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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.6 no.2 São Paulo  1995

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Hegel no espelho do Dr. Lacan1

 

Hegel in the mirror of Dr. Lacan

 

 

Paulo Eduardo Arantes

Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia, Letras a Ciências Humanas - USP

 

 


RESUMO

O artigo trata da presença do pensamento hegeliano na obra de Lacan e revela que a Fenomenologia do Espírito chegou até o psicanalista dissidente francês por meio de um intrincado jogo de espelhos, no qual o Hegel refletido no espelho de Alexandre Kojève foi peça fundamental. Através da análise da concepção de intersubjetividade, o Autor sonda as relações da teoria lacaniana com Hegel e com a aclimatação francesa do hegelianismo, marcada pelo Existencialismo.

Descritores: Psicanálise. Lacan, Jacques, 1901-1981. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831. Intersubjetividade. Formação da consciência.


ABSTRACT

This paper refers to the presence of hegelianism in Lacan's work. It discloses how the interpretation of Hegel's The Phenomenology of the Spirit got to the French psychoanalist through a complicated disposition of mirrors, where Alexandre Kojève's mirror was a fundamental piece. Through the analysis of the concept of intersubjectivity the author investigates the relations between the theories of Hegel and Lacan and the French adaptation of hegelianism, marked by existencialism.

Index terms: Psychoanalysis. Lacan, Jacques, 1901-1981. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831. Intersubjectivity. Conscience construction.


 

 

Não é segredo para ninguém que o Hegel de Lacan não é de primeira mão. Nem poderia ser: não dá para imaginar, lá pelos idos de 30, um psiquiatra francês lendo a Fenomenologia do Espírito por conta própria, pelo menos com proveito. Como é sabido, a revelação se deu de fato no Seminário de Alexandre Kojève, prolongando-se até os anos 50, quando Jean Hyppolite passou a freqüentar o Seminário do próprio Lacan. Por outro lado, é bom deixar claro que simplesmente invocar em vão ou a propósito o nome de Hegel, não é propriamente um argumento, nem ponto de apoio para a apreciação crítica, até porque, fora da rotina historiográfica e da apologética progressista, não sabemos direito que destino dar à experiência intelectual cifrada na especulação hegeliana. Daí o destino incerto e tateante das notas que se seguem.

 

O PROBLEMA DA CONSTITUIÇÃO

Levado por Georges Bataille no inverno de 1933-1934, Lacan não chegou de improviso no Seminário de Alexandre Kojève. Em 1932 terminara uma tese sobre as relações da paranóia com a personalidade, e a julgar pela acolhida, sobretudo nos meios surrealistas e também marxistas de oposição (Nizan escreveu a respeito no Humanité), Lacan já não era mais qualquer um, sendo entretanto bizarra sua situação: um chefe de clínica em ascensão na vanguarda artística da época. Publica a seguir dois artigos na revista Minotaure, um deles sobre o crime das irmãs Papin, consolidando de vez sua reputação de dissidência. Também consulta Dali e especula sobre as relações entre paranóia e conhecimento. Tudo isso é conhecido e relembrado com freqüência, mas não explica o que exatamente na versão kojèviana da Fenomenologia do Espírito lhe acendeu a imaginação. No que então concerne os primeiros passos sugeridos por tal curto-circuito, não vejo porque não nos apoiarmos de início na sóbria reconstituição de Bertrand Ogilvie, uma raridade de concisão e clareza na habitualmente prolixa literatura lacaniana (Ogilvie, 1987, p.85-95). É bem verdade que continuaremos um pouco na mesma, pois se trata basicamente de uma apresentação retrospectiva daqueles passos, vistos porém de textos posteriores à exposição feita no Congresso de Marienbad em 1936, quando então a incorporação dos temas kojèvianos já ocorrera. Mesmo assim acompanhemos o roteiro. Lacan teria chegado, portanto, com um problema mais ou menos armado, que poderemos chamar, com o Autor, de problema da constituição.2

Ao longo da Tese, uma expressão recorrente anunciaria o programa vindouro: "dependência do sujeito", mais exatamente o pressentimento de uma deficiência primordial que se traduziria por uma ausência de determinação natural. O caráter social do indivíduo não se acrescenta a nenhum solo positivo e primeiro, ele é um ser social na medida em que não é absolutamente qualquer outra coisa na esfera biológica ou outra, ocupando por assim dizer o lugar de uma carência, de uma ausência específica. Não seria necessário remeter desde já à primeira síntese de 1938, o escrito sobre os Complexos Familiares, como faz nosso Autor. O artigo de 1936 sobre o princípio metapsicológico de realidade também assinala a fecundidade psíquica dessa insuficiência vital, além de se referir à inadequação do estéril conceito de instinto. Neste mesmo artigo, como se há de recordar, Lacan repudiará mais uma vez (já o fizera na Tese) o substancialismo da metapsicologia freudiana em nome de uma concepção "relativista" dos fatos psíquicos, como ressalta no privilégio que concederá à noção de complexo. Não seria razoável presumir3 que Lacan deva ao Hegel de Kojève a revelação de uma crítica não reducionista da consciência, quer dizer, uma maneira de contornar o objetivismo da teoria freudiana conservando-lhe porém a descoberta crucial de que a existência humana não está centrada numa consciência essencialmente cognitiva. Os primeiros escritos de Politzer e o clima de opinião "fenomenológica" da época já iam nessa direção. Não é menos verdade todavia que o ativismo de Kojève - no princípio era a Ação, operação negativa de um ser vazio e ávido -, rebaixando conhecimento (mera contemplação) e substrato instintual (o desejo é antropogênico), oferecia um ponto de vista original sobre a estrutura da consciência, entendida como processo de socialização da instância que diz Eu.

Mas voltemos ao roteiro de Ogilvie, segundo o qual o ainda psiquiatra Jacques Lacan estaria instalando a psicanálise num terreno inteiramente novo: não a "análise da gênese objetiva do indivíduo na sua dimensão psíquica paralela ao seu desenvolvimento físico, mas o estudo da discordância e da oposição que separa este desenvolvimento da constituição do sujeito enquanto ele mantém uma relação intrinsecamente negativa com a sua própria realidade". Nisto está dito tudo: a constituição do sujeito é a rigor uma auto-afecção. Não por acaso, perguntando-se porque as interpretações de Lacan nunca se referem à estrutura interna do indivíduo mais a sua experiência, um observador das indiossincrasias lacanianas responde reparando "que o indivíduo lacaniano típico reage a si mesmo ou ao seu próprio ser." (Wollheim, 1989, p.215). Acrescentemos que no artigo de 1936 a constituição se bifurca em duas vertentes: a constituição da realidade através das imagens em que se condensam os objetos do interesse do indivíduo, a constituição do eu (je) através das identificações típicas do sujeito, nas quais ele se reconhece (Cf. Lacan, 1966, p.92). Nesta formulação programática, imago e identificação são sem dúvida conceitos freudianos, mas não se pode dizer o mesmo do problema que ajudam a formular, aí o tournant que anuncia a etapa subseqüente. Ou melhor, a "fase do espelho" já está presente no enunciado de nosso Autor: uma constituição por identificação, na qual o papel determinante cabe à forma ou imagem. E uma imagem de tal modo concebida que fica eliminado qualquer confronto exterior a um sujeito que parece de fato reagir a si mesmo. Vem daí a dependência do sujeito: ele se expõe (por exemplo: à sociedade, à família, à linguagem etc.) como quem se "abre" à transcendência por uma desigualdade interna - por uma deficiência íntima ele institui a instância que irá apanhá-lo. Vê-se também - em que pese a abstração dessas indicações apenas programáticas - que a auto-afecção constitutiva do sujeito é uma relação interna e negativa.

