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Mental

Print version ISSN 1679-4427

Mental vol.9 no.17 Barbacena Dec. 2011

 

ARTIGO

 

Encontros possíveis entre arte, loucura e criação

 

Possible meetings between art, madness and the creation

 

 

Andresa Ribeiro ThomazoniI; Tania Mara Galli FonsecaII

IPsicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutoranda em Informática na Educação da UFRGS, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
IIPsicóloga, Professora Titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, Docente Pesquisadora dos Programas de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e Informática na Educação da UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir dos encontros instaurados entre arte e loucura, mais especificamente espaços que possibilitam a produção artística no âmbito da saúde mental, buscamos interrogar a racionalidade psiquiátrica perante este contexto. Iniciamos com uma revisão histórica das fronteiras instauradas entre arte e loucura, bem como a modulação das práticas derivadas desse encontro. Através da problematização sobre as potências expressivas que alguns corpos, mesmos psiquiatrizados, ainda possuem, buscamos sustentar e proliferar um novo olhar para dispositivos que possam valorizar a criação, entendendo-a como aquilo que é capaz de possibilitar a perseveração do ser, pelo resistir criativo ao sufocamento das forças vitais.

Palavras-chave: Arte; loucura; criação; resistência; expressão.


ABSTRACT

From the meeting between art and madness, more specifically, spaces that make the artistic production possible in the scope of mental health, we seek to question the psychiatric rationality in this context. We started doing a historical review of borders between art and madness, and the modulation of practices derived this meeting. Through problematization over the expressive powers that some bodies still possess, although psychiatrized, we search to support and proliferate a new look on devices that may value creation. As we understand such as that what is able to make possible the perseveration of the being, and the creative resistance to suffocation of vital forces.

Keywords: Art; madness; creation; resistance; expression.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Buscamos nesse artigo, problematizar os encontros possíveis entre arte, loucura e criação. A partir de nosso encontro com corpos que há muito se encontram institucionalizados pelo poder psiquiátrico, e que num primeiro instante se mostram inertes, propomos um olhar para seus rastros de criação e resistência, ativados quando, se agenciam a espaços de produção artística, tais como oficinas de arte. Consideramos que tais formas de expressão carregam consigo forças de perseveração que insistem mesmo diante de catástrofes existenciais.

Desta forma, tais obras, do ponto de vista de seu processo criador, pontuam nossa constante surpresa em relação àqueles que, tornados passivos pela Psiquiatria, ainda resistem e criam linguagens.

 

2 ARTES DA LOUCURA

As relações da arte com a Psicologia e Psiquiatria datam cronologicamente do século XIX, quando algumas atividades de natureza artística ou artesanato foram introduzidos em hospitais psiquiátricos e apareceram as primeiras referências teóricas sobre o assunto (FERRAZ, 1998). Deste encontro operado pela Psicologia, Psiquiatria, arte e loucura poderíamos dizer que emergem diferentes abordagens, que variam desde a diversidade de linhas terapêuticas, até aproximações com a arte de vanguarda.

Inicialmente, a Psiquiatria utiliza desenhos produzidos por loucos no intuito de auxiliar no diagnóstico, uma busca pela identificação das doenças mentais através do estudo dos vários estilos artísticos. Segundo Ferraz (1998, p. 20), "Max Simon, Regis, Morselli, Lombroso, Dantas, Mohr e Meige" demonstraram um esforço para enquadrar cientificamente as produções figurativas dos doentes mentais. Nesse primeiro momento, a produção artística do alienado é vista apenas como um possível revelador de sua condição psicopatológica, um caminho que leva apenas ao sintoma vivenciado pela pessoa.

Já os trabalhos dos médicos "Réja, Delacroix, Morgenthaler, Prinzhorn e Kretschemer" buscam entender os estados mórbidos por intermédio da vida e obra de grandes artistas1 que tiveram algum distúrbio mental (FERRAZ, 1998, p. 21). Dá-se nesse momento, uma espécie de abertura para além dos muros do manicômio, porém os trabalhos produzidos pelos doentes mentais ainda eram considerados como formas mais ou menos embrionárias de artes, já que não existia uma intenção consciente de elaboração artística e esta era feita com técnicas pouco desenvolvidas.

