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Avaliação Psicológica
Print version ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.9 no.3 Porto Alegre Dec. 2010
Depressão, traços depressivos e representações parentais: um estudo empírico
Depression, depressive traits and parental representations: an empirical study
Universidade de Évora
Resumo
Neste trabalho estudámos a relação entre depressão e representações parentais, de acordo com a perspectiva psicodinâmica, verificando se os traços depressivos da personalidade podem ser uma variável mediadora entre representações parentais negativas, consequência de interacções precoces disfuncionais com as figuras significativas, e o estado depressivo sintomático. Trezentos e noventa estudantes universitários seleccionados de diversas instituições de ensino superior responderam a um inventário de traços depressivos, a um diferencial semântico e ao Inventário de Depressão de Beck-II. Cento e quarenta e dois sujeitos (36,4%) eram do sexo masculino e 248 (63,6) eram do sexo feminino). Os estudantes responderam em grupos que variaram entre os 15 e os 50 elementos. Os resultados obtidos através da Análise de Trajectórias apoiam a hipótese dos traços depressivos, a dimensão depressiva da personalidade, ser um mediador entre representações parentais negativas e o estado depressivo sintomático, como é salientado pelas perspectivas psicodinâmicas do desenvolvimento e da psicopatologia
Palavras-chave: Representações parentais; Depressão; Traços depressivos; Estado depressivo.
Abstract
In this work we have studied the relationship between depression and parental representations, following the psychodynamic perspective, verifying if depressive traits can be a mediation variable between negative parental representations, which are the result of disruptive interactions with significant objects, and the depressive symptomatic state. Three hundred and ninety college students, from several Portuguese university institutions have responded to an inventory that assesses depressive traits, to a Semantic Differential and to the Beck Depression Inventory-II (BDI-II). One hundred and forty two (36,4) were male, and 248 (63,6) were female. Participants have responded to the questionnaires in groups ranging from 15 to 50 elements Results obtained with Path Analysis support the hypothesis that depressive traits, the depressive dimension of personality, is a mediation variable between the negative parental representations and the depressive symptomatic state, as stressed by the psychodynamic perspective of development and psychopathology
Keywords: Parental representations; Depression; Depressive traits; Depressive state.
Introdução
A relação entre uma perturbação nas representações objectais, consequência de interacções precoces também elas disfuncionais com as figuras significativas e a depressão tem sido postulada pela escola psicodinâmica. Diversos autores da escola das relações de objecto se têm focalizado nos designados antecedentes distais da depressão, como por exemplo Coimbra de Matos (2001, 2002, 2003), Blatt (1974, 1990, 2004), Bowly (1980) e Kernberg (1988). De acordo com a conceptualização psicodinâmica, e resumidamente, interacções perturbadas com as figuras significativas geram representações igualmente perturbadas dessas mesmas figuras, criando determinados estilos de personalidade predisponentes, que podem contribuir para a ocorrência de estados depressivos sintomáticos, sob a influência de acontecimentos disruptivos (Besser, Vliegen, Luyten & Blatt, 2008; Besser & Priell, 2010; Blatt, 2004, 2008; Blatt & Zuroff, 1992; Nietzel & Harris, 1990).
Coimbra de Matos (2001) considera a personalidade depressiva (conjunto de traços de carácter), também designada de disposição depressiva, depressividade ou tendência depressiva, uma estrutura mental mais ou menos estável, um tipo de funcionamento psíquico preponderante. Esta personalidade depressiva composta por traços egossintónicos, em sintonia com o self, seria o substracto de onde surgem episódios depressivos com sintomas egodistónicos, ou seja, que geram sofrimento e mal-estar. Os traços da personalidade depressiva organizar-se-iam na sequência de pequenas perdas cumulativas ou como sequela de uma reacção depressiva, mas também, e sobretudo, como resultado de uma relação patogénica de onde se destaca uma economia depressígena em que o sujeito dá mais do que recebe, vivendo num sistema de perda contínua. Verifica-se também nesta relação uma indução de culpa pelo objecto (e, por identificação, o sujeito aceita a imagem de culpado que lhe é incutida), e ainda uma desvalorização, humilhação e ridicularização do sujeito (Coimbra de Matos, 1996).
