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Revista da SPAGESP
Print version ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto 2017
ARTIGOS
Com a licença de Oxalá: a ética na pesquisa etnopsicológica em comunidades religiosas
With the licence of Oxalá: the ethics in the ethnopsychological research in religious communities
Con la licencia de Oxalá: la ética en la investigación etnopsicológica en comunidades religiosas
Fabio Scorsolini-Comin1, I; José Francisco Miguel Henriques Bairrão2, II; Manoel Antônio dos Santos3, II
IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo é discutir as especificidades da pesquisa etnopsicológica em comunidades de terreiro à luz dos dispositivos da minuta de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (Resolução 510/2016). A pesquisa em terreiros envolve métodos que preveem a possibilidade de fotografar, realizar vídeos e audiogravação de rituais, consultas mediúnicas e demais atividades que ocorrem em terreiros, bem como observações participantes, entrevistas com consulentes, médiuns em transe de possessão, bem como seus diferentes adeptos. A partir da nova minuta, o processo de esclarecimento do participante não deverá passar, necessariamente, por um termo formal. Essa alternativa contempla a possibilidade de que a autorização para a pesquisa (envolvendo diferentes métodos de coleta) passe pela anuência do responsável pela comunidade não necessariamente pela via escrita, de modo a valorizar a "palavra" do sacerdote, dada como selo de concordância e que possibilita que a comunidade, de fato, abra-se à ação mais direta do pesquisador e suas intervenções. Considerar essas especificidades garante o respeito à dimensão ética do sujeito e sua comunidade de referência.
Palavras-chave: ética; etnopsicologia; umbanda; candomblé.
ABSTRACT
The aim of this study is to discuss the specificities of ethnopsychological research in the religious communities based on Resolution 510/2016 of the National Health Council. Research in terreiros involves methods that allow the possibility of photographing, making videos and audiotaping of rituals, médiumistic consultations and other activities that take place in terreiros, as well as participant observations, interviews with consultants, mediums in possession trance, as well as their different followers. From the new draft, the process of clarification of participants must not necessarily go through a formal term. This alternative contemplates the possibility that the authorization for the research (involving different methods of data collection) will pass through the consent of the person in charge of the community, not necessarily through the written way, in order to value the priest's "word", given as a seal of agreement and makes it possible for the community, in fact, to open it self to more direct action of the researcher and his interventions. Considering these specificities guarantees respect for the ethical dimension of the subject and his community of reference.
Keywords: ethics; ethnopsychology; umbanda; candomblé.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es discutir las especificidades de la investigación etnopsicológica en comunidades de terreiro a la luz de los dispositivos del borrador de 2016 del Consejo Nacional de Salud (Resolución 510/2016). La investigación en terreros involucra métodos que prevean la posibilidad de fotografiar, realizar videos y audiograbación de rituales, consultas mediúmnicas y demás actividades que ocurren en terreros, así como observaciones participantes, entrevistas con consultores, médiums en trance de posesión, así como sus diferentes adeptos. A partir del nuevo borrador, el proceso de esclarecimiento del participante no deberá pasar, necesariamente, por un término formal. Esta alternativa contempla la posibilidad de que la autorización para la investigación (involucrando diferentes métodos de recolección) pase por la anuencia del responsable de la comunidad no necesariamente por la vía escrita, para valorar la "palabra" del sacerdote, dada como sello de concordancia y que permite que la comunidad, de hecho, se abra a la acción más directa del investigador y sus intervenciones. Considerar estas especificidades garantiza el respeto a la dimensión ética del sujeto y su comunidad de referencia.
Palabras clave: ética; etnopsicología; umbanda; candomblé.
Vou abrir minha Aruanda
Vou abrir meu juremá
Com a licença de mamãe Oxum
e nosso pai Oxalá.
(Ponto cantado nas aberturas de gira em terreiros de umbanda)
Nosso ponto de partida no presente estudo é a preocupação com o modo como as pesquisas envolvendo religiões de matriz africana têm sido discutidas em termos éticos na legislação brasileira. O convite deste número temático é justamente situar esse campo de estudo a partir da Resolução nº 510, de 17/04/2016, do Conselho Nacional de Saúde, que trata das especificidades das pesquisas envolvendo as ciências humanas e sociais, seara na qual nos colocamos e a partir da qual nos posicionamos.
