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Mental
Print version ISSN 1679-4427
Mental vol.9 no.17 Barbacena Dec. 2011
ARTIGO
Esperando o Messias: reflexão sobre os bebês nascidos para curar um irmão
Expecting the Messiah: considerations about designer's babies to cure a sibling
Flaviana Estrela MarojaI; Agnès LainéII
IPsicóloga. Especialista em Psicologia e Psicopatologia da Perinatalidade e do Bebê pela Université Paris 5. Mestre em Medicina Científica, Psicopatologia e Psicanálise. Doutoranda em Pesquisas em Psicanálise pela Université Paris Diderot 7
IIDoutora em História pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne. Pesquisadora do Institut de Recherche pour le Développement (França)
RESUMO
Após o primeiro bebê de proveta, surgem, cada vez mais, novidades no campo da procriação que nos fazem refletir sobre o funcionamento psíquico das pessoas envolvidas. Este artigo objetivou refletir sobre a gravidez programada na esperança de dar à luz um recém-nascido compatível para curar a anemia falciforme de um filho mais velho. Foram realizadas três entrevistas com grávidas portadoras do gene da anemia falciforme. Por meio da análise, constatou-se que o desejo de gravidez é voltado para a cura da doença da criança mais velha, e que a gravidez é desinvestida e pobre em representações sobre a futura criança. Assim sendo, observou-se a necessidade de novas pesquisas que abordem essa temática e avalie os possíveis riscos psicológicos.
Palavras-chave: Bebês-medicamentos; gravidez; psicologia; anemia falciforme; conselho genético.
ABSTRACT
Since the first test-tube babies, the pace of innovation is quickly increasing in the field of procreation. But all of these scientific discoveries of recent times make us reflect on the psychological effects on those involved. This article was aimed to reflect on planned pregnancy in the hope of giving birth to a child capable of helping to cure sickle cell anemia in an older sibling. Three recorded interviews were made with pregnant women who have had genetic counseling in sickle cell disease centers in Parisian hospitals. This study indicates that the woman's desire to become pregnant is dedicated to curing the serious disease of an older child. The pregnancy itself is disinvested and representations of the future baby are poor. Thus, further research is needed to understand this current issue and to evaluate psychological risks.
Keywords: "Designers-babies"; pregnancy; psychology; sickle cell disease; genetic counseling.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo trata sobre uma questão extremamente atual na Europa (ARDUIN, 2010; HERMANGE, 2008; POISSON, 2007; STEFFANN; FRYDMAN; BURLET, 2005) e muito pouco discutida no Brasil: os "bebês-medicamentos". Não foram achados artigos científicos sobre o tema, em português, na base de dados SciELO.
O "bebê-medicamento", "bebê-doutor", "bebê-salvador" ou "bebê de dupla esperança" é um bebê que é concebido com a intenção de salvar um irmão mais velho que tem uma doença genética grave. Após o parto, é feita uma coleta do sangue umbilical para um possível transplante se o recém-nascido for compatível com o doente. A presença de uma hemoglobina funcional pode acarretar a cura total dessa doença.
Nos Estados Unidos e em outros países europeus, essa técnica já data de uma década (ARDUIN, 2010). Na França, o primeiro "bebê-medicamento", um menino chamado "nossa esperança" (em turco) veio ao mundo em janeiro de 2011 (FRÉOUR, 2011).
Fomos confrontadas com essa questão a partir de um estudo intitulado: "A escolha dos pais e dos casais a risco frente à anemia falciforme", coordenado por Agnès Lainé. Este estudo teve por objetivo entrevistar casais ou mães após passarem pelo Conselho Genético para entender quais foram os motivos que os levaram a escolher um possível diagnóstico pré-natal e compreender também as representações em torno da doença. O Conselho Genético é composto por um médico e um psicólogo; os pacientes doentes ou portadores de uma doença genética podem receber informações sobre a transmissão genética, bem como pedir um diagnóstico pré-natal de tal Conselho. Alguns casais optarão também por uma interrupção de gravidez se o resultado se confirmar positivo (criança SS portadora da anemia falciforme). A lei francesa Veil-1975 (DAFFOS, 2003) permite o aborto até 14 semanas de amenorreia e a interrupção de uma gravidez ao longo de toda gravidez caso se comprove uma doença incurável e grave no feto.
