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Revista Brasileira de Orientação Profissional

On-line version ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.22 no.2 Campinas July/Dec. 2021

https://doi.org/10.26707/1984-7270/2021v22n209 

10.26707/1984-7270/2021v22n209

SEÇÃO ESPECIAL

 

Projeto de vida: Sob o signo da reinvenção da escola1

 

 

Simone André

Especialista em Educação

Endereço para correspondência

 

 

É surpreendente o quanto saber projetar o futuro e projetar-se nele pode transformar vidas. Não por acaso, essa competência está entre as grandes finalidades da proposta de educação integral, que vem sendo construída por um coletivo cada vez maior de educadores em nosso país. Os pioneiros3 começaram na década de 1930, ainda no século passado, e desde então, vêm se multiplicando na história da educação brasileira, até alcançar aqueles que como eu, começamos a pensar políticas de juventude. A intenção era construir caminhos para que a primeira geração da Onda Jovem – fenômeno que entre 1995 e 2005 marcou a predominância de jovens na pirâmide demográfica do Brasil – conquistasse um lugar de protagonismo no seu projeto de vida, na educação e no mundo ao seu redor. É um privilégio saber-me uma entre tantos a fazer essa história, cuja culminância aconteceu na segunda década dos anos 2000, quando as experiências e evidências acumuladas sobre projetos de vida nas escolas incidiram na recém construída legislação que orienta os currículos no Brasil, a Base Nacional Comum Curricular.

Essa imensa conquista geracional, que coloca o projeto de vida dos estudantes no centro das políticas educacionais, não nos exime de seguir investigando e empurrando as fronteiras de qualidade na educação de jovens. Há ainda muito o que construir. Por que trabalhar com projeto de vida nas escolas? O que é projeto de vida? Como educadores e estudantes estão se apropriando dessa nova oportunidade formativa? Essas três questões nos guiarão ao longo desse artigo, sem pretensão de esgotá-las. O convite, aqui, é explorar o propósito, o conceito e as metodologias que envolvem o projeto de vida, para alcançarmos seu potencial de transformar a escola, a profissão docente, as escolhas dos estudantes e a paisagem educacional contemporânea.

A crise de propósito

O projeto de vida nasce como parte das políticas educacionais brasileiras sob o signo da reinvenção da escola e da urgência de ressignificar o propósito de educar. Como dissemos, os atuais orientadores curriculares4 apostam alto nesse potencial transformador. Preconizam a construção e concretização de projetos de vida pelos estudantes como o objetivo maior de uma educação integral e atribuem centralidade ao projeto de vida nos novos currículos de formação de jovens. Por que a educação de jovens precisa tanto dessa aposta? Projeto de vida é busca de propósito, sentido e valor nas nossas escolhas. E nossa sociedade, hoje, está em crise em relação ao propósito, sentido e valor de educar. Nunca antes houve maior desagaste da escola, tal qual a conhecemos. Nunca antes houve maior necessidade de reinventá-la. É a chamada crise educacional. A crise educacional vem afetando sensivelmente a relação de estudantes e educadores com a escola. A pandemia da covid 19 aprofundou-a e revelou urgência de agirmos sobre ela, sob risco de perdermos a escola, não somente como espaço de aprendizagem, mas também de equidade, coletividade e desenvolvimento integral.

A jornada dos estudantes que mais precisam da escola

A relação dos estudantes com a escola está por um triz, mal se construiu com a universalização do acesso à educação, e hoje dá sinais claros de que é preciso bem mais do que colocar o estudante no centro da aprendizagem para resgatá-la. É necessário, para a escola sobreviver à terceira década do século 21, que esse estudante tenha vínculo, pertencimento, voz, participação e projeto de vida conectado à escola.