Blatt (1974) considera que as perturbações no desenvolvimento das representações objectais criam uma vulnerabilidade específica à perda objectal e a depressões futuras. Devido a estas perturbações, verifica-se uma grande necessidade de manter o contacto com o objecto, directamente, ou através da intensificação do processo de introjecção (Blatt, 1974, p. 121), respectivamente na depressão anaclítica e na depressão introjectiva.
A qualidade das relações interpessoais determina as características do mundo interno representacional, através da internalização. Por outro lado, as estruturas cognitivo-afectivas internas determinam e moldam as subsequentes experiências interpessoais, pelo que relação e representação evoluem numa interacção recíproca e dialéctica (Blatt, 1974, 1995; Blatt & Lerner, 1983). As representações emergem da matriz relacional e determinam essa matriz. O processo de internalização das relações conduz à formação de estruturas intra-psíquicas, representações do próprio e do objecto e permite o desenvolvimento das funções do ego.
Com o desenvolvimento, as representações objectais tornam-se cada vez mais diferenciadas, integradas e precisas. No início são amorfas e globais, passam por um período em que apresentam um ênfase nas propriedades parciais dos objectos, até atingirem um grau elevado de articulação, diferenciação, integração e abstracção, aproximando-se bastante da realidade (Blatt, 1974). O desenvolvimento de representações conceptuais e simbólicas é conseguido nos últimos estádios de separação/individuação, com a resolução da crise edipiana... (Blatt, 1974, p. 145). A perda objectal passa a ser aceite, porque se estabeleceu uma adequada representação objectal, uma representação conceptual global de um objecto total, independente, com características, funções, sentimentos e valores duradouros, que reintegra as diferentes partes separadas do objecto. O contacto directo com o objecto torna-se desnecessário, para que se mantenha a sua representação. O objecto permanece interno, podendo ser deixado externamente (Blatt, 1974).
Segundo o citado autor, vários factores contribuem para a ocorrência da depressão, nomeadamente, predisposições biológicas, aspectos temperamentais, os estilos parentais (resultantes das suas características) e consequentes estilos de vinculação, acontecimentos externos traumáticos na infância e factores precipitantes presentes actuais. Há também que considerar os factores de forma hierárquica e inter-relacionada. Não são apenas os aspectos temperamentais, por exemplo, nem as características dos pais, que podem conduzir a padrões de vinculação insegura e a representações mentais desadaptativas do objecto, mas sim a sua interacção, ou seja, neste caso, a incompatibilidade entre as características temperamentais da criança e as características dos pais (Blatt & Homann, 1992). Esta conceptualização tem por base uma lógica de diatése/stress, em que predisposições individuais, como variáveis de personalidade, estruturadas como consequência de determinados estilos perturbados de relação objectal, interagem com experiências de vida stressantes, originando a depressão clínica (Blatt & Zuroff, 1992).
Os antecedentes distais da depressão têm sido objecto de investigação empírica (e.g. Besser & Priel, 2005; Burbach & Borduin, 1986; McCraine & Bass, 1984; Schwarz & Zuroff, 1979). Como alguns autores afirmam, a investigação na área da depressão deverá tentar observar até que ponto as experiências precoces podem criar predisposições para que determinados indivíduos se tornem vulneráveis a estados afectivos disfóricos profundos em consequência de factores stressantes actuais, como desapontamentos e perdas, ou insucessos pessoais (Blatt & Homann, 1992). De facto, a investigação empírica da relação entre as experiências depressivas e as representações ou imagos parentais (a forma como o sujeito vê as figuras parentais como elas eram na infância), tem sido uma das formas descritas na literatura para estudar a natureza do fenómeno depressivo, na linha teórica psicodinâmica (veja-se Blatt, 2004; Blatt & Homann, 1992; Quinlan, Blatt, Chevron & Wein, 1992).
