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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador Nov. 2013

 

Direito, psicanálise e a erotomania em Bem-me-quer, malmequer

 

Law, psychoanalysis and Erotomania in "He loves me, he loves me not"

 

 

Anna Mayra Araújo Teófilo*

Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ

 

 


RESUMO

A junção do Direito e da Psicanálise é um importante fenômeno vivenciado no contexto brasileiro atual, não apenas por promover uma nova compreensão no entendimento da Teoria e Prática Jurídica, como também por defender uma interdisciplinaridade imprescindível entre o Direito e as outras disciplinas. O estudo realizado neste trabalho tem como intuito um foco na interface entre o Direito e a Psicanálise, ao abordar os fenômenos jurídicos intrínsecos na realidade erotomaníaca trazida no filme Bem-me-quer, Malmequer. A conclusão sugerida é que o direito nada mais é que a atitude de realizar o que é certo entre as pessoas, mas que, querendo ou não, é envolto em uma forma arbitrária de poder (das minorias), fundamentada na racionalidade que frustra sonhos, desejos, aspirações e, mais do que isso, exclui, por rotulações, os ditos loucos sem que, muitas vezes, eles tenham a oportunidade de demonstrar sua versão, ao menos em quarenta minutos (tempo da narrativa de Angelique).

Palavras-chave: cinema; psicanálise; direito, erotomania.


ABSTRACT

The junction of Law and Literature is an important phenomenon experienced in the current Brazilian context to promote a new perceptive in the understanding of Legal Theory and Practice, as well as for defending an essential interdisciplinary between law and other disciplines. The study in this paper will focus in the interface between Law and Psychoanalysis, to visualize the legal phenomena intrinsic in the erotomaniac reality brings in the movie “he loves me, he loves me not”. The conclusion suggested is that the law it is an attitude of to realize what is right between people, but, in the reality, it is wrapped to the arbitrary form of power (of the minorities), grounded in rationality that thwarts dreams, desires, aspirations, and more than this, that excludes, for rotulations, people which are called crazy without, oftentimes, that they have the opportunity of demonstrate their versions, at least in forty minutes (time of Angelique’s narrative).

Keywords: cinema; law; psychoanalysis; erotomania.


 

 

1 Introdução

A junção do Direito e da Psicanálise tem-se tornado uma importante realidade na conjuntura brasileira atual, não apenas por renovar os ares no entendimento da Teoria e Prática Jurídica, como também por anunciar uma interdisciplinaridade essencial entre o Direito e as outras disciplinas.

No Brasil, o movimento Direito e Psicologia (e Psicanálise) ainda é uma realidade bastante recente. Entretanto, nos Estados Unidos e Europa, estudos relacionais como esses existem há muitas décadas e proporcionam um pressuposto que pode ser comungado, tido como comum nesses dois locais: os fatos realizados pelo homem, os quais possuem reflexo na sociedade, e o entendimento dos impulsos precursores desses atos, a fim de compreender o motivo que deu início a estes.

A grande vantagem de uma interligação entre Direito e Psicanálise é que esta possibilita àquele uma análise dos acontecimentos jurídicos sob outra perspectiva. Ela expande, naturalmente, os vários campos de sentidos da pessoa, por ser uma das mais variadas maneiras de entendimento da sociedade que traz dentro de si, e “de uma vez só”, inúmeros outros questionamentos filosóficos, sociológicos, psicológicos, biológicos.

Dessa forma, este trabalho tem como intento explanar as interfaces do Direito e da Psicanálise no filme “Bem-me-quer, Malmequer”, de Laetitia Colombani, assim como, promover possíveis conexões entre a realidade fictícia narrada por ela e as existentes nas nossas vivências contemporâneas.

 

2 Sobre a Psicanálise

O nascimento da Psicanálise, que ocorreu no final do século XVIII, é atribuído ao neurologista austríaco Sigmund Freud. Mas, muito antes desse feito, já havia surgido, há cerca de um século, a psiquiatria clínica clássica, que teve como grandes expoentes as suas escolas francesa e alemã.

