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Mental
Print version ISSN 1679-4427
Mental vol.10 no.18 Barbacena June 2012
ARTIGOS
Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud
Neuropsychoanalysis: an abandoned project for Freud
Roberto CalazansI; Dayane Costa de Souza PenaII; Marcioni Tomaz BritoIII
IProfessor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
IIAluna do Curso de Psicologia da UFSJ. Ex-bolsista de Iniciação Científica Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)
IIIAluno do Curso de Psicologia da UFSJ. Ex-bolsista de Iniciação Científica PIBIC/FAPEMIG
RESUMO
O presente artigo pretendeu apontar para as questões que estavam em jogo para Freud quando da redação do Projeto de 1895. Objetivamos com isso demonstrar que Freud não visava necessariamente a construção de uma teoria neuropsicanalítica, como pretendem alguns, mas a busca da etiologia psíquica das neuroses. Por isso, em um primeiro momento analisamos porque Freud escolhe o nome psicanálise para denominar sua teoria. Depois estabelecemos quais são os dois postulados elaborados por Freud na parte I do texto do Projeto para, em segui da, apontar como a parte II, articulada com outros textos contemporâneos de Freud, apontam para a busca de Freud de uma causalidade não nos neurônios, mas em representações.
Palavras-chave: Psicanálise; neuropsicanálise; psíquico; análise; etiologia.
ABSTRACT
The present article intended to appear for the subjects that were in game for Freud when of the composition of the Project of 1895. We sought with that to demonstrate that Freud didn't necessarily seek the construction of a theory neuropsychoanalytical, as they intend some, but the search of the psychic etiology of the neuroses. Therefore, in a first moment we analyzed the reason Freud he/she chooses the name psychoanalysis to denominate your theory. Then we established which are the two postulates elaborated by Freud in the part I of the text of the Project for, soon after, pointed as the part II, articulate with other contemporary texts of Freud, they not appear for the search of Freud of a causality in the neurons, but in representations.
Keywords: Psychoanalysis; neuropsychoanalysis; psychic; analysis; etiology.
1 INTRODUÇÃO
Em 1990, o presidente dos Estados Unidos da América determinou investimentos para pesquisas sobre o cérebro e declarou que os anos 1990 seriam a década do cérebro (AGUIAR, 2004, p. 19). Em 2001, o filósofo americano John Searle (2007, p. 31) pronuncia uma palestra na qual pretende demonstrar como a liberdade do humano é um fato de natureza cerebral. Ele parte da hoje já gasta crítica à divisão cartesiana entre a mente e o corpo e define a consciência como uma característica do cérebro. Para além de uma abordagem equivocada do dualismo cartesiano, essa afirmação não é tão somente fruto de uma especulação idiossincrática, mas é consequência da década do cérebro que pretende reduzir diversos problemas, sejam psíquicos, sociais, econômicos ou políticos a uma origem neuronal.
É a partir deste imperativo que permeia o discurso atual que críticas são feitas à psicanálise de não ser uma ciência. A argumentação básica é que Freud não teria, na época, a possibilidade de dar substrato empírico às suas teses devido à ausência de instrumentos adequados, mas agora estaríamos em condição de vencer esta barreira. Para fugir a essa suposta deficiência alguns autores da neurociência e da psicanálise fundaram, em 2000, a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise (SERPA, 2006). Segundo os mesmos autores era preciso retomar a proposta de Freud em seu texto Projeto de Psicologia para Neurólogos, de 1895, e a neurospsicanálise seria o modo pelo qual a psicanálise conseguiria responder às críticas de ser uma pseudociência se amparando em dados supostamente objetivos. Mas a psicanálise e o seu problema podem ser tratados por métodos estranhos a ela? Não encontramos aqui a confusão entre campos de problemas distintos - aqueles relativos ao sujeito que demanda um tratamento clínico pela fala com aqueles relativos ao funcionamento do sistema nervoso e que não depende de um sujeito para ser pensado, mas de procedimentos experimentais? A psicanálise, nessa perspectiva, não corre o risco de ser reduzida a um capítulo menor da neurociência? Vemos então um deslocamento do sentido dos conceitos psicanalíticos por não haver uma consideração sobre o sentido do problema da psicanálise.
