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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.12  Salvador  2011

 

[Passa]tempo – metáfora da existência

 

[Pass]time – the metaphor existence

 

 

Dalva de Andrade Monteiro*

Universidade Estadual de Feira de Santana

 

 


RESUMO

A relação do ser humano com o tempo tem sido marcada tanto por aspectos utilitários como reflexivos. A operacionalização dessa ferramenta – ponderável enquanto construto humano e inapreensível enquanto possibilidade do infinito inalcançável – mobiliza questionamentos e afetos de toda ordem e para todos os fins. Seja para a vida vivida no mundo do cotidiano ou para a vida refletida no mundo das ideias, o tempo é um marco, uma baliza, uma referência para o existir e para as construções humanas. No que concerne ao campo das ideias e dos saberes em História, Filosofia, Astronomia, Teologia, Saúde Coletiva, Física Quântica e Psicanálise, entre outras, o tempo do Chronos é a medida, o controle, a linearidade previsível e mensurável. Dialeticamente, esses mesmos saberes acenam com outros tempos do tempo. Desses, constata-se que eles escapam do utilitarismo ditatorial do time is money, subvertem a ordem do controlável, extrapolam a dimensão única, rompem com o aqui e agora do imediatismo e do consumismo. Nessas outras formas de se delinear o tempo, o tudo e o todo, mais que quantificados, demandam ser qualificados. A partir dessas provocações, talvez seja possível se cogitar que o existir é mais do que um mero passatempo.

Palavras-chave: tempo; psicanálise; qualidade de vida; consumismo; depressão; imediatismo.


ABSTRACT

The relationship between human beings and time has been marked by both utilitarian and reflective aspects. The operation of the tool ponderable human construct is as elusive as the possibility of the unreachable infinite; it mobilizes questions and feelings of all categories and purposes. Whether it is a life lived in the everyday world or life reflecting the world of ideas, time is a landmark, a beacon, a reference to the existence and human construction. In the field of ideas and knowledge in History, Philosophy, Astronomy, Theology, Public Health, Psychoanalysis, and Quantum Physics among others, Chronos is the time of measurement, control, and predictable linearity and quantity. Dialectically, these fields nod to other aspects of time within time. Of these, it appears that they escape the dictatorship of utilitarianism ‘time is money,’ which subverts the order of control, that extends beyond the single dimension, which breaks with the immediacy of the here and now and consumerism. These other ways to delineate time must be qualified, rather than quantified. From these provocations, it may be possible to think that existence is more than just the passage of time.

Key words: time; psychoanalysis; quality of life; consumerism; depression; immediacy.


 

 

PRIMEIRO TEMPO– INSTANTE DE INICIAR

O senso comum entende o tempo e a sua contagem como algo da ordem do que é divino. Para boa parte das pessoas religiosas, essa divisão cronológica é quase um sacramento, muito embora a maioria desses brasileiros, principalmente os excluídos do saber que vivem num estado de analfabetismo funcional1, desconheça a interferência de religiosos na criação do calendário no mundo cristão. Ainda que seja um acontecimento movido pela conveniência socioeconômica dos humanos detentores do poder de controle e de decisões, a sistematização do calendário pelo Papa Gregório XIII (1502-1585), no século XVI, deve ter contribuído, em alguma medida, para a sacralização do tempo, inclusive na discordância tão veemente pelo horário de verão, para alguns devotos mais ortodoxos.

Existe outro tempo, menos conhecido que o anterior, também construto humano, que é da ordem da ciência na sua leitura do cosmo. Ele se baseia nas emanações das estrelas, algumas delas hoje inexistentes, mesmo ainda sendo observáveis, de cujos restos estão constituídos todos os planetas, os satélites, os meteoros, os cometas e nossos corpos. Enquanto existem, as estrelas se consomem irradiando energia, calor, sonoridade e luz. Esta, como radiação eletromagnética, tem um comportamento diferente de todos os outros elementos conhecidos pelo ser humano. Funciona como onda e partícula, ou seja, como imaterial e material, sem dualismo, na diversidade complementar que estrutura o todo e o tudo. As ondas luminosas fundam um novo tempo. A categoria ano-luz é o tempo do Universo medido pela velocidade da luz ao se propagar no espaço; um tempo sobre-humano, relativamente eterno.

