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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.13  Salvador Nov. 2012

 

Os enigmas da criminalidade à luz da psicanálise

 

The criminality's puzzles under the psychoanalysis' lights

 

 

Cibele Prado Barbieri*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O texto, dirigido a um público leigo em relação à teoria psicanalítica, se propõe a esclarecer numa linguagem acessível ao leitor, questões relativas à criminalidade que parecem obscuras ou enigmáticas. Começando pela questão da própria subjetividade, como um assunto supostamente enigmático, a autora pretende abarcar o fenômeno da criminalidade, situando-o numa perspectiva estruturalista, com o objetivo de diferenciar a dinâmica subjetiva subjacente aos vários tipos de crime, propondo assim a possibilidade de um entendimento da lógica do ato criminoso.

Palavras-chave: criminalidade; psicanálise; subjetividade; crime paranoico; crime perverso; contemporaneidade.


ABSTRACT

The text, intended for a lay audience in relation to psychoanalytic theory, proposes to clarify in accessible language to the reader, crime issues that seem obscure or enigmatic. Starting with the question of subjectivity itself, as a supposedly enigmatic matter, the author intends to embrace the phenomenon of crime placing, it on a structuralist perspective, in order to differentiate the subjective dynamics underlying the various types of crime, thus offering the possibility of understanding the logic of the criminal act.

Keywords: crime; psychoanalysis; subjectivity; crime paranoid, vicious crime; contemporaneity.


 

 

INTRODUÇÃO

Quando olhamos retrospectivamente o percurso da civilização a partir de seus primórdios, observamos que as maiores criações humanas têm sua origem na luta pela sobrevivência, em primeiro lugar, e pelo prazer, em seguida. A busca de respostas para a morte, a existência, a natureza, o nascimento, o amor, a feminilidade e tantos outros temas enigmáticos levaram o ser humano a uma transformação radical em relação aos modos e meios de viver e de pensar.

Ella Sharpe, num artigo de 19291, dá testemunho disso quando estabelece uma relação entre as pinturas pré-históricas feitas nas paredes das cavernas com a criação artística e científica do homem moderno em que a motivação subjacente continua sendo a mesma, segundo ela. A arte e a ciência são o resultado da tentativa de entender e dominar o real inapreensível da morte, desde o homem primitivo. A evolução a partir das pinturas rupestres para outras formas de representação e expressão, passando pelas cenas de danças onde aparecem personagens mascarados, precursoras dos rituais funerários egípcios, pode ser rastreada até a arte teatral e cinematográfica do século XXI. Podemos acrescentar e afirmar que os enigmas que a morte suscita e o prazer que se obtém ao decifrá-los estão na raiz dos desenvolvimentos intelectuais do ser falante.

Quanto mais resistente a decifração, mais longe o enigma nos leva, tanto em produções teóricas quanto em transformações da própria visão de mundo e, consequentemente, da subjetividade humana.

A psicanálise é também um produto disso. O caráter enigmático do sofrimento histérico levou Freud a conceber o conceito de inconsciente em torno do qual se construiu uma concepção sobre uma economia psíquica capaz de engendrar e abrigar uma subjetividade que, ao mesmo tempo, dela se encarrega, gerando efeitos de significação no ser falante. Particularmente e como consequência, disso resultou o efeito de que esse ser falante será constantemente compelido ao questionamento, numa busca incessante de sentido para tudo aquilo que se apresenta como inominado e, portanto, enigmático. O discurso produz discurso, e o sentido tem seu gozo próprio. O enigma é uma questão em aberto, implica a polissemia e, por isso, convoca a produção de novos discursos que possam dela dar conta.

Se a morte própria é tradicionalmente predicada como enigmática, na medida em que nenhum ser pode conceber e, principalmente, prever, evitar ou impedir o momento de sua morte, a morte do outro, ao contrário, é facilmente concebida desejada, planejada e até exigida quando certas condições, inclusive algumas delas supostamente banais, se configuram. Para explicar as origens do respeito ao próximo, Freud elabora um mito — Totem e Tabu2 — cujo ponto de partida é o assassinato de um pai primitivo todo poderoso cujo resultado é um pacto baseado na introdução da lei, o tabu, e da nomeação simbólica, o totem. O mito propõe a fundação do campo simbólico através das leis da linguagem como fundamento da civilização.

Isto significa que, ao contrário do que geralmente se pensa, matar o semelhante parece ter sido em algum momento da trajetória humana algo tão natural, corriqueiro e frequente, que exigiu a emergência de uma lei pacificadora. Para alguns pensadores da cultura, essa norma primordial, instauradora da civilização, teria sido “Amarás ao próximo como a ti mesmo”. Partindo da noção de amor como estratégia unificadora, essa condensação afirmativa imperativa tem como efeito uma série de interdições que — na forma de imperativo negativo, como “não matarás”, “não roubarás”, “não desejarás...” — compõem o pacto que pretende nortear as relações, preservando a humanidade de si mesma. No entanto, ao mesmo tempo em que se inaugura a lei, cria-se a transgressão: o crime, como tal.

É sobre o fundo do declínio paterno e da decomposição da família que a questão do direito e da justiça intervém na sua tensão com o supereu individual. O direito é primeiro, e o crime lhe é relativo antes de sê-lo o criminoso. Lacan se remete, nessa ocasião, à palavra de São Paulo: não existe pecado antes da lei. (COTTET, 2009. p.01).

Quando relemos o mito de “Totem e Tabu” — escrito em 1912 —, sob a égide das idéias propostas em “Além do Princípio do Prazer”, de 1920, podemos compreender que, no pensamento freudiano, Eros, a pulsão de vida, produz a barragem do gozo de Tânatos, a pulsão de morte. Isto quer dizer que a entrada em jogo de Eros — gozo regulado pela lei que inclui o do sentido e da linguagem, no âmbito do simbólico —, possibilita a operação de inscrição daquilo que, no circuito da pulsão de morte, não se inscreve e, silenciosamente, se expressa em efeitos mortificadores de gozo, como a repetição.

O que pode permanecer enigmático a esse respeito é porque uma lei que, em seu caráter universal, permanece viva e presente nos fundamentos dos discursos normativos da moral e da ética até nossos dias, não foi substituída, não foi anulada em favor de nenhuma outra e não se perdeu na imensidão da reflexão filosófico-teológica existente. E, além disso, porque ela não extinguiu o desejo de matar, de torturar, extorquir, explorar, abusar dos frágeis, corromper, traficar, roubar, etc., apesar de todas as sanções que de sua subversão advém. Se a instituição das leis foi eficaz em barrar alguns impulsos — como assinala Freud em relação ao canibalismo3, que só faz breves e esparsas aparições nas estatísticas criminalísticas e nos filmes policiais ou de suspense, que exploram nosso horror —, não se pode dizer o mesmo em relação a outras formas de extermínio como os genocídios, as guerras e as armas de destruição em massa que pululam ameaçadoras do equilíbrio instável entre poderosas nações, como a história recente nos revela.