Verifica-se que comparações empíricas entre indivíduos com e sem depressão mostram que os primeiros relatam mais experiências negativas com os pais (e. g. Blatt & cols., 1979; Burbach & Borduin, 1986). Os sujeitos depressivos relembram as suas mães e pais como não cuidadores, rejeitantes e excessivamente críticos e punitivos (Blatt, 2004). Segundo este autor, pais excessivamente críticos, punitivos, negligentes e privadores, podem constituir um percursor para a depressão nos adultos. Schwarz e Zuroff (1979) obtiveram uma correlação significativa entre depressão medida pelo Inventário de Depressão de Beck (BDI) e a inconsistência no afecto do pai e a inconsistência no afecto da mãe. Alguns estudos (veja-se Blatt, 2004 para uma revisão detalhada; e. g. Blatt, Wein, Chevron & Quinlan, 1979; Dahn, 2000; Karoly & Ruehlman, 1983; Quinlan & cols., 1992), mostraram que existe uma relação entre a qualidade das representações objectais, das figuras parentais e os tipos de depressão definidos por Blatt, anaclítico e introjectivo e (ou) mostraram que existe uma relação entre representações objectais e sintomas depressivos avaliados por inventários de sintomas, como por exemplo a Escala de Zung. Alguns dos estudos, para avaliar as representações internas, utilizaram metodologias em que os sujeitos descrevem, retrospectivamente, os seus pais e noutros, menos numerosos, usaram-se avaliações clínicas das experiências precoces dos pacientes. Em alguns casos ainda, utilizaram-se questionários (e. g. Parental Bonding Instrument) ou diferenciais semânticos.
Objectivo do estudo
No presente estudo relacionámos três variáveis e não apenas duas como noutros estudos: as representações parentais, o estado depressivo e os traços depressivos, ou a personalidade depressiva. Noutros trabalhos ou se estudou a relação entre representações e sintomas depressivos, ou entre representações e experiências depressivas na perspectiva de Blatt, que têm semelhanças com a noção de traço aqui operacionalizada, ou ainda a relação entre traços e sintomas depressivos, mas não as três variáveis simultaneamente e as relações que mantêm entre si.
Colocamos a hipótese da personalidade depressiva poder ser uma variável mediadora entre as representações parentais negativas (consequência de interacções precoces disfuncionais com as figuras significativas) e o estado depressivo sintomático actual. Esta dimensão depressiva da personalidade é considerada como uma dimensão ampla e estável, composta por diferentes tipos de traços que todos os sujeitos exibem em maior ou menor grau, traços que podem ser considerados características que tornam o sujeito vulnerável a estados depressivos, e sem fazer corresponder o conceito a um quadro nosológico específico ou a um único autor ou modelo teórico particular (veja-se Campos, 2006, 2009).
Especificamente neste estudo, e do ponto de vista empírico, testaremos a hipótese dos traços depressivos avaliados pelo o Inventário de Traços Depressivos (Campos, 2009) constituírem uma variável meditara entre representações objectais negativas, avaliados por um Diferencial Semântico e os sintomas depressivos avaliados por um inventário de sintomas, a versão portuguesa do Inventário de Depressão de Beck-II (BDI-II) (Beck, Steer & Clark, 1996).
Colocamos também a hipótese da variável género ter influência nas relações de causa-efeito a serem testadas. Dahn (2000) refere justamente que o impacto das representações (avaliadas através de um diferencial semântico) na depressão pode ser influenciada pela variável género.
Método
Participantes
Participou neste estudo uma amostra de 390 estudantes universitários seleccionados de diversas instituições de ensino superior da cidade de Lisboa e da Universidade de Évora. A escolha das instituições foi realizada apenas por conveniência do autor. Tendo em conta a disponibilidade dos docentes, foram escolhidas turmas de vários anos. A participação dos estudantes foi voluntária.
As idades dos sujeitos variaram entre os 18 e os 55 anos (M=20,65, DP=3,54). Cento e quarenta e dois sujeitos (36,4%) eram do sexo masculino e 248 (63,6) eram do sexo feminino).
