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Psicologia USP
On-line version ISSN 1678-5177
Psicol. USP vol.6 no.2 São Paulo 1995
ARTIGOS ORIGINAIS
A RELAÇÃO PSICOTERAPEUTA-CLIENTE
Maria Helena Raimo Caldas de Oliveira
Em psicoterapia psicanalítica, a relação psicoterapeuta-cliente constitui-se no espaço onde os fenômenos do processo psicoterapêutico acontecem. Trata-se de uma relação essencialmente interativa, em que os participantes influenciam-se e transformam-se reciprocamente, no contínuo movimento dialético em que se dão as aproximações ao fato psíquico, o alvo da busca empreendida por ambos.
Esse espaço interrelacional se estrutura a partir do assim chamado enquadramento psicoterapêutico, que nada mais é que um conjunto de "normas", que vão acabar funcionando como determinantes do "campo" (Baranger & Baranger, 1961-1962) da situação psicoterapêutica. Fundamentalmente, tais normas incluem: a) a proposta de trabalho, a mais importante delas, sem dúvida, que resulta na assunção do compromisso por ambos, psicoterapeuta e cliente, e na configuração dos papéis de um e outro; b) a estruturação espacial e temporal do ambiente psicoterapêutico, ou seja, tudo quanto diga respeito à determinação do local de atendimento e dos horários em que os encontros entre os participantes vão ocorrer; e c) no caso específico de psicoterapia de base psicanalítica, como, de resto, é aquela à qual esse texto diz respeito, uma certa dose essencial de ambigüidade, no sentido de possibilitar a evidência dos chamados movimentos transferenciais e contra-transferenciais. O enquadramento tem importante significado no processar-se da interação psicoterapêutica. A observância a seus requisitos pode permitir ao paciente a experiência aliviante, reasseguradora e potencialmente transformadora de que o psicoterapeuta "permanece" e a relação não se destrói pelas eventuais manifestações de seus movimentos psíquicos sentidos como ameaçadores. Por outro lado, Bleger (1967) sugere um enquadramento nunca rompido como um depositário da simbiose da dupla, já que "sempre está" e, por isso, não pode ser percebido, porque "nunca falta". Nestes termos, eventuais rupturas do enquadramento trariam, por vezes, a oportunidade de pôr em evidência aspectos psicóticos do par, o qual, de outro modo, deles não se daria conta.
No campo de forças assim circunscrito emergem e movimentam-se a transferência e a contra-transferência.
Freud (1912) fala-nos do fenômeno da transferência em situação de análise como sendo o do investimento, por parte do paciente, de impulsos libidinais ou de hostilidade, que se tenham mantido fora do desenvolvimento psíquico. Esses impulsos, impedidos de expansão ulterior, exceto em fantasia, permanecem inconscientes e, na situação analítica, dirigem-se à figura do analista. A transferência conteria uma dimensão de resistência ao tratamento, na medida que se constitui numa repetição de protótipos passados de relações do indivíduo. Ao mesmo tempo que designava a transferência como um "perigo" para a análise, se tomada em seu vértice de resistência, Freud a considerava o melhor instrumento para o trabalho analítico. Em sua essência, o fenômeno vem-se constituindo, até hoje, no eixo da prática psicanalítica, embora sua conceituação tenha sofrido alguns acréscimos ou algumas modificações, ao longo do tempo, por outros teorizadores da Psicanálise. Se Freud afirmou, inicialmente, impulsos libidinais e hostis na transferência, Strachey (1934), afirmou que ela seria uma reedição de relações com objetos internos. Um pouco mais tarde, Klein (1951) postula que ela se constitui de todas as experiências, angústias e emoções que a situação analítica desencadeia. A formulação kleiniana é a de que, na situação de análise, o paciente lida com os conflitos e ansiedades que foram ativados, utilizando-se dos mesmos mecanismos de defesa, tal como em situações anteriores. Se a transferência, como diz ela, opera ao longo de toda a vida e influencia todas as relações humanas, é no setting psicoterapêutico, dada sua especificidade, configurada pelo enquadramento, que ela pode evidenciar-se mais claramente. Ao mesmo tempo que tem aspecto regressivo, não há como não reconhecer também seu aspecto progressivo (Marcondes, 1980), ou seja, a repetição implícita na transferência teria, por outro lado, o caráter de busca de superação das vicissitudes historicamente repetidas. Um aspecto construtivo, portanto, e que se traduziria, por exemplo, no próprio fato de o paciente vir às sessões, inequívoca expressão de esperança, em última instância. A mesma esperança do psicoterapeuta, ao elegê-la como o foco do trabalho.