Hanz Prinzhorn organizou o livro Expressões da loucura, publicado em 1922, onde procura discutir os processos de criação artística analisando os mecanismos de elaboração que se evidenciavam nas produções dos pacientes psiquiátricos. Segundo Ferraz (1998, p. 22), Prinzhorn emprega um "método de investigação psicológica derivado da fenomenologia, da Gestalt e da teoria estética da empatia" para explicar como emerge o impulso criador. Ele analisou e classificou as obras a partir da presença de sinais figurativos, simples rabiscos a simbolicamente complexas. "Prinzhorn acreditava que cada pessoa contém em si um ímpeto criador, escondido sob o processo civilizatório" (FUCHS, 2007, p. 37). Desta forma, mesmo em indivíduos esquizofrênicos e sem nenhum conhecimento artístico, o impulso criador era capaz de encontrar sua expressão. De forma que a esquizofrenia possibilitava a expressão desse impulso, mesmo em indivíduos sem nenhum conhecimento artístico.

Aqui, pela primeira vez se pode olhar para as obras além de sua morbidade. Prinzhorn contribui para olhar a produção dessas obras a partir do impulso criador, que está além da loucura, impulso este que é compartilhado pela própria humanidade. Essa posição instaura problematizações bem importantes. Não é a doença em si (esquizofrenia, por exemplo) que faria alguém um artista, porém as criações não são barradas de se efetuarem mesmo que a pessoa seja portadora de algum transtorno psíquico. Outra questão pertinente, que também era de alguma forma evocada nos trabalhos anteriores aos de Prinzhorn, é a fronteira delicada entre o que pode ser considerado arte e o que não pode. Intenção, técnica, traços elementares eram critérios considerados como definitivos para julgar uma produção como protoartística; este olhar que, com a própria crise sofrida pela arte na contemporaneidade, será posto abaixo. A fronteira entre arte e vida se esvanece, de modo que hoje não existem mais critérios tão claros que podem definir o valor artístico de alguma produção. Vale observar que o que possa ter contribuído para o psiquiatra Prinzhorn constituir um olhar diferenciado de seus colegas sobre o processo de criação artística dos doentes mentais, é o fato de sua análise investigativa ter derivado de teorias humanistas (Fenomenologia, Gestalt e teoria estética da empatia), a partir de um paradigma diferenciado da visão médica tradicional. Pode, assim, ser formulada outra forma de olhar para essas produções, para além de seus traços diagnósticos.

Havia cerca de seis museus dedicados às manifestações artísticas dos portadores de distúrbios mentais em hospitais psiquiátricos europeus, até o surgimento da Primeira Guerra Mundial, localizados na Itália, na Alemanha, na Suíça e na França. A partir dos anos 40, são retomadas as discussões sobre os processos expressivos, tanto de indivíduos sadios, como de doentes mentais. No início dos anos 60, no II Colóquio Internacional sobre Expressão Plástica, são apresentados trabalhos cujos temas variam desde expressão plástica de doentes mentais, criação artística, até influência de drogas psicotrópicas sobre a expressão (FERRAZ, 1998).

Com o panorama anteriormente apresentado, acaba por se destacar que a arte produzida por doentes mentais, em instituições manicomiais, ganhava paulatinamente uma atenção, derivando daí produções diversas que variavam de acordo com a visão concebida pelo estudioso que olhava para essas imagens. Uma espécie de oscilação entre um olhar mais preso ao modelo biológico e diagnóstico da Psiquiatria até a abertura pela qual era possível se falar em expressão.

O psiquiatra Leo Navratil buscou formular uma possível "síntese formal" que pudesse explicar as obras produzidas por esquizofrênicos que, no caso, teriam uma tendência a uma certa formalização, fisionomização e simbolização. Fisionomia seria o resultado da expressão, a concretização do ato expressivo; formalismo seria o desenvolvimento autônomo do ser, manifestado pela organização, ritmo e composição (que no caso dos esquizofrênicos apresentaria geometrização e repetições formais); simbolismo constituiria a terceira função criativa, um elemento particular do psiquismo (FERRAZ, 1998).