Se entendi bem uma alusão de Ogilvie, Lacan teria aprendido com Kojève, mais do que a manejar o vocabulário da negatividade, também a identificar essas relações negativas, a começar pela matriz delas, a mediação por uma alteridade interna - o que estamos chamando de auto-afecção. Digamos então que Lacan teria reconhecido na alienação recíproca narrada por Kojève a "estrutura reacional" do sujeito, cuja descrição (até os confins da obscura origem do narcisismo) vinha tentando ao longo da Tese sobre a paranóia de auto-punição. Mais exatamente, na fórmula geral de nosso Autor:

é Kojève leitor de Hegel quem fornece a Lacan o meio de formular a idéia de que a estrutura reacional do sujeito não está ligada a uma situação que a permitiu, de maneira ocasional, mas de maneira essencial, na medida em que ela já a contém em si mesma; o sujeito não é anterior a esse mundo das formas que o fascinam: ele se constitui, antes de tudo, nelas e graças a elas; o exterior não está fora, mas no interior do sujeito, o outro existe nele, ou ainda: só há exterioridade ou sentimento de exterioridade, porque antes de mais nada o sujeito recebe nele mesmo essa dimensão que comanda em seguida a sua relação com toda exterioridade real.

Uma alteridade no âmago do Sujeito hegeliano? Só vendo.

 

A LÓGICO HEGELIANA DO RECONHECIMENTO

Comecemos pelo fim, isto é, por um pequeno estudo de 1957 onde Hyppolite aplica Lacan a Hegel com a naturalidade das evidências que dispensam considerandos. Com isso fechava o ciclo do nosso problema. Não custa relembrar que dez anos antes lera a Fenomenologia em chave "existencial", mais exatamente, sob o signo da infelicidade da consciência separada da vida, solo positivo e imediato perdido para sempre4. Ia então nesse rumo (que não era bem o de Kojève, cujo ativismo belicoso não tinha parte com este gênero de meditação sobre o irreparável e a finitude) o comentário do dito hegeliano acerca da vida do espírito enquanto doença do animal: ser-para-a-morte definidor da "existência" - como diria Merleau-Ponty, basta pensar para perder a inocência da vida unida consigo mesma. Não que este tema fácil não compareça em Hegel, pelo contrário, depois de Hobbes, foi ele quem introduziu no discurso filosófico o motivo do medo da morte violenta, só que agora como fonte prosaica de uma revelação: quem ingloriamente tremeu diante da morte aprendeu enfim o que é a consciência e a negatividade que a especifica, a saber, uma "fluidificação absoluta de todo subsistir". Ainda naqueles textos de 46/47, Hyppolite se lembrará da ênfase kojèviana posta no desejo, mas para abrandar-lhe o caráter operoso de consumo produtivo e realçar a incompletude que nele se exprime: o fim supremo do desejo é reencontrar-se no seio da vida. (Se fizesse esse impulso rodopiar sobre si mesmo, já seria Lacan). Nele vai se desenrolar assim o drama de uma busca: no fundo dela mesma, o que a consciência desejante procura não é o consumo óbvio do objeto, mas a si mesma. Como Hyppolite comenta um tanto livremente, o Outro, tão aguardado naqueles tempos de embate entre l'être-pour-soi e l'être-pour-autrui, surgirá um pouco ex abrupto como uma instância que "me afeta de um modo insuportável". Esse o trilho do ser-reconhecido. A consciência se contempla no outro onde se vê entretanto como um ser exterior e determinado, quer dizer, um être-pour-autrui. Esse também o trilho do "desejo do desejo de um outro" - esta definição do Desejo é de Kojève e não se encontra em Hegel.

Dez anos depois, Hyppolite introduzirá o espelho lacaniano neste quadro da "intersubjetividade", como se falava na época. Quer dizer, apresentará a consciência-de-si como um jogo de espelhos. A vida desconhece esse jogo, onde tudo é "uno com o desejo" não há lugar para a alteridade, cujo esquema justamente é uma relação em espelho. Seria o caso de se ilustrar esta observação evocando de saída um aspecto do "jogo" hegeliano do duplo sentido? De fato, como num espelho, cada consciência a outra fazer a mesma coisa que ela faz: toda a sua operação é de mão dupla, reproduzida por uma espécie de "duplo" de origem especular; não é qualquer um que a consciência vê surgir ao seu encontro - "vindo do exterior, frisa Hegel -, mas um sósia perfeito. Numa palavra, a consciência se duplica. Está claro que não há traço de fantasmagoria romântica nesta primeira entrada em cena filosófica do Duplo. Realidade ou simulacro? No fundo, pouco importa se o efeito constitutivo for o mesmo. Mas aqui quem responde já é Lacan.

É bem conhecida a exemplificação lacaniana - do comportamento animal aos fenômenos de apercepção situacional de um sujeito ainda infans - a respeito dos efeitos formativos da imagem própria ou do semelhante, indiferentemente real ou simulada. Sem muito esforço podemos pelo menos imaginar no emparelhamento hegeliano das consciências algo como a gravitação a dois de uma dança recíproca como nas descrições de Lacan de comportamentos complementares desencadeados por uma Gestalt identificatória. Resta saber o que responderia Hegel, se o reconhecimento mútuo poderia girar em torno de uma matriz imagética, se a outra consciência, na qual a primeira se reconhece vendo-se espelhada, poderia ser uma imago. Desde que ela seja efetivamente encontrada e não forjada, diria Hyppolite nuançando, pois Hegel, como vimos, é taxativo: o Outro aparece vindo de fora (es ist ausser sich gekommen), os dois indivíduos confrontados no limiar da luta de vida e morte surgem de fato um diante do outro etc. Nada impede por certo que se entreguem ato contínuo às "sincronias das captações especulares", como quer Lacan. O importante é que essa captação se dê pela imagem, a qual, uma vez assumida no processo de identificação, transforma o sujeito. Quando no entanto a imagem é operante o exterior muda de figura, ele pode perfeitamente ser "interno". Mas no limite, assim o exige a hipótese lacaniana do espelho, como se sabe uma hipótese sobre os efeitos formativos do narcisismo. Seria difícil encontrá-la na letra da operação hegeliana do Reconhecimento, mesmo interpretada como identificação pelo Outro, quer dizer, constituição da consciência-de-si pelo reconhecimento recíproco dos que se vêm se vendo. Quem todavia concebe uma produção da identidade pela via da alteridade, está eliminando a hipótese de um interior interpelado por um exterior. Não parece que Hegel tenha tirado essa conseqüência extrema, a menos que reconduzamos a reduplicação hegeliana das consciências a um... jogo de espelhos, além do mais na situação experimental imaginada por Lacan. E como Hegel também insiste em vários passos que o Outro da consciência é ela mesma, fica aberto o caminho para a imagem especular.

À certa altura Hegel afirma que a consciência está perdida para si mesma ao se reconhecer como outra. Neste momento Hyppolite recorda a báscula freudiana do fort-da, mas contrariando o repertório lacaniano, onde este esquema da alternância binária é visto como o momento em que o indivíduo nasce para a linguagem ao ingressar na ordem simbólica. Lembra então nosso Autor que neste jogo da presença e da ausência a criança se perde a si mesma colocando-se abaixo da linha do espelho, para tirar desta variante da hipótese do espelho uma conclusão em linguagem hegeliana: fazendo desaparecer o outro, eu mesmo desapareço, mas fazendo reaparecer o outro eu também me perco, me vejo fora de mim pois me vejo como outro. E isto é Hegel mesmo, menos o que vem antes e depois, e assim também poderia ser Sartre ou qualquer outro fenomenólogo da intersubjetividade. Quer dizer, mais singelamente, que Lacan deixou que a Fenomenologia lhe falasse livremente à imaginação porque Sartre ainda não publicara O Ser e o Nada, onde não por acaso se pode ler um extenso comentário da "intuição genial de Hegel" a respeito da verdadeira natureza da intersubjetividade. Assim, quando em 1946, por exemplo, nos Propos sobre a Causalidade Psíquica, Lacan sustenta que é no outro que o sujeito se identifica (e mesmo é posto à prova), poderia referir a autoridade de qualquer filósofo do momento. Kojève não dizia exatamente isto, mas todos estavam convencidos de ter ouvido exatamente isto. De fato, interpretara a lógica hegeliana do Reconhecimento em termos de Desejo e Satisfação do desejo - nada que implicasse a alteridade como negação interna, quando muito uma relação triádica em que estavam em cena dois desejos e um objeto imaginário em disputa, o "prestígio", como veremos a seu tempo nos termos em que Lacan glosou esse dispositivo.