Convenhamos que, se esta lei permitiu recalcar alguns sucedâneos do desejo de matar, mesmo assim ela não impediu que, abrigados pelos mais diversos motivos — ideais estéticos, ideologias protecionistas, interesses de poder econômico e religioso —, representantes, governantes ou indivíduos autônomos se outorgassem todos os direitos de vida e morte sobre seu próximo no mais puro estilo sadiano4. Mas, para além dos assassinatos hediondos, em série e em massa, se pensamos também nos atos terroristas e na repetição desenfreada de atos infracionais no dia a dia, temos a impressão de uma exacerbação da criminalidade que leva à seguinte pergunta: a ausência de diminuição da criminalidade, como seria de se supor em sociedades “jurídica e moralmente evoluídas”, pode ser atribuída ao incremento numérico de sujeitos: “acivilizados”, não civilizados, fora da lei? Psicóticos? Ou estruturalmente perversos? Será que nossa sociedade caminha para uma generalização da perversão, uma caracterização social baseada em subjetividades portadoras de traços de caráter predominantemente perversos?

Para responder a essas perguntas, é necessário, mas não suficiente — pois não basta —, remeter o leitor a alguns textos de Freud, tais como a sua carta resposta à pergunta de Einstein sobre o porquê das guerras (1932) , “O mal-estar na civilização”(1929), “O futuro de uma ilusão”(1927), somente para citar alguns diretamente ligados a este tema, pois a maldade humana apenas nos introduz no tema da criminalidade. A questão é muito mais complexa e necessitamos abordar alguns pontos fundamentais para nela avançar.

 

O ENIGMA DA FEROCIDADE DO SER

Primeiramente, partindo deste ponto — mesmo que pacífico —, devemos fundamentar essa elaboração esclarecendo que compartilhamos, pois não há como negá-la, a ideia de Freud desenvolvida ao longo de sua obra e, em especial, nos textos acima mencionados a respeito da ferocidade do homem, tão bem descrita e ratificada por Lacan, quando trata da criminalidade:

A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais [...] Mas essa própria crueldade implica a humanidade. É um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie. Nenhuma experiência sondou mais que a do analista, na vivência, a equivalência de que nos adverte o patético apelo do Amor — é a ti mesmo que atinges — e a gélida dedução do Espírito: é na luta mortal de puro prestigio que o homem se faz reconhecer pelo homem. (LACAN, 1998, p.148-149).

Bem antes disso, porém, utilizando o modelo do “estádio do espelho” (LACAN, 1998), ele tomava a agressividade enquanto impulso destrutivo que se expressa na relação com o outro desde a mais tenra infância, em anterioridade, inclusive, à completa constituição da subjetividade, quando o infans entra no dilema “ou eu, ou ele”. Esta tese não foi derrubada e permanece válido pensar a agressividade no plano dual e imaginário.

Diante da possibilidade de corte na relação dual que estabelece com a mãe, pela entrada em jogo de outro elemento — que pode ser outro bebê, o pai e até a sua própria imagem no espelho considerada como outro devido ao desconhecimento e à própria inexistência do eu integrado —, a agressividade emerge como momento fecundo na constituição do eu, da alteridade e da subjetividade. A relação dual, fundada na imagem, se configura como condição privilegiada para o desenvolvimento da reação agressiva em resposta ao desamparo original do ser, que convoca a angústia e exige uma ação protetora e preventiva. Podemos neste ponto articular a motivação paranoica, na medida em que é a partir da imagem de um outro (a — a’) e da mensagem que vem do Outro (A) que o eu poderá se constituir em sua singularidade em relação a uma alteridade. Entretanto, no que imaginariamente este outro lhe corresponde, pois é a partir dele que o sujeito se constitui como tal, é a ti mesmo que atinges ao visar o outro, como fica implícito na fórmula: Amarás o próximo como a ti mesmo.5

Quando me dirijo ao outro, eu o invoco como próximo, busco nele algo que corresponde a minha existência. Então, “Amarás o próximo como a ti mesmo” não quer dizer “como ao teu eu” [...], trata-se de algo inerente ao meu ser. (VEGH, 2005, p.93).

Essa destrutividade, crueldade, ferocidade do humano — “É um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie”, devemos repetir sublinhando —, pode ser dirigida ao próximo, ao íntimo ou a um ser que o represente, dá no mesmo; é parte integrante do montante de possibilidades constitutivas do ser, que Freud ordenou em uma sequência de narcisismo, autoerotismo e caráter perverso-polimorfo da sexualidade infantil, a ser elaborado pela educação, pelas regras sociais, para se adequar aos parâmetros civilizatórios.

Para Freud, não é somente o crime literário: é o crime universal, mítico, mas real mesmo assim — o assassinato do pai é o fundamento da sociedade. Logo, isto quer dizer que para Freud a possibilidade do criminoso está presente em cada um de nós. É necessário, por conseguinte, a normatividade edipiana, de alguma maneira, que canalize ou que apague o criminoso em nós. (COTTET, apud ALMEIDA, 2008, p.09-10).

Posto isto, desvanece-se de saída o suposto enigma da criminalidade em relação com a maldade humana, que a própria lei do amor pressupõe, instaurando-a como prévia. Em outras palavras, se o ser fosse afeito ao amor, não necessitaríamos um imperativo que o convocasse a amar. Se o ser não tendesse ao ato criminoso, não necessitaríamos interditar todos os atos que estabelecemos como danosos à convivência através de leis cada vez mais específicas a cada ato. O sujeito sempre busca as brechas na lei para satisfazer seu intento de descarregar, direta e livremente, suas pulsões.

Mas isso não quer dizer que necessariamente todo indivíduo será criminoso ou que haja um tipo irremediavelmente assassino “por natureza” como pensava Cesare Lombroso, que publicou em 1876 sua tese positivista sobre “O homem delinquente”. A tese postula a delinquência e a criminalidade como uma tendência inata cuja vertente seria a “personalidade criminosa” e “o criminoso nato”; como se os seres humanos nascessem dotados de uma personalidade e de um caráter formados e que alguns deles já teriam a tendência criminosa inata. A consequência mais direta de tal tese é que ela descriminaliza o sujeito, eximindo-o de qualquer livre-arbítrio, ao negar qualquer influência da subjetividade no ato criminoso, que passa ao registro do “acaso”, da herança genética, do “excluído da vontade do sujeito”. Além disso, outra consequência não menos importante é que essa tese iguala todos os autores e atos criminosos, apagando toda e qualquer especificidade que possa haver nesses sujeitos e em seus atos. A psiquiatria francesa seguiu seus passos até que os desenvolvimentos psicanalíticos esclarecessem a lógica do suceder psíquico, subjetivo, introduzindo uma significação, uma possibilidade de interpretação e compreensão do ato criminoso baseadas em motivações — que poderiam ser desconhecidas ou enigmáticas na medida em que permanecessem inconscientes, mas que obedeciam a uma lógica particular —, restituindo ao sujeito a responsabilidade pelo seu ato.