A dimensão ética nas pesquisas envolvendo seres humanos faz parte do rol de questionamentos próprios das ciências humanas, ocupando um papel de destaque no modo como se compreende a pesquisa, a relação entre pesquisador e pesquisado, bem como os benefícios e riscos envolvidos na realização desses estudos. Desde a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, as ciências humanas e sociais vêm se posicionando no sentido de que as normativas éticas possam abarcar especificidades das pesquisas desenvolvidas nessas áreas, representando tanto um cuidado necessário para preservar pesquisados e pesquisadores, como um balizador do processo de pesquisa.
Em consonância com diversas reivindicações ao longo desses anos e com o amadurecimento das discussões sobre a ética envolvendo seres humanos, em abril de 2016 foi aprovada uma nova minuta sobre a ética em pesquisas nas ciências humanas e sociais. Esta minuta traz alguns avanços, entre eles: (a) a diferenciação entre a avaliação metodológica dos projetos e sua apreciação em termos éticos; (b) a necessidade de um formulário adaptado às ciências humanas e sociais para a tramitação na Plataforma Brasil.
No contexto do trabalho com comunidades religiosas, notadamente de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, as questões éticas emergem a todo momento, sendo necessária uma reflexão constante. A partir disso, o objetivo deste estudo é discutir as especificidades da pesquisa etnopsicológica em comunidades de terreiro à luz dos dispositivos da minuta de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. Para tanto, serão trazidas ilustrações de situações ocorridas em nosso campo empírico e como tais questões podem ser manejadas e compreendidas à luz desses novos princípios que norteiam a relação entre pesquisador e pesquisado, entre pesquisador e comunidade pesquisada, entre pesquisador e a própria produção do conhecimento científico. O percurso neste artigo será o de primeiramente situar nossas investigações no campo da temática da religiosidade/espiritualidade (R/E), passando por questões específicas exploradas na presente resolução, como o processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido, a devolutiva aos voluntários, bem como os direitos dos participantes, aspectos esses que dialogam de modo mais próximo com o universo da pesquisa etnopsicológica e suas características.
A RELIGIOSIDADE/ESPIRITUALIDADE NA FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA E AS PESQUISAS EM COMUNIDADES DE MATRIZ AFRICANA
Há que se considerar, inicialmente, que nossos estudos tomam por base, de modo privilegiado, a umbanda como religião considerada tipicamente e genuinamente brasileira, haja vista que envolve elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e do candomblé, sendo considerada uma religião mestiça por incorporar elementos indígenas, do branco português e do negro africano, refletindo a própria constituição do povo brasileiro. É neste cenário que diversos estudos vêm sendo conduzidos, muitos deles ligados ao Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Bairrão, 2005, 2017; Dias & Bairrão, 2013; Godoy & Bairrão, 2014; Leal de Barros & Bairrão, 2010, 2015; Macedo & Bairrão, 2011; Rotta & Bairrão, 2012). É a partir desse referencial teórico que também intervenções etnopsicológicas têm sido desenvolvidas e refletidas em comunidades religiosas de matriz africana (Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b, 2015a, 2015b).
Mas retomando a formação em Psicologia, como abordar a questão da religiosidade/espiritualidade (R/E)? Embora a dimensão R/E tradicionalmente seja considerada um tabu na formação em Psicologia, a compreendemos como algo que constitui o sujeito, dando-lhe contornos, possibilidades e permitindo que o seu ser se manifeste em relação à sua experiência e compreensão de mundo (Lee, Zahn, & Baumann, 2014; Neubern, 2013). Em 2013, o GT Nacional "Psicologia, religião e espiritualidade", ligado ao Conselho Federal de Psicologia, discutiu de modo aprofundado a questão da laicidade das práticas psicológicas. Os direcionamentos desse GT envolveram a divulgação de diretrizes relacionadas ao respeito na promoção de liberdade, eliminação de preconceitos e necessidade de contextualização histórica das práticas profissionais. Segundo o documento, "pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade". Trata-se, portanto, de considerar e respeitar a expressão da espiritualidade do cliente nos atendimentos, caso isso seja evidenciado como uma necessidade, sem quaisquer constrangimentos, doutrinações ou induções para essa temática. Considerar essa dimensão é também respeitar os mecanismos multiculturais, em uma perceptiva de escuta ativa e aberta à diversidade do outro (Scorsolini-Comin, 2015b; Sehgal et al., 2011).