Instrumentos
Inventário de Traços Depressivos (ITD)
O Inventário de Traços Depressivos (Campos, 2006, 2009) é constituído por 80 itens, respondidos numa escala de Likert e cotados de 1 a 5, medem uma variedade de traços considerados depressivos, seleccionados da vasta literatura psiquiátrica e psicodinâmica que estudou a personalidade depressiva. O instrumento apresenta boas características psicométricas, quer ao nível da precisão, quer ao nível da validade (veja-se Campos, 2006, 2009, no prelo). O alfa de Cronbach é bastante elevado, sempre superior a 0,95 em diversas amostras, de estudantes, pacientes e da comunidade e o resultado no inventário correlaciona-se de forma significativa com medidas de depressão, como por exemplo o BDI-II, e apresenta um padrão de correlações esperado coma as escalas de padrões de personalidade do MCMI-II (Millon, 1987).
Diferencial Semântico
A utilização de um diferencial semântico teve como objectivo a avaliação das representações parentais. Como referimos, uma parte dos trabalhos que estudaram a relação entre depressão sintomática e (ou) experiências depressivas e a qualidade das representações parentais, avaliaram estas representações utilizando questionários ou diferenciais semânticos.
O diferencial semântico é um termo genérico que se refere a um conjunto de procedimentos que permitem sucintamente avaliar a representação que um dado sujeito tem de qualquer conceito ou objecto da realidade desde a mãe ou outrem significativo, à representação de um político, de um qualquer objecto material ou do conceito de depressão, por exemplo, através do seu posicionamento no espaço semântico, o mesmo é dizer do seu posicionamento relativamente a diversos pares de adjectivos antagónicos que descrevem o objecto ou conceito (Osgood, Suci & Tannenbaum. 1957). Podem construir-se tantos diferenciais semânticos quantos os necessários para a avaliação de diferentes conceitos.
Na verdade, nos últimos 50 anos, muitos estudos com diferentes tipos de amostras, não clínicas e clínicas, nomeadamente de depressivos, sob diferentes paradigmas teóricos, nomeadamente cognitivista e psicodinâmico, utilizaram diversos diferencias semânticos para avaliar, não só as representações parentais, mas as representações, as atitudes ou o significado que diferentes conceitos têm para os sujeitos: o self, o self ideal, a discrepância entre o self ideal e o self real, o filho, o marido, a imagem corporal, as atitudes face ao corpo, diferentes aspectos do funcionamento somático, da sexualidade, a feminilidade, o suporte social, o impacto de sessões terapêuticas, diversas patologias como a própria depressão, o passado, o futuro, a família, os amigos, a escola, entre outros (e. g. Blatt & cols., 1979; Dahn, 2000; Elliott & Wexler, 1994; Ewalds-Kvist, Hirvonen, Kvist, Lertola & Niemelã, 2005; Karoly & Ruehlman, 1983; Laxer, 1964; Laessle, Kiittl, Fichter & Pirke, 1988; Lewinsohn & cols., 1988; Pajulo, Savonlahti, Sourander, Piha & Helenius, 2001, 2004; Quinlan & cols., 1992; Wilson & Lindholm, 1987; Whaley, 1989; Yanagida & Marsella, 1978; veja-se também Blatt, 2004).
Quinlan e cols. (1992) construíram um diferencial semântico com o mesmo formato do que foi construído para este estudo (só que com 17 escalas por conceito) para validar um procedimento de descrição das figuras parentais (veja-se também, Blatt & Homann, 1992).
A construção do diferencial semântico neste estudo teve como base o trabalho de Osgood e cols. (1957). À semelhança do trabalho de Quinlan e cols. (1992) o diferencial semântico foi construído para quatro conceitos: Quando eu era criança, a minha mãe, Quando eu era criança, o meu pai, Eu próprio como sou, Eu próprio como gostaria de ser. De salientar que, relativamente aos conceitos utilizados por Quinlan e cols. (1992), fizemos uma ligeira alteração, acrescentando Quando eu era criança aos conceitos de mãe e de pai, para enfatizar que se pretendia que os sujeitos avaliassem as figuras parentais como elas eram percebidas na infância. Note-se que, como referem Quinlan e cols. (1992), o conceito de Eu próprio como sou tem como objectivo a avaliação do self real e o conceito de Eu próprio como gostaria de ser, o self ideal. Neste artigo não serão apresentados os resultados relativos aos conceitos de Eu próprio como sou e Eu próprio como gostaria de ser.