A nossa intenção nesse artigo é demonstrar quais são os pressupostos importantes no texto do Projeto de 1895 e como alguns desenvolvimentos posteriores da obra de Freud nos impede de falar em neuropsicanálise. Para isso iremos, em um primeiro momento nos ater a um texto de Freud sobre o tratamento psíquico para delinear o sentido do termo psicanálise para Freud; em seguida faremos uma análise das duas primeiras partes do Projeto de 1895 articulando-as com alguns textos contemporâneos a ele para demonstrar que Freud tinha uma preocupação mais premente: buscar a etiologia das neuroses na sexualidade.
2 O QUE SIGNIFICA PSICANÁLISE?
Ao analisarmos os textos dos autointitulados neuropsicanalistas, percebemos dois pontos em comum entre eles: a utilização do Projeto de 1895 como prova da afirmação da necessidade de seguir o que seria o projeto originário freudiano: validar neurocientificamente o estudo do psiquismo; e a citação da famosa passagem do texto Esboço de Psicanálise (FREUD, 1938b) em que Freud deixa para o futuro a possibilidade de encontrar bases neuroquímicas ou toxicológicas da neurose.
Pribram e Gill (1976, p. 7) estão entre os primeiros a tentar fazer essa articulação entre psicanálise e neurociência. Afirmam na introdução de seu livro sobre o Projeto que a obra de Freud deve ser pensada como neuropsicologia, ou seja, a união entre o neurológico e o psicológico. Eles não consideram o Projeto como uma obra apenas de cunho neurológico; eles afirmam que o Projeto é, além disso, uma obra psicológica escrita em termos neurológicos mostrando a junção dos dois campos de conhecimento. Segundo eles, é por essa razão que Freud a denominou de uma "Psicologia para neurólogos". Talvez Freud realmente intencionasse esta união, visto que ele tinha formação fisicalista, era neurologista, além do Zeitgeist em que estava envolvido. Mas duas questões merecem ser colocadas: por qual razão Freud abandona o Projeto? O texto do Projeto autoriza toda e qualquer tentativa de reduzir a um tratamento supostamente científico os problemas aos quais Freud se defrontava na clínica?
Freud inicia seu Projeto afirmando a sua intenção de
prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis tornando assim esses processos claros e livres de contradição. (FREUD, 1895, p. 347).
Essa passagem é, muitas vezes, evocada como prova da intenção de Freud. No entanto, a essas passagens de Freud poderíamos contrapor uma série de outras que negam essas afirmações. Mas se fizéssemos isso cairíamos em uma guerra de citações que não traria nenhuma fecundidade para o debate. Poderíamos apelar para um argumento de ordem factual e lembrar que Freud preferia que o texto do Projeto fosse destruído e que este só veio à cena a partir de uma série de contingências. Mas se fizéssemos isso, estaríamos utilizando fatos como argumentos e que não apontam nem para o sentido do problema tratado por Freud nem para a inteligibilidade de sua teoria. Não procederemos por nenhuma dessas duas formas porque não cremos que sejam formas compatíveis ao espírito científico tanto apelar para fatos como se eles fossem evidências por si mesmo, quanto apelar para a letra de Freud como se ela conferisse uma autorização para justificar práticas que não seguem a sua forma de tratar dos problemas que encontrava na clínica: estabelecer a etiologia psíquica das neuroses e a direção do tratamento. Freud consegue estabelecer as duas a partir do que ele chama de psicanálise.