1.1 Anemia falciforme
Mesmo sendo a doença hereditária mais comum no mundo, a anemia falciforme é extremamente desconhecida fora do meio médico. Nascem em todo mundo mais de 300 mil crianças, sendo que, na África, a metade não festejará os seus cincos anos (OMS, 2006).
A anemia falciforme (ou drepanocitose) é uma doença grave e incurável que afeta, em grande maioria, a população africana e seus descendentes. Essa doença causa a má-formação das hemácias, que assumem forma semelhante a foices (origem do nome da doença), o que causa deficiência do transporte de oxigênio nos indivíduos acometidos pela doença (GOLDCHER; GALACTEROS; BACHIR, 1997).
Nos indivíduos portadores da anemia falciforme, há a presença da hemoglobina S. Os heterozigotos que detêm apenas uma hemoglobina S não apresentam os sintomas da doença e não são considerados doentes. Porém, se a hemoglobina for formada por dois S, o sujeito é acometido pela anemia falciforme (SS). A doença é hereditária, tendo sido transmitida pelos dois pais AS ou SS. Quando os dois pais são AS, há 25% de chances de um nascimento de uma criança com anemia falciforme.
Além dos sintomas típicos de uma anemia como fadiga, palidez e olhos amarelados, os portadores de anemia falciforme podem sofrer de crises vaso-oclusivas (fortes dores nos ossos e nas articulações), infecções pulmonares, renais ou generalizadas graves, hemorragias, acidentes vasculares, entre outros sintomas. Os casos graves podem levar à morte devido às complicações. A esperança de vida é atualmente de 55 anos de vida (GOLDCHER; GALACTEROS; BACHIR, 1997).
2 MÉTODO
A pesquisa coordenada "A escolha dos pais e casais a risco de anemia falciforme" lida apenas com casais heterozigotos, portadores do traço genético transmissor. Este estudo objetivou avaliar se os pacientes recebidos no Conselho Genético obtiveram informações apropriadas pela equipe do hospital, bem como, entender a escolha ou recusa de um diagnostico pré-natal e intervenção médica de gravidez.
O estudo em questão é dividido nas seguintes etapas: após passagem pelo Conselho Genético, uma carta de informação sobre o estudo é enviada aos casais a risco. A mãe e/ou pai são contatados por telefone. Em seguida, uma entrevista em domicílio é proposta. Essa entrevista gravada é feita a partir de um roteiro semiestruturado, mediante autorização explicitada no termo de consentimento. As perguntas abordam as informações médicas recebidas no Conselho Genético, a história de vida, a gravidez atual e as representações sobre a doença.
A duração das entrevistas variou entre 30 e 120 minutos. Dessa forma, foram feitas, até fevereiro de 2011, mais de 30 entrevistas. Para análise qualitativa, foram selecionadas três entrevistas de mulheres grávidas e que já têm um filho doente de anemia falciforme. Nesses três casos, observamos que as três gravidezes foram explicitamente "encomendadas" para um possível transplante caso o bebê seja compatível.
3 UMA GRAVIDEZ PROJETADA SEM PROJETO DE CRIANÇA
Por trás da maioria das gravidezes, um projeto de criança é pensado. Podemos, inclusive, distinguir vários projetos de gravidezes. Algumas mulheres engravidam com desejo de se sentirem grávidas, testarem a funcionalidade de seu corpo. Já outras mulheres têm desejo de se tornarem mães, sendo a gravidez apenas um meio para uma finalidade maior. Ainda há aquelas que engravidam para se afirmarem mulheres. Bydlowski (1997) conceitua a primeira opção como desejo de gravidez, a segunda, como desejo de criança e a terceira, como desejo de ficar grávida no sentido de provar uma feminilidade.
Podemos propor mais um: desejo de procriar uma cura. Desejo este, em parte, um tanto incestuoso. Um filho para meu filho. Uma reparação para o filho narcisicamente debilitado, sendo o transplante um meio de poder finalmente transformá-lo no filho sonhado. Podemos também pensar que seria uma forma de acabar com a culpabilidade destes pais, de terem transmitido uma doença grave.
A partir de alguns recortes das entrevistas, discutiremos esse aspecto.