Sem termos como intuito a extensão nesse assunto, mas, ao mesmo tempo, ao entendê-lo como importante para a própria contextualização da Psicanálise (e da erotomania), a escola francesa teve como grande representante Philippe Pinel, alienista, que modificou a ideia de que o doente mental fosse alguém possuído pelo demônio, muito menos um criminoso, mas um doente que, justamente em razão dessa questão, deveria ser tratado e liberto e não mantido enclausurado com pessoas criminosas de alta periculosidade, por exemplo.

Já a escola alemã é caracterizada por intensas atividades, de 1800 a 1850, fundamentadas, diferentemente do racionalismo francês, nas noções de irracionalidade, sentimentalismo, individualismo “[...], ou seja, em valores bem atrelados ao romantismo” (BEAUCHESNE, 1989, p.28).

Do encontro existente entre o neurologista austríaco Freud e o psiquiatra francês Jean-Martin Charcot, têm início as ideias embrionárias do que mais tarde se transformaria na Psicanálise e, consequentemente, em seus importantes ensinamentos.

Dessa forma, esta seção visa observar, subsidiariamente, a erotomania nas escolas francesa e alemã e tem, como grande escopo, a análise desse delírio a partir da Psicanálise freudiana, compreendido, dessa maneira, como uma paranoia conexa a uma irrealidade de ser amado(a).

 

a) A erotomania na escola alemã

A escola de psiquiatria clínica alemã surgiu, com Griesninger, por volta do início do século XIX. Conhecida como “Psiquiatria Pesada”, contribuiu muito para a humanidade no que diz respeito aos estudos das psicoses, demências, bases anatômicas e neurológicas da doença. De acordo com Sartori (2009, p.25), restritivamente à Psicanálise, três importantes conceitos são trazidos por Kraepelin a tal estudo, a saber: a demência precoce, a paranoia e a parafrenia.

A escola clássica de psiquiatria alemã ficou conhecida como sendo a de base orgânica, responsável, portanto, pelo tratamento das psicoses e das patologias (des)estruturais, como as demências e epilepsias.

Antes de tratarmos da erotomania na escola de psiquiatria alemã, faz-se necessário entendermos a diferenciação que Kraepelin faz entre demência paranoide e paranoia. Isso porque o que ele entende como demência paranoide, Freud compreende por paranoia e ambos falam sobre a mesma coisa: erotomania.

De acordo com Kraepelin, na demência paranoide, há uma confusão causada a partir do desenvolvimento de ideias delirantes e não há características como a organização e continuidade de tais ideias. Já na paranoia, existe um delírio que nada mais é do que uma distorção na explicação, interpretação de fatos, os quais ocorrem na realidade. Há uma idealização particular em que o paranoico mescla, dentro de si, pensamentos patológicos e saudáveis, de forma que eles convivam imutáveis até o fim.

A erotomania, na escola psiquiátrica clássica alemã, como podemos perceber, é analisada como uma espécie de demência paranoide, atrelada a uma confusão oriunda da evolução de ideias delirantes, as quais são desorganizadas, incoerentes, desconexas, e que não tem como intuito vincular o delírio do sujeito a sua visão de mundo.

 

b) A erotomania na escola francesa

Desde Pinnel, é comum encontrarmos algumas considerações acerca da erotomania. O fundador da psiquiatria moderna analisa tal patologia, superficialmente, como sendo uma espécie da melancolia, portanto predisposta, que faz com que o sujeito desenvolva a “mania de amor”, que nada mais é do que amar exageradamente e exclusivamente um alguém que, na realidade, não o ama.

Entretanto, foi Clérambault o grande representante da erotomania na escola psiquiátrica francesa. Isso porque é de sua autoria a revisão aprimorada e sistemática do que vem a ser tal patologia. Também conhecida como síndrome de Clérambault, as primeiras referências à erotomania surgiram ainda na Grécia antiga, através de Plutarco e Hipócrates.