Reparemos na ousadia de outro passo de Hyppolite, onde define a dimensão em que se desloca a consciência-de-si por um certo grão de... loucura, justamente a loucura que consiste em dever sua identidade à alteridade. Isso posto, depois de vincular loucura e constituição da consciência em espelho, Hyppolite considera "paranóica" apenas a figura hegeliana óbvia dita "delírio da presunção", deixando de lado, sem emprego, a concepção lacaniana mais abrangente de "conhecimento paranóico". Ou melhor, sem aproximar, como seria de se esperar, conhecimento e paranóia, Hyppolite, não obstante, também vai longe, ao fazer depender a história que se reconstrói na Fenomenologia de uma relação especular originária que não hesita em chamar de "louca". Daí em diante, acrescenta, o caminho percorrido pela consciência é uma história de alienações (sem especificar, joga com a acepção clínica do termo), cuja base é o objeto imaginário da consciência-de-si, isto é, ela mesma. Quanto a Hegel, inútil lembrar, a evolução subseqüente constitui de fato um sistema da ilusão, ou se preferirmos, uma exposição completa das formas da falsa consciência, está claro que com um desfecho positivo. Causalidade psíquica à parte, Kojève também narrava uma história da alienação, porém social em sentido estrito, sujeição incluída: como entretanto o impulso dessa peripécia que culminava na Revolução Francesa provinha do desejo de reconhecimento - socialmente interpretado todavia -, estava aberto o caminho para a livre fantasia dos ouvintes.

Voltando ao Dr. Lacan dos anos 30 e 40, sabe-se que a sua concepção da "dialética social que estrutura como paranóico o conhecimento humano" foi exposta numa série de conferências médicas contemporâneas da redação de sua Tese. Desconhecemos o exato teor delas, salvo as poucas indicações nos escritos da década de 40, suficientemente heterodoxas de qualquer modo a ponto de incorporar as cogitações de um Salvador Dali a propósito de um possível método paranóico-crítico atuante nas montagens surrealistas. Na comunicação de 49 sobre a Fase do Espelho, para assinalar a ruptura entre o organismo humano e seu Umwelt, ainda evocará o discurso surrealista sobre o "peu de réalité". Digamos que tenha reconhecido alguns elementos do conhecimento que chamou de paranóico no processo hegeliano de constituição da certeza de si da consciência. De Dali veio-lhe quem sabe a idéia da percepção não-deformante da imagem dupla (Cf. Roudinesco, 1988, p.128). Em Kojève deve ter notado que uma fase sui generis se encerrava com a introdução, assinalada há pouco, de uma relação a três, o Sujeito, o Outro e o Objeto do seu desejo, e que portanto na relação dual anterior haveria alguma coisa da "identificação objetivante" definidora de um reconhecimento paranóico, o fato primordial que reside na conjunção de identificação e alienação, a ambivalência primitiva que se exprime num "sujeito que se identifica no seu sentimento de si com a imagem do outro e que a imagem do outro vem aprisionar neste sentimento". A partir daí, como se sabe, é toda a intersubjetividade, onde impera a relação dual do Olhar, que irá bascular no domínio do imaginário. Neste sentido, a lógica hegeliana do reconhecimento, devidamente filtrada, é uma lógica do imaginário, que precisará no entanto esperar por Sartre para ser exposta.

 

AINDA A HIPÓTESE DO ESPELHO

Hegel é convocado duas vezes pelos espelhos do Dr. Lacan. Alusivamente, sempre que vem a baila nos escritos dos anos 40 e 50, o assim chamado "estádio do espelho". Diretamente, por ocasião da apresentação de uma versão ampliada do experimento do buquê invertido (Seminário de 7 de abril de 1954). Nem por ser direta esta última menção deixa de ser menos alusiva e hermética - para variar. Como se há de recordar, o referido experimento, montagem de prestidigitador como o chama o próprio Lacan, onde se manipula, graças a um espelho côncavo a composição de uma figura híbrida de ilusionista, metade objeto real, metade imagem, destina-se a ilustrar "um mundo em que o imaginário pode incluir o real e, ao mesmo tempo, formá-lo". O acréscimo do espelho plano, onde o sujeito (mítico) se vê em efígie ao lado da imagem virtual daquela figura compósita, traz de volta a fórmula do escrito princeps de 49, e com ela, desempenhando as mesmas funções, Hegel. Em todas as suas versões, a metáfora ótica de Lacan diz o mesmo, a saber, a constituição da identidade através da alteridade por duplicação de uma imagem própria que o indivíduo carregaria consigo. Fenômeno imaginário atestado pela operação - cujos exemplos Lacan encontra na etologia - que no animal faz coincidir um objeto real com "a imagem que está nele".

São estas convergências que sugerem a Bento Prado Jr. (no estudo citado) a presença no pensamento de Lacan de uma espécie de narcisismo mais abrangente, nada ortodoxo, mais especificamente uma relação narcísica primordial, sem a qual não haveria relação com o mundo transcendente do objeto. Um breve apanhado do roteiro cumprido pelo Autor nos permitirá voltar a Hegel por um outro ângulo. É bom lembrar que a excursão lacaniana de Bento Prado é uma sondagem de caráter local, interessada sobretudo na vocação filosófica da obra de Lacan, mais exatamente, num capítulo da filosofia francesa da psicanálise, gênero singular identificado pelo mesmo Bento Prado ao estudar-lhe os primórdios na obra de Georges Politzer. (Seja dito de passagem, estamos vendo, também numa investigação de detalhe, de que modo, na sua evolução, este gênero cruzou o caminho da aclimatação francesa do hegelianismo). Estaríamos assim às voltas com uma crítica original, obviamente de inspiração analítica, da ilusão objetivista: ao lado de uma denúncia da confusão entre realidade e objetividade, uma teoria correlata justamente da constituição centrípeta do sujeito e da correspondente formação do objeto. A certa altura do escrito de 49, para ilustrar o efeito formativo de uma Gestalt, recorrendo a exemplos da etologia do instinto animal, Lacan lembra como a vista de uma simples imagem especular de um congênere é suficiente para desencadear o processo de maturação de um indivíduo; cinco anos depois, no primeiro livro do Seminário, volta ao tema etológico do "sujeito essencialmente logrável": essa a pista explorada por Bento Prado, revelada pelo "peso do imaginário da emissão do comportamento", como diz o Autor. Um roteiro que por via comparativa (articulando etologia do instinto animal e teoria freudiana das pulsões) alcança finalmente a condição primordial de qualquer objetivação do mundo exterior, a saber, a relação narcísica do eu ao outro, sem a qual não há estruturação da esfera objetal. Narcisismo sem dúvida paradoxal, para além do Solus Ipse do primitivo enclausuramento do Eu, na junção do Ipse e do Alter. Mas isto não é tudo, para nosso Autor interessa sublinhar o quanto a constituição do "exterior" depende da "imagem pretendida" e não da percebida, o quanto pesa a irrealidade na instituição da objetividade, o quanto o não-ser da pura imagem condiciona a emergência do existente. Voltamos assim à apresentação da constituição como uma auto-afecção: se o imaginário não é instância segunda, mas fundante, é porque a fantasia originária que abre o acesso à realidade se confunde no limite com a finitude de uma ipseidade que se institui na forma da auto-afecção, no caso pela imagem unificadora de si mesma. Na base da relação narcísica, a auto-afecção pelo espelhamento do Mesmo numa imagem que implica desdobramento.