Sra. S., 28 anos, é a mãe de O., 3 anos, filho primogênito que sofre de maneira moderada com a anemia falciforme, foi entrevistada após sua passagem pelo Conselho Genético quando ela estava grávida de cinco meses sem complicações. Sra. S. e seu parceiro separaram-se logo após a primeira gravidez, dessa forma, O. fora registrado por um amigo de sra. S. Algumas semanas depois do nascimento, sra. S. recebeu a notícia de que seu filho sofre de anemia falciforme. Sra. S. não pôde fazer o luto do anúncio da doença e, até hoje, sofre muito. Depois de alguns meses, ela reencontrou o pai de O. que partira para trabalhar na Itália e conta sobre a doença. Mesmo vivendo uma relação instável, decidiram ter um novo filho na esperança de que seja compatível com O. após diagnóstico pré-natal, confirmou-se que o bebê esperado não era portador da doença e, sim, apenas do traço genético. Quanto à compatibilidade, ela só ficará sabendo após o parto.
Sobre o desejo de engravidar pela segunda vez, sra. S. me explica:
Ah, isso me incentiva a fazer outras crianças. Porque eu temo por meu filho. Um dia, quando a doença será mais dura, ele pode morrer. Não há nenhum remédio, nenhuma coisa. A única coisa que pode curá-lo é ter irmãos e irmãs compatíveis. Tem de ser filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Você entende? Não é fácil ter um filho doente. É por isso que eu queria ter mais filhos (...). Se você quer ajudar o seu filho que está doente, você ajuda. Não é um medicamento. Eles são duas crianças. Vai ajudar, é claro! Se o outro pode curá-lo, eu acho que é bom.
Sra. S. nos relatou, ainda, sobre sua culpabilidade:
Sinto-me culpada porque ele tem essa doença... pelo menos, se eu soubesse, eu sabia que ia fazer outra coisa, eu não estaria com o pai, eu sei, mas Deus quis.
Porque minha mãe me disse: "Tu tens que deixar o pai de O." E eu disse: "Eu não deixo o pai. Não, existe uma chance em quatro de que a criança será doente. Mas se ele não tem irmãos e irmãs, ah não tem remédio!
Outro exemplo é o da sra. B., 31 anos, que espera o seu segundo filho e, como a sra. S., vive uma relação instável com o pai de M. Ela atribui à doença difícil da filha o fato de o pai não querer mais morar com as duas. Sua filha portadora da anemia falciforme de forma grave é hospitalizada com frequência, e os últimos exames mostraram um Doppler encefálico com prognóstico difícil. Após uma consulta médica, descobriu-se a possibilidade de transplante. Ela nos relatou da seguinte forma seu desejo de engravidar para que a sua filha possa se curar definitivamente da drepanocitose:
Então, na verdade, como eu vivo uma relação como essa com ele, o fato de querer fazer um segundo filho é especialmente para ela. É por isso que eu tentei engravidar para ver se ele será compatível. Porque mesmo a gravidez, eu não aguento muito, ainda mais sozinha. Mas eu resisto, porque talvez o fim seja vitorioso para ela.
Entrevistador: Você está lutando, tanto para ela...
Sra. B.: e também por mim.
Sobre o marido, ela disse:
(...) Assim, como não estamos, muitas vezes, vivendo momentos de amor o tempo todo. Eu pensei que talvez amanhã ou depois de amanhã, estaremos separados, e, em seguida, M. Nunca terá a chance de ter um transplante. Eu não teria tentado. Obriguei-me a ter um bebê agora. Logo que percebi que ela poderia ser curada, eu comecei.
Entrevistador: Essa decisão de fazer um segundo filho... era porque você também queria um segundo filho para você?
Sra. B.: Não, não realmente. Não, não tenho vontade, no começo, eu não queria, eu não queria ter mais filhos. Eu queria cuidar dela, porque era difícil. (...) Uma segunda criança significa que eu não terei tempo suficiente para ela (...). Eu coloquei o implante para não ter um acidente nenhum. Eu não gostaria, pelo menos, até que ela pudesse ser autônoma e estável. Mas, ela não tem a saúde estável, então, logo que ouvi (falar do transplante), eu fiz. Agora, é preciso esperar, ver no que vai dar.
Sobre o sexo do bebê, obtemos a seguinte resposta:
Sra. B: Sim, me disseram que é um menino.
Entrevistadora: Você gostou?