Aqui podemos perceber uma tentativa de Navratil em esquematizar as produções feitas pelos esquizofrênicos, uma busca pela ordem comum presente nos trabalhos dos psicóticos. Podemos falar em uma tentativa de teorização que pudesse ser ao mesmo tempo consistente e de certa forma escapar de uma redução à patologização.

É importante destacar que existiram aproximações entre as produções de psicóticos, das crianças e dos primitivos, em que semelhanças nas representações gráficas eram encontradas. Segundo Ferraz (1998, p. 23),

observavam que as formas plásticas de aspectos arcaicos dos doentes mentais, a simbologia presente nessas produções e as inscrições que apareciam em grande parte dos trabalhos podiam ser analisadas, por exemplo, a partir do pensamento primitivo.

Essas semelhanças, encontradas em produções artísticas desses diferentes grupos (psicóticos, crianças e primitivos), encontram ressonâncias também com obras da arte moderna, cujas características são compostas de construções fragmentadas, distorcidas, desestruturadas espacialmente e formalmente, com presença de insólito, do primitivo e aspectos de abstração.

Aqui se instaura uma via de mão dupla: há tanto o interesse de psiquiatras pelas obras artísticas modernas, cujas semelhanças poderiam explicar a produção dos doentes mentais, como o interesse pela arte dos psicóticos por artistas como Paul Klee e Max Ernst, que se mostram sensibilizados ao conhecer as pinturas e desenhos dos loucos, pela riqueza imaginativa, espontaneidade e simbolismos.

Paul Klee baseava sua arte no primitivo e no infantil, daí a correspondência também com a arte dos psicóticos. Na célebre exposição Arte Degenerada (1937), organizada pelos nazistas, foram mostrados trabalhos de doentes mentais ao lado de obras de artistas contemporâneos, com a intenção de reduzir produções modernas ao status de doentias e desvirtuadas. No catálogo dessa exposição, sob o título de Ética da Alienação, a obra de Paul Klee foi atacada, acusada de ser fruto da insanidade e degeneração. A arte moderna para o nazismo era produzida por bárbaros pré-históricos que deveriam retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizarem os rabiscos primitivos (COELHO, 2002).

O ataque feito do nazismo para a arte moderna é uma crítica pejorativa do primitivismo e infantilidade que nela se esboça. As marcas da loucura também são vistas através das noções de espaço e tempo postas em jogo, que a arte moderna abriga em si. O nazismo tinha motivos ideológicos para atacar esse tipo de arte, pois era muito claro o tipo de mundo, sociedade e arte que ele buscava construir ao preço da guerra. Dessa forma, não se tratava de um mundo onde a infantilidade, o primitivo, e a indeterminação da loucura pudessem coexistir com ideais tão limpos, objetivos e assépticos de uma nação.

Max Ernst se comoveu diante do impacto estético das obras produzidas pelos internos do hospital psiquiátrico, o que o levou a iniciar uma exploração sobre as possibilidades de representação da arte. Sensível às interrogações da psicanálise, abria o estudo para o lado irracional e incognoscível que tem a arte, juntamente com a relação entre consciente e inconsciente que há no trabalho de criação. Ele se questionava como as imagens da loucura poderiam estar incluídas nas fantasias do artista, as combinações e justaposições de imagens, tão frequentes nos quadros psicóticos pareciam corresponder ao processo teórico surrealista (MELGAR, 2000).

O pintor Kandinsky escreveu o livro Do Espiritual na Arte2, no qual busca refletir sobre a conjugação de elementos subjetivos (internos) e externos, na formalização da obra de arte, baseando-se no princípio de que existiriam forças determinando formas, o que contribuiria para a compreensão da arte não figurativa (FERRAZ, 1998).

Aqui se dá um importante salto para a compreensão das obras de arte. Pela primeira vez ocorre uma formulação que leva em conta a passagem de elementos internos e externos na composição da obra, o pintor torna-se palco de forças que poderão encontrar na pintura uma manifestação através de formas. Aqui, começa a se delinear um entendimento particularizado das obras como ressonância do mundo subjetivo do paciente.