Compreende-se que neste ponto os lacanianos se sintam tentados a rebater esse mecanismo da constituição na reflexão duplicadora da consciência-de-si hegeliana. Tanto mais que, páginas antes, Hegel já se desvencilhara da "tautologia sem movimento do Eu = Eu". Mas daí não passa a possível analogia. Ocorre que o tema transcendental da constituição (esta a sua árvore genealógica, como reconhece o mesmo Bento Prado Jr.) foi substituído em Hegel por um problema de formação, onde não há mais lugar para qualquer instância originária: estamos desde o início no terreno da mediação, no qual os novos objetos vão surgindo por reflexão interna de constelações que têm a idade histórica do mundo, cujo processo de socialização a Fenomenologia reconstrói. A dialética simplesmente desconhece qualquer configuração primeira e irredutível, como parece ser o drama da alienação refletido no espelho de Lacan: esse momento de uma relação primordial consigo mesmo que é irremediavelmente (o pathos vem da literatura lacaniana) e para sempre uma relação com um outro (Ogilvie, 1987, p.107). Em Hegel é justamente isso: apenas um momento, embora consciência e alienação também sejam coextensivos. Havendo em contrapartida constituição originária em Lacan, e constituição no âmbito da finitude, constituição e perda são simultâneas, e da ordem do irreparável.

Não gostaria de passar adiante sem antes registrar um outro efeito do espelho de Lacan, referido por ele nos seguintes termos:

o outro que somos está fora de nós, na forma humana; esta forma está fora de nós, não enquanto feita para captar um comportamento sexual, mas enquanto fundamentalmente ligada à impotência primitiva; o ser humano não vê sua forma realizada, total, a miragem de si mesmo, a não ser fora de si (Lacan, 1983, p.164).

Ora, a essa imagem especular, a um tempo instituinte e alienante, corresponde ponto por ponto, porém simetricamente invertida no que concerne as relações de interior e exterior, a voz no gravador ouvida na abertura de A Condição Humana, e assim interpretada pelo mesmo Bento Prado Jr:

Malraux começa um de seus romances com um episódio onde um personagem é surpreendido (mais que isso) pelo som de sua própria voz, reproduzia por um gravador, e exprime seu espanto mais ou menos nos seguintes termos: não é a minha voz, aquela que escuto com a minha garganta. O abismo entre o ser-para-si e o ser-para-outrem, eis o escândalo que apavora. O que designa o enigma incontornável da subjetividade. Noutras palavras, o hiato que, separando-me do exterior, separa-me de mim mesmo. Tal incapacidade de se ver de fora parece implicar uma deficiência ou uma fratura do próprio ser. Ser assim é também uma maneira de não ser. (Cf. Prado Jr., 1985, p.247).

Desconheço melhor projeção do ideário francês do sujeito clivado, especializado na denúncia sistemática da miragem da "unidade diamantina do Eu" (na expressão predileta de Bento Prado), na estação existencialista que o precedeu e costuma renegar. Onde afinal a descontinuidade tão alardeada? Ela existe, é inegável, sem prejuízo, entretanto, como deixa entrever este passo precioso, de uma certa remanência do frisson vanguardista, visto que o incontornável pour-soi não é bem o Ego filistino do Sr. Brunschvicg. Lacan teria andado depressa demais ao implicar com a presumida coincidência consigo mesmo do sujeito da enunciação existencialista. Digamos que a carreira de Lacan, no sistema de empréstimos que a define, de Kojève a Lévi-Strauss, teria unificado esses dois ciclos numa mesma polêmica com o sujeito, desde os tempos em que o primeiro Sartre rejeitava o Eu transcendental de Husserl e, na mesma época, Lacan assinalava na matriz identificatória em que o Eu se precipitava na fase do espelho, uma linha de ficção para sempre irredutível. O resto viria por acréscimo, segundo o gosto do tempo e o progresso unidimensional da reificação - com perdão da má palavra, pois conforme ensina o lacanismo, "não é um movimento no qual um sujeito preexistente se perde em outra coisa", sendo um fato do sujeito, a alienação é de nascença. (Cf. Ogilvie, 1987, p.108). Ora, é bom lembrar mais uma vez que em Hegel nada é de nascença.

 

A ORDEM DO DESEJO

Pode-se dizer que se deve ao lacanismo a metamorfose do desejo plural em Freud (uma multiplicidade de atos psíquicos e uma conseqüente pluralidade de destinos conforme a localização no aparelho, a natureza do obstáculo etc.) numa instância central, sempre enunciada no singular e com uma ênfase reservada pela tradição às grandes entidades metafísicas (Mezan, 1990, p.331). É verdade que boa parte da literatura lacaniana se empenha em atenuar o passo, ressaltando as etapas de uma derivação, como no seguinte roteiro clássico de Laplanche e Pontalis: citação da definição da Interpretação dos Sonhos, baseada na experiência da satisfação, segundo a qual o desejo, ligado a traços mnemônicos, se realiza na reprodução alucinatória das percepções que se tornaram sinais daquela satisfação; isso posto, ressalta a diferença entre necessidade e desejo, a primeira nascida de uma tensão interna e satisfeita por um objeto real e específico, o segundo, que só tem realidade psíquica, imantado pela procura de um fantasma, sendo além do mais inconsciente e vinculado a signos infantis indestrutíveis; nestas condições estão dados os elementos da irredutibilidade lacaniana do desejo, nem visada de um objeto real nem demanda articulada (Cf. Laplanche & Pontalis, 1968, p.120-2). Resta o pathos do desencontro e a terminologia superlativa que o descreve. Como o desejo não tem objeto na realidade, e o fantasma é um sucedâneo, reprodução alucinatória de uma satisfação original, um logro, segue-se o cortejo da falta, da perda e do inacessível, tudo gravado com o selo do originário. Mas dito isto, ainda não se resumiu tudo, pois falta a dimensão do Outro, em torno do qual, como se sabe, gravita o desejo lacaniano. É neste ponto da passagem do Wunsch freudiano ao Désir lacaniano, que se costuma assinalar os serviços prestados pela Begierde hegeliana, pelo menos até meados dos anos 50. Se isto é fato, novamente Kojève teria se interposto entre Lacan e Freud, e de modo tanto mais surpreendente quanto o desejo hegeliano não tem parte com o inconsciente. Sendo no entanto o desejo em Lacan a cifra de uma alienação primordial, sua conceituação parece escapar ao campo psicanalítico estrito para integrar o domínio de uma antropologia filosófica. Aqui a argumentação do corpus lacaniano superpõe sem cerimônia criança e consciência-de-si: para mostrar que o desejo só pode surgir numa relação com o outro, remonta-se das primeiras experiências de satisfação da criança até o momento em que, "irredutivelmente inscrita no universo do desejo do Outro", a criança deseja ser o único objeto dele; pois no meio desse caminho em que a criança vai aprendendo a se reconhecer a partir do outro, costuma reaparecer o tema hegeliano lançado por Kojève: o desejo do homem é o desejo do outro. Novamente Lacan está atrás de uma virada, nos seus termos, um instante em que o desejo é confusamente apreendido no outro, ou ainda como diz, lembrando-se sem dúvida de Kojève: é nesse exato momento que se isola, no ser humano, a consciência enquanto consciência-de-si e o desejo aparece como pura negatividade (Cf. Lacan, 1983, p.172).