François Regnault (2001), em Análise e Síntese em Freud, chama a atenção para os dois termos que são conjugados na expressão psicanálise: nem sempre se pensa sobre os sentidos que ambos têm, nem porque Freud escolheu os dois para nomear a práxis fundada por ele. Começaremos aqui falando em primeiro lugar do termo análise e depois do termo psikhé, lembrando que Regnault usa como referência um texto anterior ao Projeto de 1895: Tratamento Psíquico (ou Anímico) (FREUD 1890/1905), mas que durante muito tempo foi considerado um texto de 1905, por sua afinidade com as teses de Freud pós Projeto.
O termo análise, conforme afirma Regnault, é escolhido em detrimento ao termo logia. Freud poderia muito bem situar sua prática tanto no terreno da psicologia - que já existia - ou da neurologia - que era seu terreno inicial de atuação. Se não o faz, é por uma razão: a sua práxis não é da ordem de um discurso sobre o psiquismo que caracteriza a Psicologia. Foi por não respeitar o sentido do problema e a operação em jogo no termo análise que muitos autores pós-Freud se perderam em uma perspectiva que é completamente anti-freudiana: a do reforço do eu, da busca de um princípio de síntese que podemos chamar de eu ou de personalidade. Sua práxis é da ordem do questionamento desse discurso sintético que produz não somente o eu como um precipitado de identificações abandonadas (FREUD, 1923), mas também o sintoma como uma formação de compromisso (FREUD, 1898).
Análise, portanto, é tomado de empréstimo do terreno da matemática pela via da química e implica, longe de um discurso sobre a natureza do sujeito, a realização de um trabalho. A ciência, diz Regnault (2001, p. 39), "está do lado da análise, a vida do lado da síntese". A síntese é, em geral, espontânea, não necessita de um trabalho para produzi-la. Afinal de contas, só se explica, só se torna logicamente inteligível, o que se analisa. Cremos que é mais nessa perspectiva que devamos abordar o interesse de Freud pelas ciências, a sua submissão ao que Jean-Claude Milner (1996) chama de ideal de ciência do que na afirmação de um conteúdo positivo sobre o que é o psiquismo. Isso somente levaria a afirmação de um movimento de grupo em torno desse conteúdo, como no caso da neuropsicanálise. Como aponta Cláudio Oliveira:
um dos motivos que impedem uma adesão ingênua da psicanálise a uma Weltanschauung científica é o mesmo motivo que impede essa adesão ocorra por parte da própria ciência. Na verdade, mesmo a ciência, quando se compreende como uma Weltanschauung no sentido estrito do termo, tal como definido por Freud, corre o risco de tornar-se um laço grupal religioso. (OLIVEIRA, 2004, p. 12).
Esse é um primeiro sentido a ser dado à explicação do porquê Freud prefere o termo análise ao termo logos. O segundo sentido é que a ordem analítica permite remontar à causa da síntese (formação do inconsciente) encontrada. Dessa forma, privilegiar a análise é privilegiar algo que é a preocupação maior de Freud no início de sua obra pré-Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900): a etiologia das psiconeuroses1. Dessa forma, descobrir a causa da doença psíquica não se trata somente de uma orientação diagnóstica, mas também da condução do tratamento. Por exemplo: é devido a essa orientação que Freud recomenda, mesmo com reservas, o não tratamento de psicóticos.
Se não há discurso sobre o eu ou sobre o psiquismo, há discurso sobre a causa da cisão do psiquismo. Mas esse discurso só é possível devido ao procedimento de análise que permite encontrá-la. Discurso que vem a reboque da análise, a posteriori. Sobre a questão da causa, Regnault é bem claro ao comentar uma passagem do texto de Freud sobre a jovem homossexual: "a análise remonta às causas, pode chegar a conhecê-las, mas a síntese, que consistiria em prevê-las, e isso desde a infância, são impossíveis" (REGNAULT, 2001, p. 67). Esta questão da impossibilidade da previsão acompanhará Freud até o final de sua obra. Basta lembrarmos de que Freud, em Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1937), coloca também a questão da impossibilidade de profilaxia das neuroses e em Construções em Análise (FREUD, 1938a) aponta que a construção é um trabalho de construção dessa origem durante o trabalho de análise.