De acordo com Clérambault, os delírios vinculados às questões passionais são subdivididos em erotomania, reivindicação e ciúmes. Ele ainda menciona que, longe de atuar como uma paranoia, a erotomania tramita entre uma área paranoica e um delírio interpretativo, onde sempre há a existência de perseguidores apaixonados. (CLÉRAMBAULT, 2002).

A erotomania de Clérambault está arraigada a um pressuposto que possui como questão principal a convicção que o sujeito possuidor da síndrome tem em ser amado pelo objeto do delírio. Existem, ainda, três etapas complementares, as quais são envoltas em um período otimista e dois pessimistas.

Inicia-se pelo período otimista, o qual é caracterizado pela esperança e certeza de estar sendo amado pelo objeto idealizado. Segue-se pelos períodos pessimistas, do despeito e do rancor, respectivamente. Este tem como grande característica o orgulho ferido, acompanhado por sentimentos como conciliação e vingança; Já aquele ocorre quando o sujeito sente grande ódio do objetivo, desferindo-lhes acusações e ameaças, por exemplo.

Diferentemente de Clérambault, Freud não se deteve no universo descritivo-fenomenológico. Ele passou a compreender a patologia a partir da libido, o que oferta, à síndrome, um estudo diferenciado do objeto, como observaremos na seção a seguir.

 

c) A erotomania em Freud

A erotomania passa a ser analisada por Freud a partir do conhecido caso do presidente Schreber. Nesse episódio, o neurologista austríaco se propõe a investigar os sintomas da paranoia como um fenômeno arraigado ao mecanismo de defesa contrário às fantasias de desejo homossexual. Ele menciona que a paranoia masculina está relacionada ao desejo-fantasia de amar um homem. Ocorre uma defesa, que reprime tal fantasia, interligada, respectivamente, tanto ao recalque (mecanismo pelo qual o sujeito tenta eliminar do seu consciente representações que considera inaceitáveis) e a projeção (o sujeito se depara com desejos e fantasias próprios, mas, por não conseguir assumi-los, projeta-os como pertencentes a outras pessoas).

Freud (2010) descreve que essas defesas são geralmente traduzidas nas contradições relacionadas aos delírios persecutórios, ciúme, delírios de grandeza, e na própria erotomania. Neste caso, a projeção atua como uma espécie de troca em que o objeto e o sujeito desse amor invertem as posições, ou seja, o sujeito nega o seu desejo e passa a ser o objeto do desejo do outro.

Outra diferenciação que Freud realiza está vinculada ao amor obsessivo, o qual, por sua vez, encontra-se envolto na percepção interna de amar e se apaixonar, há uma fixação exagerada. De outra forma, na síndrome de Clérambault, existe uma ideia exterior, atrelada ao nível inconsciente, o qual não é acessível à psique.

Para o pai da Psicanálise, o amor está arraigado a três pares opostos relacionados ao amor-ódio-[indiferença]-ser amado. É justamente esse último elemento que faz com que aconteça o delírio erotomaníaco, o qual é acompanhado por um redirecionamento da atividade para a passividade. Em seguida, a libido do sujeito tem como escopo determinado objeto, porém há uma negação desse objeto de forma que se realize um retorno do investimento a si mesmo (eu não amo, eu sou amado). Essa situação nada mais é do que a criação de um novo sujeito, caracterizado como a diferenciação entre sujeito e objeto.

Finalmente, em geral, o sujeito com tal patologia apresenta-se bem vestido, pode desenvolver características como desconfiança e hostilidade, normalmente seu exame mental é normal, salvo, por óbvio, a presença dos delírios. A realidade interna do sujeito é de ser vítima de um universo que o persegue. A projeção é o mecanismo fundamental de defesa, onde toda maldade é atribuída a pessoas ou ao próprio ambiente.

