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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.12  Salvador  2011

 

COMENTÁRIO FINAL

 

Tempo – o fio e a trama

 

Time – the wire and the plot

 

Carlos Pinto Corrêa*

Circulo Psicanalítico da Bahia

 

Também eu gostaria de ser atemporal, como o inconsciente, mas vejo-me cada vez mais submisso ao tempo. Muitos psicanalistas pensam que o tão almejado tornar-se sujeito seja a conquista de um status definitivo, eterno enquanto dura, mas é necessário tornar-se sujeito a cada instante em transformação que nunca termina. Esta é uma forma de dizer que o término da análise nos remete a uma inequívoca vulnerabilidade.

No momento, estamos diante da desconcertante comemoração dos 40 anos do Círculo Psicanalítico da Bahia, em princípio, uma simples data que denuncia a todos nós a eventual obra feita e vivida.

O que são 40 anos para a vida intelectual? Saramago nos contou que escrevia uma página por dia. Ao não escritor parece pouco, mas, no irresistível balanço, teríamos um livro de 350 páginas em um ano e 40 livros em igual período. De minha parte, venho escrevendo “O Caminho de Sarah” há um ano e meio. Pensei que estaria terminado para a jornada, mas exigirá ainda mais um ano de trabalho. A grande surpresa virá cinco dias após o lançamento, quando algum leitor gentil me disser: gostei muito, peguei no sábado e domingo e o li todinho. Mesmo lisonjeado, pensarei que será como um voraz incêndio de fim de semana, capaz de devorar meu trabalho de dois anos. O mesmo tempo que permite a acumulação criteriosa das letras, como grãos que se acomodam sob a árvore dadivosa, desfaz o feito retornando ao nada.

Nas bodas de prata do Círculo, fizemos uma mesa histórica, com Eny, Rodrigué, Urânia e Mário Almeida. Peregrinamos em nossas lembranças e choramos quando nos abraçamos no final do encontro. Hoje, não podemos repetir a cena, já que Mário e Rodrigué nos deixaram. Devemos agora simplesmente acrescentar mais 15 anos. 40 não é muito mais do que 25. Talvez quando dobrarmos os 25, inteirando meio século, ainda que não possamos chorar, haverá quem o faça por nós, com muita alegria.

Mas, passemos ao tempo abstrato ou filosófico que maltrata menos. Em nossas andanças temáticas de preparação para a jornada, desfilaram em abundância os textos sobre Tempo e Psicanálise, ou, como queriam outros, Tempo da Psicanálise. A marca fundamental foi o ponto de vista histórico, “fio que evoca o tempo e põe em relevo a substância intangível com cuja ajuda, a história é tecida e construída: o fio do tempo”.

O fio do tempo ou, como preferimos modernamente, a linha do tempo, refere-se sempre ao presente, que, tão rápido, não nos basta e exige de nós o socorro nas alegações infinitas do passado ou nas fantasias inesgotáveis do futuro. Fatos, pessoas, circunstâncias, fotos e músicas podem ser dispostos em uma representação inequívoca de segmentos de nossas vidas. Comumente o que alinha todas estas peças dispostas em perigosa horizontalidade é o afeto. Afetos de todos os tipos que soldam, prendem, florescem ou incendeiam as relações entre esses componentes ajuntados para entender a vida.

Hoje, gostaria de escapar dos perigos deste fio que comumente tomamos para representar o tempo e designar a história como artífice, e trocar o fio pela trama. A trama do tempo, qual um deus; as moiras; a fortuna; a providência divina; o homem. Pensar que é o próprio tempo quem tece a história, ata os homens e os acontecimentos com seus liames invisíveis, assim como a aranha que tece a teia com a matéria que a ela se agrega e nela enreda suas vítimas.

Tentativas de historiar as instituições psicanalíticas pela submissão ao fio dos acontecimentos têm sido feitas sem sucesso. As instituições são fragmentárias pela inconstância ou volatilidade de sua estrutura. A sociedade analítica é formada por um sistema de adesão provisória, sempre visando o exercício do “ócio com dignidade”, prazer maior para o intelectual. Seus membros estabelecem vinculações subjetivas, de aproximação e afastamento ou recusa definitiva, nem sempre explicada. Não sendo contratuais, estas relações são libidinalmente ligadas pela necessidade de pertencimento ou de início, de proteção. São funcionais e utilitárias, por isso mesmo não fazem história, para a maioria dos participantes. Durante os seus 40 anos de existência, quem ingressou fez formação, ainda que inacabada, participou de seminários, leu, escreveu, foi membro-sócio e depois se desligou, na maioria das vezes sem alguma explicação mais consistente. E onde estão neste momento? Permanecem psicanalistas? Pelo menos continuam vivos ou já desertaram deste vale de lágrimas?

A impossibilidade da resposta nos mostra o processo de fragmentação grupal, existências que não se unem e não constituem um fio histórico, mas que podem ser pensadas como células ou nós da trama.

Quem me ouve, não concordando comigo, pensa que, em meu raciocínio sobre a instituição, estou fugindo da verdadeira história, ou até escapando de uma evidência. Posso lembrar que do grego, em sua forma nominal, história significa indagação, informação, designando um tipo de conhecimento. Na pesquisa ou na narração retórica, aparece subsidiariamente a questão da verdade. Na busca dos fatos, encontrar relatos que sejam imunes ao mito. Na história, a verdade é da ordem da razão. O tempo desvelando as coisas traz a luz, segundo Tales. A verdade é filha do tempo, disse Bacon. Marx e Heidegger lembram que a verdade é filha do tempo e obra do homem. À dimensão propriamente histórica, soma-se o devir, e à figura da historicidade, acrescenta-se a da temporalidade.

A matéria do nosso trabalho psicanalítico, sendo o inconsciente, é atemporal, e a verdade do nosso saber foi denunciada como não toda. Assim nos afastamos da possibilidade de, em nossa clínica, fazermos qualquer construção histórica e, como sabemos, a instituição imita a clínica.

Mas, mesmo sofrendo o esvaziamento do tempo e a perda da substância histórica, permanecemos na sombra da realidade móvel do processo que nos une no saber: o devir e o trabalho clínico. Sem o fio da história, nos resta a trama, pontos de encontro de nossas vidas em comum. Podemos então contar nossos causos com afeto e com alegria, pelo prazer de aprendermos juntos. Topicamente nos encontramos no que Sartre chamou de momentos existenciais. Um mosaico onde vejo os rostos conhecidos com quem tenho labutado. Retribuo os sorrisos e agradeço com meu coração jovem:

– Valeu, galera!

 

 

* Psicanalista. Sócio fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia. Em 22 de outubro de 2011, comemorando o quadragésimo aniversário do Círculo Psicanalítico da Bahia, no encerramento da XXIII Jornada.