O movimento expressionista buscava uma valorização das representações do mundo interiorizadas, das emoções, experiências sensoriais e subjetivas. "Já os surrealistas descobrem o magnetismo dos símbolos, dos automatismos e recorrem ao mundo fantasioso e onírico como liberação da inconsciência" (FERRAZ, 1998, p. 30). As especulações que eles tinham foram respondidas de forma lírica pela loucura manifestada pelos psicóticos em exemplos plásticos.

Os movimentos de vanguarda da época acabam por se interessar pelas produções dos psicóticos, e o interesse se materializa na medida em que as ressonâncias entre as duas evocam a produção artística voltada para um mundo mais subjetivo e interno. A obra poderia qualquer coisa, desde que isso pedisse passagem através de manifestações espontâneas.

O olhar da psicanálise sobre as obras produzidas varia de acordo com os autores e a tendência que seguem, o que ocasiona diferentes abordagens, desde a interpretação do processo imaginativo, das fantasias, a origem das associações de ideias, os simbolismos de algumas imagens mentais, o papel da obra de arte na vida do artista e do receptor, a atividade criadora e suas relações de processos interiorizados (FERRAZ, 1998). Outra leitura possível a partir do olhar psicanalítico compreende a formação de metáforas e a construção de códigos visuais que fazem da obra uma comunicação da loucura, e não somente uma projeção da psicose (MELGAR, 2000).

2.1 Hospital Psiquiátrico do Juqueri – São Paulo

O médico psiquiatra, músico e crítico de arte Dr. Osório César buscou analisar sistematicamente trabalhos de artes plásticas dos pacientes internados no Hospital do Juqueri, São Paulo. Desde o seu ingresso no Juqueri, em 1923, sempre se mostrou interessado na arte dos doentes mentais. Leitor das obras de Freud, Prinzhorn e Vinchon procurava ampliar seu conhecimento sobre a arte dos alienados. Em 1925, publica o artigo "A arte primitiva nos alienados", introduzindo assim as primeiras noções sobre a arte dos loucos no meio paulista. (FERRAZ, 1998).

Nesse artigo ele traz novas ideias sobre essa manifestação artística, afirmando que a arte produzida pelos loucos tem uma estética própria, que inclui deformações e distorções figurativas, com caráter simbólico, e pode ser comparada com a ‘estética futurista'. (FERRAZ, 1998, p. 45).

No ano de 1929, Osório edita o livro "A expressão artística nos alienados", com 84 ilustrações, onde procura analisar psicanaliticamente pinturas, desenhos, esculturas e poesias dos internos do Hospital Juqueri. Ele inicia o livro com estudos comparativos sobre as manifestações artísticas de grupos cuja característica seria a espontaneidade, o simbolismo e a apresentação de aspectos particulares na formalização de suas representações: a arte das crianças, a arte dos loucos, a arte dos povos primitivos (indígenas, pré-história) e o que denomina arte primitiva (arte medieval, japonesa e africana). O professor Franco da Rocha (primeiro diretor do Juqueri) incentiva Osório César a continuar seus estudos, enviando uma crítica elogiosa sobre o trabalho preliminar. Na carta enviada para Osório, Franco fala da importância de estudos como esse marcarem um novo início de uma nova direção no exame e interpretação dos delírios que se observam nos insanos (FERRAZ, 1998).

Usar a fundamentação psicanalítica para olhar essas imagens, que possui como pressuposto a existência do inconsciente, possibilita novas leituras nessas obras. Se antes o mundo dos loucos era preenchido apenas por uma completa desordem mental, absurdos e falta de coesão para as atitudes que estes tomavam, o inconsciente permite a formulação de novas explicações pautadas em tendências e aspirações que eram, inclusive, desconhecidas pelo próprio paciente.

2.2 Hospital Psiquiátrico Pedro II – Rio de Janeiro

A terapêutica ocupacional surge como uma possibilidade de tratamento dentro dos hospitais psiquiátricos. Era um método que se utilizava da pintura, modelagem, música, trabalhos artesanais e que iam na contramão de outros tratamentos utilizados, tais como choques elétricos, insulinas, psicocirurgia e psicotrópicos. Destaca-se, no Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira que implantou, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional no Hospital Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro. Em 1952, é inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente, que reunia em seu acervo volumoso material produzido pelos internos do hospital psiquiátrico (MOTTA, 2008).