Para avaliar o volume da importação, recapitulo o passo correspondente na Fenomenologia do Espírito. A consciência-de-si emerge sob o signo do duplo sentido. Muito embora seja ela mesma o seu próprio objeto, permanece no entanto tal qual o seu correlato intencional, o mundo da certeza sensível e da percepção, mais precisamente na forma negativa do ser-outro: duplicidade que ela se esforçará por anular, sob pena, é verdade, de produzir outras, e no limite a principal delas, o seu duplo, na pessoa de uma outra consciência. Como as demais figuras, a consciência-de-si não é uma entidade - no caso, um Eu idêntico a si mesmo, descartado por Hegel como resíduo coisificado - mas a história de um movimento, ou melhor, nela se exprime uma experiência que a rigor não é mais do que uma história, aqui a experiência da independência do seu objeto verdadeiro e único, um ser vivo que a duplica. Quanto ao desejo, ele se declara antes que ela se dê conta da verdadeira natureza do seu objeto real, ela é desejante na exata medida em que refere o seu objeto enquanto consciência intencional à certeza, ou presunção, de ser tudo e o mundo, nada, apenas fenômeno sem substância, com o qual se relaciona negativamente pelo desejo, expressão exata dessa convicção de onipotência. Logo verá que o objeto lhe resiste, frustrando-lhe a satisfação (Befriedigung) buscada - caso tal satisfação fosse obtida, provaria em princípio que a consciência retomara finalmente a si mesma a partir da relação com o objeto, cuja nulidade entretanto estava interessada em demonstrar praticamente. Todavia, o mau infinito do desejo insaciável, que renasce sob o signo da repetição, lhe ensinará que o seu objeto não é natural, que a desejada igualdade consigo mesma carece de uma outra mediação. Sem ser propriamente um "fantasma", o objeto do seu desejo aparece-lhe finalmente na figura do semelhante, uma outra consciência da qual obtém enfim satisfação, quer dizer, só numa outra consciência-de-si a consciência-de-si faz a experiência da satisfação que em vão buscara no objeto natural desejado.

Puxando a figura para o lado do "existencialismo", Hyppolite dirá que no fundo do seu desejo é a si mesma que obscuramente a consciência procurava, procurando-se em conseqüência no outro. Pathos a menos, não direi que não. Como busca supõe perda, é a engrenagem "existencial" da alienação que Hyppolite está introduzindo. Também não direi que não se possa entender assim, pois a descrição hegeliana é por vezes deliberadamente escandida por lances dramáticos: afirmará, por exemplo, que ao se ver literalmente fora de si, numa outra consciência que é ela mesma, a consciência se vê perdida, e ao tentar suprimir esse outro é a si mesma que suprime etc. Já conhecemos esse jogo de espelhos do reconhecimento. Só que ao principiar, o desejo já tinha ficado para trás, etapa vencida graças à qual a consciência descobriu o seu verdadeiro objeto, do qual obteve satisfação - é bom não esquecer dessa reconciliação, mesmo provisória, impensável do ângulo lacaniano. Doravante contará apenas a lógica social do reconhecimento. Para continuar a ver nesta última o drama do desejo, como quer Lacan, será preciso interpretar e tomar o movimento do Anerkennen como um desejo de segundo grau, desejo do desejo do Outro ou desejo de reconhecimento, quase uma trivialidade psicológica que o ativismo de Kojève transformou numa luta de puro prestígio - e de fato há traços heróicos arcaizantes na caracterização hegeliana. Aliás no confronto o desejo reflui para o objeto natural - assim, o trabalho da consciência, que apenas reconhece sem ser reconhecida, é desejo inibido, refreado, ao passo que para a outra consciência, o desejo se traduz na satisfação imediata do consumo que assimila o objeto poupado, por isso uma se "forma" enquanto a outra regride, mesmo sob o signo ambivalente do sentimento sem mescla de si. Noutras palavras, a luta pelo reconhecimento não se desenrola mais no plano do desejo que definia a consciência-de-si antes da sua duplicação e do aparecimento do rival - a partir daí a experiência de formação muda de registro, e pode-se dizer que se trata de uma compreensão excêntrica do individualismo moderno.

Não é que Lacan não pressinta o fato (todas as vezes em que se refere à dialética do Senhor e do Escravo destaca o pacto de natureza simbólica que a regula) (Cf. p.ex. Lacan, 1983, p.255), mas continua a conceber essas formas elementares de sociabilidade como mandava o figurino kojèviano, isto é, como uma "história de desejos desejados" - e como Kojève, torno a lembrar, centra a desnaturalização do desejo, o seu caráter "antropogênico", na sua mediação pelo desejo de um outro, assimilando, como se viu, reconhecimento e desejo, sociedade e pluralidade de desejos desimplicados do sistema de objetos. Nessa direção, retomará a luta hegeliana pelo reconhecimento como uma trama passional de rivalidade e concorrência (a antiga relação antagônica de prestígio em Kojève) envolta pela agressividade generalizada, observando não por acaso que esta nada tem a ver com qualquer realidade vital, sendo antes de tudo um "ato existencial", outra reminiscência kojèviana do "impasse existencial" do reconhecimento incompleto (Cf. Lacan, 1983, p.205). Mas quando Lacan fala "existencial" quer dizer "imaginário" - o seu modo de pôr em perspectiva o Existencialismo, do qual não deixa de oferecer uma transcrição original, que acaba afinal projetando na leitura kojèviana da Fenomenologia. É nesse sentido então que a dialética hegeliana do reconhecimento lhe fala à fantasia especulativa, a saber, pela afinidade que lhe parece manifesta com o "impasse da situação imaginária." (Lacan, 1983, p.255). E mais, o pivô, como diz, do domínio imaginário vem a ser justamente essa "relação intersubjetiva mortal" - de resto, não custa insistir, intersubjetividade de inequívoca coloração "existencialista".

Voltamos assim, mais uma vez, à hipótese do espelho, quer dizer, o desejo com o qual se confunde a consciência-de-si também se estrutura graças à intervenção de um outro especular funcionando como uma Gestalt:

à projeção da imagem sucede constantemente a do desejo; correlativamente, há re-introjeção da imagem e re-introjeção do desejo. Jogo de báscula, jogo em espelho (...) e ao longo desse ciclo, seus desejos são reintegrados, reassumidos pela criança (Lacan, 1983, p.207).

Ou ainda:

a reversão perpétua do desejo à forma e da forma ao desejo ou, em outras palavras, da consciência e do corpo, do desejo enquanto parcial ao objeto amado, em que o sujeito literalmente se perde, e ao qual se identifica, é o mecanismo fundamental em torno do qual gira tudo que se relaciona ao Ego. (Lacan, 1983, p. 199).

A fórmula kojèviana - "o desejo do homem é o desejo do outro" - exprime portanto a segunda dimensão do imaginário, onde o sujeito consegue integrar a forma do Eu após um "jogo de báscula em que trocou justamente o seu eu pelo desejo que vê no outro." (Lacan, 1983, p.206). Esse o grau zero do desejo, em que é visto no outro, em que "só existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado, alienado no outro." (Lacan, 1983, p.197) - é invertido no outro que aprenderá a se reconhecer. Nesse estágio da captação imaginária do desejo dá-se no entanto uma projeção que irá configurar o impasse referido acima. Cito alguns trechos, o primeiro deles referindo essa constituição especular originária do desejo, os dois outros, o limiar do meurtre hégélien, uma espécie de evidência psicológica geral: "cada vez que o sujeito se apreende como forma e como eu, cada vez que se constitui no seu estatuto, na sua estatura, na sua estática, o seu desejo se projeta para fora." (Lacan, 1983, p. 198). Daí o impasse:

o desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro (...) e cada vez que nos aproximamos num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade - o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito. (Lacan, 1983, p.198).

Ou ainda em termos abertamente kojèvianos, de novo fundidos aos elementos da tópica do imaginário:

o objeto humano é originariamente mediatizado pela via da rivalidade, pela exacerbação da relação ao rival, pela relação de prestígio (...) já é uma relação da ordem da alienação porque é primeiro no rival que o sujeito se apreende como eu; a primeira noção da totalidade do corpo como inefável, vivido, o primeiro arroubo do apetite e do desejo passa no sujeito humano pela mediação de uma forma que primeiro ele vê projetada, exterior a ele, e isso, primeiro, no seu próprio reflexo. (Lacan, 1983, p.205).