Começando pelos jovens que são maioria e mais precisam da escola. Aqueles que percorrem suas jornadas na vida em meio a altos obstáculos aos seus projetos de futuro e que contam com redes de proteção frágeis na família, na sociedade e no estado. São eles os que mais frequentemente desistem da escola antes de terminar o ensino médio e, por vezes, ainda nos anos finais do fundamental. Isso faz do Brasil um país de baixa mobilidade social5, onde são reduzidas as chances de os filhos de pais com pouca escolaridade estudarem mais do que eles.

A desistência dos estudos acontece, sobretudo, porque esses estudantes perdem o sentido de estar em escolas onde são invisíveis, aprendem pouco, sofrem discriminações, não são escutados, nem participam da solução dos problemas. Nessa situação, estudar não faz frente à pressão pelo trabalho precoce e doméstico. Sobretudo as adolescentes pretas ou pardas, pobres, moradoras das periferias urbanas e com pouco acesso à internet. Elas são maioria entre os candidatos a sem-sem – sem oportunidades de estudo e trabalho –, injustamente chamados de nem-nem6, o que nos levaria a crer que não têm interesse em estudar e nem trabalham, como se estivessem à toa na vida, quando apenas um em cada 10 deles não está engajado com trabalho ou estudo. Outros três desses 10 jovens sem-sem, seguem buscando trabalho e seis em cada 10 deles – a maioria – se ocupam produtivamente movidos pela sobrevivência, seja na informalidade ou cuidando da casa, dos irmãos, dos filhos precoces, do adiamento de sonhos que sequer chegaram a sonhar.

Aqueles que concluem o ensino médio, apesar das adversidades, em sua maioria, o fazem sem aprender o necessário para navegar na vida profissional, cidadã e pessoal. Ganham a certificação, mas não o diferencial para uma passagem menos turbulenta ao mundo do trabalho e à concretização de suas aspirações. Em suma, entre os mais pobres, a ausência do diploma na educação básica aprisiona a vida, desde muito cedo, no mundo árido e incerto da sobrevivência, enquanto a conquista dele, grande parte das vezes, não é suficiente para darem o próximo passo na jornada de desenvolvimento de seu potencial.

Se pensarmos o projeto de vida assim, como uma jornada, cada obstáculo a torna mais difícil. Os obstáculos que restringem as oportunidades das pessoas se desenvolverem e usufruírem do progresso social foram mapeados pelo Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em cinco fatores7. Primeiro, a geografia, ou seja, o território onde vivem, que define de antemão, a qualidade de moradia, saneamento, transporte, serviços públicos, acesso à internet. Nascer e viver em bairros ou países periféricos é o primeiro obstáculo em suas jornadas. Segundo, a identidade, ou seja, cor, gênero, idade, aquilo que define quem são e os torna alvo de discriminação. Ser mulher, preta e jovem é outro obstáculo que, de largada, limita o caminhar. O terceiro obstáculo é o status socioeconômico, que se revela pela renda, escolaridade e acesso à proteção social. Ser pobre, estudar em escolas de baixa qualidade e não ter direitos assistenciais assegurados são montanhas perigosas na jornada dessa juventude. Ainda temos um quarto obstáculo: a ausência de espaços de participação e influência nas questões que afetam suas vidas. E o quinto obstáculo é o quanto estão vulneráveis a crises econômicas, climáticas, sanitárias. Nem é preciso lembrar quem são os jovens mais afetados pela pandemia da Covid 19: mulheres, negras, periféricas, pobres, com vínculo frágil com a escola, que vivem em países negacionistas.

Com inspiração nessa perspectiva não-meritocrática de considerar a jornada de vida dos jovens desprivilegiados, e sem minimizar as adversidades que enfrentam, chegamos a um desenho que fala por si só. Cada um dos fatores elencados anteriormente são um Everest na jornada desses jovens, quando projetamos sua trajetória em busca de conquistas básicas como educação e trabalho, nos deparamos com toda a Cordilheira do Himalaia.