Em 2014, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) publicou o documento "Psicologia, Laicidade, Espiritualidade, Religião e os Saberes Tradicionais: Referências Básicas para Atuação Profissional" (contendo 49 páginas). Em 2016 o CRP-SP publicou três volumes de uma coleção intitulada "Psicologia, Laicidade e as Relações com a Religião e a Espiritualidade", contendo as seguintes especificações: Volume 1 – "Laicidade, Religião, Direitos Humanos e Políticas Públicas" (276 páginas); Volume 2 – "Na Fronteira da Psicologia com os Saberes Tradicionais: Práticas e Técnicas" (204 páginas); Volume 3 – "Psicologia, Espiritualidade e Epistemologias Não Hegemônicas" (304 páginas).
Esses documentos trazem estudos e relatos de diversos profissionais que atuam em cenários clínicos e institucionais, além de conselheiros do CRP e também pesquisadores da área de R/E de destaque no Brasil com vistas a promover uma reflexão sobre como se pode incorporar tal dimensão na prática profissional em Psicologia sem incorrer em prejuízos éticos à relação profissional e ao cliente ou comunidade atendidos. Esses documentos podem ser considerados marcos no sentido de apropriação da R/E pela Psicologia enquanto profissão, uma vez que a discussão sobre Psicologia e ciência atravessa a própria constituição desse nosso saber ao longo dos séculos. Assim, trata-se de não apenas reafirmar a existência de relações entre ciência e R/E, mas de aproximar tais diálogos de uma prática psicológica que se pretende inclusiva, diversa, ativa e comprometida com as pessoas.
Com base nesses apontamentos, desde 2012 temos desenvolvido algumas pesquisas que tomam como cenário os terreiros de umbanda e candomblé, bem como centros espíritas kardecistas. Tais investigações têm sido realizadas nas cidades de Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo, e Uberaba, interior do Estado de Minas Gerais. Tais pesquisas estão centralizadas na questão do desenvolvimento da mediunidade em adeptos dessas religiões e sobre práticas de saúde veiculadas em tais comunidades. A partir disso, algumas intervenções psicológicas têm sido desenvolvidas nessas comunidades, em modalidades como o plantão psicológico e a psicoterapia (Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b). Esses atendimentos psicológicos visam constituir um espaço potencial de cuidado em uma comunidade já identificada com este aspecto, uma vez que os terreiros de umbanda apresentam como um de seus pilares a "caridade", corporificada no atendimento aos adeptos por meio de consultas mediúnicas. No entanto, a natureza desse encontro com finalidades terapêuticas propiciado na psicoterapia tem apontado para aspectos importantes também em relação à dimensão ética da pesquisa nesse cenário.
Nessas pesquisas em comunidades religiosas usamos diversas estratégias metodológicas, todas costuradas por um denso trabalho de campo, com a utilização da etnografia. São empregadas entrevistas semiestruturadas, técnicas de história oral de vida, observações participantes, registros em áudio e vídeo, bem como acompanhamento de membros da comunidade em atendimentos psicológicos, por meio de registros dessas seções e consequente análise do material. Tais pesquisas são desenvolvidas a partir de um amplo repertório científico, mesclando autores da etnopsicologia com perspectivas mais desenvolvimentais, a exemplo de autores como Barbara Rogoff e Urie Bronfenbrenner e também a perspectiva da Rede de Significações (Marin & Scorsolini-Comin, 2017).
Muitas das questões apresentadas neste artigo tomam como base o processo de pesquisa desenvolvido nesses terreiros e que parece retomar os apontamentos de outros estudos como os de Macedo (2015) e Rotta (2012). Os terreiros descritos nesses estudos recebem vários pesquisadores para observações e coletas de dados, de modo que tais comunidades já se mostram receptivas à presença de pesquisadores e seus equipamentos, como cadernos, gravadores e máquinas fotográficas. A circulação desses pesquisadores ocorre sem grandes dificuldades e a comunidade os acolhe de modo bastante próximo. Essa comunidade é convidada a participar dos estudos em diferentes momentos e de diversas formas, tonando o processo de pesquisa algo bastante "natural" nesse contexto. Um exemplo dessa intervenção é a tese de Rotta, na qual a pesquisadora solicitava que os próprios médiuns do terreiro fotografassem momentos que considerassem significativos, privilegiando a escuta do participante sobre o seu próprio universo sígnico.
Amparadas nessas experiências, muitas das reflexões encerradas neste artigo tomam como base esse acesso privilegiado, dentro de contextos específicos. No entanto, espera-se que tais reflexões posam ser úteis a outros pesquisadores em formação e atualização no contexto etnopsicológico.