A terapia ocupacional parte do pressuposto que os objetos materiais (argila, tintas, madeira, etc) possibilitam a passagem de uma emoção muitas vezes rudimentar e imprecisa numa série de imagens originais cujo traçado veste exteriormente o objeto interior. Se explorada a coerência do traço, do círculo, do ponto e do triângulo, se poderia chegar a um entendimento do jogo que existe por detrás de uma mensagem inconsciente. Para Nise, a produção imagética conduzia a uma comunicação muito mais efetiva com os esquizofrênicos, do que pela linguagem verbal, comumente usada pela psicanálise. Através dos objetos concretos, era possível construir uma ponte entre o mundo da realidade e o mundo do delírio (GOUVÊA, 2008).

Para Nise da Silveira (1992), a pintura e a modelagem tinham em si qualidades terapêuticas, já que davam forma a emoções tumultuosas, despotencializando-as, e objetivando forças autocurativas que fossem em direção à realidade, ou seja, a consciência. Olhar para as imagens isoladas resultará num enigma indecifrável. O estudo adquire sentido quando as séries de imagens são olhadas, de modo a permitir um acompanhamento dos processos psíquicos. A tarefa do terapeuta seria encontrar conexões entre a situação emocional vivida pelo indivíduo e as imagens que emergem do inconsciente.

"Retendo sobre cartolinas fragmentos do drama que está vivenciando desordenamente, o individuo dá forma a suas emoções, despotencializa figuras ameaçadoras" (SILVEIRA, 1992, p. 18). O Museu mostra, em numerosos documentos, as riquezas do mundo interior, bem como as vivências sofridas pelos esquizofrênicos. Para Nise, era necessário uma reformulação da atitude diante desses doentes, e uma radical mudança nos tristes lugares que se constituem os hospitais psiquiátricos.

Nise vai além da Psicanálise quando envolve esforços na disponibilização de materiais plásticos para a livre expressão dos internados. Ela encontra na Psicologia Junguiana o aporte teórico necessário para olhar aquelas produções de outra forma, instaurando assim uma busca pela leitura das imagens, de conteúdos inconscientes e por vezes arcaicos. É uma nova forma de se relacionar com as produções dos pacientes, de maneira a buscar conjuntamente um viés terapêutico capaz de amenizar o sofrimento e possibilitar um ancoramento na realidade. A obra é vista como um viés condutor do mundo interno, capaz de simbolizar em imagens os conteúdos inconscientes.

 

3 AFINAL, QUE ARTE É ESSA?

Olhar a produção plástica somente como um sintoma de doença mental, acaba por restringi-la na busca por diagnósticos de doenças. Dessa forma, nomeá-la de arte psicótica, ou arte psicopatológica, é negar a essas produções o estatuto de arte e afirmar o sintoma de doença mental.

Inicialmente, a Psiquiatria tradicional buscou a patologia na expressão dos esquizofrênicos, interpretando essa produção como desligamento do mundo real e esfriamento da afetividade. Nise da Silveira discordava dessas afirmações, pois via nos rostos dos frequentadores de seu atelier, o afeto se manifestando e o ímpeto que movia suas mãos (MELLO, 2009).

Suas pesquisas não visavam descobrir patologia na produção, mas sim penetrar nas dimensões e mistérios dos processos do inconsciente. Utilizava em suas pesquisas comparação com histórias da religião, arte, mitologia, etc.

O surgimento da Psicologia como ciência, e a descoberta do inconsciente possibilitou uma outra leitura sobre as obras. Busca-se, assim, um desvendamento das origens psíquicas e dos mecanismos subjetivos envolvidos na criação.

Porém, a contribuição de Nise da Silveira consiste no acolhimento humano que ela iniciou com suas atividades para com os internos do Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro. A fundação da oficina de terapia ocupacional foi uma resposta rebelde ao tratamento psiquiátrico da época.

Mas o cuidado que se deve ter na criação de tais espaços, é o risco constante de se cair na captura da lógica psiquiátrica, onde ao invés de ser um espaço de criação, tornar-se um espaço que reforce os laços manicomiais, com objetivos de normatizar ou controlar comportamentos.