Sra. B.: Não faz diferença. Isso não é o mais importante, para mim não faz diferença se é menino ou menina.
Ao deixar sua casa, perguntamos se a sra. B. já escolheu um nome. Sobre isso, ela nos responde: "Talvez Emanuel, ele será Emanuel se ele for compatível com minha filha, e se ele puder fazer qualquer coisa por ela. Este é o nome de Jesus".
Logo em seguida, ela me explica que este também é o nome do avô paterno e, acrescenta que se ele será compatível, ele será bem-vindo (o que é também o significado do nome). Percebe-se desinvestimento ao futuro bebê que não seja ligado à "cura" da doença de sua filha mais velha. A escolha do nome nos mostra que essa criança está, pelo menos, inscrita na filiação da família, na árvore da vida descrita por Lebovici (1999).
Esses relatos exemplificam mães que se sentem culpadas por terem trazido ao mundo um primeiro filho doente e conviver com o medo de perder seus filhos muito novos. Como meio de pagar a dívida e se sentir menos culpadas de ter transmitido a doença, essas mães ou casais buscam uma solução e aceitam pagar qualquer preço, como se unir não apenas por amor, mas para poder conceber uma criança compatível.
Sra. L., 28 anos, técnica de enfermagem, espera o seu segundo filho e estava no oitavo mês quando a entrevistei. Seu primogênito J., 4 anos, sofre de maneira grave com a doença, seguia um programa de transfusão sanguínea bimensalmente e, atualmente, faz uso de hidroxiureia o que suavizou as complicações da doença. Ele era hospitalizado frequentemente, obrigando sua mãe a optar por um trabalho mais flexível.
O anúncio do diagnóstico foi um choque para ela, principalmente porque a ideia no seu país de origem (República Democrática do Congo) é que a drepanocitose é uma doença fatal. Ao se dar conta, antes de receber a informação do médico, de que ela e seu marido são AS, ela associara que "é por causa da gente que ele é assim".
Ela relatou a descoberta da doença em um momento emocionado da entrevista:
Eu comecei a olhar meu filho (pausa, choro, suspiro), ele estava nos meus braços, colado comigo. No meu país, ai, ai ai, (suspiro) meu filho, (pausa) ele não vai ficar... Uma criança SS (pausa longa) não dura muito tempo.
Sobre essa fantasia, ela disse que por morar na França e o sistema de saúde ser considerado excelente para o tratamento da doença, ela se sente mais segura. Porém, percebemos que a angústia de morte não pode ser totalmente apagada. Após minha seguinte questão se ela pensa ainda que ele possa morrer cedo, ela disse: "Não... assim agora, menos...".
Menos, ou seja, a projeção de morte ainda está impressa nesta criança. O luto deste anúncio não foi, de fato, superado. Mas, será que o anúncio de uma doença grave pode deixar de ser uma ferida narcísica ao ver que o His Majesty, the baby (FREUD, 1914) não corresponde à representação do bebê saudável?
Sra. L. nunca contou a doença à sua família, nem amigos. A doença é um segredo a sete chaves partilhado apenas com seu marido. Nunca explicou ao filho do que ele sofre. Sabemos que não falar é uma forma de negar para si mesmo a realidade. Tal fato nos mostra que a ferida narcísica ainda está aberta para essa família. Portanto, a cura tão desejada de J. seria uma forma de apagar esse fato.
Um mês antes da concepção, seu marido acompanhou J. a uma consulta de rotina e recebeu a seguinte "sugestão" do médico: tentar uma segunda gravidez, sabendo que é possível verificar se o feto for doente, e dessa forma, uma interrupção médica seria programada. Se, ao contrário, o feto não for doente, pode-se guardar o sangue do cordão umbilical por precaução, caso, no futuro J. precise de um transplante. Sra. S. decidira antes que não teria mais filhos para poder se dedicar ao primogênito, provavelmente, temendo ter um segundo filho doente. Quando criança desejou ter seis filhos, "o dobro de sua mãe" que teve três filhas. Resta uma dúvida: sra. S. pôde engravidar porque ela estava segura de que não daria luz a um bebê doente ou se a sugestão de transplante do médico surgira efeito?