PRINCÍPIOS ÉTICOS DAS PESQUISAS EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS, SEGUNDO A RESOLUÇÃO 510/2016
Na Resolução nº 510/2016 destacaremos dois pontos essenciais que orientam os princípios éticos desse documento. O primeiro deles é o de número III, que trata do "respeito aos valores culturais, sociais, morais e religiosos, bem como aos hábitos e costumes, dos participantes das pesquisas. Este princípio é seguido por outro igualmente importante em nossa análise: "IV - empenho na ampliação e consolidação da democracia por meio da socialização da produção de conhecimento resultante da pesquisa, inclusive em formato acessível ao grupo ou população que foi pesquisada".
Em termos das características das pesquisas em comunidades de terreiro, as mesmas envolvem métodos que preveem: (a) a possibilidade de fotografar, realizar vídeos e audiogravação de rituais, consultas mediúnicas e demais atividades que ocorrem em terreiros; (b) observações participantes, entrevistas com consulentes, médiuns em transe de possessão, bem como seus diferentes adeptos; (c) envolvem a circulação do pesquisador em diferentes espaços do terreiro para a pesquisa de campo. Tais especificidades podem ser compreendidas como questões que atravessam o próprio processo de pesquisar nesse contexto, de modo que a dimensão ética ocupa um papel de suma importância.
Especificamente em relação ao ponto III, o respeito aos valores da comunidade é fundamental não apenas em termos éticos, como destacado na resolução, mas também a partir de alguns dos principais referenciais teóricos que integram a área de conhecimento que é a etnopsicologia. A etnopsiquiatria, por exemplo, a partir dos trabalhos de François Laplantine e Georges Devereux, tem sido amplamente utilizada em pesquisas nas áreas de Psicologia e religião (Leal de Barros & Bairrão, 2010; Scorsolini-Comin, 2015a, 2015b). Assim como o termo etnopsiquiatria, também o termo etnopsicanálise surgiu com Devereux, contribuindo para o alicerçamento de uma disciplina unindo psicanálise e a etnografia inicialmente (Leal de Barros, 2010). Esta teoria, vinculada ao campo da psicologia clínica e da saúde, embora não abarque nem esgote a etnopsicologia como campo de saber (Pagliuso & Bairrão, 2015), é uma das suas abordagens mais conhecidas e tradicionais, a ponto de por vezes se confundir com ela.Tem sido utilizada para analisar a resolução de conflitos, vivências pessoais e grupais em diferentes grupos étnicos e pretende também investigar, em cada contexto, os limites entre o indivíduo e o meio social (Nathan, 1986; Pagliuso & Bairrão, 2011).
A partir desse referencial considera-se que em cada comunidade devam ser compreendidas as etnoteorias que explicam e dão sentido aos comportamentos, rituais e explicações sobre o viver, de modo a construir um arcabouço que é da comunidade e não externo a ela. Realizar uma pesquisa etnopsicológica, nesse sentido, é estar aberto a essas ressonâncias dentro da própria comunidade, não devendo o pesquisador importar modelos compreensivos e explicativos que não foram construídos de "dentro" dessa seara. Assim, as etnoteorias se mostram mais relevantes para se compreender os modos de ser de uma comunidade do que as explicações "de fora", que retomam outras epistemologias e posicionamentos que, porventura, não conseguem, de fato, lançar luz aos fenômenos investigados justamente por não dialogarem com o universo que se pretende apreender. Tal diálogo sempre terá de ser conduzido com muita clareza da perspectiva teórica da qual parte o pesquisador para poder construir as suas análises e estabelecer as correlações, posto que é ela que dirige o seu olhar para o campo e vai orientar a seleção e elaboração do que seja assumido como dado significativo (Lutz, 1985). Este efeito de contraste comparativo e a sua explicitação é também, a par de uma questão metodológica e de rigor epistemológico, uma exigência ética.
Compreendemos, desse modo, que realizar uma pesquisa etnopsicológica já é, de fato, respeitar uma cosmovisão, respeitar um universo sígnico construído pela comunidade. Esses repertórios envolvem explicações sobre como se dá o adoecimento mental, por exemplo, incluindo rituais de cura e de promoção de saúde. Estar aberto a esses repertórios é, de fato, promover uma escuta atenta e legítima da comunidade e suas tradições. Assim, tais comunidades podem ser apreendidas em termos de subculturas de cuidado, sob a forma de um sistema popular (folk) de saúde (Helman, 2009; Laplantine, 2010). Dar voz a essas etnoteorias que explicam a doença, a saúde e a cura, transmitidas em uma dada cultura, por exemplo, é uma forma de respeitar as comunidades locais e seus saberes e práticas, não submetendo tais conhecimentos a uma lógica biomédica, dentro de um sistema formal de saúde que, por vezes, negligencia os sistemas populares de cuidado (Marin & Scorsolini-Comin, 2017).