Essas juventudes – apesar das condições adversas de origem, discriminação, escolaridade e trabalho – são diversas e não deixam de fazer valer seu potencial. Em 2020, dois estudos8 mapearam as personas de jovens que vivem suas jornadas sob condições altamente desafiantes. Essas personas mostram a diversidade e singularidade das juventudes. No contexto do GOYN/SP, esses jovens, não por acaso, são chamados de jovens potência, e suas personas foram construídas a partir da proatividade em estabelecer e buscar seus objetivos de futuro. Uma das personas são Focadxs, que priorizam os estudos, são autodidatas para superar lacunas de formação, têm maior clareza de seus sonhos, trabalham duro para viabilizar o acesso ao ensino superior, buscam empregos com satisfação pessoal, acreditam em construir um futuro melhor que seus pais. Outra persona representa jovens Idealistas, que se engajam emocional e produtivamente em seus territórios, com alta participação em políticas e projetos sociais, cujos projetos de futuro buscam melhorar suas vidas e dos que os cercam. Identificam, também, jovens Correria, que pensam no curto prazo, priorizam a sobrevivência, em detrimento da escola, mantendo a esperança de que seu esforço imediato pode melhorar a sua vida e a de sua família. E, também, Desesperançosxs, jovens que enfrentam as batalhas cotidianas, um dia após o outro, com foco em atender necessidades ainda mais imediatas, com baixa conexão com a escola e maior dificuldade em projetar seu futuro, expondo-se ainda mais ao desemprego e à informalidade.

Na pesquisa Juventudes, Educação e Projeto de Vida, o desenho das personas de estudantes de escolas públicas das classes C, D e E tem mais foco no mapeamento da relação entre projetos de vida e escola. Esse estudo serviu de fonte ao estudo anterior e, portanto, as personas são bastante parecidas: Os Autoconfiantes, que são da classe C, têm maior apoio familiar, conseguem aprender na escola como ela é (ou melhor, foi, antes da pandemia), admiram adultos batalhadores e têm como sonho maior entrar na universidade, ainda que não saibam bem o que farão depois. Os Resignados, mais preocupados em fazer planos de curto prazo para o trabalho, resignando-se com a escola como ela é/foi, apesar de não ver ponte entre ela e o trabalho. E Desesperançosos, persona comum aos dois estudos, pertencentes em sua maioria às classes D e E, têm muita dificuldade em construir sonhos e objetivos de futuro, são pouco apoiados em suas famílias, não se inspiram em nenhum ideal adulto e apontam a necessidade de mudanças na forma de ensinar e aprender na escola, em especial, em relação à escuta e participação.

O que esses jovens, que têm uma jornada tão desafiante pela escola, buscam nela? Segundo a pesquisa, eles "buscam espaços de escuta e socialização, com ênfase no acolhimento de suas dificuldades na escola, desafios pessoais e aspirações profissionais". Demandam, para isso, um ambiente escolar organizado e com menos conflitos, que faça frente ao que a pesquisa identifica como "a sensação de solidão do jovem na escola". Acolhimento e escuta aparecem, aqui, como caminhos de solução para a evasão escolar, motivada pelo desinteresse, baixo desempenho, pela falta de acolhimento e por problemas pessoais. Entre esses motivos, é importante "escutar" o que está por trás do baixo desempenho: está "associado à vergonha de pedir ajuda, assim como a falta de apoio de professores, diretores e colegas", que impulsionam o desejo de abandonar. E os pesquisadores concluem: "Exatamente por estar combinada à falta de escuta, a maioria dos que evadiu não comunicou a ninguém a decisão, assim como não foram procurados quando começaram a faltar às aulas. Uma vez fora da escola, o desafio do retorno passa pela falta de tempo e motivação de enfrentar uma dinâmica escolar distante da realidade dos jovens".

Um terceiro estudo9, mapeia o perfil socioemocional dos millenials brasileiros urbanos, entre 15 e 24 anos. Se do ponto de vista acadêmico esses jovens sofrem com lacunas básicas geradas pela educação deficitária, do ponto de vista socioemocional, existem evidências de que, independentemente da situação educacional e ocupacional, eles cultivam níveis relativamente altos de autoestima (a percepção que as pessoas têm de si), autoeficácia (confiança de que são capazes de se organizar para atingir seus próprios objetivos) e perseverança (a capacidade de continuar, apesar dos obstáculos), entre outras, que lhes permitem ser otimistas quanto às possibilidades de concretizar seus sonhos.