Hegel ou antropologia existencial nesse impulso ao extermínio do Outro, suporte do desejo e sede da alienação? Por certo, Existencialismo, juntamente com o seu limite. O combate de vida ou morte descrito por Hegel já não é mais um fato do desejo, nele está em jogo a abstração do indivíduo moderno, cuja autonomia recém-instituída vê no duplo antes de tudo o concorrente - enfim um amálgama ao gosto de Kojève -, um futuro terrorista adormecido no torpor da economia elementar dessa primeira figura da dominação. Embora não saiba o que fazer, Lacan sabe disso e por aí expõe os limites do Existencialismo, para ele sinônimo de relações perversas, encalhadas no círculo primitivo do imaginário (Cf. Lacan, 1983, p.249). Por isso observa que a estrutura de partida da dialética hegeliana ainda pertence ao plano "mítico ou imaginário", ao passo que a etapa subseqüente marcaria o ingresso no simbólico, quando a consciência submetida vai ao trabalho (Cf. Lacan, 1983, p.255).

Resta a deriva metonímica do Desejo. Mas para que ela se revele, juntamente com a falha radical que exprime, será preciso que esse desejo do desejo do outro entre no moinho simbólico da linguagem. Neste ponto todavia Lacan já não sugere mais nada que se assemelhe à negatividade da Begierde hegeliana, que serviu apenas para ilustrar uma espécie de intersubjetividade radical e primordial, ela mesma cifra antropológica universal, como aliás o estágio do espelho. Aqui Sartre poderia ter prestado o mesmo serviço, sobretudo porque devia também a Kojève a revelação de um Hegel teórico da esfera "imaginária" da intersubjetividade. Um Hegel por certo errado porém vivo servia assim de estopim para uma obsessão digamos "avançada" que, do Seminário Kojève às primeiras manifestações do Estruturalismo, alimentaria a especulação francesa.

 

MOI = SELBSTBEWUSSTSEIN?

Uma equação sugerida, entre outros, pelo seguinte trecho da Introdução ao Comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung:

o eu (moi), tal como ele opera na experiência analítica, não tem nada a ver com a suposta unidade da realidade do sujeito que a psicologia chamada geral abstrai como algo incluído nas suas funções sintéticas. O eu de que falamos é absolutamente impossível de distinguir das captações imaginárias que o constituem da cabeça aos pés, tanto na sua gênese como no seu estatuto, tanto na sua função quanto na sua atualidade, por um outro e para um outro. Dito de outro modo, a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível o mais envolvente da eficácia do sujeito nos obriga a compreender o eu, de ponta a ponta, no movimento de alienação progressiva, ao longo do qual se constitui a consciência-de-si na fenomenologia de Hegel. (Lacan, 1966, p.374).

Como se pode ver, na década de 50 ainda havia dialética por todos os lados. Linhas antes Lacan se referira à psicanálise como uma prática comandada por uma dialética imanente. Uma alusão ainda trivialmente inespecífica à dimensão intersubjetiva do par analítico. Veremos todavia em que termos Lacan relança a idéia de uma análise escandida nos moldes de uma dialética da "experiência", que interpreta contudo no sentido degradado da Vivência dialógica dos fenomenólogos, como se pode notar desde o escrito de 36 sobre o Princípio de Realidade. Passemos então a equação indicada no trecho citado. Ela supõe uma escolha na teoria freudiana do Eu. Desde os tempos da Tese (1932), Lacan nunca escondeu sua insatisfação com a redução freudiana do núcleo do Eu ao sistema percepção-consciência (Cf. Lacan, 1975, p.324). Alguns autores atribuem a desconfiança que sempre lhe inspirou essa concepção adaptativa de um sujeito do conhecimento ao seu passado de psiquiatra, em particular à revelação do descentramento paranóico definidor do conhecimento. Seja como for, reteve da teoria sobretudo a concepção do Eu como o resultado de um processo de identificações. Como se há de recordar, a ortodoxia sofre um primeiro entorse já na comunicação de 49 sobre o estádio do espelho, hipótese em princípio, repetimos, impregnada de reminiscências kojèvianas. Pelo menos a palavra dialética encontra-se por toda a parte do escrito famoso. Como quer a teoria, identificação é a transformação sofrida pelo sujeito quando assume uma imago. A esta matriz por onde o Eu se precipita em sua forma primordial, Lacan acrescentou a operação de um Outro, a imagem do semelhante, com o qual o sujeito se identifica, condenado por sua prematuração específica a essas objetivações sucessivas. Há portanto um logro no caminho da insuficiência de origem à antecipação em que se resolve a miragem da maturação. Assim, onde há identificação, Lacan vê sobretudo "alienação", outra palavra que também não falta e cujos efeitos estão subentendidos na expressão que resume toda essa alternância, "dialética da identificação com o outro". Dialética cujas "sínteses" - outro termo do repertório da época - seguem uma "linha de ficção" segundo a qual o sujeito se constrói. Uma "alienação progressiva" enfim, escandida pelo poder de captação da imago que sujeita o Eu à forma do Outro.5

Ainda no escrito de 49, alguns indícios sugerem a presença de Kojève nessa guinada do freudismo na direção de uma filosofia da intersubjetividade. Em primeiro lugar, a convicção central de que todo o saber humano - cuja travação ontológica se revela na fase do espelho, que aliás não é uma fase mas, como lembrado por seu criador, uma encruzilhada estrutural - se acha mediatizado pelo "desejo do outro". (Hegel, evidentemente, jamais o disse nem deu a entender, a menos que se restrinja o "saber" ao momento em que a certeza da consciência-de-si depende do reconhecimento de uma outra consciência-de-si). Um saber que constitui os seus objetos, como a criança no espelho, sob o "olhar" do outro. Daí o cortejo da agressividade: drama do ciúme e do prestígio, concorrência, rivalidade etc, tudo no campo da mais inocente operação epistemológica. Até aqui Kojève, mas poderia ser Sartre: não falta, como assinalado, nem "olhar" nem "má fé" nesta trama imaginária de objetivações do Ego, "forma alienada do ser".

Perdemos no entanto Kojève de vista na alegação hegeliana explícita de que partimos. Sobretudo, quando Lacan precisa que a relação do ego ao outro, ao semelhante em função de cuja imagem se formou, culmina no desconhecimento, determinação fundamental do ego, o exato oposto da síntese imaginada pelo "preconceito cientista". Esse desconhecimento deriva da estruturação da Verneinung, "denegação" para os lacanianos. Quando dizemos que o eu nada sabe do sujeito, assegura Lacan, também estamos dizendo que esse desconhecimento não é ignorância: o eu desconhece porque se recusa a conhecer, porque conhece que há alguma coisa que não quer reconhecer, porque há por trás de seu desconhecimento um certo conhecimento do que há para desconhecer etc (Cf. Lacan, 1983, p.194). Onde Hegel nesta coreografia do desconhecimento do Moi? A pergunta se deve ao fiel Hyppolite, que pelo menos sugere - pela transcrição quase literal das fórmulas - ter reencontrado Lacan na Fenomenologia, e por aí acabaria justificando a equação que assimila as captações imaginárias do ego à consciência-de-si hegeliana. Para Hyppolite vale para a consciência o que Freud disse de Édipo: no fundo, ele sempre soube. Assim sendo, para que a consciência possa dizer chegado o momento: eu sempre soube, é preciso que ela seja de fato essa "função de desconhecimento" assinalada por Lacan, mais precisamente, que um dos traços fundamentais de uma consciência que se ignora seja uma espécie de inconsciente, chamado por Hyppolite de inconsciência da consciência. No trecho seguinte, não é Lacan falando do Moi?