Para cada um dos quatro conceitos, foram criadas 22 escalas de adjectivos bipolares, seleccionando os adjectivos que empiricamente se mostraram mais eficazes segundo Osgood e cols. (1957), ou seja que saturaram mais nos três factores dominantes identificados por estes autores, avaliação, potência e actividade e que, ao mesmo tempo, como sugerem aqueles autores, se mostraram relevantes para a avaliação dos conceitos em causa. De referir ainda que, na opinião dos autores, por exemplo em estudos clínicos, pode optar-se por utilizar escalas que não pareçam facialmente relevantes para o conceito, como por exemplo, avaliar uma figura significativa do sujeito, na escala frio - quente. Na selecção das nossas escalas tivemos também em conta este critério.
No diferencial semântico utilizado neste estudo, o factor de avaliação de cada conceito, o mais importante, que explica uma maior percentagem de variância, ficou a ser constituído por 16 escalas, o de potência por três escalas e o de actividade, igualmente por três escalas. O resultado em cada factor é a mediana das escalas que o compõem. Cada escala é cotada de 1 a 7.
Os valores de alfa de Cronbach para os três factores dos conceitos de mãe e de pai no presente estudo foram aceitáveis, superiores a 0,60 no caso dos factores compostos apenas por tês adjectivos e superiores a 0,90 no caso do factor de avaliação.
Criámos também mais três escalas de adjectivos, os itens 23, 24 e 25 de cada conceito, que não aparecem na tabela da análise factorial de Osgood e cols. (1957), mas que teoricamente nos pareceram relevantes para o nosso estudo (perfeito(a) imperfeito(a); aceitante rejeitante; desculpabilizante culpabilizante), o que, segundo os autores, é também um procedimento legítimo, desde que se incluam igualmente escalas cuja composição factorial seja conhecida. De salientar ainda que, de acordo com Osgood e cols. (1957), a ordem das escalas e a polaridade deverão manter-se constantes para todos os conceitos, aspecto que também retivemos.
Também as instruções e a forma de apresentação das escalas se baseou nos requisitos apresentados por Osgood ecols., (1957), nomeadamente no que se refere à necessidade das escalas serem alternadas relativamente à direcção da polaridade (Osgood & cols., 1957, p. 82) (exemplo, mau bom, mas justo injusto). Em termos de cotação, alguns dos itens são, por conseguinte, invertidos, de forma a que resultados elevados no factor reflictam uma avaliação positiva do conceito.
Inventário de Depressão de Beck-II (BDI-II)
O Inventário de Depressão de Beck-II (Beck, Steer & Brown, 1996) surge em 1996 e foi desenvolvido para avaliar os sintomas correspondentes aos critérios do DSM-IV para diagnosticar as perturbações depressivas. O inventário é, da mesma forma que as versões anteriores, composto por 21 grupos de sintomas, ou itens, e pode ser aplicado a sujeitos a partir dos 13 anos. Foram eliminados 4 itens da versão anterior (perda de peso, alteração na imagem corporal, preocupação somática e dificuldade profissional) que foram substituídos por outros 4 (agitação, falta de valor / inutilidade, dificuldades de concentração e perda de energia). Esta alteração ocorreu para que fosse possível avaliar sintomas típicos das depressões mais graves. Os itens referentes ao sono e ao apetite foram também modificados, de forma a permitir avaliar a hipersónia e a hiperfagia. Os restantes itens sofreram modificações ao nível da escrita. Como nas versões anteriores, a pontuação global é o somatório da pontuação em todos os itens. Os itens são contados de 0 a 3 pontos.