A oportunidade de aprender na escola a projetar-se no futuro, de forma intencional, fortalecendo e ampliando essas dimensões socioemocionais, poderia alavancar as juventudes potência diante de suas difíceis jornadas? Nossa hipótese é que, sim, contar com a escola como parte de sua rede de apoio poderia ampliar a mobilidade social entre os jovens que mais precisam e, mais que isso, seria um salto importante para mudar a escola. Nessa hipótese, o conceito de inclusão iria bem além de construir projetos de vida para que os estudantes "sobrevivam" na escola como ela é. Inclusão, aqui, passaria também pela necessária reinvenção da escola, com o protagonismo desses jovens, para dar abrigo às experiências, vivências e aspirações desses e de todos, sem exceção.

Nas jornadas privilegiadas também existe fome de sentido

A falta de sentido sobre o lugar da escola na definição de projetos de futuro também afeta estudantes de classe média ou alta. Um estudo recente10 conduzido pelo Núcleo de Pesquisas em Novas Arquiteturas Pedagógicas, da Universidade de São Paulo, a partir de escutas estruturadas de jovens brasileiros entre 15 e 19 anos, de diferentes níveis socioeconômicos, sendo que 20% deles eram de nível médio-alto, não identificou diferenças significativas entre eles nos modelos de organização de seus projetos de vida. No geral, 60% do total não foram estimulados a encarar seu futuro e agir concretamente para intuí-los, criá-los, construí-los. Os modelos predominantes de organização de seus projetos de vida foram considerados frágeis e idealizados. Ou seja, eles encaram a vida como uma "progressão natural" que não depende de suas escolhas ou ainda visualizam trabalhos e famílias perfeitos, descolados da realidade. Além disso, 50% desses jovens não têm projetos de vida comprometidos com o outro ou o coletivo. A conexão entre a escola e suas realizações futuras tende, também, a ser frágil, idealizada e individualizada.

Esse cenário, comum a estudantes muito ou pouco privilegiados, é o que precisamos e podemos remodelar na educação brasileira: quando os estudantes perdem ou, simplesmente, não têm a oportunidade de construir na escola o sentido de estar lá, de aprender, se descobrir e sonhar e ganhar repertório para concretizar projetos de futuro.

Os educadores também precisam de um projeto de vida

A relação dos educadores com a escola também está desgastada. São fartas as pesquisas11 que mostram os desafios da profissão docente e as oportunidades que temos de ressignificar a carreira e a formação dos educadores, se quisermos levar a sério a busca de qualidade na educação. Em sua jornada ao longo da profissão docente, muitos educadores não a escolhem por ter a educação como propósito ou um projeto de vida intencionalmente formulado. Os candidatos a professores são, em sua maioria, os jovens batalhadores das classes C, D e E que veem nos cursos superiores de Pedagogia ou Licenciatura uma chance acessível de mobilidade social, por serem fáceis de entrar e concluir, mas nem sempre movidos pelo desejo de serem educadores. Esses jovens fazem sua formação inicial, geralmente em faculdades privadas, predominantemente a distância, em cursos excessivamente teóricos e pouco conectados com o que realmente precisam saber e fazer para serem bons professores.

Depois de supostamente formados, são recebidos em redes de ensino que direciona os menos preparados para as escolas mais periféricas e menos equipadas, onde estudam os jovens que mais precisam de bons professores e recursos. Sem formação em serviço para a realidade que irão enfrentar, em média, depois dos quatro primeiros anos de docência, ganham os vícios que os permitem driblar as péssimas condições de trabalho12 e perdem a chance preciosa de construir as capacidades que só se consolidam com a prática docente orientada. Com essas condições, as possibilidades de as formações continuadas suprirem as lacunas acumuladas desde o Ensino Médio até a formação inicial e em serviço nos primeiros anos de docência, são pequenas.

