ricardo Primi (2014); (c) O atual projeto educacional para o ensino médio, do Estado de São Paulo, denominado: Inova Educação (2019).
Do ponto de vista metodológico, se optou, inicialmente, por identificar políticas neoliberais no âmbito educacional que claramente defendessem os dois temas de interesse deste estudo, a saber: criatividade e habilidade socioemocional. Depois de incluídos os programas supracitados, realizou-se uma pesquisa documental dos programas articulada ao campo teórico, portanto, bibliográfico, até aqui sustentado.
Além de explorar os documentos, buscou-se contextualizar as propostas para consolidar a caracterização do campo articulado à esfera política. Tal caracterização se vinculou às reflexões teóricas desenvolvidas ao longo do texto, com a intenção de apresentar criticamente os elementos que sustentam cada proposta e como eles se articulam aos interesses empresariais em 'conformidade' com as leis do mercado no que tange às questões ligadas à criatividade e às habilidades sócio-emocionais no contexto escolar.
Os resultados dos dados foram organizados da seguinte maneira: (a) Caracterização analítica das políticas educacionais neoliberais: focalizando a criatividade e habilidade (sócio)emocional e (b) os processos de subjetivação da classe trabalhados na escola submetidos à logica mercantil e neoliberal: autoempreendedorismo, autocontrole e domínio de si.
RESULTADOS E ANÁLISES
Caracterização analítica das políticas educacionais neoliberais: focalizando a criatividade e a habilidade (sócio)emocional
Programa Nova Escola
Nas escolas estaduais do Rio de Janeiro, o modelo de gestão neoliberal de fornecimento privado com financiamento público foi inicialmente desenvolvido como política educacional de 1999 a 2007, a partir da elaboração dos mecanismos de avaliação institucional, estruturados pelo Nova Escola (2000). Instituído pelo Decreto n. 25.959 (2000), tal programa caracterizou-se por uma controversa parceria entre o que é público e o que é privado. Em síntese, a ideia era criar um sistema avaliativo que pudesse indicar níveis da qualidade de ensino ofertada pelas escolas públicas. O governo - em parceria com uma empresa privada de 'consultoria educacional' - consolidou um complexo sistema de avaliação institucional que atribuía grau I, II, III, IV ou V - por níveis de desempenho - às escolas estaduais. O êxito por desempenho significava, objetivamente, bônus salarial distribuído aos professores e à equipe técnica, em função do nível em que a escola se classificasse pelo total de pontos obtidos na avaliação.
Com relação aos aspectos observados na avaliação das escolas, três subprojetos temáticos foram sistematizados: "Avaliação da Gestão Escolar"; "Avaliação do Desempenho Escolar" e "Avaliação dos Indicadores de Eficiência". Esses temas estavam orientados e inspirados pela LDB n. 9394/96, no que tange, especificamente, à observação do padrão de qualidade na escola, à descentralização da gestão educacional e à flexibilização escolar.
Os quesitos avaliativos de gestão participativa, descentrada e flexível, indicavam a posição assumida pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, atrelada à implementação da lógica da gestão da qualidade na esfera pública de ensino, e mostram a entrada e a permanência dos valores que norteiam as empresas e seus mecanismos de índices de produtividade nas esferas escolares. De fato, a presente cultura privatista gerou a reconfiguração das funções, dos princípios e dos objetivos da instituição pública. Houve a transformação dos procedimentos de avaliação em índices quantitativos e comparáveis entre instituições, o que gerou acirrada competição entre professores e escolas (ver Silva, 2006)1.
Para pontuação das relações de ensino e aprendizagem, segundo esse modelo, eram focalizadas, principalmente, a inovação pedagógica e a relação do aluno com a proposta educacional da instituição avaliada. Em geral, o modo de observação desses aspectos ocorria, até 2003, por meio de entrevistas com diretores, professores e alunos, bem como por averiguação das atividades realizadas em sala de aula.