Alguns agentes do campo artístico formularam conceitos que buscam rotular essa produção, agora acolhida no campo artístico, enfatizando de maneira implícita que esta não seria autenticamente, totalmente ou simplesmente arte, apesar deles, reconhecerem nesta produção elementos pertencentes à esfera da arte.(AQUINO, 2005, p. 53).

Daí surgiram os termos arte virgem (Brasil), art brut (Suíça), outsider art (Inglaterra) e folk art (Estados Unidos).

O termo arte bruta foi criado por Jean Dubuffet, artista plástico, em 1948, que lançou a Compagnie de L'Arte Brut, com um museu em Lausanne, na Suíça. Essa expressão refere-se à busca de obras que escapem o máximo possível aos condicionamentos culturais e que partam de posturas de espírito verdadeiramente inéditas. Uma busca que não é feita em escolas, mas entre os homens comuns, liberta de todos os compromissos presentes nas produções profissionais.

O conceito arte bruta denomina as obras que são produzidas por sujeitos que não se encontram no sistema de mercado da arte, pessoas sem formação artística, distante de ambientes sofisticados e intelectuais. Assim, a arte produzida a partir de um contexto manicomial poderia se aproximar da ideia de arte bruta. Porém, entendemos que definir a arte nessa conceituação, ou em qualquer outra num sentido mais radical, sufoca outros possíveis sentidos que ela poderia ter. O risco é sair de um conceito anterior de redução à arte numa patologia, para uma redução que cria outra categoria de arte constituída por pessoas que se encontram alienadas.

Para Mário Pedrosa, a arte era uma questão de sensação e emoção. Criador do termo arte virgem, essa arte deveria frequentar os espaços consagrados da arte, pois independentemente da qualidade que ela poderia adquirir, seria arte. Ao conhecer o trabalho da Dra. Nise da Silveira, Mário se encantou, mas sua abordagem para a criação continuava presa nos domínios da consciência e inconsciente. Para ele, vista de um ponto de vista emotivo, a arte era a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós.

Os termos outsider art e folk art marcam essas produções com o estigma de estrangereidade e não pertencimento ao campo artístico, como se fossem produções folclorizadas das minorias, loucos, negros e índios.

A arte transcende, ou melhor, ignora a diferença entre as frágeis fronteiras da sanidade e da loucura, como ignora a diferença entre primitivos e modernos. Nas composições desses artistas, cujo diagnóstico é frequentemente sem esperança (esquizofrenia incurável) cumprem-se as duas exigências da arte: ser a destruição da comunicação comum e ser a criação de uma outra comunicação. Isto é, ser a instauração de uma comunicação incomum3. (PAZ, 1987 apud FRAYZE-PEREIRA, 1999, p. 1).

A atividade artística e o ímpeto para a criação não dependem de leis estratificadas, condição social, e até mesmo mental. A vontade, a necessidade de arte pode se manifestar em qualquer homem. Normalidade e anormalidade psíquica são termos convencionais para a ciência. No campo da arte, eles deixam de ter qualquer prevalência significativa.

Existe, portanto, criação mesmo em pessoas que possuem sofrimento mental. Talvez a problemática a ser feita consista num posicionamento de que a arte sempre é feita, seja ela de boa ou má qualidade, interessante ou não, mas trata-se de arte.

Para Mário Pedrosa (1996), a diferença encontrada entre a arte dos artistas e a arte dos alienados, é de que nesta última faltava vontade realizadora. Aqui, esbarramos em uma variável que sempre será matéria de discussão: até que ponto o portador de sofrimento mental, apesar de ter um apelo criador, pode ou não possuir vontade consciente para realizar tal atividade?

Acreditamos que ao invés de chegarmos a uma resposta universal e aplicável a todos os casos, este tipo de questionamento sempre será aberto, de forma a abrir espaço para que outras perguntas também se proliferem, ainda mais quando relações tão complexas quanto os atravessamentos da loucura e arte estão em jogo.

Se partilhamos a ideia de que, no campo da arte, normalidade e anormalidade deixam de ter importância, e se concordamos com a afirmação de que a possibilidade de criação acompanha o ser humano, a partir dessa perspectiva, talvez a Psicologia devesse olhar para estes sujeitos estimulando a abertura de espaços que permitam a reinvenção e a criação.