Por isso, precisamos valorizar muito o mérito de professores, gestores escolares ou secretarias de educação que consegue superar esses imensos obstáculos e levar aos estudantes o melhor de si para aprenderem e se desenvolverem. E não o fazemos. Esses profissionais, quando são premiados, é com promoções que os tiram da sala de aula e da escola, como se estar lá fosse um castigo. Como sociedade, estamos aprendendo a duras penas, o pouquíssimo valor que damos aos educadores, à educação e, como consequência, à ciência13.

Professores que conheçam, escutem e acolham os estudantes

Segundo a Base Nacional de Formação Docente14, outra enorme conquista construída como decorrência da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as políticas de formação dos professores brasileiros – inicial, em serviço e continuada – precisam desenvolvê-los em três dimensões: conhecimento, prática e engajamento profissional, além de desafiar as propostas formativas a construir com os educadores as mesmas 10 competências gerais15 previstas na BNCC para seus estudantes.

A dimensão do conhecimento profissional envolve competências que se desdobrarão em práticas e no engajamento com a docência, como projeto profissional intencionalmente construído pelos educadores. Se focarmos apenas nas competências de conhecimento profissional, observamos que vão desde o já esperado domínio de sua área de conhecimento e de como planejar o ensino, até expectativas que raramente são construídas com os docentes, como o conhecimento das singularidades de seus estudantes, de como eles aprendem, do contexto da escola e, não menos importante, do conhecimento de si mesmos, de modo que protagonizem seu desenvolvimento docente. Esse conjunto integrado de competências docentes a serem construídas intencional e continuamente com os educadores, é decisivo para que o projeto de vida dos estudantes ganhe presença real nas práticas docentes.

Grande parte dos educadores e decisores públicos considera que são muitas as dificuldades de implementação desses aspectos inovadores da BNC Docente e da BNCC. Uma escuta estruturada16 realizada pelo Instituto Reúna – preocupado com a coerência no desdobramento da BNCC em currículos, formações, materiais didáticos e avaliações – revelou o grau de dificuldade percebido por especialistas e atores escolares na implementação das 10 competências gerais da BNCC. Em cada 10 respondentes, sete consideram difícil a implementação da competência 6, que envolve projeto de vida e mundo do trabalho. O que eles alegam? Um dos argumentos é que essa competência requer muita autonomia, tomada de decisão e resiliência de toda uma geração de educadores que nunca antes foi formada para isso. Outras duas competências em que os respondentes foram unânimes em indicar desafios de implementação envolvem autoconhecimento, autocuidado (competência 8), empatia e cooperação (competência 9). Uma das justificativas é que essas competências extrapolam o campo pedagógico, por supostamente envolverem aspectos psicológicos, como a personalidade. É comum confundir uma competência socioemocional17, como essas que citamos acima, com um traço de personalidade, mas são coisas distintas. Apesar de serem consideradas difíceis de desenvolver, as competências socioemocionais não fogem ao campo educacional. Pelo contrário, são inerentes ao ato de educar e à cognição.

Essas competências são claramente indispensáveis para que os educadores medeiem a construção de projetos de vida com seus estudantes, lembrando o quanto a percepção de dificuldade em relação a elas é consistente com o fato de que um dos preditores de abandono dos estudos é a solidão dos estudantes na escola, quando privados de relações de acolhimento e escuta. Como não contar com professores que conheçam, escutem e acolham seus estudantes como primeiros passos para construir com eles seus projetos de vida? Esses três passos, estão ao alcance de todos os educadores, custam pouco e fazem muita diferença para os estudante que mais precisam e para que educadores se (re)conectem com seus próprios projetos de vida.