O Inventário de Depressão de Beck é actualmente um dos inventários para avaliar a intensidade da sintomatologia depressiva mais utilizados e dos mais investigados (Piotrowski, Sherry & Keller, 1985; Ritterband & Spielberger, 1996). Segundo Hiroe e cols. (2005), o BDI-II, dadas as suas qualidades psicométricas, promete continuar a ser o instrumento mais popular para avaliar a gravidade da sintomatologia depressiva, na continuação do seu antecessor, o BDI. A pontuação global do BDI-II é um indicador da gravidade da sintomatologia depressiva actual muito utilizado na prática clínica e em investigação (Brantley, Dutton & Wood, 2004). Trata-se de um instrumento adequado para medir a sintomatologia depressiva em populações de estudantes universitários (e. g. Carmody, 2005; Sanz, Navarro & Vázquez, 2003) e na população geral (e. g. Sanz, Perdigón & Vázquez, 2003). O Inventário de Beck está entre os testes mais utilizados na clínica, o que é notável dado que não se trata de um instrumento multidimensional (Piotrowski, 1996). Os instrumentos de avaliação mutidimensionais são normalmente mais utilizados, em detrimento dos que avaliam apenas dimensões específicas, os unidimensionais.
A versão portuguesa do BDI-II apresenta boas características psicométricas, quer ao nível da precisão, quer ao nível da validade (veja-se Campos, 2006; Campos & Gonçalves, 2009, no prelo). Os valores de alfa de Cronbach foram de 0,90, 0,88 e 0,91, respectivamente com uma amostra de estudantes universitários, de pacientes com depressão e da comunidade. A versão portuguesa apresenta também uma correlação significativa com a versão portuguesa da CES-D (Radloff, 1977).
Procedimento
Os sujeitos responderam aos instrumentos de medida em pacotes que não excederam os quatro inventários no âmbito de uma investigação mais vasta sobre a depressão e a personalidade depressiva. Os pacotes incluíam a versão portuguesa do Inventário de Depressão de Beck-II (BDI-II), o Inventário de Traços Depressivos e o Diferencial Semântico. Os estudantes responderam em grupos que variaram entre os 15 e os 50 elementos.
Após uma breve introdução, cada sujeito recebia um pacote de questionários cuja primeira página continha instruções, bem como garantia o carácter anónimo e confidencial da aplicação. Todos os pacotes continham, a seguir à folha de instruções, uma ficha de dados demográficos (que pedia entre outros elementos, idade, sexo, escolaridade, curso, se tinha ou não saído de casa para frequentar a universidade, se já tinha ido ao psicólogo com alguma regularidade ou se tinha alguma doença crónica), e seguidamente os questionários.
Procedimento Estatístico
Utilizámos a análise de trajectórias, que é uma extensão particular do método da regressão linear múltipla. O objectivo deste tipo de análise é decompor a associação entre variáveis em diferentes efeitos como aqueles que seriam observáveis num conjunto de relações causais . é necessário, antes de mais, reconhecer que o termo causal refere, simplesmente, uma assumpção do modelo (a de que existe uma relação de causa-efeito) . O investigador assume uma relação causal entre variáveis e testa hipóteses referentes a trajectórias causais entre as variáveis, com base nesta assumpção. A não rejeição destas hipóteses não prova que a assumpção de causa-efeito é verdadeira, simplesmente porque a Path analysis analisa correlações e a existência de correlação significativa não implica necessariamente causalidade . (Maroco, 2004, p. 457).
Por ter sido necessário realizar diversas análises da regressão, testámos desde logo a normalidade das distribuições dos resíduos estandardizados obtidos nessas diversas análises, o mesmo é dizer que verificámos se os erros apresentavam distribuições normais, o que constitui um dos pressupostos da técnica estatística da análise de trajectórias. Verificámos que existiam diversos outliers que faziam com que, em alguns casos, as distribuições dos resíduos se afastassem da curva normal, pelo que excluímos os mais extremos e voltámos a realizar as quatro análises que constam deste artigo.
Não foram, desde logo, introduzidas no modelo, as variáveis do diferencial semântico dos conceitos de mãe e de pai que não se correlacionavam com o ITD nem com o BDI-II, ou seja os itens 24 e 25 do conceito de pai. Foram introduzidos os factores de cada um dos conceitos, os itens 23, 24 e 25 do conceito de mãe e o item 23 do conceito de pai. Introduziu-se também, juntamente com estas variáveis, a variável sexo (0- rapazes, 1- raparigas), porque se correlacionava com o ITD e se tornava necessário saber se a variável sexo tinha influência nas relações de causa-efeito testadas.