Tendo como referência o ponto IV, é importante destacar alguns desafios que se apresentam a partir da Resolução 510/2016. Um deles é a questão da devolutiva aos participantes das comunidades, de modo acessível e que possa ser compreendida por todos. Um dos exemplos que temos encontrado é o da exposição de painéis de pesquisa na comunidade, painéis estes anteriormente apresentados em congressos científicos, como os relatados no estudo de Macedo (2015).
Decorrente deste estudo, apresenta-se a possibilidade de que a comunidade seja convidada a participar de eventos na universidade, como em bancas de defesa, palestras e encontros científicos, em uma tentativa de aproximar universidade e comunidade. Obviamente que esses encontros devem ser pensados de modo a incluir a comunidade, respeitando e valorizando os seus saberes, em uma postura de que é a comunidade quem narra, e não a academia que revela. Embora deva haver a exposição dos achados por parte dos pesquisadores, é lícito e ético reconhecer que se tratam de dados construídos juntamente com os participantes, de modo que a comunidade deve ser considerada parte daquilo que será apresentado, ou seja, não devem ser considerados como meros expectadores de um conhecimento que pretensamente não dominam, mas justamente trazer suas vozes, perspectivas e saberes na construção daquilo que será apresentado.
O que de forma alguma deve ser interpretado como a exigência de que as análises devam subordinar-se à tutela da compreensão nativa e de que as conclusões devam ser enunciadas em uníssono. Ou seja, sob pena de redução das diferenças e de anulação das vozes de uns ou de outros, a inclusão dos participantes deve ser feita de tal modo que por um lado não haja redução do seu protagonismo, mas por outro não haja condicionamento nem submissão das análises do pesquisador ao entendimento nativo. Nem o pesquisador vai ter de virar pai de santo nem os colaboradores especialistas em teoria psicológica. Um bom diálogo e claro discernimento de fronteiras e de responsabilidades é imprescindível e deve ser conduzido mediante esclarecimento e devolutivas dos resultados alcançados em linguagem acessível aos participantes tantas vezes quantas forem necessárias.
Mais do que serem convidados a narrarem as suas experiências em encontros que mesclam pesquisas desenvolvidas na academia, trabalho de campo e intervenção na comunidade, esses participantes podem e devem se sentir parte daquele conhecimento que está sendo publicizado cientificamente naquele momento. Infelizmente esses fóruns ainda não são tão difundidos e encontros como esses, que mesclam apresentação de dados e diálogo com a comunidade pesquisada, são raros nos meios acadêmicos. Assim, pensar constantemente na devolutiva das pesquisas é mais do que um cuidado ético e um respeito à resolução em vigência, mas um cuidado que trata da construção dos dados e das leituras possíveis de determinadas realidades, haja vista que nossas leituras também são pertencentes a quem pretendemos narrar, em uma perspectiva dialógica próxima à proposta de Bakhtin (1999).
O ideal é que essas devolutivas não se guardem para o final do estudo, mas sejam feitas ao longo da pesquisa, na medida do possível. Deste modo, é possível esclarecer e negociar antecipadamente o que poderá ser exposto nos textos a serem produzidos e o que deverá ser mantido em sigilo, reforçando a confiança mútua e aprofundando o consentimento (Bairrão, 2015). Deve também ter-se em mente que neste campo o sigilo que está em jogo não se prende à identificação das pessoas, que muitas vezes até solicitam a sua identificação, mas à exigência de preservar o segredo de parcela dos seus saberes. Em pesquisas etnográficas e qualitativas, feitas em comunidades muitas vezes numericamente pequenas e com características únicas, a pretensão de não identificar os participantes, como se faria em pesquisas com amostragens estatísticas, não apenas é vã como fictícia, muitas vezes atendendo a imposições formais de um modelo de pesquisa inaplicável nestes casos, mas que socialmente pretende exercer ascendência e subordinar a si outras formas de produzir conhecimento. Foi contra isso que surgiu a nova Resolução.
Em função da especificidade dessa conjuntura e da especificidade do sigilo a ser considerado, a par do consentimento dos participantes, na decisão do que publicará ou não o pesquisador deve levar em conta também uma consideração da amplitude e acessibilidade do que irá ser divulgado, tendo ciência de que muitas vezes a simpatia que inspirou aos seus colaboradores e que motiva em boa medida os seus consentimentos não se repetirá em muitos dos seus leitores, muitos deles potencialmente racistas e intolerantes, inimigos sociais das culturas e comunidades pesquisadas. Nestes casos, mesmo havendo permissão, o bom senso e uma análise cuidadosa do risco de divulgação de algumas informações pode interditá-lo e deve prevalecer sobre a autorização.