A contra-transferência, em termos gerais, diria respeito às reações do psicoterapeuta ao cliente. Inicialmente considerada por Freud (1910) como indesejável, se não, mesmo, impeditiva do processo analítico, constituindo-se, para ele, num sintoma de "complexos e resistências" não superados do analista, a contra-transferência é tida hoje como valioso recurso potencial na prática de psicoterapia. Muito tem sido escrito sobre o tema, e há bastante imprecisão conceitual a respeito. Heimann (1950), por exemplo, propõe como contra-transferência tudo quanto o psicoterapeuta experiencie em relação ao paciente, partindo do pressuposto básico de que "o inconsciente do analista entende o do paciente." (p.82). Há formulações mais discriminativas, como a de Racker (1959), para quem os fenômenos contra-transferenciais englobariam tanto as experiências emocionais do psicoterapeuta decorrentes de reativação, pelo contato com o paciente, de conteúdos inconscientes, como suas reações àquilo que o paciente projeta sobre ele. Diz ele, ainda, que transferência e contra-transferência representam dois componentes de uma unidade, "que se dão vida reciprocamente" (p.95), criando o aspecto interpessoal da relação analítica.
De maneira genérica, é possível afirmar que o processo psicoterapêutico envolve inevitavelmente a interação de duas psicologias e que, nos dias atuais, é largamente aceito que as experiências íntimas do psicoterapeuta muitas vezes propiciam caminho precioso para a compreensão das experiências íntimas do paciente. Ferro (1995) é um dos autores recentes que defendem o ponto de vista de que o funcionamento mental do paciente não é independente do funcionamento mental do analista, mencionando os sonhos de contra-transferência como de vital importância para esclarecer as mais profundas inter-relações do par. Evidencia-se, portanto - talvez nem haja que dizer - o caráter determinante da análise do próprio analista.
Qual a função da relação psicoterapeuta-paciente?
A resposta à pergunta corresponderia à caracterização da natureza da ação psicoterapêutica dos acontecimentos que fluem no espaço criado pelas duas subjetividades em interação, o que, obviamente, vai depender das nuances dos pressupostos teóricos de desenvolvimento emocional de que se parte. Em termos gerais, porém, se admitirem as constantes projeções sobre o psicoterapeuta, é possível esboçar o significado da função "continência" da relação.
Um dos mecanismos mais arcaicos de que o ser humano lança mão desde cedo, no movimento ininterrupto pela sobrevivência psíquica, foi descrito por Klein (1946), que o chamou de identificação projetiva. A parte não desejada do eu é "expelida" e projetada, para ser reintrojetada se puder ter sido "contida" e "reapresentada" de maneira suportável. Este processo, fundamental para o desenvolvimento, pode passar a doentio, se se perpetuar como mecanismo defensivo. Uma vez realizada a cisão no eu e a correspondente cisão no objeto, dá-se a projeção sobre o outro, e a relação, a partir daí, pode ser experienciada como extremamente persecutória, muito "carregada" do ponto de vista emocional, exatamente por força de ser extremamente primitiva, de raízes que se consideram, por isso, de natureza psicótica. Este mecanismo pode levar ao estabelecimento de uma complementaridade de ordem tal numa relação entre duas pessoas que muitas vezes surte efeito reciprocamente aprisionante. Suportar estas projeções constitui a função "continência" do psicoterapeuta. Se ele as puder acolher, compreender e explicitá-las ao paciente de maneira acessível, estará possibilitando a ruptura de um círculo vicioso. O paciente terá a oportunidade de reintrojetar o que foi projetado e desmistificar a fantasia que gerou a angústia em razão da qual a defesa foi acionada. O vai-e-vem deste movimento, espera-se, acabará revertendo no movimento em direção à integração psíquica.
Já Winnicott (1955) concebe psicoterapeuta e cliente como integrantes de um processo mais amplo no setting clínico, no qual cada um está sendo constantemente "criado" e "descoberto" pelo outro. Esta reciprocidade cria novo dinamismo dialogal, que é mais do que mera relação objetal na transferência. Esta, para Winnicott, é o campo constitutivo das experiências que vão possibilitar o sentimento de "existir no mundo" buscado pelo paciente. Tanto quanto na relação mãe-bebê, engendra-se um espaço em que o paciente "cria" constantemente o psicoterapeuta que ali está, disponível para ser "criado", num processo dialético que tende a possibilitar a experiência de realidade compartilhada imprescindível para o que Winnicott chama de humanização do ser. Se à ilusão de domínio criativo do mundo se suceder a desilusão paulatina e não-intrusiva da apreensão da realidade "do outro", o caminhar em direção à individuação, ao exercício da alteridade far-se-à, com maior probabilidade, sem graves tropeços e de maneira criativa. "É só através do encontro com outro ser humano que haverá a possibilidade de ocorrer o contato com a própria verdade [do sujeito] e também a evolução e simbolização da vida psíquica." (Safra, 1995, p.21).
Um breve recorte, o deste pequeno texto, num assunto vasto e a respeito do qual muito se tem refletido, ocioso é dizer, já que se trata do próprio cerne da teoria da técnica psicanalítica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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