Resultados
Em primeiro lugar, foi necessário obter os coeficientes de trajectória (β) referentes ao modelo cujo esquema é apresentado na Figura 1.
Realizámos duas análises da regressão que nos permitiram estimar os coeficientes de regressão estandardizados para as duas seguintes equações estruturais:
ITD= β1sexo + β2mãeA + β3mãeP + β4mãeAc + β5paiA + β6paiP + β7paiAc + β8mãeit23 + β9mãeit24 + β10mãeit25 + β11paiit23 + e1 BDI-II= β12ITD + β13sexo + β
Numa das análise da regressão introduzimos as variáveis do diferencial semântico e o sexo como preditores e o ITD como variável dependente e verificámos que as variáveis sexo, Mãe A e Pai A eram as únicas que davam um contributo significativo para a previsão da variável dependente (β1Sexo= 0,227, t=4,38, p=0,000016; β2MãeA= - 0,179, t= -2,62, p=0,009089; β5PaiA= -0,138, t=- 2,13, p=0,033876). O valor de R2 foi de 0,161 (n=355). Os resíduos estandardizados apresentaram uma distribuição normal (d=0,036 n.s.; χ(17)2=16,40, p=0,50).
Na outra análise da regressão, introduzimos as variáveis do diferencial semântico, o sexo e o ITD como preditores e o BDI-II como variável dependente e verificámos que a variável ITD era a única que dava um contributo significativo para a previsão da variável dependente (β12ITD= 0,734, t=19,20, p<0,000001). O valor de R2 foi de 0,580 (n=355). Os resíduos estandardizados apresentaram uma distribuição normal (d=0,046 n.s.; χ(17)2=24,78, p=0,10).
Assim sendo, foi possível testar um modelo simplificado cujo esquema se apresenta na Figura 2.
Para testar este modelo, tivemos, mais uma vez, de realizar duas análises de regressão que nos permitissem estimar os coeficientes de regressão estandardizados para as duas seguintes equações estruturais:
ITD= β1sexo + β2mãeA + β3paiA + e1 BDI-II= β4ITD + e2
Obtivemos os coeficientes de trajectória, bem como os valores de e1 e e2 (variabilidade não explicada) que constam do esquema reproduzido na Figura 3.
Na análise da regressão em que introduzimos as duas variáveis do diferencial semântico e o sexo como variáveis independentes e o ITD como variável dependente, foi possível obter os valores de β 1, β 2, β 3 (β1 sexo=0,218, t=4,33, p=0,00002; β2 mãeA=-0,244, t=-4,81, p=0,000002; β3 paiA=-0,193, t=-3,74, p=0,000215). O valor de R2 foi de 0,143 (n=355). Os resíduos estandardizados apresentaram uma distribuição normal (d=0,044 n.s.; χ2(18)2 =15,71, p=0,61).
Na análise em que introduzimos o ITD como única variável independente e o BDI-II como variável dependente, foi possível obter o valor de β 4 (β4 ITD=0,756, t=21,72, p<0,000001). O valor de R2 foi de 0,572 (n=355). Os resíduos estandardizados apresentaram uma distribuição normal (d=0,038 n.s.; χ(19)2=29,60, p=0,057).
De referir que, uma vez que estávamos perante um modelo não saturado, isto é, em que nem todas as trajectórias possíveis entre variáveis estão representadas, tornou-se necessário que testássemos o ajustamento do modelo aos dados. Num modelo não saturado podem ser deixadas de fora trajectórias importantes e necessárias, pelo que é geralmente aconselhável avaliar até que ponto o modelo explica satisfatoriamente as associações observadas entre as variáveis (Maroco, 2004, p. 475). Utilizámos o índice RMSR O resultado foi de 0,017, pelo que se pode considerar que o ajustamento do modelo aos dados é muito bom (Maroco, 2004, p. 463).