Sobre o desejo de gravidez, ela relatou:
Já sofri demais, emocionalmente. Agora, até que vai, mas ter dois filhos assim? Francamente, confesso: meu filho, eu o amo, mas ter conscientemente um segundo assim, não! Não mesmo, não mesmo! Mas quando o médico falou ao meu marido...
Sobre a gravidez, ela disse:
Não é... é uma criança que eu carrego com muita... Digo, com muita alegria, como J. Que era meu primeiro filho. (...) Eu começo a me dizer é uma criança para um dia, se ele puder salvar seu irmão. Bem, eu não a detesto, porque eu quis também...
Sra. L. fez um lapso, no fim da entrevista, à minha pergunta se ela deseja uma terceira gravidez:
"Ah não! Não penso não. Se um dia, eu decido fazer um terceiro e fico grávida de triplos, vai fazer quatro. Bom, não sei, quem sabe? Com J. Eu me sinto ainda muito absorvida com isto..."
J. mais os triplos seriam quatro crianças, e o futuro bebê se coloca onde? Algo interessante é que ela herdará o nome da avó, ou seja, ela está inscrita, de alguma forma, na linhagem familiar, como no caso da sra. B.
Enfim, nesses três casos, vemos que a gravidez é concebida com o objetivo de salvar o filho mais velho. Mesmo se, ao final, elas tentam se justificar dizendo que é uma criança também desejada e, de alguma forma, serão crianças inscritas na filiação, fato este importante para que essa criança encontre seu lugar na família.
Resta-nos refletir se podemos "condenar" um casal disposto a salvar um filho. De fato, se por um lado, nos colocamos no lugar dos pais, nada mais natural do que querer salvar o seu filho gravemente doente, especialmente se há um tratamento. Por outro, se nos colocarmos do lado do recém-nascido, alguns questionamentos podem surgir: que sentido pode ele dar a sua vida, se ele descobrir que não nasceu apenas por desejo dos pais, mas para ser "útil"? Uma vez a doação feita, ele pode talvez sentir-se "inútil"? Qual será a relação entre um irmão doador com seu irmão salvo? Quem garante que o "bebê-medicamento" será como os outros bebês?
4 O QUE O DESTINO RESERVA AO "MESSIAS"?
Em psicanálise, é impossível falar em previsão, mas podemos pensar nos possíveis riscos psíquicos. Nesses casos, poderíamos então sugerir que o bebê compatível ou não compatível está sujeito a riscos psicopatológicos.
Durante uma gravidez típica, existe não apenas uma relação biológica que se tece entre a mãe e o feto, mas uma relação de afeto. Alguns anos atrás, considerava-se que não existira uma relação de objeto, em termos psicanalíticos, entre a mãe e o futuro bebê, sendo este apenas um ser "passivo". Mas, com o avanço das ecografias em três ou quatro dimensões e observações de estudiosos como Piontelli (1992), percebe-se que a partir dos movimentos fetais, o bebê também responde à mãe e ao pai e, podem criar uma relação afetuosa, na qual o bebê é ativo.
Assim, muitas mães, desde a gravidez, têm uma relação forte com o seu futuro bebê. Ela o imagina, o sonha, o deseja e cria roteiros e cenários sobre seu futuro. Ela se representa e se imagina como mãe, se identificará com sua própria mãe ou criará uma nova representação da maternidade (LEBOVICI, 1999; AMMANITTI et al., 1999). Essas representações maternas, ou seja, os pensamentos sobre a futura maternidade e o bebê a nascer são de extrema importância para a construção da futura interação mãe-bebê após o parto.
Dessa forma, a gravidez pode ser considerada como um prelúdio à relação mãe-bebê, um momento de preparação e representa um importante momento de emergência de diversos conflitos psíquicos nas mulheres. A mãe "berça" psiquicamente este bebê que está para nascer, mas a quem ela já deu à luz no seu imaginário através da rêverie materna (WINNICOTT, 1963; RACAMIER, 1959; BYDLOWSKI, 1997; STERN, 1997).
No caso de uma gravidez "encomendada" para seu filho mais velho, o que poderia acontecer? A partir dos relatos das entrevistas acima, vemos que a gravidez não simboliza um momento de prazer, e sim um momento de passagem para obter um resultado: um filho compatível. Ao longo das entrevistas, não encontramos representações dessas mulheres como mãe, e as pobres representações do futuro bebê estão completamente absorvidas como bebê planejado para cura. Vale salientar que não podemos generalizar afirmando que todas as gravidezes de "bebês-medicamentos" são pobres em representações maternas.