A intervenção da psicanálise introduz um novo olhar sobre a especificidade e a responsabilidade de cada sujeito em seu ato, pois “o ato, seja o criativo ou o delituoso, é a tentativa, algumas vezes bem-sucedida, de fazer passar ao âmbito do discurso aquilo que não cessa de não se inscrever. Isto justifica a afirmação de Freud a respeito do ‘criminoso por sentimento de culpa’ que realiza o ato delituoso para ligar a culpa a algo, para inscrever em outro registro a sua culpa muda, efeito da pulsão de morte”6 (BARBIERI, 2008b. p. 181).

O trabalho analítico trouxe então a surpreendente descoberta de que tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo. Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas, inversamente — a iniqüidade decorreu do sentimento de culpa. Essas pessoas podem ser apropriadamente descritas como criminosas em conseqüência do sentimento de culpa. A preexistência do sentimento de culpa fora, naturalmente, demonstrada por todo um conjunto de outras manifestações e efeitos. (FREUD, [1916], v.XIV, Cap. III ).

Entretanto, o “criminoso por sentimento de culpa” em nada se iguala ao criminoso perverso, por exemplo, que o é na medida em que nele a culpa se abstém, pois dela ardilosamente se desembaraça com seus recursos discursivos.

Como sabemos a partir das descobertas psicanalíticas, na medida em que é próprio da perversão, enquanto estrutura, visar, em seu próprio fundamento, justamente o avesso da interdição — a contestação e o desmentido da regra —, não é para surpreender que o ato delinquente ou criminoso encontre sua justificativa na maneira como o perverso o organiza, tornando nula a norma. Será que devemos pensar, então, que todo crime visa unicamente a subversão da norma, ou seja, que tomemos o crime apenas na concepção de ato que satisfaz um desejo proibido ou alivia um sentimento inconsciente de culpa?

Por outro lado, encontramos na literatura a concepção, não menos radical, que postula como causa mais geral dos atos criminosos a constituição psicótica do autor. É certo que a motivação psicótica radica ainda menos na culpa e mais na certeza de que é o perseguidor que obriga ao ato. Talvez por isso, na concepção de especialistas como Zagury7, eles sejam considerados como uma medida defensiva contra a precipitação do surto psicótico. Para os psicanalistas, ao contrário, tais atos decorrem do desencadeamento psicótico já instalado; o ato não é causa, é efeito do delírio persecutório.

É por isso que Marie-Laure Susini (2006) destaca o autor e não o crime, pois, para cada uma dessas estruturas, para cada um desses sujeitos, encontraremos diferentes modalidades de crimes decorrentes de sua relação com o desejo, o gozo e o Outro8. O crime de massa, o assassino em série, o crime paranoico ou o crime perverso não são produtos de uma mesma e única estrutura subjetiva, como queria Lombroso.

Patrick Almeida: De que maneira a psicanálise lacaniana pode contribuir para o estudo da criminologia atualmente?
Serge Cottet: Primeiro aprofundando a teoria da psicose e aplicando-a ao crime do qual Lacan não fala. A especialidade de Lacan é o crime paranóico — não é o crime perverso, não é o crime de massa. Mas podem ser encontrados, em outros momentos do ensino de Lacan, conceitos diferentes desses dos anos 30, como o conceito de objeto a, de extração do objeto a, de passagem ao ato etc.9 O conceito essencial, porém, dos anos 30 era o de “autopunição”10: o criminoso atinge ele mesmo11 em todo desconhecimento12. Imediatamente, deixa-se de lado todo um setor da criminologia, como crimes perversos, crimes de massa, crimes imotivados, ou esquizofrênicos de Guiraud13 (já presente na época). Devem-se descobrir na obra de Lacan conceitos novos que permitam pensar estes atos para-além do narcisismo suicida, além de uma concepção do crime como estádio do espelho14. Exemplo: o livro de Francesca Biagi-Chai15 sobre Landru16 . (COTTET, apud ALMEIDA, 2008, p.13)17 .

Serge Cottet (apud ALMEIDA, 2008, p.09) nos relembra que a criminalidade foi o objeto da primeira tese de Lacan, que “começou a sua carreira de psiquiatra pela criminologia, uma vez que sua tese de medicina é sobre o ato criminoso”: o caso Aimeé, que se tornou célebre na França e paradigmático para a psicanálise18.

Partiremos, seguindo a sugestão de Cottet, do crime paranoico como Lacan o propõe. Mas, antes, devemos esclarecer a que nos referimos quando utilizamos uma nomenclatura baseada em definições das estruturas subjacentes aos modos de funcionamento que, absolutamente, não são aleatórios, mas, antes, fundados em pilares estruturais.

Chamamos a atenção para o fato de que muitos dos nomes que usamos não figuram mais na Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, criada pela Organização Mundial de Saúde, desde quando a psiquiatria passou a adotar termos cada vez mais referidos ao quadro sintomático, em oposição à psicanálise, que entende o fenomênico como efeito da estrutura subjetiva (apud BARBIERI, 2008a. p 282-299).

 

O ENIGMA DA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

A partir da formulação da dinâmica edípica, Freud diferenciou três mecanismos que respondem a três modos específicos de articular a relação entre o sujeito e seu gozo, que definem diferentes constituições subjetivas. Lacan (em sua fase estruturalista, depois dos anos 50) retoma estes três modos como configuradores da estrutura do sujeito e vincula, a cada um deles, uma das três grandes estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão.

Die Verdrangung, o recalcamento, é o mecanismo mais eficaz para conter a satisfação pulsional e consiste em tornar inconsciente a representação ideativa (significante, representante representativo) da pulsão. Resultado: Neurose.

Die Verwerfung, que Lacan traduziu por forclusion, em português, foraclusão, que quer dizer a rejeição da representação (colocar fora, em oposição à inclusão do significante), promovendo a colocação desse representante fora das cadeias de significação. O efeito disso é a configuração de lacunas no campo do sentido. É o mecanismo próprio da Psicose.

