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Psicologia USP
On-line version ISSN 1678-5177
Psicol. USP vol.6 no.2 São Paulo 1995
ARTIGOS ORIGINAIS
A criança e a psicanálise: o "lugar" dos pais no atendimento infantil
Child and psychoanalysis: the parental "position" in the child treatment
Léia Priszkulnik
Instituto de Psicologia - USP
RESUMO
Este artigo relata o caminho seguido pela Psicanálise infantil desde a primeira tentativa de tratar uma criança por meios analíticos realizada por Freud com o pequeno Hans. Expõe os trabalhos de Anna Freud e Melanie Klein, cujas obras diferem diametralmente sobre a possibilidade de estabelecer com a criança uma relação puramente analítica, e os trabalhos de Françoise Dolto e Maud Mannoni que centram o tratamento na escuta do inconsciente e incluem a posição parental. A partir das linhas de trabalho destas psicanalistas procura refletir sobre a questão de saber se o psicanalista infantil deve ou não receber os pais, ou se estes devem ou não aparecer na cena analítica, valendo-se do suporte teórico da Psicanálise francesa de inspiração lacaniana.
Descritores: Psicanálise da criança. Psicanálise. Tratamento. Crianças. Família.
ABSTRACT
This paper describes the Child Psychoanalysis path, since Freud's first attempt with little Hans, to treat a child analytically. First, the author discusses Anna Freud and Melanie Klein's works, whose theoretical positions are antagonistic concerning the possibility of establishing a clear analytic relationship with a child. Second, the author considers Françoise Dolto and Maud Mannoni's works with their focuses on the listening of the unconsciouness and on the parental position during the child's treatment. From these work lines the author intends to ponder if the child psychoanalyst must take parents, or if parents must appear in the analytical setting, based upon theoretical support of french Lacanian Psychoanalysis.
Index terms: Child psychoanalysis. Psychoanalysis. Treatment. Children. Family.
A Psicanálise de crianças surge com o trabalho de Freud sobre o pequeno Hans, relatado no artigo "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos" publicado em 1909. Nessa primeira tentativa de tratar uma criança por meios analíticos, ele conta com a colaboração do pai do menino. No citado artigo Freud (1909) afirma:
... o próprio tratamento foi efetuado pelo pai da criança, sendo a ele que devo meus agradecimentos mais sinceros por me permitir publicar suas observações acerca do caso (...). Ninguém mais poderia, em minha opinião, ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dela; o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de cinco anos era indispensável; sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da Psicanálise numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis. Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse científico, é que se pôde, neste único exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele próprio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes. (p.15).
Para Freud, então, é o fato de combinar-se na mesma pessoa a tarefa de analisar e de educar que cria as condições para a aplicação da Psicanálise numa criança.
Essa contribuição freudiana para a Psicanálise infantil serve de modelo de trabalho para alguns analistas. Em contrapartida, outros analistas não aceitam este modelo porque consideram que a análise de Hans se realiza em circunstâncias muito especiais.
A partir da década de vinte duas psicanalistas começam a tentar a sistematização de um método de análise infantil com toda uma envergadura teórico-prática. São elas Anna Freud e Melanie Klein, cujas obras diferem diametralmente sobre as relações entre a Psicanálise de crianças e a educação.
Anna Freud (1971) não acredita poder estabelecer com a criança uma relação puramente analítica, propondo um período de preparação ou de treinamento antes do início do trabalho analítico propriamente dito, e recomenda manter um serviço permanente de informações acerca da criança, na medida em que considera que ela continua a exteriorizar suas reações anormais no ambiente doméstico e não na cena analítica. Coloca em primeiro plano o consciente e o ego da criança, atribui importância primordial à situação externa e valoriza o nível da realidade. É o analista combinando na sua própria pessoa as duas funções, analisar e educar.
Melanie Klein vai desenvolver um novo método de Psicanálise infantil através do jogo, do brinquedo, do desenho, do recorte, procurando preservar todos os princípios da Psicanálise de adultos com "a única diferença que os meios técnicos empregados se adaptam às mentes das crianças." (1970, p. 191). Critica qualquer intervenção educativa do analista e afirma que "... uma verdadeira situação analítica só pode ser produzida por meios analíticos." (1970, p. 198). Trabalha principalmente com o inconsciente, confere uma importância quase que exclusiva aos processos internos e dedica-se à exploração da fantasmática infantil. É a análise infantil seguindo estritamente os princípios 0da análise de adultos.
As duas psicanalistas se tornam rivais no seio da Sociedade Britânica de Psicanálise. Melanie Klein permanece ali de 1926 a 1960 e Anna Freud de 1938 até 1982, e a rivalidade entre elas propicia uma série de críticas de ambos os lados, além da formação de seguidores em dois gestos antagônicos.