Ainda podemos pensar que se a compatibilidade existe, algumas mães investirão duplamente, um bebê salvador que contribui para o bem-estar da família e pertencente a sua filiação, dessa forma, ele será potencialmente narcísico para essa mãe. Se, portanto, a compatibilidade não existe, será que a criança poderá ser amada por ela mesma? O risco é que a família não consiga apreciá-la como uma criança normal e que exista uma lamentação por ela não ter cumprido o dever de "nascer para salvar", o dever de um "Messias". A criança pode ser uma ferida narcísica a mais nessa família já marcada pela transmissão de uma doença grave.
Além da relação pais-filho, o relacionamento entre os irmãos envolvidos, um doador e o outro receptor, poderá apresentar peculiaridades. Não devemos temer uma eterna dívida de um para com o outro? Caso a incompatibilidade não se confirme em toda sua vida, o "bebê-medicamento" poderá se reprovar de ser um outro, um outro que poderia trazer uma possível curar para seu irmão. Possivelmente, ele será reprovado por não ter nascido à altura do desejo dos pais, mas se autorreprovará por não ter sido a "salvação".
Todas essas formulações acima são apenas hipóteses, e muitos estudos científicos precisam ser feitos a partir dessa nova demanda.
5 QUESTÕES ÉTICAS
Desde o nascimento de Louise Brown, em 1978, nos Estados Unidos, a primeira criança concebida através de fertilização in vitro, o desenvolvimento da técnica de intracytoplasmic sperm injection (ICSI), em 1994, o diagnóstico pré-implantatório, em 1990, e todas as outras novas descobertas abriram novas vias de acesso para a vida (FAGNIEZ; LORIEAU; TAYAZ, 2005). A questão do "bebê-medicamento" nada mais é do que a culminação dessa série de descobertas científicas das últimas décadas, o que envolve diversas questões a serem postas à sociedade sobre até onde iremos chegar.
Por um lado, essa semântica do nome "bebê-medicamento" não é trivial, é um nome que carrega consigo a noção de coisificação, um "bebê-coisa". Por outro, relembramos que esse bebê tem um status potencialmente valorizado, visto que seu nascimento pode ter duplo significado se a mãe o investe dessa forma.
Há, indubitavelmente, um misto de excitação em torno dessas novas práticas e uma polêmica ao ver uma criança posta ao mundo, não para si, mas a fim de ajudar o outro. A criança já não é um fim em si mesmo, mas um meio. Cabe ressaltar que o respeito pelas crianças é um fenômeno relativamente novo na história das nossas civilizações: nunca houve um apego tão grande ao destino das crianças. De fato, não há muito tempo, a mortalidade infantil era tão elevada que era sugerido que os pais não se apegassem muito aos seus filhos em uma idade muito jovem (BADINTER, 1980). Atualmente, vemos um culto à maternidade, à gravidez.
Além disso, desde sempre, algumas crianças foram concebidas como meios para alcançar um objetivo específico: estabelecer um vínculo entre as famílias, para salvar casamentos, para garantir a transmissão de uma herança etc. Entretanto, nossas sociedades têm evoluído no sentido de um reconhecimento de direitos específicos para os bebês, e, eles agora são considerados como indivíduos completos carregando um projeto específico. Nessa evolução, o "bebê-medicamento" representa uma regressão.
A quem pertence, então, o corpo da criança? Um dos problemas éticos que essa prática impõe é o uso sem autorização da criança, que não tem o direito legal de ser responsável de si mesmo. A prática de doação de órgãos, tecidos, sangue de um irmão para com o outro pode ser louvável, mas uma reflexão sobre a instrumentalização do corpo da criança precisa ser pensada.
Longneaux e Hayez (2005) afirmam que essa instrumentalização não é valida em todos os casos. Eles sublinham que "o problema não é essencialmente sobre o fato de que os ‘bebês-medicamentos' são projetados por razões alheias à sua vontade. A questão real é se eles estarão livres das circunstâncias especiais as quais envolvem seu nascimento. Porque nascer não é apenas sair do útero, mas também sair dos projetos de seus pais, para tornar-se sujeito da sua própria vida".