Desenhos, 'livrinhos', pinturas, cadernos, trabalhos com sucata e atividades nos murais, além de outros fatores, eram elementos que podiam ser observados pelos avaliadores, como índices do envolvimento dos alunos com a escola e das inovações pedagógicas apresentadas pelos professores e pela equipe técnica. A atenção aos trabalhos realizados pelos discentes orientava as pontuações quanto ao planejamento pedagógico e sua proposta. Ou seja: a organização das tarefas e o uso - ou não - de recursos materiais diversos poderia indicar a "potencialidade criativa" dos alunos e da professora.
Como foi desvelado pela pesquisa de campo feita (Silva, 2006), a atenção voltava-se preferencialmente para a demonstração daquilo que fora produzido em sala de aula, contudo os processos que identificavam os modos de manifestação da imaginação dos alunos e sua relação com a dinâmica pedagógica não eram avaliados/analisados. A base avaliativa, na medida em que quantificava o fenômeno educacional, convertia o sentido da atividade criadora em coisa, impedindo a análise mais profunda das condições efetivas para a criatividade na escola. Em consequência disso, no caso do Estado do Rio de Janeiro - e, pode-se dizer, de tantos outros estados do país -, a pesquisa feita revela que o fio condutor desse modelo de gestão, validado na experiência educacional - por meio de produtos, quantidades, níveis e pontuações, - não traz somente prejuízos à compreensão do sentido público da educação, mas demonstra também que a política neoliberal, enquanto lógica cultural, minimiza a importância dos 'processos pedagógicos' - em especial, dos modos de composição da atividade criadora na escola - e os camufla, ao dar visibilidade apenas a uma espécie de 'produtos do pedagógico'.
A Proposta de Avaliação das Competências Socioemocionais do Instituto Ayrton Senna - Projeto SENNA
Outra conhecida proposta de política pública de avaliação no Brasil foi alavancada pelo "Instituto Ayrton Senna", em parceria com a "Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC)" e com a "Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)". Tal iniciativa incluía a mensuração de competências socioemocionais de estudantes do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. Nesta proposta de avaliação em larga escala, conhecida como Projeto SENNA, afirma-se que "a escola reconhece a importância dessa abordagem, entendendo que o desenvolvimento dos alunos é multidimensional e que o aprendizado envolve o domínio de competências 'não cognitivas', de natureza afetiva e comportamental" (Santos & Primi, 2014, p. 11).
Tais competências são exaltadas no escopo de uma concepção bastante conhecida - e controversa - em Psicologia, denominada Big Five, em que se compreende a personalidade humana como composta por cinco dimensões, conhecidas como os "Cinco Grandes Fatores: Abertura a Novas Experiências, Extroversão, Amabilidade, Conscienciosidade e Estabilidade Emocional". O relatório faz menção a um amplo conjunto de instrumentos psicométricos validados internacionalmente, invocando certa vertente da psicologia, seus saberes e métodos para fundamentar sua proposta. O objetivo principal é validar um instrumento, ao mesmo tempo, "economicamente viável para aplicação em larga escala" e "cientificamente robusto para subsidiar pesquisas acadêmicas na área" (Santos & Primi, 2014, p. 12). Coadunando a psicologia com áreas da economia, terminam afirmando, sem grandes preocupações com a produção científica e as objeções e críticas já postas, que, nas últimas décadas, houve um consenso entre os psicólogos de que a maneira mais eficaz de analisar a personalidade humana é observá-la nessas cinco dimensões.
De fato, vários são os pesquisadores que se contrapõem explicitamente ao estudo que fundamenta a proposta: a abordagem dos Big Five. As críticas na comunidade científica têm levantado diversos argumentos contrários ao uso da abordagem fatorial - que originou os agrupamentos dos cinco fatores que descrevem a estrutura da personalidade humana - que fundamenta a proposta (Smolka, Laplane, Magiolino, & Dainez, 2015). Apesar de todas as criticas, os proponentes apresentam os Big Five como fosse um consenso no campo da psicologia para justificar sua implementação.
Salta aos olhos, no referido relatório, o movimento de legitimação de um modo único de se compreender o que é a personalidade humana. Além disso, chama a atenção as implicações dessa abordagem da personalidade para o processo educacional. A psicologia é, nessa proposição, invocada a subsidiar e a legitimar um modo único de compreender o que se entende por personalidade humana e, ainda, o que se fará no processo educacional a partir dele, a despeito de todas as críticas que tenha recebido (Magiolino, Anjos, & Almeida, 2018).