Na França a partir de 1939 surge o nome de Françoise Dolto ligado à Psicanálise infantil. Em seus estudos recebe uma certa influência dos primeiros ensinamentos de Lacan. De acordo com as referências de Roudinesco (1988, p.174), Dolto lança as bases de um método psicanalítico para o tratamento de crianças centrado na escuta do inconsciente, e inclui a posição parental no tratamento, apesar de não pensar o campo da análise infantil associado a medidas educativas. Dolto, na sua obra, sublinha o valor revelador dos fantasmas e do estudo das projeções fantasmáticas dos pais, remontando a até três gerações (linhagem). Apesar de considerar importante o contato e a escuta de pais, ela marca bem a diferença entre atuação do psicanalista e a dos pais ou educadores afirmando que
... estes últimos mantêm a realidade social da criança, e a impõem. As crianças estabelecem muito bem (como os adultos em tratamento psicanalítico) a diferença entre o trabalho psicoterápico e a realidade das relações humanas na vida social. (Dolto & Nasio, 1991, p.73).
Françoise Dolto pertence à segunda geração de psicanalistas franceses e é reconhecida, por muito autores, pelo seu prodigioso talento clínico. Na terceira geração surge outro nome de destaque dentro da Psicanálise infantil e é o de Maud Mannoni.
Mannoni deve sua formação como psicanalista de crianças a Dolto e a elaboração teórica de sua experiência, ao ensino de Lacan. Para ela o campo em que o analista opera
... é o da linguagem (mesmo se a criança ainda não fala). O discurso que se processa engloba os pais, a criança, o analista: é um discurso coletivo que se constitui em torno do sintoma apresentado pela criança. (Mannoni, 1971, p.9).
Considera, então, imprescindível escutar os pais na medida em que eles estão implicados nos sintomas do filho, o que não significa fazer o tratamento psicanalítico deles, mas ajudá-los a se situarem em relação à sua própria história.
Se nos guiarmos pelos pensamentos de Anna Freud, que enfatiza a situação externa e a realidade, ao tratarmos a criança precisamos ter entrevistas com os pais para colher informações e, se necessário, orientá-los na educação do filho, ou seja, intervindo na realidade da vida em comum. Se nos guiarmos pelos pressupostos de Melanie Klein, que confere uma importância quase que exclusiva aos processos internos, ao tratarmos a criança pela Psicanálise devemos, se necessário, encaminhar os pais a outro analista para entrevistas de orientação. Se nos valermos dos pressupostos de Françoise Dolto e Maud Mannoni, que incluem a posição parental no tratamento da criança, precisamos, muitas vezes, escutar os pais em entrevistas, com o objetivo não de orientá-los mas, ao contrário, de ajudá-los a redimensionar os problemas do filho e a se re-situarem em relação aos próprios problemas.
Três linhas de trabalho na Psicanálise de crianças! As entrevistas de orientação de pais colocam o analista também como educador e é impossível analisar e educar ao mesmo tempo; neste sentido, Melanie Klein tem razão em não receber os pais e encaminhá-los a outro analista Mas as entrevistas não precisam ser de orientação, podem ter o objetivo de ajudar os pais a se re-situarem diante das dificuldades do filho e da própria vida. Neste sentido, Dolto e Mannoni têm razão em escutar os pais pois não estão assumindo, ao mesmo tempo, as funções de analisar e de educar.
Para uma reflexão sobre a questão de saber se o psicanalista infantil deve ou não receber os pais, ou se estes devem ou não aparecer na cena analítica, a Psicanálise francesa de inspiração lacaniana fornece um suporte teórico de considerável envergadura.
Sabemos que o nascimento de uma criança nunca corresponde exatamente ao que os pais esperam dela. Freud (1914) refere-se a isto escrevendo que os pais
... se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...) e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele (...). A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (...). O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior. (p.108).
Assim, quando estamos diante de pais que solicitam ajuda para o filho, estamos também diante da problemática própria de cada um deles. Pais e filho, "constróem" uma história cujo enredo os enreda inevitavelmente. Lacan (1985) assinala esta trama inevitável quando escreve que
... o que constitui o fundo de todo drama humano (...) é o fato de haver liames, nós, pactos estabelecidos. Os seres humanos já estão ligados entre si por compromissos que determinaram o lugar deles, o nome deles, a essência deles ... (p.248).
Podemos, então, dizer que na análise infantil, quando buscamos o sentido do sintoma, acabamos nos defrontando com
... a maneira pela qual uma criança é marcada, não somente pela maneira como é esperada antes do seu nascimento, como também pelo que vai ela em seguida representar para um e outro dos pais em função da história de cada um. Sua existência real vai chocar-se assim com as projeções paternas inconsistentes donde vem os equívocos. Se a criança tem a impressão de que todo acesso a uma palavra verdadeira lhe é vedado, pode em certos casos procurar na doença uma possibilidade de expressão. (Mannoni, 1971, p.65).