Outra reflexão é a incapacidade de a nossa sociedade suportar cada vez menos a falta de soluções rápidas. O desejo de preencher as nossas necessidades muito rapidamente (ou melhor, os nossos desejos) também é perceptível no campo da saúde e da vida: se aceita menos os limites da nossa condição humana. O grande risco disso é uma eterna insatisfação, nos fazendo pensar a uma sociedade histérica, querendo sempre mais. No caso dos "bebês-medicamentos", alguns pais estão prontos a ir muito longe para escapar da morte.
Um dos receios de Fagniez, Loriau e Tayaz (2005) é que essas descobertas científicas possam debutar uma sociedade eugênica. Atualmente, existe a proposta para evitar a ocorrência de uma doença genética rara através do diagnóstico genético pré-implantatório (DPI), será que amanhã não iremos determinar banalmente o sexo, a cor do cabelo, cor dos olhos da criança por nascer, para que, finalmente, os pais possam escolher o filho "ideal" fantasiado?
Uma reflexão ética sobre o "bebê-medicamento" foi tema de um filme chamado Uma prova de amor (My sister's keeper, de Nick Cassavets). O drama começa com a narração de Anna, explicando seu nascimento: "a maioria dos bebês nasce por acidentes. Eu não! Eu fui programada. Nascida para salvar a vida da minha irmã". Sua irmã mais velha, Kate, tem uma leucemia rara e, há anos, é tratada. Sua mãe, uma advogada de sucesso, afasta-se do trabalho para cuidar da filha debilitada. Ela e seu marido tentam de todas as maneiras reverter o quadro da doença, e quando veem que não obtêm sucesso, são aconselhados por um médico a fazer uma fertilização in vitro para que a criança se torne uma doadora compatível. Anna nasce e passa a doar sangue, medula óssea e células para a irmã mais velha. Só que o quadro clínico de Kate não melhora e a única chance de uma possível recuperação é a doação de um rim. A estas alturas, Anna é uma adolescente de 11 anos e não suporta mais o calvário da doença de sua irmã, então decide que não pode mais aceitar "ajudá-la". Procura um advogado e resolve iniciar um processo contra seus pais, pedindo uma "emancipação médica".
O filme continua com uma batalha judicial entre a mãe, a filha e a irmã. Começa então um dilema ético: pais que querem salvar a vida de um filho a todo custo, médicos dispostos a vencer a morte, o sistema judiciário frente às questões éticas e uma adolescente que se sente endividada frente à irmã. Somente ao final do filme, descobrimos que foi Kate quem pediu à sua irmã mais nova iniciar esse processo e poder terminar sua vida dignamente. Esse será provavelmente um dos primeiros de muitos filmes que tratarão sobre esse tema e nos incomodará.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como em todas as questões relacionadas com a genética, a relação entre sujeitos e proezas científicas deve ser questionada. Cada vez mais temos o controle, de maneira fascinante, das leis da natureza e, isso acontece juntamente ao desejo de alto desempenho. Os benefícios da ciência perturbam claramente as relações humanas por meio da remoção de muitos interditos, talvez essenciais para a sociedade.
Com todas essas considerações, essas práticas valem ser questionadas. De um lado há um verdadeiro sofrimento das crianças doentes e suas famílias, que nos solicita um sentimento de solidariedade. Sabemos, ainda, como é difícil não recorrer a uma técnica disponível, especialmente se for para salvar a vida de uma criança.
Do outro, não parece aceitável que o tratamento da doença de um imponha uma ameaça à integridade do corpo do outro, tendo um nascimento agendado para ser provedor de sangue, de tecidos e, se necessário, de órgãos.
Devemos, então, permanecer vigilantes para não ceder à tentação de cair no reino das possibilidades, na medida em que a tecnologia avança, sem, primeiramente, iniciar uma séria reflexão. Finalmente, pensamos que o mais importante é abordar todas essas questões éticas pensando com profundo respeito a todas as pessoas envolvidas.
AGRADECIMENTOS
A Samuel Lins e David Gear pelas correções e sugestões. Esta pesquisa recebeu o financiamento da Agência de Biomedicina Francesa (Agence de la Biomédecine Française).
REFERÊNCIAS
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Artigo recebido em: 28/03/2011
Aprovado para publicação em: 21/11/2011