 

3 Sobre o Direito

De acordo com Reale (2002), o vocábulo direito é oriundo do latim directum e possuía um sentido inicial de retidão, adequação, de se aplicar o que é correto e devido. Atualmente, ao seguir a elucidação originária, podemos compreender o direito (na maioria das vezes) como um conjunto ideal de elementos íntegros e apropriados, almejados por uma sociedade e expressos através das leis.

Nos primórdios, o direito surgiu como uma forma, imprescindível, de organização em prol de uma convivência harmônica dos indivíduos da sociedade. O denominado direito das sociedades primitivas diz respeito ao período de mudança entre os agrupamentos iniciais existentes e abrange três características cruciais, a saber: a troca da “tribalização” pelas cidades; o surgimento da escrita e a propagação do comércio, como atividade centro dessa nova realidade social.

Foi no Egito Antigo e na Mesopotâmia que se criaram as primeiras sociedades urbanas, quando se inicia uma estruturada, engenhosa e dinâmica prática coletiva organizacional – o direito, com o intuito de um controle tanto das pessoas, quanto dos recursos já existentes e criados. Mais tarde, cidades como Grécia e Roma passam a se desenvolver de maneira anormal, exorbitante, e, com essa realidade, passa a surgir uma nova problemática: a inexistência de uma sistematização do direito traz como consequência a ineficácia das convenções sociais categorizadas como regras.

Dessa forma, com o passar do tempo e o aumento da população, o caráter avulso e informal do direito passou a exigir uma sistematização mais concreta, a que hoje denominamos de norma. A verdade é que, longe de ser um conceito “cerrado”, fechado e estático, o direito é uma realidade mutável e transitória, inerente à condição humana, passível de ser modificado, portanto, a qualquer momento.

Assim, o direito, além de formular as noções de certo e errado, direito e não direito, também deve ser compreendido como um mecanismo que representa uma construção social dos sujeitos de uma sociedade. Esses indivíduos são arraigados, portanto, a um contexto geográfico, religioso, humanístico e histórico.

Durante vários séculos, o mundo do conhecimento científico foi marcado pela visão mecanicista de Descartes. Em outras palavras, foi propagada a divisão do conhecimento científico em grandes áreas, a interdisciplinaridade foi deixada de lado e, como não poderia deixar de ser, a partir do século XVIII, o direito foi “esterilizado”, “neutralizado” e, consequentemente, apartado das relações com as demais ciências.

Por conseguinte, ao deixar de fora as outras ciências (especialmente as culturais como sociologia, antropologia, história, literatura[, o direito torna-se submerso a um enfraquecimento (experienciado inclusive nos dias atuais) e passa a reconhecer, no último século, sua insuficiência e a necessidade de relacionamento com os demais campos do saber.

É nesse contexto e seguindo a propositura atual de inter-relação com as outras áreas do conhecimento (já sugerida na Resolução 75 do CNJ) que nos propomos a defender essa importante forma de mudança, a qual o Judiciário brasileiro se propõe a realizar, “de dentro para fora”, na Justiça Nacional.

E eis aí que vinculamos o Direito à Psicanálise. Essas ciências estão presentes em quase todas as situações que circundam a vida do homem. O Direito lida com fatos realizados pelo homem, os quais possuem reflexo na sociedade. Já a Psicanálise busca revelar os impulsos precursores dos atos, a fim de entender o motivo que deu início a estes fatos.

 

4 Bem-me-quer, malmequer

Bem-me-quer, malmequer (À la folie... pas du tout), cuja direção é de Laetitia Colombani, é um filme de grande originalidade e teor psicológico, lançado pela primeira vez em 2002. Seu enredo propõe uma tentativa de averiguar o limite entre a normalidade e a loucura e nos faz refletir acerca não apenas do delírio erotomaníaco per sim como também no quanto é tênue a barreira humana entre a realidade/irrealidade; a fantasia/o fato concreto.

A protagonista é a atriz francesa Audrey Tatou, e seu papel se desenrola Bordeaux, França. Lá, o desenrolar do filme se inicia com a simpática Angelique (Tatou) a negociar a entrega de uma rosa ao objeto de seu delírio, Loïc (Samuel Le Bihan), cardiologista de 30 anos, casado, cuja esposa está grávida (Isabelle Carre).