Die Verleugnung, que significa uma recusa (da realidade) e implica a negativização de uma representação, no sentido de que, ao contrário dos outros dois mecanismos, não expele o significante da consciência, nem do campo das significações, mas apenas nega sua efetividade, sua veracidade. Freud dirá, no “Esboço de Psicanálise” ([1938]1940), que esse mecanismo responde especificamente à descoberta da castração feminina e está presente nas várias formas de perversão. A fórmula seria: a mulher não tem falo mas, mesmo assim, é fálica; ou todos somos não castrados, mesmo quando somos castrados. Como a tradução do termo alemão é problemática, Lacan propõe o termo dementi, desmentido, que se opõe a deni, denegação, que corresponde a Verneignung, em alemão.

Não se trata aqui da denegação, deni ou Verneignung, que difere da Verleugnung porque tem um efeito de retificação de uma afirmação, que é descartada. Guy Clastres (1980, p.8) diz que é um “mecanismo pelo qual um sujeito designa o que ele nega. De certa forma, uma negação que repousa sobre uma afirmação”. Resumindo, no desmentido nem a negação nem a afirmação são descartadas, permanecem lado a lado no discurso. Segundo Roudinesco (2008, p. 09), o Dicionário Littré assim define a perversão: “Transformação do bem em mal. A perversão dos costumes. Distúrbio, perturbação. Há perversão [...] da visão na diplopia. A diplopia é uma alteração da visão, uma má convergência, que faz com que vejamos dois objetos em lugar de um”.

Tomamos, então, esses três modos de lidar com a castração — e, consequentemente, com o desejo e o gozo —, como os modos de constituição do sujeito e suas consequências. Isso implica que, apesar de podermos observar traços de qualquer desses mecanismos em todos os sujeitos, independentemente de sua configuração predominante, devemos diferenciar o tipo estrutural de que se trata a fim de extrair qualquer possibilidade de “previsibilidade”, mesmo que precária, ou simplesmente para compreender o sentido enigmático de seu modus operandi, que sempre abriga uma lógica.

Diremos, a partir desses modos, que os crimes em que são flagrantes os efeitos de sujeito, como a culpa e o arrependimento revelam-se, em geral, decorrentes de subjetividades neuróticas cujo ato, frequentemente, já carrega em si as pistas, a mensagem inconsciente que revela a autoria; alguma falha que o denuncia e garante a punição, pois o neurótico tem de pagar por seu ato para sair do conflito, tal como os “criminosos por sentimento de culpa”, por exemplo. No perverso, ao contrário, o ato é arquitetado de forma a ficar impune, para sustentar uma diplopia. A psicopatia, perversão social ou sociopatia, como frequentemente é denominada, situaremos no campo da perversão na medida em que se estrutura no desmentido, na diplopia da castração. Quanto à paranoia, que situamos no âmbito das psicoses, caracteriza-se pela urgência de suprimir através dos fenômenos elementares (delírios e alucinações), uma significação que aponta para a emergência de um gozo mortificador, persecutório, efeito da foraclusão de um significante que, se estivesse incluído, seria capaz de ordenar articulando a lógica do discurso que situa o sujeito no universo simbólico. O paranoico se vê à mercê do gozo mortífero do Outro que o invade sem recurso.

 

O ENIGMA DO CRIME PARANOICO

Freud, ao analisar o relato autobiográfico do presidente Schereber (1911), restitui a esse relato toda a sua lógica oculta, revelando seus nexos associativos e as lacunas da significação que justificam a urgência de produção discursiva que encontramos no delírio paranoico. Os crimes deste tipo resultam deste mesmo modo de funcionamento (ou estrutura). Mais adiante, em 1922, ao tratar da paranoia mais uma vez em “Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo”, ele identifica, no delírio de ciúme, uma rivalidade que atribui a um componente de homossexualidade, situada por Lacan no plano da paixão narcísica, como Cottet explica:

Esta é a primeira tese freudo-lacaniana que vale sobretudo para a paranóia, para o ciúme delirante onde o que prima é o interesse para com o rival — e que é o que Freud chamou “a homossexualidade na paranóia” e, em Lacan, o interesse para com o rival não se confunde com o gozo homossexual; é a paixão mortal do narcisismo que domina.
Embora a agressividade não seja forçosamente narcísica, pois ela pode visar um ponto de gozo no outro, por exemplo, o olhar (um traço de gozo expresso pelo olhar), a perseguição. Neste momento, não é a imagem do outro que é perseguidora, mas um traço do sujeito, por exemplo, que não seja imaginário — como uma identidade de situação social, como nos crimes de massa nos colégios americanos. Não se pode dizer que, neste caso, o sujeito visa exatamente a imagem dele mesmo, mas, enfim, é toda a humanidade sofredora que é visada no desencadeamento da carnificina. É a infelicidade, a desgraça mesmo de estar vivo que é insuportável. (COTTET, apud ALMEIDA, 2008, p.11).

Desse trecho da entrevista de Cottet, podemos destacar duas observações. Primeiro, sua fala nos remete à chacina ocorrida em 7 de abril de 2011, na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro19, quando um jovem executou vários alunos, motivado — como posteriormente se apurou —, por um sentimento de vingança decorrente do bulling sofrido anos antes e também por ideias delirantes de cunho persecutório. A investigação revelou fortes indícios de que se tratava de um jovem psicótico que nunca foi adequadamente tratado e, diante da morte da mãe adotiva, entrou em surto. Ao que tudo indica, estar vivo tornou-se uma grande infelicidade para a qual o único remédio seria a destruição de tudo que podia representar a fonte de seus infortúnios: os estudantes que o humilharam, o outro que dele goza. A segunda é que Lacan, em sua tese já mencionada onde analisa o crime das irmãs Papin, encontra, como motivação fundamental, a urgência de extração do objeto a: o olhar, quer dizer, as irmãs sofrem imaginariamente a invasão do olhar do Outro, que assim delas goza maciçamente, tornando necessária a extração de seu olhar em ato, no real, como modo de libertação desse gozo mortífero.

Quando falamos de paranoia e da psicose, estamos num campo em que devemos levar em conta a possibilidade da inexistência de um sujeito do inconsciente, pelo menos não do modo como o encontramos no ato neurótico ou perverso. Falamos de um sujeito incapaz de responder por seus atos, de ser responsabilizado da mesma forma que um neurótico, na medida em que — como aprendemos a partir de Lacan —, se há propriamente um sujeito psicótico, não necessariamente podemos falar de um desejo em primeira pessoa que o singularize e particularize como tal em relação à lei. O psicótico está submetido ao desejo do Outro que imaginariamente dele goza, operando no delírio como imperativo categórico que ordena seus atos, ao modo de um “supereu” sádico e gozador. A passagem ao ato criminoso no psicótico obedece a uma lógica própria em que não encontramos um desejo propriamente do sujeito, senão uma compulsão que, inclusive, justifica a reiteração que observamos em alguns assassinos em série. O fator desencadeante da ação recebe sua particularidade dessa lógica própria com a qual, sob a forma de um significante aparentemente qualquer, compõe o discurso que permeia o sentido e o desfecho do ato.