Quando se trata do recorte biológico, os seres vivos, não somente são regidos pelo ciclo circadiano, mas também, no exato momento do big-bang da concepção, é acionado o biorrelógio interno. Este marca o tempo do desenvolvimento do ser vivo até sua maturidade, concomitante ao seu processo de degradação, ambos contabilizados no tempo linear. Essa cronometragem pode ser constatada biologicamente nas células de todos os seres vivos, fenômeno conhecido como apoptose. O ser humano, por ser resultante da organização de bilhões de células, aí tem sua finidade. Ao nascer, cada célula já vem marcada, já vem geneticamente programada, com tempo de validade. Entretanto, no caso do ser humano, o biológico não é soberano, pois os fatores psicossociais e socioeconômico-culturais são determinantes da saúde, tempo de vida e qualidade de vida, como tem provado o campo da Saúde Coletiva. Assim sendo, os humanos – dependendo se perderam ou ganharam na loteria social do nascimento – conseguem ter sua morte abreviada ou postergada, inclusive, ultrapassar, num período de tempo razoável, sua data global de vencimento. Ou seja, subvertendo o que os caracteriza como espécie animal, muitos seres humanos, neste exato momento, podem estar circulando, em vários lugares deste planeta, com sua data de validade biológica vencida.

No campo da Filosofia, o filósofo francês Henry Bergson (1859-1941), um entre os muitos pensadores deste tema, na sua tentativa de estudar o tempo real, aponta, como erro estrutural da ciência hegemônica, o fato de o tempo considerado na explicação dos fenômenos e dos seres humanos ser baseado na marcação do relógio. Tornou-se crítico do tempo como um fenômeno linear e quantificável. Em contrapartida, propõe uma visão da temporalidade baseada no “tempo da práxis”, enquanto duração em refração de tempo que avança por saltos, intervalos e como sucessão. O tempo do tecido do real seria aquele tempo que Bergson define como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação. Ele considera o tempo psicológico de forma transversal, ou seja, existe a suposição de um alinhamento do que é presente, passado e futuro, justapostos no estado de consciência. Trata-se de uma representação espacial da temporalidade psíquica, uma dinâmica que expressa a unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade de momentos interligados por um eixo articulador idiosincrásico.

Através da lente da Psicanálise, Freud (1856-1939) afirma que o inconsciente é atemporal porque não se inscreve na lógica do tempo linear, na sequência fragmentada do passado (antes), presente (agora) e futuro (depois). No tempo do construto freudiano, o tempo é transversal e dinâmico. Os traços mnemônicos não estão engessados no compartimento do que já foi apreendido. Na dinamicidade das ressignificações, qualquer recorte do tempo comporta dinâmica e coetaneamente todos os tempos. Segundo Jô Gondar, mesmo que nunca tenha sido colocado como categoria de análise, como objeto de reflexão, o tempo se materializa na psicanálise quando os textos freudianos mencionam a memória, a transmissão, a repetição, a perlaboração, a pulsão, a invenção, o acontecimento, o novo, e assim por diante.

Segundo o texto judaico-cristão do Eclesiastes (3, 1-8), há tempo para tudo debaixo do céu, ou seja, neste mundo do cotidiano. Para o autor, no momento em que acontece, o fato não deve ser considerado temporão ou serôdio, intempestivo ou inopinado, por maior que seja a tempestade que possa causar. Então, dadas essas várias possibilidades de tempo anterior e superficialmente delineadas, de qual tempo deve aqui se tratar? Qual a focalização do tempo seria tempestiva, no tempo devido, para se refletir neste instante, nesta oportunidade, neste fugaz presente?

 

SEGUNDO TEMPO – MOMENTO PARA REFLETIR

Como já foi cito acima, em Freud, o tempo nunca foi elaborado enquanto categoria de análise, um conceito refletido, mas é uma noção transversal a toda compreensão da dinâmica do aparelho psíquico, inclusive, o tempo cronológico é uma das ferramentas da prática psicanalítica. Nestes tempos, tem-se fortalecido o argumento do tempo lógico lacaniano. Ainda que respaldado teoricamente, percebe-se algo distorcido em alguns consultórios, fato cada vez mais frequente em algumas práticas, segundo reclamação de clientes que migram em busca de outras abordagens. Em que pese o apelo ao recurso técnico da contribuição lacaniana, não há como sofismar que o tempo lógico reduzido é tempo que mais se adapta ao imediatismo, ao consumismo, ao arrocho dos honorários vigentes determinados pelo sistema econômico concentrador.