É interessante observar as referências a conceitos desenvolvidos no escopo das teorias comportamentais em Psicologia, como o de autoconceito e autoeficácia, nessa proposta atrelados ao desempenho, à persistência e, então, ao sucesso na formação educacional e, consequentemente, no mercado de trabalho. Como se pode ler no relatório:
Sabe-se, por exemplo, que o ato de aprender os conteúdos curriculares não envolve apenas competências ligadas à velocidade de raciocínio e à memória, mas exige também motivação e capacidade de controlar a ansiedade e outras emoções. A criatividade, por sua vez, envolve a capacidade de refrear formas tradicionais de pensamento e requer boa dose de autoestima e confiança. A escola reconhece a importância dessa abordagem, entendendo que o desenvolvimento dos alunos é multidimensional e que aprendizado envolve o domínio de competências "não cognitivas", de natureza afetiva e comportamental (Santos & Primi, 2014, p. 11)
As ideias de flexibilização e de multifuncionalidade que marcam a nova ordem no mundo do trabalho e da formação profissional estão introduzidas no relatório de Santos e Primi (2014) por meio de apontamentos sobre a multidimensionalidade no desenvolvimento humano em um processo de autoconhecimento e autocontrole de maneira eficaz, o que é ainda mais patente em outro programa recém-implantado em São Paulo que discutiremos a seguir.
Inova Educação (2019)
O Inova/SP, atual projeto educacional do estado de São Paulo - também desenvolvido em parceria com o Instituto Ayrton Senna - faz apelo às habilidades, às competências socioemocionais e à formação multidimensional. Como exemplos de competências a serem desenvolvidas - atreladas ao trabalho com o projeto de vida dos estudantes - destacam-se: autoconhecimento, autocuidado, autoestima, autoconfiança e autoeficácia; garra, determinação, perseverança, esforço e resiliência; abertura a novas experiências (Estado de São Paulo, 2019).
Uma preocupação presente no documento de lançamento do programa diz respeito ao que pode tornar a escola mais atrativa para o jovem. Uma das maneiras de formular a pergunta é, curiosamente: "o que ajuda o cérebro adolescente a aprender?" As respostas retóricas estão relacionadas à centralidade do aluno, ao equilíbrio entre tolerância e exigência, bem como à oportunidade de escolhas e ao desenvolvimento do autoconhecimento - que assume destaque. O projeto se baseia na reorganização temporal, com diminuição da dedicação às disciplinas tradicionais e o aumento de tempo de jornada escolar para o desenvolvimento das atividades do Inova/SP. Essa reorganização remete ao que, de certa forma, acontece não só no mundo do trabalho, mas também numa esfera social mais ampla (Alves, 2011; Dardot & Laval, 2016). É interessante notar que o programa está dividido em três eixos: tecnologia, eletivas (dentre as quais se destacam empreendedorismo, educação financeira, economia criativa) e tempo para que estudantes possam participar de atividades relacionadas ao seu 'projeto de vida'.
De acordo com um documento dirigido aos professores e professoras da rede estadual de ensino (disponível no site da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo), "o componente de projeto de vida também é um espaço para o desenvolvimento das competências socioemocionais", uma vez que, a partir de oficinas nas quais se busca responder "Quem sou eu? Quem eu quero ser quando crescer? O que eu preciso fazer para chegar lá?", também se pretendem desenvolver "habilidades de carreira e vida".
O documento menciona que algumas habilidades socioemocionais se associam com as cognitivas, mas não há preocupação com os conteúdos ou com os conhecimentos em si. A análise desses documentos deixa evidente que o peso maior é o do direcionamento dos estudantes a determinado padrão comportamental por meio das habilidades a serem desenvolvidas na elaboração do seu projeto de vida. Esse comportamento deve, portanto, saber responder adequadamente ao contexto instável na esfera da vida, mas também às constantes transformações no mundo do trabalho.