Quais são as conjunturas de desencadeamento da passagem ao ato? Conhecemos as conjunturas de desencadeamento da psicose. Enfim, existem standards de desencadeamento da psicose que Lacan articulou em torno do Um-pai real. É certo que, se há uma estrutura da passagem ao ato ou se há um ou diversos standards de desencadeamento, o instante do olhar, da voz joga aí um papel em primeiro plano; é o que faz aparecer o assassino em série Fourniret que, por exemplo, forçava suas vítimas a falarem de sua virgindade e, de acordo com a maneira como a garota falava, ele a matava ou não. Portanto, é a intrusão de um significante particular que pode favorecer a passagem ao ato.20 (COTTET, apud ALMEIDA, 2008, p.11).

Como antes mencionamos, a partir da desestruturação do mundo fantasmático que o sustentava, o psicótico lança mão do delírio e da alucinação como tentativa de reorganização. Torna-se necessária a criação de uma nova lógica que permita suprir a falta de enodamento dos registros do real e imaginário com o simbólico — deles desarticulado. Esta fonte avassaladora de angústia exige do psicótico um reordenamento das ideias, que se faz pela criação de novos roteiros e nexos associativos, geralmente absurdos para a lógica formal constitutiva da realidade neurótica. O delírio é, então, a tentativa de restaurar a ordem psíquica sempre que um elemento ameaça quebrar a precária integridade subjetiva, retirando seu lugar no mundo. Esse elemento deve ser eliminado como meio de restaurar a lógica, a segurança. As estratégias para tanto podem ser criadas de forma inteligente, perspicaz e postas em ato quantas vezes forem necessárias para a reiteração do alívio da angústia que emerge durante a desintegração psicótica. Quando falamos de um elemento desintegrador, estamos nos referindo a um significante que vem quebrar as premissas lógicas que sustentam o discurso.

Como podemos notar na observação de Serge Cottet acima, Fourniret é movido por um significante desintegrador que deve ser eliminado destruindo as garotas que o portam em seu discurso. Partindo dessa perspectiva, colocaríamos Fourniret no campo da psicose mais do que no da perversão, — como foi diagnosticado — pois, na perversão, trata-se muito mais de satisfazer um movimento pulsional que emerge amparado na diplopia do desmentido.

No psicótico, a falha discursiva promove a irrupção no real de algo que deveria representar-se no simbólico, expressar-se metaforicamente, caso pudesse ser recalcado. A reiteração que encontramos nos assassinatos em série é muitas vezes dúbia neste sentido, pois pode obedecer a objetivos bem distintos, segundo atenda a uma necessidade da psicose de manter fora uma significação, fazer a extração do objeto a no real ou a satisfação da vontade de gozo do perverso, que exige reiterar a satisfação apesar da interdição.

Como muitas vezes observamos em delírios psicóticos de cunho religioso, o ato é sumariamente justificado e atribuído a um imperativo categórico de exterminar o outro, diretamente imposto por Deus, no lugar de Outro. Algumas vezes, extrair, extirpar, destruir e até incorporar o objeto de gozo do Outro (olhar, seios...) pode garantir ao psicótico uma relativa e temporária pacificação interna.

Entretanto, a prática de incorporação de partes do corpo da vítima aparece mais frequentemente ligada ao crime psicopático, pois responde a gozos vinculados a impulsos canibalescos, como os do “maníaco do parque”21 , que comia partes de suas vítimas, ou de Jeffrey Dahmer22 (EUA, 1991), que matou dezessete rapazes e comeu seus órgãos.

 

O ENIGMA DO CRIME PERVERSO

Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar. (LACAN, 1988. p.780).

É assim que Lacan enuncia a máxima sadiana “que propõe ao gozo sua regra, insólita ao se dar o direito, à maneira de Kant, de se afirmar como regra universal”.

As perversões e seus crimes são, talvez, dos temas mais estudados pela psicanálise, justamente por ter sido a estrutura mais enigmática para a clínica psicanalítica. Elisabeth Roudinesco, em A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos considera que “no que se refere à estrutura, denominação e significação, a perversão só foi estudada pelos psicanalistas” (ROUDINESCO , 2008. p.7).

Muito se discute sobre os poderes da psicanálise sobre essa estrutura, já que nesse discurso o sujeito reivindica a possibilidade de fazer do sintoma uma questão de escolha, — em sintonia com o eu — e não algo que repudia e gostaria de mudar, como é o caso do sintoma neurótico; o ato substitui a palavra sempre quando se trata de satisfazer os gozos; o sujeito não sofre o dilema da culpa, pelo menos não como o neurótico, que é levado a retroceder diante do desejo, a buscar satisfações sublimatórias, para não sofrer sanções; seu saber sobre o gozo invariavelmente desafia e rende o analista: o perverso força a expressão do desejo do analista para assim dividi-lo; dilui a suposição de saber ao analista ostentando seu próprio saber sobre o gozo, de forma que a transferência e, ainda mais, a angústia — motivação mais geral de uma análise — é contornada e evitada através das suas manobras e do próprio ato, pelo menos em relação ao sintoma que diríamos perverso.

Serge André propõe que a perversão seja entendida como modalidade discursiva e o desmentido como “uma relação particular do sujeito com a linguagem” cujos efeitos se expressam em uma ética própria. Ele aborda um efeito de denúncia que aparece como viés da modalidade perversa do discurso:

É que a perversão é algo totalmente diferente de uma entidade clínica: ela é um certo modo de pensar. Um pensamento cuja essência demonstrativa decorre das relações do perverso com a fantasia e com a Lei. (ANDRÉ, 1995, p.311-312).

Esse modo de lidar com “tudo aquilo que se ordena em torno da ausência e da presença do falo” (LACAN, 1995, p.156) e que se refere “a um contexto dialético tão sutil, tão composto, tão rico de compromissos e tão ambíguo quanto o de uma neurose” (LACAN, 1999, p.239) coloca em jogo as mesmas fantasias perversas que, no neurótico, seriam barradas pela operação do recalque. A estrutura do fantasma perverso propriamente dito, entretanto, diferencia-se claramente da fantasia perversa do neurótico a partir da forma como o roteiro fantasmático se apresenta. Sobre isso nos diz Fleig (2008, p.35):

[...] recortado e destacado da história do sujeito, como se fosse uma seqüência de cenas sedutoras de um filme, desconectadas de seu enredo completo, o que determina sua fixidez e a posição de certeza de saber como se dá a captura do objeto de gozo. O sujeito perverso situa-se em uma economia psíquica que lhe permite se assegurar da presença total, despudorada e direta do objeto de gozo, e em uma relação explícita e desvelada com o outro, oscilando entre essa presença positiva e absoluta do objeto ou sua ausência insuportável e desestabilizadora.