Angelique é uma estudante de artes plásticas, órfã de um pai também artista plástico, que ganha uma bolsa de estudo ao reproduzir belas pinturas, as quais são inspiradas em Loïc, objeto da erotomaníaca em questão. Além dessas atividades, ela sobrevive como atendente de bar e babá, o que já caracteriza um menor nível social com relação ao cardiologista Loïc.

No transcorrer do filme, percebemos que há pessoas as quais, de fato, correspondem afetivamente a Angelique, como é o caso do estudante de medicina David (Clement Sibony). Entretanto, o delírio paranoico é tamanho que, apesar de ficar exacerbadamente furiosa com a ida de Loïc a Florença, ela realiza atitudes drásticas com o intuito de defender seu amado da acusação de assédio, por parte de suas pacientes.

Demasiadamente deprimida, Angelique liga o gás de cozinha a fim de que o óbvio aconteça, quando o filme é repassado todo de trás para frente novamente, de forma que, daquele momento em diante, todo o filme é repassado mais uma vez, dessa vez com Loïc narrando o filme.

É aí onde iremos fazer o contraponto entre o que de fato ocorreu e o que foi fantasiado por Angelique, erotomaníaca obcecada por Loïc que nada nutria por ela, como ela pensara sempre ocorrer.

 

a) Considerações do Direito em Bem-me-quer, Malmequer

Antes de nos adentrarmos pelo Direito propriamente dito, faz-se necessário mencionar uma questão crucial abordada nesse filme: a crítica ao desenvolvimento de uma realidade específica.

A ciência moderna tem como grande pressuposto a racionalidade humana. Dessa forma, é bem verdade que a razão é um atributo elucidado desde os primeiros filósofos gregos, mas é com o Iluminismo que ela ganha destaque, mais precisamente com os estudos de Immanuel Kant.

De uma maneira bem resumida, o grande feitio dos trabalhos kantianos reside na observação acerca dos limites da Razão e da autonomia de suas faculdades. É justamente a partir desse ponto que passamos, a partir de um breve panorama do Direito para Kant, a entender às críticas intrínsecas ao filme sob nossa análise.

Para Kant, o indivíduo moderno é um sujeito autônomo que reúne a razão, a liberdade e a lei nele próprio, de maneira que a moralidade seja apenas uma forma de obediência à lei. Logo, o indivíduo é um sujeito de direitos anteriores, universais, superiores e é tido como um fim em si mesmo, visto que ele possui a consciência de que é necessária a consideração dos fins de outrem, por sua parte, para que, dessa maneira, os seus sejam preservados.

Toda essa autonomia da pessoa é oriunda da denominada vontade racional e aí começamos, de fato, a interface com Bem-me-quer, Malmequer. Assim, o filme apresenta como escopo três pontos globais explanados no escrito em investigação: o ceticismo, a simplificação do raciocínio e a crítica ao direito como uma “verdade absoluta”.

Entende-se por Ceticismo a corrente filosófica oposta ao Dogmatismo. O Ceticismo tem como pressuposto a ideia de que o homem não possui a habilidade de alcançar a certeza absoluta a respeito de uma verdade ou conhecimento específico. Colombani apresenta esse ceticismo ao expor esse olhar de desconfiança (tanto é assim que apresenta duas versões sobre o mesmo fato[; ao compreender as noções lá embutidas não como verdades definitivas estabelecidas, porém como elementos em contínua formação.

Quanto à crítica da simplificação do raciocínio, ela se revelou uma dominadora sobre o tema. Ora, se os humanos são diferentes seres caracterizados por seu universo biológico, psicológico, social, cultural, espiritual, como sintetizar em uma única realidade a pluralidade dos mais variados desejos?