A consciência vê e não. Conhecendo, a consciência desconhece; mas não esqueçamos que desconhecer não é não conhecer completamente; desconhecer é conhecer para poder reconhecer e para poder dizer um dia: eu sempre soube; quem se desconhece, de certo modo se conhece, de tal maneira que se a consciência natural é fundamentalmente inconsciência de si, ela também é um modo de, se desconhecendo, poder um dia se reconhecer; talvez esteja aí uma das chaves do problema do inconsciente: ele não é uma coisa situada atrás de outra coisa, mas fundamentalmente uma certa alma da consciência, um certo modo inevitável, para a consciência natural, de ser ela mesma.

De fato parece Lacan, mas é Hyppolite explicando a Selbstbewusstsein (Hyppolite, 1971, p.215-6). As fórmulas lacanianas não impedem que a noção analítica de inconsciente, atrelada ao modo de ser do protagonista da Fenomenologia do Espírito, naufrague, privada do seu dinamismo próprio, na aporia clássica do ponto de partida: como posso desconhecer, para depois reconhecer, sem ter conhecido antes? Uma anamnésia platonizante na qual se esfuma a linha de sombra da consciência dita natural, no fundo um itinerário socrático, uma consciência que se ignora à procura dela mesma. Aliás não é por acaso que Sartre volta essa mesma aporia contra a noção freudiana de inconsciente: se de fato o complexo é inconsciente, se uma barragem separa o signo do significado, como o sujeito poderia reconhecê-lo? (Cf. Sartre, 1966, p.661-2).

Não há dúvida porém que essa consciência hegeliana que vai aos poucos se apresentando como um "saber não real", "apenas conceito do saber", é um sujeito dividido, como querem os lacanianos, ao contrário do seu ancestral, o sujeito cartesiano unificado e autônomo (Cf. Macherey, 1985, p.33). Mas embora constitutiva, esta divisão - o processo real se desenrola às suas costas - não é irreparável: este mesmo processo é a sua instituição como Sujeito (a maiúscula aqui é de rigor), desde que tenha aprendido a renunciar ao apego obstinado às suas pequenas certezas de sujeito menor. Noutras palavras, a alienação tem fim, às custas, é verdade, da abolição do saber finito (embora um Moderno, Hegel já não tinha mais ilusões quanto ao destino do indivíduo, ao qual todavia o mundo ainda devia satisfações), ao passo que para Lacan ela apenas muda de registro, a cisão do "verdadeiro sujeito" não tem volta, pois se trata, no fim das contas, de um sujeito "primitivamente desafinado, fundamentalmente despedaçado por este ego." (Lacan, 1985, p.224).

Mas deixemos de lado o que há de obviamente flagrante nessas incompatibilidades máximas - Hegel não poderia pressentir o horizonte de fim de linha no qual se debateria Lacan, soubesse disso ou não -, em favor dos recobrimentos parciais, cuja razão de ser torna-se ainda mais enigmática. Se é verdade que o ego, como quer Lacan, é essencialmente relação com o outro, que toma seu ponto de partida e apoio no outro, então é justo que Hyppolite lembre em conseqüência que as figuras mais plásticas da Fenomenologia mostram de preferência o afrontamento das consciências, do confronto do Senhor e do Escravo (marco zero estabelecido por Kojève) até a dialética do mal e seu perdão. Ora, ainda segundo Kojève, em todas essas figuras por assim dizer duais encontramos avatares da sujeição do Escravo, formas de consciência onde se racionaliza uma emancipação travada, diligentemente desviada da prática que a consumaria - enfim, uma história de identificações cujo fulcro é uma alienação básica definida pela estrutura em espelho na qual se formou a consciência-de-si. Seja como for, não deixa de ser curioso que um freudiano tenha precisado de Kojève para medir-se com a ilusão - é verdade que se trata de uma miragem a dois e que, antes de Sartre, uma concepção dramática e desabusada da intersubjetividade só estava disponível naquele Seminário da École Pratique.

Ainda um curto-circuito: basta traduzirmos a dimensão imaginária das identificações do Moi por ideologia, para nos aproximarmos um pouco mais da Selbstbewusstsein hegeliana. Esta última é de fato falsa consciência e, no limite, a crítica imanente do saber que vem a ser a Fenomenalogia está estruturada como uma Ideologiekritik nos moldes do materialismo ulterior. Como o indivíduo moderno, a consciência hegeliana também se apresenta na forma do auto-engano, medido pela distância entre certeza e verdade, conceito e objeto, em suma, é expressão de um logro no coração da experiência. Visando sempre o contrário do que realmente é, vítima de uma espécie de ironia objetiva, a consciência também pode ser vista como a personificação de uma função de desconhecimento: ela vive igualmente fora de si, por identificações ou figuras, numa presença fascinada e sem distância, como o Ego, cativo de uma imagem. Acresce ainda que a consciência, cuja experiência a Fenomenologia apenas descreve, é constelação teórico-prática que resiste às rupturas, sempre dramáticas, e evita o caminho da dúvida que desidentifica. Além do mais, sem nenhuma ingerência do observador (aquele que diz para nós em aparte), é a própria consciência que examina a si mesma, trazendo consigo a sua medida. Mesmo assim para ela não há progresso, recomeça de zero a cada etapa, pois o seu destino é o esquecimento e a repetição. Sabemos todavia que a alienação tem fim, que algo se acumula às costas da consciência, cujo espírito de qualquer modo se forma, como quem se enriquece com as ilusões que perde. Se se pudesse dizer o mesmo da contrapartida lacaniana, a equação por ele mesmo sugerida seria plausível, excluída por certo a hipótese de um "sujeito acabado na sua identidade consigo mesmo", onde afinal se daria a conjunção do simbólico e do real.

 

PSICANÁLISE E EXPERIÊNCIA DIALÉTICA

O primeiro Lacan costumava dizer que a psicanálise é uma experiência dialética (Cf. p.ex. Lacan, 1996, p.216). Ao que parece, no sentido etimologicamente inespecífico da dimensão dialógica, mencionada acima. Em suma, o dado imediato da experiência analítica é um fato de linguagem articulando fala e escuta, e seu horizonte próximo, mais uma vez, a intersubjetividade. A palavra analítica é assim um pacto intersubjetivo. Com isto Lacan baralha as fronteiras entre sentido e referência (Dews, 1987, p.60). Ou por outra: o referente nunca é primeiro; como dizia em 46, a linguagem não é um sistema de signos que duplicaria o dos objetos (Cf. Lacan, 1966, p.166). Nestas condições, a experiência analítica da linguagem já não é mais trivialmente óbvia, a saber, a constatação de que a linguagem, antes de significar qualquer coisa, significa para alguém, de que uma intenção intersubjetiva de significação preside mesmo o discurso que não quer dizer nada ou não tem qualquer sentido (Cf. Lacan, 1966, p.82,83). Compreendido a partir da situação analítica, o funcionamento geral da linguagem deixaria ver que o conhecimento do objeto é precedido sempre pelo reconhecimento mútuo dos sujeitos (Dews, 1987).