Essa afirmação de Fleig deixa claro que o fato de o perverso conseguir evitar com destreza, subtrair-se, eludir a castração, não o salva, entretanto, da angústia que ressurge incessante e sutilmente, exigindo dele a reiteração de certos compromissos tanto quanto do neurótico. Por isso, é necessário, tanto no pensar como no agir, repetir o roteiro de um motivo latente no qual os enunciados da diferença — sexual, a princípio, e geral, em seguida, entre bem e mal, por exemplo — estão elididos, mesmo que implícitos: é a diplopia. Resumindo, o perverso nega a diferença, faz equivaler a proibição e a permissão tornando tudo possível pelas manobras do discurso; ele instaura o vale-tudo.

Dito isso, dissipa-se, pelo menos parcialmente, o enigma do crime perverso (ou psicopático), na medida em que entendemos que, nesta economia psíquica, o outro é mero instrumento de gozo, ao qual o sujeito tem todo direito. Podemos nos perguntar, a partir desse entendimento, se seria possível pensar essa estrutura em termos sociais em termos de uma economia psíquica mais generalizada, pensar a estrutura social para além do indivíduo que se autoriza a usar a lei a seu favor, tal qual o pai primitivo, tomado como paradigma de exceção em “Totem e Tabu”.

Encontramos, na literatura psicanalítica recente, a tese de Charles Melman à qual começamos a nos render, na medida em que cada vez mais identificamos, em nossos consultórios e — nos casos extremos — nas páginas policiais, sujeitos que se enquadram perfeitamente nos parâmetros por ele indicados.

 

O ENIGMA DA ECONOMIA PSÍQUICA DE NOSSOS DIAS

Em 2004, num congresso intitulado “Encontro no admirável mundo novo”, Eny Iglesias iniciou sua fala com algo que devemos retomar. Diz ela:

Podemos caracterizar o mundo atual por: minimizar os sentimentos de mal estar do homem, destruir as particularidades, estar submetido à universalização. É um momento em que vivenciamos algumas contradições produzidas pela ciência oficial da sociedade moderna que favorece uma segmentação das áreas do conhecimento e forja novas subjetividades, através do domínio do discurso capitalista e da globalização, na tentativa de preencher o lugar do sujeito com objetos. [...] As transformações sociais se consolidaram através dos tempos utilizando-se de várias bandeiras ideológicas visando adequar as performances individuais ao que o grupo social estabelece como valor. Disso decorre uma infinidade de ofertas de visão do mundo e estilos de vida que põe o homem atônito e perdido por não saber o que e como escolher. [...]

Um novo princípio passa a ser determinante: o valor do homem está no objeto. A relação sujeito-objeto foi pervertida tanto no capitalismo como no socialismo que, ao pensar uma distribuição de renda mais justa, o faz de tal forma que não há lugar para o sujeito do desejo, somente para o objeto da realização. (IGLESIAS, 2004, p.67).

Há algum tempo, os psicanalistas discutem as mudanças que se observam na cultura e seus efeitos que, de forma cada vez mais pronunciada, dificultam a definição de certos diagnósticos. A influência da ciência moderna nessas mudanças é preponderante, na medida em que ela tende a reduzir nosso corpo à dimensão de organismo — objeto manipulável para o benefício, prazer e, por que não dizer, o gozo da própria ciência — onde a subjetividade está suprimida. No contexto da ciência atual, o sujeito perde seu sentido, é anônimo, quantificado, pois o saber é dessubjetivado e universalizante. Neste tipo de saber encontramos a linguagem sem fala, a antinomia do sujeito cindido entre dois discursos. Este ideal de objetivação universalizante subverte o campo da ciência tanto quanto o social, desde quando nega radicalmente a alteridade, instrumentaliza o outro, promovendo o apagamento da dimensão empática do semelhante e privilegiando a dimensão do estranho, do individualismo.

Surpreendentemente, ou não, essa relação da ciência com o corpo humano “objetalizado”, dessubjetivado, coincide com a do perverso para com seu objeto (o outro), também dessubjetivado. O princípio supremo da razão, em nome da pretensão de dar conta de suas condições; da exclusão da diferença, sob o pretexto de uma justiça igualitária e fraterna; da redução do corpo à categoria de organismo a ser usado, estudado ou explorado, em nome de um Saber supremo, ou de uma qualidade total, ou de uma submissão apática e amoral na execução de um trabalho, todos esses princípios em nada diferem do princípio fundamental da perversão: o do direito a gozar do outro e de seu corpo, tal como na máxima sadeana, que visa o absoluto na exclusão da diferença, para desmentir a impossibilidade ou, em termos psicanalíticos, a castração: a falta.

Daí o incremento da violência nas relações sociais em nossos dias. A perversão e o desejo perverso estão determinados por um modo particular de gozo que diz respeito ao sujeito constituído nesse contexto e, por isso, concerne a todos nós, como adverte Mário Fleig (2008, p.119):

[...] a modernidade forneceu as condições sociais e subjetivas para o surgimento de sujeitos perversos: a impessoalização e dessubjetivação dos discursos, isto é, o advento do individualismo e da massa, que corresponde à foraclusão do sujeito da enunciação no discurso da ciência.

É disso que trata Eny Iglesias, quando sublinha o fato de que o desejo está cedendo seu lugar ao gozo. A nova ordem é gozar! Satisfazer todos os gozos sem mediação da fala, ao modo do imperativo superegoico como Lacan propõe (GEREZ-AMBERTIN, 1993), numa insatisfação perene que incita a busca de novos — e mais — objetos e parceiros de gozo, à exaustão. A mensagem que atravessa os discursos cotidianos deste nosso tempo é fundamentalmente: Ame-se! Imediatamente após, vem: Satisfaça todas as suas tendências. Sejam elas quais forem, que fica implícito nas entrelinhas. No extremo desse discurso, observamos como efeitos diretos a corrupção e a violência: física, política, sexual, enfim, todas as suas formas. Se, antes, a lei era amar ao próximo..., agora é ame a si mesmo. Aí está a ambigüidade da nova ordem, ela afrouxa o laço social, o próximo pouco interessa, a não ser como parceiro/objeto de gozo.