Já com relação ao direito como verdade absoluta, o filme é instigador ao sugerir, implicitamente, que não há como reduzir questões complexas (como a saúde mental[, sociais e jurídicas a verdades absolutas, justamente porque a normalidade não é o padrão e, mesmo que seja, é comum encontrarmos a “anormalidade” em nosso caminho, de maneira que essas pessoas acabam por ser excluídas dos modelos que uma ínfima minoria detentora do poder dita como certo/errado (e isso é bem sentido nos vários “fins” trazidos pelo filme; só demonstra que cada uma daquelas finalizações pode revelar as diversas peculirialidades/individualidade que cada pessoa humana pode adotar).

Especificamente, ao interligar a erotomania à criminologia, Laetitia nos faz sentir, embora sutilmente, o quanto um sujeito doente de tal patologia pode, facilmente, se inserir em condutas típicas elencadas no Código Penal como suicídio, lesão corporal, ou até mesmo homicídio. Isso porque, durante a rejeição, o ódio, a ira, é tamanho, que a pessoa erotomaníaca é capaz de cometer crimes, desde os de menor potencial ofensivo, até os mais graves, de maior potencial ofensivo, “cego” de tanta raiva, desilusão.

Assim, criminalmente falando, todos os vários ataques de fúrias vivenciados por Angelique, caso viessem a ser tipificados como ilícito em algum dos artigos do nosso Código Penal, seriam considerados como imputáveis, por existir plena consciência do certo/errado existente por trás de suas condutas.

O Direito, em sentido lato sensu, e a Criminologia, em sentido strictu sensu, ainda estão arraigados à visão de “normalidade” de Loïc, David, Isabelle. Logo, o Direito nos é revelado como uma atitude de realizar o que é certo entre as pessoas, mas que, querendo ou não, é envolto em uma forma arbitrária de poder (das minorias), fundamentada na racionalidade que frustra sonhos, desejos, aspirações, e, mais que isso, exclui, por rotulações, os ditos loucos sem que, muitas vezes, eles tenham a oportunidade de demonstrar sua versão, ao menos em quarenta minutos (tempo da narrativa de Angelique).

 

5 Considerações Finais

A proposta acima desenvolvida faz parte de uma discussão interdisciplinar que envolve o Direito e a Psicanálise, em um sentido mais geral, e a comparação en passant entre essas ciências e a erotomania do filme Bem-me-quer, Malmequer, de Laetitia Colombani, em um sentido mais específico.

O filme nos chama a atenção, mesmo implicitamente, tanto para o conceito de sanidade quanto para os diferentes papéis os quais os sujeitos ocupam no mundo, sejam eles “loucos” ou não. Em outras palavras, os sujeitos acometidos por doenças psicológicas podem, perfeitamente, desenvolver atividades comuns, normais, sem o desenvolvimento de nenhuma fragilidade específica que os categorize, rotule como pessoas anormais.

Bem-me-quer, Malmequer atua como uma espécie de continuum que coloca em questionamento todo o dogmatismo, envolto nas verdades convencionadas como absolutas, gerais e universais.

Mas, e se mais pessoas possuírem patologias iguais ou semelhantes à de Angelique, o que fazer? E se essa postura de obediência não segue a demanda atual a ponto dos “sãos”, a passos largos, se tornarem “loucos”? Eis um grande dilema, o qual a humanidade está se propondo a resolver. Assim, de “passinho em passinho”, um atrás do outro, os indivíduos vão reconstruindo conceitos tidos como imortais (como, por exemplo, que as ciências não podem ter cem por cento razão, visto que os seres humanos que delas tratam são a mescla perfeita da razão e emoção; ou que uma ciência sozinha, isolada das outras, pouco pode ofertar em comparação se elas estivessem interligadas) e desenvolvendo uma nova era dos estudos científicos mais eficazes para um ser humano bio-psico-sócio-cultural-espiritual, mescla da razão e emoção inter e trans disciplinar por natureza.

 

Referências

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Recebido em 03/11/2013
Aceito em 24/11/2013

 

* UFPB/Unipê; Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba; Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba; Pesquisadora em Direito Penal pelo Centro Universitário de João Pessoa.