Projeto de vida, sob o ângulo de uma competência

Podemos olhar o que é projeto de vida por diferentes ângulos. Aqui, escolhemos a perspectiva do projeto de vida como competência, como a capacidade de se projetar no futuro. Um olhar que nós, humanos contemporâneos, somos provocados a fazer, principalmente, na adolescência e juventude. Por ser uma competência, é passível de ser ensinada e aprendida, na escola – espaço de excelência para isso, pelo seu caráter universal e equitativo – ou fora dela.

Como todo e qualquer objeto de ensino, aprender a construir e concretizar projetos de vida pode servir a diferentes propósitos educacionais. Os mais comuns são entender o projeto de vida para a definição de uma profissão – com um caráter mais instrumental – ou para dar um rumo na vida de jovens que desajustados, com um caráter mais "ortopédico". Não são essas a proposta dos norteadores educacionais. A perspectiva, aqui, é de educação integral, de construção pelos estudantes, com mediação de educadores, de uma narrativa empoderadora das juventudes, entendidas como plurais e singulares.

Aprender a ser movido por um propósito, por objetivos que se enraízam firme em quem são os estudantes (sua identidade, origem, cor, etnia, gênero) e que os motivam a buscar conhecimentos, a estabelecer metas, a dedicar esforço, criatividade e abertura ao novo para insistir, persistir, construir apoios, crescer na adversidade, lidar com a incerteza. E, ir além, ultrapassar-se, buscando o melhor para si e, também, para o coletivo. É a postura de que o mundo só estará bom para mim se estiver bom para todos. Não é simples construir essas capacidades. Por isso, é preciso que sejam trabalhadas de forma profissional, num itinerário intencional, focado, sequencial, ativo, explícito.

Pensado como componente curricular, já de um outro ângulo, uma definição possível de projeto de vida, inspirada em psicólogos como William Damon18, educadores como Antonio Carlos Gomes da Costa e em minha própria experiência é descrita a seguir.

Entendemos o Projeto de Vida como a construção de um conjunto de objetivos de futuro, voltados à realização pessoal, cidadã e profissional, que organiza e motiva a vida presente, permitindo que o jovem faça escolhas fundamentadas em sua identidade, planeje objetivos de médio e longo prazos, que sejam relevantes para si e o coletivo, e se engaje nas atividades necessárias para sua concretização, persistindo em seu alcance, mesmo em situações adversas ou incertas.

Para finalizar todas essas reflexões, voltamos ao início, lembrando que com a adoção da visão de educação integral nos currículos brasileiros, o propósito de educar muda, deixando para trás a educação conteudista, fragmentada, distante das aspirações juvenis, distante dos anseios dos professores. A busca de uma educação integral é de conexão com os desafios e aspirações dos estudantes, com os propósitos da profissão docente, com conhecimentos e competências para resolver problemas que afetam a vida individual e coletiva. Nesse contexto, o projeto de vida é o principal componente curricular para construir conexões, propósito e sentido na escola.

 

 

Endereço para correspondência:
Rua João Ramalho, 278/102
São Paulo/SP
CEP: 05008-001

 

 