No âmbito restrito da escuta psicanalítica, isso se delineia em indivíduos cujos sintomas neuróticos se destacam de um modo de ação que pode, ou não, se tornar uma queixa, um agir estranho para o sujeito. Paralelamente a um modo tipicamente regrado de viver e desejar, são acometidos por impulsões a atos que denotam um caráter inegável de repetição compulsiva de um roteiro estruturado, do qual se diz alheio e define como não “intencional”, no qual o sujeito do desejo cede lugar à atuação de uma cena que rende um tipo de gozo inevitável, irresistível. Uma clara divisão subjetiva se delineia quando, posteriormente, o indivíduo revê e repudia seu ato por algum conteúdo considerado legalmente infracional e pela incompatibilidade com seus ideais. A análise revela que, em condições particulares e propícias que se pode fixar, acontece o apagamento do sujeito do desejo. Em suas próprias palavras, ele “cai fora” e entra numa sequência de ações — como num roteiro cinematográfico, perfeitamente destacável e incompatível com o contexto geral de sua vida — das quais não se sente o sujeito, ou seja, ele perde sua identidade simbólica, o Ideal do eu se apaga.

Pode-se defender um traço perverso na estrutura neurótica como uma melhor definição diagnóstica para este caso. A partir desta e de outras análises, assim como na literatura, descobrimos nesses indivíduos uma divisão radical entre desejo e gozo, na qual os dois se excluem mutuamente apesar de coexistiram. Daí a flutuação, sempre que o primeiro perde para o último. O desejo é frouxo, diluído, sem perspectiva de satisfação, difícil de alcançar. O contexto social favorece a busca do “gozar a qualquer preço”, mesmo que isso os deixe insatisfeitos, perdidos, sem rumo, logo após gozarem de tudo quando a falta se reapresenta. E esse é o motivo privilegiado que pode trazê-los à análise.

O caso do “maníaco do parque”, que declara que precisava ser preso para interromper a compulsão a repetir até o clímax — comer a mulher “toda” —, assim como o filme de Bruce Evans, Instinto Secreto (Mr. Brooks), nos mostram como a diplopia, a divisão do eu (FREUD, [1938]), pode operar-se numa estrutura — que não é psicótica —, por esta manobra discursiva que se institui num roteiro que permite ao perverso atingir seu gozo e, ainda — mesmo que inconscientemente —, precipitar o surgimento da falta, atualizando a diplopia da castração: a mulher é, mas não é castrada.

 

O ENIGMA DO PROGRESSO DA SOCIEDADE

Tudo isto que até aqui foi dito nos convoca a pensar que o homo sapiens, em sua busca de gozo e alívio em relação ao “mal-estar da civilização”, pode estar numa rota de “progresso”, tentando desvencilhar-se dos conflitos neuróticos que o cercearam ao longo dos últimos séculos. Progresso no sentido de uma evolução a um estágio de menor sofrimento psíquico, livre dos entraves que o distanciavam da satisfação. Mas, por outro lado, nos perguntamos que tipo de sociedade pode advir deste percurso que, nessa direção, esboça contornos de uma estrutura de cunho perverso. Isso garante a “felicidade” tão buscada? Seria um progresso ou um retrocesso civilizatório? Esse mesmo questionamento surgiu no diálogo entre Melman e Lebrun na entrevista publicada sob o título “O homem sem gravidade. Gozar a qualquer preço”, em que Melman propõe este como um modo de estruturação vigente, uma “nova economia psíquica”, diz ele, para dar conta desses efeitos que detectamos não só na clínica, mas também no contexto social mais amplo, incluindo o campo da criminalidade e da violência.

Estamos no ponto de passagem de uma cultura cuja religião obrigava aos seguidores o recalque dos desejos e a neurose para uma outra em que se propaga o direito de sua livre expressão e de uma plena satisfação. (MELMAN, 2008, p. 191).

O que é que ainda nos diz não? Domesticamos tudo, dominamos tudo, fizemos tudo, vimos tudo, exploramos tudo, desde os planetas mais longínquos até as partes mais escondidas do corpo. Até trouxemos toda a luz aos processos da reprodução. O que é que ainda pode nos dizer não, nos dias de hoje? O terrorista, talvez... (MELMAN, 2008, p.165).

O recente atentado ocorrido em Oslo e Utoya, na Noruega23 , é um fato dessa ordem. Os terroristas suicidas não são muito diferentes. A perda de ancoragem nos ideais e o desregramento, produzidos nessa substituição do recalque pelo livre agir em causa própria, permitem e ensejam atos extremos que, por sua vez, convocam o “retorno do cajado”, na expressão de Melman( p. 174). O terrorismo é um modo de dizer não, de dar basta em ato, sem palavras; tentativa de impor um regramento pela força quando a lei em exercício é percebida como arbitrária, inconsistente, inexistente, ou inaceitável do ponto de vista do autor, inclusive porque ele próprio está suficientemente distante dos pactos vigentes para tentar instaurar sua própria regra. O ato terrorista carrega sempre um efeito de denúncia, como dissemos a respeito da modalidade perversa do discurso, através da qual o autor reivindica seu direito absoluto e projeta a falha no outro. O outro é apenas um detalhe, um objeto do qual se serve para chocar, exigir.

É o retorno ao ato violento que o mito de Totem e Tabu estabelece como origem da organização. No mito 3 tempos: Primeiro, o do pai gozador que tem direitos de vida e morte sobre os filhos e de gozar de todas as mulheres, que resulta na revolta dos filhos e seu assassinato. Segundo, o do caos e autodestruição do grupo em luta pela conquista do poder: o lugar do pai. Isto leva ao terceiro, a pacificação pela instituição de regras e interdições que regulam as trocas, inibem a ação e fundam os discursos. A interdição introduz a falta que funda o desejo, limitando os gozos.

Então, será possível encontrar um discurso que não violente as leis da linguagem, no qual o ser humano possa instaurar uma subjetividade sem exclusão do gozo e/ou do desejo?

Este pode ser o enigma com o qual convivemos nesse início de século para o qual... ainda não temos resposta!

 