Revela-se, portanto, a mudança de tônica da escola, que não prioriza o conteúdo científico, o conhecimento historicamente produzido, mas enfatiza o processo de autoconhecimento do sujeito que deve passar a gerenciar sua formação em busca de sucesso educacional e profissional - e, ao mesmo, tempo se responsabilizar por um eventual fracasso. O problema é que o próprio sujeito é transformado em objeto de conhecimento. E o processo educativo é reduzido a isso: exercício constante de autoconhecimento e empreendedorismo. Encerrado nesse processo, voltado para si mesmo e, sem condições de compreender a complexidade de seu entorno, as contradições históricas e econômicas que envolvem seu processo de formação e (não)inserção no mercado de trabalho (pois não há empregabilidade), o sujeito fica refém de uma ideia ficcional que o enreda: a subjetividade empreendedora de si mesma.
Os processos de subjetivação da classe trabalhados na escola submetidos à logica mercantil e neoliberal: autoempreendedorismo, autocontrole e domínio de si.
Como vimos argumentando, a precarização das condições e das relações de trabalho no sistema capitalista neoliberal reverbera nas políticas educacionais e, mais especificamente, na escola pública. Isso não ocorre de forma fortuita, pois todas essas esferas se relacionam intimamente com os modos de organização do capital, visando assegurar sua reprodução. Parte integrante da lógica estruturada nesse sistema, a escola pública, particularmente, reflete e refrata as contradições que lhes são imanentes. Mas, além disso, ela parece estar se transformando no grande caldeirão em que se coloca em ebulição os processos de subjetivação calcados na lógica empresarial e individualista da nova ordem racional neoliberal.
Na aparência do fenômeno, a subjetividade parece estar positivada pela ideia do empreendedorismo, porém, em essência, ela está aprisionada à imagem narcisista, pois o sujeito não se reconhece como parte das condições e das contradições sociais em que se encontra. Ou seja: o sujeito se entende tão somente como empreendedor em si, livre.
Como diz Stetsenko:
a noção de "liberdade" para assumir o controle da vida através da autorregulação é um bem conhecido mantra do neoliberalismo, de fato, um de seus grampos. Na verdade, ele desvia a atenção do aumento da exploração, hegemonia, desigualdade e racismo que a dinâmica sociopolítica do último estágio do capitalismo predatório implica. Essas dinâmicas de fato despojam as pessoas de sua agência e, em vez disso, fornecem apenas opções parcas por meio de mecanismos ilusórios, tais como autocontrole, consciência, "psicologia positiva" e outras pseudossoluções individualistas. (Stetsenko, 2020, p. 5, trad. nossa)
Os princípios do domínio de si ou do autocontrole, nos termos de Dardot e Laval (2016), são, ao mesmo tempo, o modo de inserir-se na sociedade da incerteza, e "uma espécie de compensação ao domínio impossível do mundo" (Dardot & Laval, 2016, p. 342), - já que tudo se apresenta de modo a condensar a visão de que "nem a empresa nem o mundo podem ser mudados, eles são dados intangíveis. Tudo é questão de interpretação e reação do sujeito" (Dardot & Laval, 2016, p. 344).
Nessa perspectiva, o sujeito deve acreditar que seu esforço pessoal, seus projetos e adequações comportamentais são por si suficientes para seu sucesso no mundo, afinal, ele procura estar constantemente adequando-se ao sistema, mas não consegue olhar para o que está à sua volta como algo que pode e precisa ser transformado. Temos, então, uma subjetividade empreendedora de si, administrada por meio da liberdade travestida de autocontrole, mas é de fato uma subjetividade que já está em vias de captura, a priori, pela ideia de conformismo e de passividade, visto que o que se produz é adequação e não a transformação.
COMENTÁRIOS FINAIS
Ao longo do texto, buscamos dar visibilidade a maneira perversa como as políticas neoliberais se travestem de termos e conceituações que, aparentemente, parecem dialogar com os interesses da classe trabalhadora. Afinal, desenvolver a criatividade ou as habilidades socioemocionais não parece ser, num primeiro momento, algo pouco importante para a formação do trabalhador. Contudo, quando nos debruçamos atentamente aos documentos produzidos pelas políticas vigentes, identificamos o que está por escondido por esse véu terminológico, quer seja: uma nova e mais perversa forma de contenção de classe para fins de sua exploração.