PROCESSO DE CONSENTIMENTO E DE ASSENTIMENTO, SEGUNDO A RESOLUÇÃO 510/2016
O processo de consentimento e assentimento é definido na Resolução nº 510/2016 como sendo "pautado na construção de relação de confiança entre pesquisador e participante da pesquisa, em conformidade com sua cultura e continuamente aberto ao diálogo e ao questionamento, não sendo o registro de sua obtenção necessariamente escrito". No que se refere ao assentimento para a realização da pesquisa, muitas vezes os religiosos possuem certa dificuldade em concordar com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, solicitado na Resolução nº 466/2012, por exemplo. Essa dificuldade atravessa o relato de diversos estudos (Macedo, 2015; Scorsolini-Comin, 2015b) não no sentido de o chefe do terreiro se recusar a assinar o documento, mas deste questionar a necessidade e mesmo a legitimidade de tal documentação. Para compreender estas resistências basta recordar que historicamente e até aos nossos dias a escrita tem sido usada como arma contra populações de tradição oral, muitas vezes espoliadas dos seus territórios tradicionais, por exemplo, mediante o aparecimento de escrituras e outros documentos que passaram a ter força de lei e sobre cuja produção, teor e efeitos não tinham nenhum conhecimento nem poder.
Nossa entrada em diversos terreiros com o intuito de fazer pesquisa tem mostrado um aspecto fundamental nessa questão: assim que o responsável pelo terreiro consente com a entrada no pesquisador no campo e com a realização da pesquisa, a formalização da assinatura do termo não possui qualquer relevância no estabelecimento dessa relação. Ora, se há uma relação de confiança estabelecida entre pesquisador e pesquisado, por que a necessidade de assinar um termo, um contrato? A partir da nova minuta, o processo de esclarecimento do participante não deverá passar, necessariamente, por um termo formal.
Essa alternativa captura a possibilidade de que a autorização para a pesquisa (envolvendo diferentes métodos de coleta) passe pela anuência do responsável pela comunidade não necessariamente pela via escrita, de modo a valorizar a "palavra" do sacerdote, dada como selo de concordância e que possibilita que a comunidade, de fato, abra-se à ação mais direta do pesquisador e suas intervenções. Essa consideração apoia-se na experiência dos autores com algumas pesquisas nas quais o pai de santo afirmou, por exemplo: "Eu te dei a minha palavra. E isso é a coisa mais importante para mim. Não precisa de papel" (Macedo, 2015; Scorsolini-Comin, 2015a).
A questão da palavra torna-se, portanto, central no estabelecimento dessa relação. Deve-se respeitar e honrar a palavra, não qualquer papel que possa ser assinado. Por esse mesmo motivo, alguns sacerdotes, compreendendo as necessidades burocráticas das instituições de origem dos pesquisadores, acabam por assinar os termos necessários, mas também ressalvando a necessidade de que a palavra empregada seja tomada como central na relação. O documento, uma "mera formalidade", na acepção de muitos sacerdotes, não pode se sobrepor, substituir ou esmaecer o poder da palavra.
Essa palavra, ainda, nem sempre é compreendida como a palavra do sacerdote, mas uma autorização de um plano superior para que o estudo possa ser realizado: para muitos líderes, quem autoriza qualquer processo em um terreiro é a divindade que governa a Casa, o espírito protetor da Casa. Assim, fazer pesquisa nesse contexto e solicitar o consentimento para qualquer atividade pode passar, também, por uma autorização de ordem "superior" que nem sempre é acessível ao pesquisador, mas que se corporifica na palavra do sacerdote ou é diretamente transmitida ao pesquisador ou a membros da comunidade em situações de transe mediúnico ou jogos divinatórios, por exemplo. O líder religioso pode condicionar o aceite para a realização da pesquisa a partir de uma consulta aos seus guias, o que pode se dar, por exemplo, por meio do jogo de búzios, como observado em algumas casas de candomblé. A partir desses apontamentos podemos retomar muitos dos pontos cantados da umbanda, a exemplo do que abre o presente artigo: "Com a licença de mamãe Oxum e nosso pai Oxalá". Assim, quem permite, legitima, abre e deixa entrar é uma dimensão espiritual. Quem permite que tudo ocorra é o divino, tanto uma cerimônia, uma gira, um atendimento mediúnico como a própria pesquisa. Respeitar a construção desse sagrado tal como se especifica em cada comunidade religiosa é uma condição para a pesquisa etnopsicológica.