É precisamente a constatação dos liames e dos pactos estabelecidos entre os pais e o filho que impõem a questão de escutar os pais em entrevistas durante a análise da criança. Se os pais estão implicados no sintoma do filho precisamos, também, ajudá-los a começar um certo questionamento de suas dificuldades. As entrevistas com os pais podem ser esporádicas e o objetivo delas não é, em hipótese nenhuma, de orientá-los ou fazer sua psicoterapia.
O pressuposto de que pais e filho estão implicados entre si leva, necessariamente, a admitir que na cena analítica os pais estão sempre presentes através do discurso da criança (é só saber reconhecer). Assim, quando o psicanalista aceita receber os pais, acaba também permitindo, como assinala Mannoni (1977, p.125), que no discurso da criança ocorra o desaparecimento progressivo de uma palavra alienante que, por vezes, é uma palavra dos pais intervindo no lugar dela, na sessão que é dela.
Nos casos em que a mãe ou o pai procuram insistentemente o psicanalista com o pretexto de falar do filho, não devemos esquecer que esta insistência pode ser indício de que existe algum problema pessoal "mascarado" pelas dificuldades da criança. Numa situação destas podemos atender o pedido pois, com a "escuta" psicanalítica, permitiremos que a pergunta colocada através do filho, seja formulada através da angústia que surge quando a "máscara" se desfaz. Exemplificando, muitos pais começam queixando-se do filho e pedindo "dicas" de como agir com ele. Se esta demanda não recebe resposta e se os pais começam a falar da vida deles, aos poucos surge a "outra" dificuldade, uma dificuldade deles em relação à própria vida; é a "escuta" psicanalítica permitindo re-situar a "dificuldade" que começa como sendo com o filho e termina sendo com a própria vida deles.
Se a procura da mãe ou do pai continua a ser feita com insistência e freqüência maiores, cria-se uma situação que precisa ser conduzida com muito cuidado pois, talvez, a indicação de uma análise torne-se necessária; porém esta indicação não deve ser feita tendo como causa as dificuldades do filho. Mannoni (1977) realmente enfatiza este ponto de vista quando afirma que
Se dissermos a um adulto, "precisa de uma análise por causa do seu filho", caminhamos no sentido de uma perversão da relação pais-filhos. Se a criança deve aprender a viver por sua própria conta, acontece o mesmo com os pais que têm de assumir a sua vida e a sua análise em seu próprio nome. (p.127).
Vimos que muitos psicanalistas de crianças não concordam em receber os pais, nem mesmo esporadicamente, preferindo encaminhá-los a outro analista. Esta posição, entretanto, pode agora ser questionada na medida em que muitos pais têm a necessidade de falar com o analista do filho e não com um outro qualquer, ou seja, não podemos esquecer que os pais estão implicados nos sintomas do filho e é esta implicação que os "conduz" a querer falar com o analista da criança. O encaminhamento para outro "lugar" pode resolver um problema do analista, mas pode trazer problemas para o tratamento do cliente, isto é, os pais podem interrompê-lo ou "sabotá-lo" de diversas maneiras. Nos casos mais graves, tanto o pai como a mãe podem simplesmente surgir, impetuosamente, na frente do analista e, algumas vezes, no horário reservado ao filho. Assim,
... dependendo da angústia que a análise da criança desperta nos pais, negar a possibilidade de recebê-los em nome, muitas vezes, de uma "pureza" técnica, tanto pode criar obstáculos sérios ao ritmo do tratamento da criança, se ela entrar num estado de insegurança em face de continuação do mesmo, como pode até interrompê-lo, mesmo que a criança expresse sua vontade em prosseguir. (Priszkulnik, 1993, p.68).
Ao receber os pais para uma entrevista, devemos ouvir o que eles têm a dizer, tentando também relacionar com o tratamento do filho. Quanto mais pais e filhos estão implicados entre si, tanto mais perceberemos que um pode estar falando no "lugar" do outro como se não fossem "donos das próprias palavras" apesar de falarem, às vezes, até demais. Deste modo, tanto os pais podem fazer a criança "falar por eles", como a criança pode fazer a mãe ou o pai "falar por ela". Esta forma direta de receber a mensagem dos pais facilita colocar as palavras nos seus devidos "lugares", ou seja, ajudar tanto a criança, como os pais a conseguirem falar em nome próprio.
Assim, a questão de saber se o psicanalista infantil deve ou não receber os pais, ou se estes devem ou não aparecer na cena analítica, coloca, como sublinha Mannoni (1977, p.125), um falso problema porque, ou através do discurso da criança, ou surgindo realmente na frente do analista, eles sempre aparecerão. A aceitação da presença deles, numa situação da realidade, colabora no trabalho com a criança e, muitas vezes, é o que dá condições de se chegar ao término da análise da criança.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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