Sobre a autora:
Simone André é Especialista em Educação, mentora e consultora para Políticas Educacionais voltadas à educação integral, inovação curricular, desenvolvimento profissional docente e desenvolvimento socioemocional. Atua junto a organizações do Terceiro Setor, Secretarias de Educação, escolas e startups. É membro do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular. Atuou como gerente executiva e expert em Educação no Instituto Ayrton Senna. Foi membro da Cátedra Unesco em Educação e Desenvolvimento e coautora do livro Educação para o Desenvolvimento Humano.
E-mail: simonealbehy@gmail.com
1 Conteúdo derivado da Conferência intitulada "Projeto de vida: foco em vivências de educadores e de estudantes" proferida por Simone André na III Jornada Vida e Carreira: Projeto de Vida na Educação básica, realizada em 07 de maio de 2021.
3 Manifesto dos pioneiros da escola nova. https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_dos_Pioneiros_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_Nova
4 A Base Nacional Comum Curricular, elege o projeto de vida como a 6ª competência geral e propõe a construção do projeto de vida como compromisso maior de uma escola que acolhe as juventudes; as Diretrizes Nacionais Curriculares para o Novo Ensino Médio trazem o projeto de vida dos estudantes como princípio orientador; a Frente de Currículo e Novo Ensino Médio do Consed, orienta que seja destinada carga horária específica para seu desenvolvimento nas escolas. Conforme: BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018; BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução CNB/CEB nº 3, de 21 de novembro 2018. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; Frente de Currículo e Novo Ensino Médio. Fundamentos do Ensino Médio. Brasília, 2019.
5 Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social. Mobilidade intergeracional de educação. 2021. https://imdsbrasil.org/
6 Banco Interamericano de Desenvolvimento. Millenials na América Latina e no Caribe: Trabalhar ou estudar. 2018.
https://publications.iadb.org/pt/millennials-na-america-latina-e-no-caribe-trabalhar-ou-estudar-sumario-executivo
7 UNDP. What Does It Mean to Leave No One Behind? A UNDP discussion paper and framework for implementation, July 2018.
https://www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/poverty-reduction/what-does-it-mean-to-leave-no-one-behind-.html
8 Estamos nos referindo à pesquisa Juventudes, Educação e Projeto de Vida (Fundação Roberto Marinho e Plano CDE. Rio de Janeiro, 2020) e ao estudo realizado pelo Global Opportunity Youth Network/São Paulo (GOYN/SP), executado pela Accenture, chamado Desafios e oportunidades para inclusão produtiva dos jovens potência na cidade de São Paulo (http://www.goynsp.org/jovempotencia).
9 Banco Interamericano de Desenvolvimento. Millenials na América Latina e no Caribe: Trabalhar ou estudar. 2018.
https://publications.iadb.org/pt/millennials-na-america-latina-e-no-caribe-trabalhar-ou-estudar-sumario-executivo
10  Araújo, Ulisses F.; Arantes, Valéria; Pinheiro, Viviane. Projetos de vida: fundamentos psicológicos, éticos e práticas educacionais. São Paulo, Summus, 2020.
11  Os movimentos Todos pela Educação e Profissão Docente reúnem farta literatura sobre o tema. https://todospelaeducacao.org.br/?s=profiss%C3%A3o+docente
12  Moriconi, Gabriela; Gimenes Nelson; Príncepe, Letícia. Organização e volume de trabalho de docentes dos anos finais do ensino fundamental no Brasil: evidências a partir do censo da educação básica de 2013. Revista @ambiente educação, v.7, n.3, 2014.
http://publicacoes.unicid.edu.br/index.php/ambienteeducacao/article/view/499
13  No momento de conclusão desse artigo, estávamos perdendo mais de 4 mil vidas por dia para a COVID 19, em boa parte pelo nosso negacionismo.
14  Resolução CNE/CP, No 1, de 27 de outubro de 2020. https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cne/cp-n-1-de-27-de-outubro-de-2020-285609724
15  BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
16  Instituto Reúna. Consensos e dissensos sobre Alinhamento a Base Nacional Comum Curricular. 2021. Estará disponível no site institutoreuna.org.br, a partir de maio desse ano.
17  Sugiro como introdução ao tema da definição, do desenvolvimento e da avaliação de competências socioemocionais a trilogia de artigos publicados por mim no LinkedIn:
https://www.linkedin.com/pulse/o-que-%C3%A9-desenvolvimento-socioemocional-simone-andre
https://www.linkedin.com/pulse/como-desenvolver-compet%C3%AAncias-socioemocionais-simone-andre
https://www.linkedin.com/pulse/avalia%C3%A7%C3%A3o-socioemocional-o-desafio-de-olhar-educa%C3%A7%C3%A3o-forma-andre
18  Damon, Willian. O que o jovem quer da vida? – Como pais e professores podem orientar e motivar adolescentes. São Paulo, Summus, 2009.

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