O tempo lacaniano é chamado de lógico por ser o tempo do inconsciente, o da constituição da subjetividade. Subdivide-se em três módulos: instante de olhar (ver o que está dado), tempo para compreender (trabalho de elaboração), momento de concluir (passagem da hesitação para ação, buscar se posicionar). No entender de Gondar, a ideia lacaniana do tempo como descontinuidade, o privilégio do instante, o tempo lógico, apresenta marcante influência de Heidegger, tendo em vista que o filósofo coloca uma certeza antecipada — no caso a certeza da morte, da finitude humana absoluta — como elemento para se pensar o tempo. A morte anunciada como potencialidade cria a urgência do ser humano se posicionar no tempo de sua vida, pois adiante está a morte inexorável. A autora defende o ponto de vista de que, na leitura lacaniana, a finitude do ser humano, de sua vida, foi substituída pela finitude do sujeito. Desse modo, o posicionamento é em relação ao desejo, o qual depende do Outro para emergir, haja vista que cada sujeito, no seu processo de subjetivação, enfrenta, em momentos marcantes, a sua incompletude.

Entre as possibilidades da finitude simbólica do sujeito pelo esvaziamento do seu desejo, chegando ao ato dramático do aborto do próprio tempo de existência pela busca do suicídio, há de se refletir sobre os sujeitos moderados e gravemente depressivos2 . Nos estudos da curva em crescente da depressão, desde a década de 60, nos países centrais, ela vem sendo classificada como um sintoma social, dado o seu impacto na qualidade e na expectativa de vida, como informa a OPAS/OMS3. A depressão é entendida por Khel como a moderna herdeira da ultrapassada melancolia pré-freudiana, e os sujeitos depressivos começaram a substituir os melancólicos a partir de meados do século passado. São os representantes privilegiados da subjetividade do mundo globalizado, e o discurso marcante recorrente na acedia traz o “[...] sentimento de um mundo vazio, no qual as ações humanas são privadas de todo valor”4 .

Segundo a mesma autora, a covardia moral analisada por Lacan em sua clínica, no caso da depressão, emerge como a condição da demissão subjetiva, uma vez que existe uma fatalidade melancólica, uma submissão paralisante ao que se entende por destino. O depressivo carrega uma culpa depressiva porque o desejo foi cedido a favor do campo dos vencedores, fato que o coloca na condição de traidor. Observa-se que tal sentimento é mais intenso se esse ser humano tem uma visão crítica da realidade e não se insere em atividades de mobilização social. Ele vive a triangulação da angústia, da servidão e do fatalismo, perdedor da sua condição criativa de produzir transformações na vida social. Assim sendo, ao se fazer semblante da traição e do fatalismo, o sujeito depressivo se insere na dupla possibilidade de alienação: “[...] aliena-se como sujeito político e aliena-se como sujeito do inconsciente”5.

A mesma autora concorda que, desde o século XIX, a melancolia é entendida como “[...] uma forma tributária de uma determinada maneira de se pensar a história e, consequentemente, de se posicionar diante dos conflitos sociais e políticos do presente”6. Como não existe sintoma sem um saber, é possível que os depressivos de hoje, assim como foram os neuróticos analisados por Freud, há quase dois séculos, sejam os portadores de um saber deste tempo. Eles sabem e sofrem o desconforto, o mal-estar de se viver nos dias de individualismo, insegurança, competição, consumismo, valores descartáveis e aparentes; sabem da “[...] inconsistência do Outro e da inutilidade de tentar servi-lo”7. Essa fluidez, essa inconsistência do Outro é apreendida nas relações sociais, nos valores culturais que são transmitidos de geração em geração, e sobre quais valores a sociedade de economia neoliberal tem-se estruturado.

Há muito se fala do imediatismo do ser humano, orquestrado pelo consumismo, ambos determinados pela lógica econômica da alienação e da expropriação. Não é de agora que se denuncia que essa lógica tem contribuído para que a espécie, que se considera o topo da linha dos seres vivos, venha tendo comportamentos próprios de uma espécie parasita. Citando Stuart Cloete (Balada Africana), Bondaczuk observa que, no afã do lucro, os seres que se celebram civilizados sugam o suor, o sangue, o tempo e a vida de seus semelhantes, que se deixam ser consumidos na crônica e narcísica exploração, humilhação, degradação e escravização de humanos por humanos. Em sua perplexidade, não encontra resposta para esta aberração de o ser humano se comportar como “[...] o maior, o mais cruel e o mais mesquinho de todos parasitas”8. Partindo do princípio de que todos os seres humanos têm o mesmo início e o mesmo fim biológico, ou seja, em tempos diferentes fazem percurso semelhante, ele advoga que o mais racional, o mais civilizado e o mais natural do instinto de preservação seria a relação de mutualismo; algo como relações horizontalizadas de trocas dentro desta mesma complicada, dominadora e temerária espécie humana.