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* Psicóloga(UFRJ/UFBA). Psicanalista membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Endereço para correspondência: R. João das Botas, 183 s/ 310 Canela — Centro Médico João das Botas. Salvador, Bahia CEP 40110-160; (71)91316541 barbieri.cibele@gmail.com.
1 Trabalho lido no XI Congresso Internacional de Psicanálise, Oxford, 1929, e publicado no International Journal of Psychoanalysis, v. XI, p.12-23 1930.
2 Cf. FREUD, S. Totem e Tabu [1912-1913]. In: ____. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. v. XIII, CD-ROM.; Além do Princípio do Prazer [1920], op. cit., v. XVIII.
3Em “O futuro de uma ilusão” (1927), entre outros artigos em que Freud explora este ponto, ele diz: “[...] com as proibições que as estabeleceram, a civilização — quem sabe há quantos milhares de anos? — começou a separar o homem de sua condição animal primordial. Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a civilização. Os desejos instintuais que sob elas padecem, nascem de novo com cada criança; há uma classe de pessoas, os neuróticos, que reagem a essas frustrações através de um comportamento associal. Entre esses desejos instintuais, encontram-se os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar. Soa estranho colocar lado a lado desejos que todos parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão vívida disputa em nossa civilização quanto a sua permissão ou frustração; psicologicamente, porém, é justificável proceder assim. Tampouco, de modo algum é uniforme a atitude da civilização para com esses antigos desejos instintuais. Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e — para a opinião não psicanalítica — ter sido completamente dominado” (FREUD, S. Edição eletrônica brasileira..., op. cit., v. XXI).
4 De acordo com a máxima sadiana, segundo Lacan, citada mais adiante ao tratarmos do enigma do crime perverso.
5 Os grifos são meus.
6Este tema foi abordado originalmente num texto de 1999, para o 2º Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia, Que culpa tem o eu? In: PERES, U. T. (Org.). Culpa. Salvador: Escuta, 2001. Posteriormente, foi revisado e ampliado com alguns recortes clínicos para a VII Jornada do Campo Psicanalítico e IV Jornada da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, Salvador (2007), publicado em: GERBASE, J. (Org.) Avatares do supereu. Salvador: Campo Psicanalítico, 2008b.
7ZAGURY, D. Les serial killers sont-ils des tueurs sadiques? Revue Française de Psychanalyse, v.66, n. 4 p.1.195-1.213, 2002 (apud ALMEIDA, Patrick. Criminalidade e Psicanálise: entrevista com Serge Cottet. Estudos de Psicanálise, Salvador, n.31, p.9-16, out. 2008).
8 O Outro em oposição ao outro, ou semelhante, é conceituado na obra de Lacan como uma função psíquica. O Outro é definido de várias formas: o tesouro do significante, no sentido de discurso, lugar da linguagem que nos antecede e da qual retiramos nossa própria fala e nosso discurso particular ou lalingua, mas também lugar da representação daqueles que foram importantes na constituição da nossa subjetividade, transmitindo-nos a linguagem e com ela as coordenadas sobre a vida e o mundo: mãe, pai e, mais adiante, figuras de autoridade, modelos e padrões dos ideais, etc. Finalmente, o Outro pode ser a representação de tudo que o eu considera como alteridade à qual se encontra vinculado. Na psicose, o Outro assume uma função de gozador que invade o eu com sua exigência de ser satisfeito, com a força de algo real, como responsável pela angústia e sofrimento do eu. Para disso se livrar, o eu deve obedecer a todas as suas demandas. Por isso a referência a Deus se presta, com tanta frequência, a participar dos delírios e alucinações que convocam ao assassinato..
9 “Embora já no escrito sobre o crime das irmãs Papin (Cf., “Motivos do crime paranóico: o crime das irmãs Papin” in Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade, op. Cit.), afirma sr. Cottet, Lacan já tenha utilizado outro modelo que não é o do estádio do espelho, já que se pode observar que o sujeito passa ao ato para extrair no real o objeto olhar.”
10 “O leitor pode ler com proveito os textos de Theodor Reik, que utiliza a segunda tópica freudiana para tentar dar conta dos crimes de autopunição. Cf., por exemplo, Le Besoin d'avouer : psychanalyse du crime et du châtiment [A necessidade de confessar: psicanálise do crime e do castigo. NT]. Payot, 1997. 420 p.”
11 “Ao exemplo da tese lacaniana de “paranóia de autopunição” a partir do caso “Aimée”.”.
12 “Em Posição do inconsciente de 1964 Lacan afirma : “A única função homogênea da consciência está na captura imaginária do eu por seu reflexo especular e na função de desconhecimento que lhe permanece ligada.”, in Escritos, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1998, p. 846.”

13“Cf., por exemplo, GUIRAUD, P. Les meurtres immotivés [Os assassinatos imotivados. NT]. L'évolution psychiatrique, março 1931. Republicado em: Documents de la bibliothèque de l'ECF, n. 1, « Le langage », fevereiro 1996.”
14“Lembramos aqui a origem filosófica hegeliana da tese lacaniana do estádio do espelho — para-além da tese de Wallon. Muito mais do lado da dialética do mestre-escravo, o estádio do espelho aplicado ao crime releva a pulsão agressiva do lado do imaginário. Lacan nos diz: “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais (...) Mas essa própria crueldade implica a humanidade. É um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie. Nenhuma experiência sondou mais que a do analista, na vivência, a equivalência de que nos adverte o patético apelo do Amor — é a ti mesmo que atinges — e a gélida dedução do Espirito: é na luta mortal de puro prestigio que o homem se faz reconhecer pelo homem” (LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950), in Escritos, p. 148-149, op. Cit. ”
15“BIAGI-CHAI, Francesca. Le cas Landru à la lumière de la psychanalyse [O caso Landru à luz da psicanálise. NT]. Prefácio de Jacques-Alain Miller. Paris: Éditions Imago, 2007.”
16“Henri Désiré Landru foi um célebre criminoso e serial killer francês, apelidado de “o Barba-azul de Gambais”. Durante o contexto da Primeira Guerra Mundial, ele havia assassinado 10 mulheres, atraindo-as através de anúncios deixados nos jornais parisienses, prometendo matrimônio, para em seguida roubar suas economias, assassiná-las e esconder seus corpos. Francesca Biagi, no seu livro, demonstra como é possível identificar Landru como um esquizofrênico a partir do que ela denomina de clínica do real.”
17As notas precedentes [9 a 16] são originais do texto publicado por Patrick Almeida. Mantivemos pelo interesse no seu conteúdo. (ALMEIDA, 2008 notas 8 a 15)
18Cottet refere-se à tese de LACAN, J., Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade [1932]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 e ao ato criminoso desenvolvido no Capítulo II da referida tese: “O caso ‘Aimée’ ou a paranóia de auto-punição”.
19Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Realengo.
20“Michel Fourniret, assassino em série francês. Apelidado de o “Ogro das Ardennes”, confessou o assassinato de nove garotas na França e na Bélgica, entre 1987 e 2001. Os especialistas que o avaliaram, diagnosticaram-no como “perverso narcísico”, em recente julgamento na França. Foi condenado à prisão perpétua.” ( ALMEIDA, 2008, nota.20)
21Francisco de Assis Pereira, vulgo Maníaco do Parque, é um assassino em série brasileiro que estuprou, torturou e matou pelo menos seis mulheres e atacou outras nove no ano de 1998 em São Paulo. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Man%C3%ADaco_do_Parque. Acesso em: 26 nov. 2010.
22VEJA, São Paulo, 12 ago. 1998. Disponível em: http://veja.abril.com.br/120898/p_106.html#quadro2. Acesso em: 26 nov. 2010.
23Disponível em : http://pt.wikipedia.org/wiki/Atentados_de_22_de_julho_de_2011_na_Noruega.