Há que se considerar que as religiões de matriz africana se sustentam, sobremaneira, na tradição oral, de modo que a palavra ocupa um papel central nessas culturas, devendo ser honrada e respeitada por quem deseja também adentrar nesse universo. Se você está em uma comunidade na qual a palavra é a ordem máxima, você precisará respeitar essa palavra. Isso também é válido quando se fala em pesquisa científica. A nova resolução, desse modo, lança luz sobre essa questão, permitindo que, de fato, essa palavra seja respeitada e não meramente compreendida pelo pesquisador. Como não se exige do sujeito pesquisado uma assinatura formal, o consentimento pode ser narrado de diversas formas, assim como a questão aqui narrada, da oferta da palavra como algo que sela o pacto entre pesquisador e pesquisado, autorizando esse primeiro a adentrar no universo do segundo, com cautela, cuidado, respeito e ética.
Sobre a obtenção do consentimento e do assentimento, o artigo 13 da Resolução nº 510/2016 destaca que:
Em comunidades cuja cultura reconheça a autoridade do líder ou do coletivo sobre o indivíduo, como é o caso de algumas comunidades tradicionais, indígenas ou religiosas, por exemplo, a obtenção da autorização para a pesquisa deve respeitar tal particularidade, sem prejuízo do consentimento individual, quando possível e desejável.
Em algumas comunidades, quem autoriza a realização do estudo é pai de santo, mãe de santo, babalorixá ou ialorixá.Muitas vezes são esses dirigentes que indicam os possíveis participantes a serem pesquisados. O responsável pela comunidade geralmente autoriza ou não a captação de áudios, imagens e vídeos durante os rituais, por exemplo, sendo que os demais participantes da comunidade acompanham essa decisão, legitimando-a. Desse modo, antes de realizar qualquer observação, relato, entrevista ou captação de áudio e imagem é necessário que o pesquisador entre em contato com o dirigente da Casa. O líder religioso é quem abrirá ou não as portas para que a pesquisa seja realizada naquela comunidade.
Embora tenhamos observado de modo fortuito que as comunidades normalmente se mostram abertas e receptivas aos pesquisadores, há que se considerar que existem diferentes comunidades e diferentes pesquisadores. Há comunidades que consideram que há "segredos" místicos que não podem ser captados por pessoas externas, que possuem tradições consideradas mais "fechadas" e que não se mostram abertas e receptivas a esses contatos. Também encontramos pesquisadores que possuem objetivos que não se alinham aos objetivos das tradições que investigam, lançando, por vezes, olhares pouco abertos à diversidade e com uma perspectiva de análise que coloca tais comunidades como espaços menos desenvolvidos, marginalizados e cujos saberes nem sempre são respeitados ou valorizados.
Assim, é importante não generalizar o processo de abertura dessas comunidades, mas considerar que existe um percurso a ser realizado em qualquer pesquisa e esse trajeto envolve a aproximação entre o pesquisador e a comunidade que se pretende investigar. Essa aproximação pode se dar de diversas formas, mas sempre deve ser balizada pelo respeito, pela consideração ética e pela hierarquia que se apresenta na comunidade, ou seja, deve-se começar esse diálogo pelo líder da comunidade, que avaliará o pedido e indicará os passos a serem dados para a o consentimento da pesquisa, autorizando ou não os procedimentos pleiteados.
O que avança na nova resolução é que esse consentimento pode ser oferecido tendo como ponto de partida a lógica da comunidade investigada e não a do investigador. Respeitar o terreno no qual se pisa e a ética que rege as relações que pretendemos compreender é também uma forma de cuidado fundamental em qualquer pesquisa envolvendo seres humanos.
DIREITOS DO PARTICIPANTE
Esta seção trata dos direitos de todo o participante ao se envolver em uma atividade de pesquisa na condição de voluntário ou colaborador. Segundo o Art. 9º da Resolução 510/2016, são direitos dos participantes:
I – ser informado sobre a pesquisa;
II – desistir a qualquer momento de participar da pesquisa, sem qualquer prejuízo;
III – ter sua privacidade respeitada;
IV –ter garantida a confidencialidade das informações pessoais;
V – decidir se sua identidade será divulgada e quais são, dentre as informações que forneceu, as que podem ser tratadas de forma pública;
VI – ser indenizado pelo dano decorrente da pesquisa, nos termos da Lei;
VII – o ressarcimento das despesas diretamente decorrentes de sua participação na pesquisa.