Nos três exemplos que apresentamos neste trabalho, demonstramos que a internalização dessa lógica opressiva recai sobre as classes mais empobrecidas, por meio da implementação de programas e projetos voltados para a escola pública, que alienam os sujeitos de sua própria con(tra)dição histórica e transformadora. Nosso foco, aqui, é a instrumentalização e a coisificação dos processos criadores e/ou afetivos, que estão no coração daquilo que entendemos por potencialidades próprias do gênero humano.
Ao converter uma potencialidade humana - algo em si - em uma coisa - algo fora de si - tem-se uma inversão perversa daquilo que é próprio do humana, pois o que lhe era específico torna-se estranho a ele - fora dele. Esse mecanismo da 'perversão pelo avesso', distancia os sujeitos daquilo que temos denominado por subjetividade revolucionária (ver: Sawaia & Silva, 2019; Sawaia, Magiolino, & Silva, 2020).
Mas como ocorre essa 'perversão pelo avesso'?
Conforme defendemos, ela ocorre pela captura da subjetividade da classe trabalhadora, na medida em que a subjetividade é (con)formada na/pela sua pseudo-hipervalorização, evidenciada na lógica do empreendedorismo de si. Ocorre um apagamento que impede o reconhecimento das determinações históricas.
O que Karl Marx e Friederich Engels (2010) previu é que a única forma de se libertar dessa opressão é fazendo o caminho oposto. Ou seja, somente o reconhecimento, pelos sujeitos, de sua condição servil e da ação coletiva organizada para a criação de uma nova forma societária é possível criar espaços de colisão. Contudo, é importante ressaltar que Marx e Friederich Engels (2010) também já tinham previsto que o capitalismo iria criar um enorme aumento da riqueza dos ricos por meio do aumento da pobreza das massas, pois ele tem por objetivo a 'marketização' de toda a sociedade e de toda a vida, incluindo a educação (Stetsenko, 2019).
Nesse contexto argumentativo, entendemos que a escola é uma instituição prenhe de contradições porque tem na sua estrutura de origem um agregado de políticas e práticas vinculadas aos valores da classe dominante, aos interesses empresariais. A escola está implicada às conformações estratégicas dos trabalhadores, conforme temos argumentado até aqui.
Por outro lado, temos que reconhecer que a escola, ao democratizar saberes historicamente produzidos, possibilita o acesso ao conhecimento, promovendo o desenvolvimento humano, pelo alargamento da experiência subjetiva que o próprio conhecimento engendra. Afinal, é na escola - mas não somente nela - que o reconhecimento de instrumentos mediadores da relação do homem com a cultura pode potencialmente ser explorados, vislumbrando outros projetos de vida para o gênero humano, a partir de horizontes políticos emancipadores.
REFERÊNCIAS
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Submissão: 15/12/2020
Revisão: 25/05/2021
Aceite: 10/08/2021
Financiamento: Não houve financiamento.
Contribuição dos Autores:
Concepção: DNHS
Coleta de dados: DNHS;LSM
Análise de dados: DNHS;LSM
Elaboração do manuscrito: DNHS;LSM
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: DNHS;LSM
Aprovação final do manuscrito: DNHS;LSM
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Não se Aplica
1 Os dados coletados para análise deste artigo foram construídos a partir de uma pesquisa de doutorado realizada entre os anos de 2002-2006 sobre: Imaginação, criança e escola, no âmbito da educação infantil, no Rio de Janeiro. Durante a investigação, a escola estava sendo avaliada pelo Programa Nova Escola - Programa Estadual de Reestruturação da Educação Pública - implementado entre os anos de 1999-2002, suspenso em 2003 e retomado em 2004 até 2007. A avaliação, realizada por uma instituição particular, mudou radicalmente a dinâmica escolar, pois todas as atividades conduzidas pelos docentes se orientavam às pontuações avaliativas que se convertiam em bonificação por resultados.