Entendemos que apesar da arte produzida em manicômios poder ter uma aproximação com o conceito de arte bruta, no sentido das pessoas que a executam não terem uma formação artística, o lugar na qual ela é produzida e os atravessamentos que ali se instalam, refletem uma arte cuja origem se dá de forma marginal. Uma arte marginal que diz sobre o caráter de resistência que ela assume frente ao saber psiquiátrico normatizador. A margem se refere, portanto, ao lugar de origem da produção plástica, porém não fala sobre uma categoria de arte, pois a criação é maior que um rótulo ou classificação.

Olhar para o sujeito dito louco, mas que é capaz de criar, jamais deveria nos levar a uma tentativa de descrição de biografia ou busca de traços psicológicos. Entendemos, portanto, que a criação se dará no agenciamento do corpo e das forças que o atravessam. Logo, a arte pode nascer ou não dentro de um hospital, mas jamais estará submetida a ele.

Aqui está a importância de nosso olhar, apesar do peso da história e dos modos de tratamento da loucura que ainda se fazem presentes. Podemos abrir espaços, arejamentos para que outras formas de compreensão e práticas possam ser estabelecidas no contato com os portadores de sofrimento psíquico.

Acreditamos, com Weinreb (2003, p. 62) que:

As ideias de Osório César e Nise da Silveira sensibilizaram para um outro olhar, um olhar para uma outra direção, o da inclusão, assim ressignificando conceitos sobre arte e loucura. Esta proposta continua ainda hoje presente e necessária, questionando em seu cerne as atitudes que passam para os depósitos (manicômios) da civilização, tudo que não se quer ver. Portanto, um novo olhar é necessário, através de um movimento dos sentidos que permita ver este outro lado.

Se o movimento da Psiquiatria faz com que a dimensão humana da loucura desapareça, torna-se necessário lutarmos pela constituição de uma outra racionalidade e de uma outra sensibilidade para olharmos a loucura e acolhê-la. Um olhar em que o delírio seja validado, e que a loucura possa ser sentida como uma experiência trágica. Nossas ações devem operar na direção de uma resistência à captura moral, e na afirmação da experiência da singularidade e diferença.

Poderíamos pensar, então, que ao se desenvolver atividades de cunho artístico com pessoas portadoras de sofrimento psíquico, nossas atitudes podem visar a constituição de uma prática e um olhar que acolha a diferença. Atividade de criação feita sem cobranças ou expectativas, para operar nos sujeitos como recriação de si, reinvenção de mundos em direção à abertura de novas possibilidades, de outros modos de existência.

Espécie de acolhimento para uma arte que é em alguma medida bruta, em alguma medida marginal, mas que, na possibilidade de sua expressão, implica na circulação de intensidades. É como se, nesse instante ínfimo em que os prisioneiros da passagem, os alienados com todas suas dificuldades e limitações, ultrapassassem a si mesmos. E nessa duração, a desrazão por um momento viesse dar lugar a uma possibilidade de produção de obra. Uma duração na qual o corpo pudesse abrir-se para os devires, tornar-se passagem de forças que o levam a potência de criação e de vida.

De um mínimo, de uma clausura, de um silenciamento, a vida ainda resiste, com sua potência vital. O silêncio repressor da loucura pode ser quebrado com o sutil rumor expressivo dessas vidas. Para ouvir, faz-se necessário o desvio do olhar.

 

REFERÊNCIAS

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FERRAZ, M.H.C.T. Arte e loucura: limites do imprevisível. São Paulo: Lemos Editora, 1998.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Avenida Delmar Rocha Barbosa, 749, Parque Santa Fé –  Porto Alegre, RS.
CEP: 91180-490.
Tel.: (51) 3366-4594.
E-mail: andresa.thomazoni@gmail.com

Artigo recebido em: 19/07/2011
Aprovado para publicação em: 22/12/2011

 

 

1 Ao longo da história, vários artistas considerados geniais tiveram diagnóstico de distúrbios mentais: Friedrich Schröder-Sonnenstern (1892-1982), Adolf Wölfli (1864-1930), Vincent Van Gogh (1853-1890), Edvard Munch (1862-1944) e Louis Soutter (1871-1942).
2 KANDINSKY, W. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.