 

TERCEIRO TEMPO - INSTANTE DE FINALIZAR

O niilismo tem sido a nota marcante destes tempos de agora. De uma forma silenciosa, disseminada e massificante, os meios de comunicação estão-se empenhando em sedimentar a descrença, o cinismo, o esvaziamentos de valores duráveis e para além do tempo deste instante. As propagandas e a publicidade universalizam o hedonismo. A medicina acena com a possibilidade de os psicofármacos produzirem felicidade e tranquilidade em blísteres, anestesiando até as consciências, além de já prometer a vida eterna aos endinheirados confiantes no congelamento dos corpos por tempo indeterminado, ou dos que podem adquirir novos órgãos ou células-tronco.

Mas nem só de ideologia hegemônica é contada a História construída neste momento, pois há sinais globalizados de dissidência do parasitismo predatório ou da inércia depressiva. Apesar do silêncio ensurdecedor dos meios de comunicação, inclusive os brasileiros, as redes sociais, ferramentas de controle social ultramodernas utilizadas pelo poder dominante, contraditoriamente, deram visibilidade a um ator social cuja voz e atitudes traduziram uma posição contra-hegemônica. Numa visita que fez ao a Liberty Plaza, em Nova Iorque, em 10 de outubro de 2011, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street)9, Slavoj Žižek — filósofo, esloveno, marxista e psicanalista lacaniano — leu um manifesto contundente, no qual ele encorajava a multidão a prosseguir, a analisar as motivações daquela mobilização coletiva. Como profeta dos tempos modernos, Slavoj Žižek admoestou os manifestantes a estarem atentos aos que cooptam os movimentos sociais para esvaziá-los e pasteurizá-los, tornando-os inócuos.

O texto convida a se refletir para que o movimento não fosse um ato narcísico e apenas espalhafatoso, mas tivesse a finalidade de ser forte, coeso, crítico e comprometido a fazer mudanças. Faz um convite para se buscar alternativas ao capitalismo hegemônico, aos líderes mundiais do século XX, a se trilhar um caminho longo e difícil, desobedecer a ordem norte-americana do não envolvimento em atos políticos, evitar o apaziguamento da consciência com atitudes pseudossolidárias, capitaneadas pelo grande capital, como as campanhas de reciclagem das latas de Coca-Cola ou de ações pontuais no mundo subdesenvolvido, por este ser espoliado há muito tempo. Prevê que as represálias para aquela manifestação iriam procurar atingir valores simbólicos defendidos pelo imaginário norte americano.

Continuando, Žižek avisou que os manifestantes iriam ser acusados de “não americanos”, de serem violentos, de serem perdedores, de serem comunistas e de serem sonhadores. Com forte tendência ao pacifismo, o autor do manifesto defendeu a violência no estilo de Mahatma Gandhi, de Martin Luther King, Ellen Sirleaf, Leymah Gbowee e Tawakkul Karmann. Estas últimas, laureadas com o Nobel da Paz 2011, lutaram pela paz e pelos direitos das mulheres na Libéria e no Iêmen.

O filósofo faz, no manifesto, apologia da violência pacifista, a que bate de frente contra o sistema de dominação e segregação, sem derramamento de sangue. Defende a violência simbólica, pois entende que o sistema capitalista global se sustenta na crônica e renovável violência contra o ser humano. Alerta já vir denunciando que, nos EEUU, a especulação e a corrupção na Wall Street garantem o socialismo para os ricos e a hipoteca ou perda dos imóveis para a maioria da população de assalariados. Critica o comunismo chinês, que se vem sustentando no mais implacável dos capitalismos e ironiza os que determinam a ordem econômica mundial por terem a ilusão de que podem conduzir o mundo com mudanças cosméticas, por tempo indefinido, sem admitir que o sistema está-se autodestruindo.

Ele finaliza seu manifesto com as seguintes palavras: “Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão conseguiu um emprego na Sibéria. Sabendo que todas as suas correspondências seriam lidas pelos censores, ele disse para os amigos: — Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance — a única coisa que não temos é tinta vermelha”. E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos — a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual [...]”. Para os que estavam acampados, ele disse: “Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha”.