Discussão
De acordo com os resultados obtidos os traços depressivos, avaliados pelo ITD, parecem ser uma variável mediadora entre os dois factores de risco (o género e as representações mentais perturbadas das figuras significativas, avaliadas pelo diferencial semântico) e o estado depressivo, avaliado pelo BDI-II. Assim sendo, a nossa hipótese é corroborada pelos resultados. Verificou-se também que o género influencia o efeito mediador dos traços depressivos entre as representações parentais disfuncionais e os sintomas depressivos.
Não só as representações parentais negativas se relacionam com a presença de traços depressivos (são uma marca do ponto de vista psicológico, psicodinâmico, destes traços), que estes traços estão relacionados com o estado depressivo sintomático, mas também, como prevíamos, que os traços poderão ser mediadores, ou seja, que os sujeitos, especialmente as mulheres que tenham representações de ambos os pais como menos bons, terão tendência a apresentar mais traços depressivos que, por sua vez, poderão contribuir para a ocorrência de estados sintomáticos mais intensos.
De acordo com, por exemplo, a formulação de Blatt (2004, 2008; Blatt & Homann, 1992; Blatt & Zuroff, 1992) parece que determinados acontecimentos distais, como experiências precoces perturbadas com as figuras significativas, geram representações igualmente perturbadas dessas mesmas figuras, determinados modelos internos (working models), Na designação de Bowlby (1980), contribuindo para o desenvolvimento de determinados estilos de personalidade que podem, por sua vez, contribuir para a ocorrência de estados depressivos sintomáticos, sob a influência de acontecimentos disruptivos.
Também na opinião de Coimbra de Matos, a personalidade depressivas gerar-se-ia de relações disfuncionais na infância e, como dissemos antes, seria o pano de fundo para a ocorrência de estados depressivos. Como refere Coimbra de Matos (2001, p. 533), Tudo se constrói na relação, mal ou bem. E as primeiras relações desempenham o padrão de relação, que tende a manter-se inalterado ..
Resultados provenientes de três linhas de investigação a saber: estudo dos padrões de vinculação em crianças, estudo de crianças, filhos de mães deprimidas e análise retrospectiva das descrições das relações com as figuras parentais realizadas por adultos, mostram que as relações com as figuras parentais na infância são internalizadas nas representações mentais das relações de cuidado e que uma relação perturbada pode criar vulnerabilidade à depressão, através da acção dessas representações (Blatt & Homann, 1992). Sem uma adequada internalização, o objecto não pode ser experienciado como perdido, sem desencadear a depressão. Foi a impossibilidade de estabelecer boas relações e níveis de representação adequados, que resultam numa vulnerabilidade à depressão (Blatt & cols., 1979)
A noção psicanalítica clássica de que os padrões interpessoais de cognição, comportamento e afecto estabelecidos nos primeiros anos de vida, são centrais para o funcionamento interpessoal e o ajustamento psicológico futuros, tem merecido apoio da investigação psicanalítica (Westen, 1990). Nenhuma outra relação tem sido vista como tão importante para o desenvolvimento afectivo como a relação da criança com a mãe e com o pai (Besser & Priel, 2005; Blatt, 2004: Blatt, & cols., 1979). A relação da criança com os pais tem um efeito determinante, extensivo e duradouro no seu desenvolvimento afectivo, social e pessoal, sendo vários os estudos que mostram a existência de relações perturbadas nas recordações das experiências infantis de indivíduos deprimidos (Quinlan & cols., 1992). A questão central nas experiências infantis dos adultos com depressão parece não ter sido tanto a perda do objecto em si, mas a experiência de privação afectiva (Blatt, 2008; Quinlan & cols., 1992)
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Recebido em março de 2010
Reformulado em julho de 2010
Aceito em agosto de 2010
Sobre o autor:
Rui C. Campos: Psicólogo Clínico. Professor Auxiliar do Departamento de Psicologia da Universidade de Évora.
1Contato:
Email: rcampos@uevora.pt
2Gostaríamos de agradecer ao Prof. Doutor Bruno Gonçalves a sua preciosa colaboração para a escrita deste artigo. Gostaríamos também de agradecer à Profª Doutora Ana Sousa Ferreira a sua colaboração na análise estatística dos resultados.