Se lembrarmos agora que, entre outras coisas, a linguagem para Hegel era a existência mesma do Espírito, e que este nada mais era do que Eu socializado, compreenderemos um dos curto-circuitos prediletos do fiel Hyppolite (mais uma vez), ao assimilar diálogo e dialética, no intuito de melhor documentar as alegações hegelianas do Dr. Lacan. Dialética, dizia Hyppolite, evidentemente noutros termos e aplainando o terreno, é antes de tudo ação comunicativa (avant la lettre, bem entendido), ela é a regra do "jogo de intercomunicação das consciências", quer dizer, é linguagem e medium do reconhecimento. Retrocesso a uma acepção primitiva da noção? Sim e não: deixando de lado o timbre cor-de-rosa do termo "diálogo", é preciso notar que ao definir consciência-de-si por reflexão numa outra consciência, Hegel estava abandonando o terreno cartesiano do confronto representacional entre um sujeito e um objeto, estava subordinando conhecimento a reconhecimento, é certo que para fazer emergir a Teoria de uma etapa ulterior do processo de formação da consciência. Seja como for, quando entramos na esfera da consciência-de-si, a verdade deixa de ser pensada em termos de adequação, a certeza não é mais a do Cogito e só se torna verdadeira no movimento de socialização de um Selbst recém-entrado em cena. De resto, é preciso ver que na Fenomenologia o regime da verdade já não é mais a tradição epistemológica anterior. O ponto de vista da falsa consciência, quer dizer, a percepção da energia produtiva concentrada na alienação, altera as relações entre saber e verdade, tornando a ilusão um momento desta última e a auto-reflexão, uma operação constitutiva que modifica a consciência e o seu objeto, pois se trata de uma Bildung, de um processo de formação, e não de uma simples coleção de conhecimentos da parte de um sujeito cognitivo.

Alguma coisa desse dispositivo da Formação Lacan deve ter entrevisto, tanto é assim que já em 1960, constatando, não sem tempo, que saber absoluto e psicanálise dificilmente poderiam andar juntos, reconheceu entretanto a novidade daquele discurso e o serviço que esperava dele: o modelo de um "revisionismo permanente", no qual a verdade, em regime de constante "résorption" naquilo que apresenta de pertubador, vem a ser o que falta à realização do saber, em suma, para além das antinomias clássicas, a verdade não seria mais do que "ce dont le savoir ne peut apprendre qu'il le sait qu'à faire agir son ignorance." (Lacan, 1966, p.797-8). Se entendemos a formulação rebarbativa, não se pode negar que tenha atinado com a novidade da Fenomenologia. Resta saber se ela recobre o principal da experiência analítica.

Pelo menos no que concerne à lacaniana, um observador das idéias francesas como Peter Dews acha que sim e, levado pela simetria, chega a dizer que para Lacan também existe uma disjunção de molde hegeliano entre saber e verdade, se especificando nos seguintes termos: o saber exprimiria as relações do Ego com os seus objetos, enquanto a verdade residiria na trama das relações do sujeito com os outros e as formas pregressas do próprio sujeito, nas quais era apanhado e não conseguia reconstituir ao ser arrastado pela inércia de suas identificações imaginárias (Cf. Dews, 1987, p.63). Como dizia o Lacan dos anos 50, a verdade é uma dialética em marcha, e isso depois de lembrar que, ao restaurar o inconsciente reprimido na consciência, a eficácia do tratamento analítico se deve menos ao conteúdo desta revelação do que ao impulso inerente a uma reconquista (Cf. Lacan, 1966, p.144). Se traduzirmos este movimento em termos de reconstrução e autoreflexão, e esta última como a operação de um sujeito que se forma sem estar previamente dado, voltamos a um certo Hegel: curiosamente, o modelo que sustenta a aproximação tentada por Peter Dews já é fruto de uma simbiose, no caso, uma adaptação da "experiência" hegeliana ao domínio da experiência biográfica, ela mesma reinterpretada por Habermas - pois é dele a autoria do modelo de que estamos falando - em termos analíticos, porém de orientação "iluminista", de restauração de um encadeamento interrompido pelo ensimesmamento da alienação. O ponto é polêmico e não vem ao caso abordá-lo agora - fica apenas o sal de uma convergência possível sob o patrocínio do primeiro Lacan.6

Ocorre ainda que ao identificar psicanálise e experiência dialética, Lacan tomou como uma de suas referências um tratamento célebre, aliás também famoso por ter abortado, o caso Dora, segundo ele exposto por Freud na forma de uma série de "renversements dialectiques" (Cf. Lacan, 1966, p.218). E não se trataria de mero artifício expositivo, mas de uma escansão imanente, uma estruturação de um material não obstante ordenado ao sabor das associações da paciente: isto é, a exposição é idêntica ao progresso do sujeito, que vem a ser a realidade da cura. Ao contrário entretanto do observador fenomenológico, o analista intervém, momento no qual, para Lacan, se configuraria o "renversement" que julga dialético. Em princípio, as "conversões" hegelianas, graças às quais a consciência "experimenta" a nulidade do seu saber, são estritamente autóctones, pois é a consciência examinando-se a si mesma que põe à prova suas certezas. Pouco importa, a analogia - se é que existe - não precisa ser estrita. O fato é que a cada "renversement" o sujeito é desenganado e levado a ver que sempre diz o contrário do que visa. Lacan também não vai mais longe, limitando-se, depois de assinalar três "renversements" (operados por observações de Freud), a multiplicar quando muito o termo "dialética", ora sugerindo que está tentando definir a transferência em termos de pura dialética (diálogo novamente? Nó imaginário?), ora atribuindo a interrupção da análise a um momento de "estagnação da dialética" etc. (Já que estamos no plano das analogias e das generalidades, valha a sugestão para explicar a miragem de que foi vítima Lacan: um memorial clínico relatado por Freud é algo mais do que um simples memorial clínico; assim sendo, não seria demais observar que o seu gênero, embora obviamente "científico", é parente próximo da grande literatura realista e que esta, por sua vez, mesclando Bildung e desilusão, é o melhor termo de comparação para a exposição fenomenológica, ao seu modo também uma Darstellung da realidade, ela mesma presente na forma de representações postas à prova - pelo menos no plano da forma, muita matéria para reflexão). Mas até onde "progride" um tratamento pontuado por tal "dialética"? Se é verdade, como querem os lacanianos, que o tratamento consiste em "fazer o sujeito advir ao reconhecimento do seu desejo por ele mesmo e pelo outro", e que assim mesmo, ou por isso mesmo, não provocaria "nenhuma tomada de consciência, nenhuma recuperação do inconsciente pela consciência ou do id pelo ego", ao contrário, revela um "processo de descentramento onde o sujeito interroga, através da fala, a perda de seu domínio, isto é, sua posição edipiana." (Roudinesco, 1988, p.275). - se assim é, a "dialética" em questão não pode ter fim, sendo então a expressão de uma decepção permanente, induzida e assumida, onde nada se acumula a não ser o negativo, porém sem reviravolta final.

Por tudo isso e muito mais, reconheçamos afinal que a boa comparação entre Hegel e Lacan, ao contrário dos curto-circuitos lacanianos cuja hora especulativa era uma filosofia negativa da intersubjetividade, deveria ser feita noutro terreno (que nestas Notas mal ultrapassou o limiar das pressuposições), o de uma história material do Sujeito moderno. Conforme este último definhou, a "experiência" dele, da qual o hegelianismo pretendeu um dia constituir a ciência, foi aos poucos se tornando o apanágio de uma forma social em extinção. Restaria ver o que tem a dizer o lacanismo acerca desse declínio da experiência, que não seja mera fraseologia de fim de linha.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Este artigo foi originalmente publicado na revista IDE, n.22, p.64-77, 1992.
2 Assinalo que este mesmo ponto de partida figura num estudo de Bento Prado Jr., no qual a seu tempo também nos apoiaremos (Cf. Lacan: "Biologia e narcisismo ou a costura entre o real e o imaginário", no prelo da editora Brasiliense, São Paulo).
3 Como sugere Dews (1987, p.51-2).
4 Cf. Hyppolite, "Phénoménologie de Hegel et psychanalyse", In: Figures de la pensée philosophique, Paris, PUF, 1971, v.1, p. 218; id., "L'existence dans la phénoménologie de Hegel" (1946), "Situation de l'homme dans la phénoménologie hégélienne" (1947), op. cit.
5 Para a assim chamada "dialética das identificações", ver por exemplo Lemaire (1989) e Dor (1989, cap.18).
6 Para uma opinião contrária, ver o Bento Prado Jr., "Auto-reflexão, ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud.", In: Alguns ensaios, p.18.