Nesse instante de finalizar, deve-se ter em pauta que a clínica da escuta do sofrimento do outro nos impõe renovados questionamentos. Nos tempos de agora, surge uma pergunta: será que os depressivos, assim como os consumidores compulsivos, os anoréxicos, os bulímicos, os hipocondríacos e os usuários abusivos de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, não estão utilizando uma tinta cinzenta para falar de seu cotidiano? Eles são, cada qual a seu modo, uma resposta, uma escolha, uma possibilidade, uma forma de estar no mundo atual. Eles representam a reificação do que é da ordem do individual, do narcisismo patogênico, do conformismo, da fragilidade do simbólico. Em conflito com a lei da ordem estruturante da subjetividade do ser humano, esses sujeitos estão enredados nos enunciados subliminares, por vezes contraditórios, da sociedade capitalista: Consuma! Explore! Domine! Conforme-se! Submeta-se! Individualize-se! Aliene-se!

Na insatisfação sem protagonismos, eles revelam o quanto todos estão em situação de mal-estar e desamparo. Apontam o quanto a sociedade está caminhando a passos largos para chegar no tempo da anomia generalizada, atalho certo para a estruturação das sociopatias e das perversões. Segundo Clarice Lispector, nós somos o que nos falta. E apesar da inércia natural de boa parte dos corpos e mentes humanas, inércia que os aprisiona no pessimismo ou na alienação, ainda há possibilidade do otimismo da práxis, conforme norteia a lógica gramsciniana.

A provocação dos filósofos modernos, com seu profetismo do século XXI, como no exemplo de Slavoj Zizek, revela que o que falta nestes tempos é enfrentar o desafio de fazer a mudança de sentido, desde o individual com vistas ao coletivo. Trata-se de o ser humano deixar de passar tempo e passar a existir, deixar de ser objeto para ser sujeito. Significa, no quando de cada existência, o transformar, coletiva e responsavelmente, o Chronos em Kairós.

 

Referências

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* Médica, psicanalista, homeopata, Especialista em Medicina Preventiva e Social (UFBA/DMP), Mestra em Saúde Comunitária, Doutora em Saúde Pública (ISC/UFBA), professora adjunta, docência no Internato de Saúde Mental/Saúde Coletiva do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). (dalvamonteiro@compos.com.br).
Physician, psychoanalyst, homeopathist, Specialized in Social and Preventive Medicine (UFBA/DMP), Master in Community Health, PhD in Public Health (ISC/UFBA), adjunct professor, teaching in Mental Health/Collective Health from Medical School at Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). (dalvamonteiro@compos.com.br).

1 Há diversos conceitos para classificar o analfabeto funcional. Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), é o indivíduo com menos de quatro anos de estudo completos. O analfabeto funcional, em geral, lê e escreve frases simples, mas não é capaz de interpretar textos e colocar ideias no papel. Apesar de dominar minimamente a escrita, a leitura e a matemática, o analfabeto funcional tem limitações que dificultam atividades simples do cotidiano, além de prejudicar a sua inserção no mercado de trabalho e em outras esferas. (AGÊNCIA BRASIL). Além de reduzir o percentual de brasileiros que não sabem ler e escrever (10%), o País tem o desafio de combater o analfabetismo funcional, que atinge 25% da população com mais de 15 anos, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2009).
2 Mesmo não sendo o escopo deste trabalho, há que se pontuar a magnitude e a transcendência do problema, que, inclusive, já é Política de Estado no Brasil. Apesar de todas as guerras e da violência urbana, o que mais mata no mundo hoje é o suicídio. Nos casos de tentativa ou consumação de suicídio, 40%-60% das pessoas apresentavam sintomas depressivos, sendo que os homens morrem quatro vezes mais por suicídio do que as mulheres, muito embora há maior número de tentativa entre aquelas. Estudos recentes da OMS apontam que, em 2010, de um modo geral, sem analisar por regiões, aconteceram 815.000 suicídios contra 520.000 mortes por crime e 310.000 mortes por motivo de guerras.
3 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS); ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE (OPAS). Relatório sobre saúde no mundo – Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. 2001.
4 KHEL, Rita Maria. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. p.82.
5 KHEL, Rita Maria. O tempo e o cão..., op.cit., p.89.
6 Id., ibid., p.85.
7 Id., ibid., p.88.
8 BONDACZUK, Pedro, J. O maior parasita. Disponível em: <http://pedrobondaczuk blogspot.com/2009/04/o-maior-parasita.html>. Acesso em: 19 set.2011.
9 Os manifestantes ficaram acampados, sem fazer comícios, estavam protestando contra a crise financeira e o poder econômico norte-americano desde o dia 17/09/2011 até 11/12/11. Houve multiplicação do movimento em várias cidades americanas e europeias, inclusive com prisão de manifestantes e dispersão dos acampados. Disponível em: <http://economia.ig.com.br/criseeconomica/policia-desmonta-acampamento-ocupe-wall-street-em-boston/n1597404621221.html >.