Entre esses direitos, chama-nos a atenção a redação do quinto item, de que é direito do voluntário "decidir se sua identidade será divulgada e quais são, dentre as informações que forneceu, as que podem ser tratadas de forma pública". No contexto das pesquisas em comunidades de matriz africana, muitos dirigentes de terreiros e centros espíritas solicitam que esses locais sejam identificados, pois esse processo faz parte da visibilidade e da legitimação desses cenários em nível local. Muitos desses dirigentes chegam a manifestar claramente o desejo de que o nome do terreiro seja divulgado na pesquisa, contendo, inclusive, sua localização, permitindo também a divulgação de imagens dos médiuns e demais pessoas da comunidade, o que também permite a identificação dos participantes (Rotta, 2012).
Para os pesquisadores da área esse processo torna-se particularmente importante no sentido de mapear essas comunidades, onde estão localizadas, quais seu espectro de influência local, bem como qual público atraem. A partir desses aspectos também se cria uma rede de informações para futuros estudos e, de fato, um mapeamento dessas comunidades, o que possui um aspecto histórico e de memória social bastante expressivo, haja vista que tais cultos, por vezes, são compreendidos como sendo marginais e ligados às periferias das cidades e dos grandes centros (Macedo, 2015). Assim, a visibilidade dessas comunidades torna-se um aspecto essencial também como uma cultura de resistência, marcando identidades sociais. O mais importante da reafirmação desse direito é que os pais e mães de santo podem escolher se querem que suas comunidades sejam ou não divulgadas no trabalho científico, quaisquer que sejam as justificativas apresentadas.
CONCLUSÃO
Este estudo teve por objetivo discutir as especificidades da pesquisa etnopsicológica em comunidades de terreiro à luz dos dispositivos da minuta de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (Resolução 510/2016). A pesquisa em terreiros envolve métodos que preveem a possibilidade de fotografar, realizar vídeos e audiogravação de rituais, consultas mediúnicas e demais atividades que ocorrem em terreiros, bem como observações participantes, entrevistas com consulentes, médiuns em transe de possessão, bem como seus diferentes adeptos. Envolvem, ainda, a circulação do pesquisador em diferentes espaços do terreiro para a pesquisa de campo. Tais especificidades podem ser compreendidas como questões que atravessam o próprio processo de pesquisar nesse contexto, de modo que a dimensão ética ocupa um papel de suma importância.
Em termos do assentimento para a realização de pesquisas nessas comunidades, muitas vezes os religiosos possuem certa dificuldade em concordar com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, solicitado na Resolução nº 466, por exemplo. A partir da nova minuta, o processo de esclarecimento do participante não deverá passar, necessariamente, por um termo formal. Essa alternativa captura a possibilidade de que a autorização para a pesquisa (envolvendo diferentes métodos de coleta) passe pela anuência do responsável pela comunidade não necessariamente pela via escrita, de modo a valorizar a "palavra" do sacerdote, dada como selo de concordância e que possibilita que a comunidade, de fato, abra-se à ação mais direta do pesquisador e suas intervenções.
Considerar essas especificidades das ciências humanas e da pesquisa etnopsicológica garante o respeito à dimensão ética do sujeito e de sua comunidade de referência, ampliando as potencialidades das pesquisas nesses contextos ainda considerados marginais na ciência psicológica. Mais do que ampliar o acesso a tais comunidades e seus participantes, as resoluções éticas devem cuidar para que o respeito pelos voluntários enquanto sujeitos individuais e com suas subjetividades também faça referência às suas comunidades e culturas locais, em respeito aos costumes e tradições ancestrais que permitem a permanência desses saberes e práticas e seu estudo a partir da etnopsicologia. Zelar por essa dimensão não é parte das funções apenas dos líderes dessas comunidades e seus adeptos, mas também do pesquisador, enlaçado no processo de pesquisar, escutar e resistir nesses espaços.
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Agradecimentos: Este estudo foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de bolsa de pós-doutorado júnior para o primeiro autor (processo número 405915/2015-2), sob supervisão do terceiro autor, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1B.
Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabioscorsolini@gmail.com
Recebido: 10/08/2017
1ª revisão: 01/11/2017
Aprovado: 16/11/2017
1 Fabio Scorsolini-Comin é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
2 José Francisco Miguel Henriques Bairrão é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Manoel Antônio dos Santos é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.