Mas por que essa causa primeira não permite postular uma teoria do desenvolvimento que vai da infância até o mundo adulto? Por que a causa em psicanálise se coloca sempre a posteriori? A primeira resposta é porque só há preocupação com a causa a partir do momento em que o sujeito se defronta com o sintoma. Até então, o sujeito não se preocupa com o que causou seu estado atual. Como diz Lacan (1964), só há falta para o que claudica, para o que não funciona. Mas essa explicação só fica completa se retomarmos o segundo termo da práxis fundada por Freud: psíquico.
Psyche é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma. Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos patológicos da vida anímica. Mas não é este o sentido dessas palavras. "Tratamento psíquico'' quer dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento - seja de perturbações anímicas ou físicas - por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano. (FREUD, 1890/1905, p. 231).
Freud começa apontando para uma definição que, à primeira vista nos parece meramente etimológica, mas que tem um sentido mais correto. Esta referência ao termo alma não é gratuita; ao contrário, indica um campo de problemas e a afirmação de um princípio de tratamento do problema completamente distinto da psicologia acadêmica ou do que podemos chamar de projeto cientificista da psicologia. Indica, antes, um campo de problemas clássico que foi levantado pela Filosofia e que podemos dizer que se caracteriza pelo modo de ser afetado pela fala e pela linguagem. A psykhé é relativa ao pensamento, à possibilidade de dizer aquilo que é e de dominar e estabelecer a harmonia entre as partes inferiores, como lembra Phillipe Julien (1996). Assim, podemos dizer que a psykhé é relativo ao domínio de si, relativo ao que Lacan chamou de discurso do mestre, ou de discurso do manche. Aquele que domina a si mesmo domina aos outros e pode educar e governar os outros. Vemos que está em jogo uma definição de ser que leva em consideração uma identidade a si mesmo, um modo de ser e de pensar próprio ao pensamento do mundo antigo. Domínio de si e das paixões, que levaria ao homem a se perder, a perder sua identidade e o seu ser. Domínio que é conhecido como ético. Por essa razão Lacan (1964) fala que o estatuto do inconsciente não é ôntico e sim ético.
Antecipemos uma crítica que geralmente é feita à psicanálise quando traça a distinção entre campo de problemas relativo à alma (ou modo de ser, ou, para dizer como Lacan, modo de falta-a-ser) e ao corpo. Dizem que essa é uma concepção cartesiana que já foi ultrapassada por uma abordagem holística, que integra essas diversas dimensões de um ser integral que é o homem. Essa crítica é feita geralmente por psicólogos que pretendem reduzir tudo ao nível de sua experiência quotidiana. Mas, se levarmos em consideração apenas o título de um autor da filosofia que dedicou sua vida a estudar Descartes, vemos que as coisas não se passam da maneira como essas pessoas pretendem atacar tanto a psicanálise quanto Descartes. Conforme Martial Guéroult (1991), em Descartes selon l'ordre des raisons, se seguirmos a ordem das razões de estabelecer um campo de problema, não temos porque tratar um problema da ordem do corpo - que em Descartes é da ordem da física (res extensa) - como problemas da ordem do pensamento (res cogitans).
Em segundo lugar, este tipo de crítica não se questiona o que seria um corpo quando falamos de psicanálise, se ele pode ser subsumido a um organismo. Pois se soubessem, não falariam em um ser integral, uma vez que o corpo é a imagem do corpo formada a partir de uma identificação - e onde temos identificação não podemos mais falar em unidade. Ora, o corpo é algo para além das identificações, algo que a coloca em questão (é o exemplo de Freud e do sonho da injeção de Irma, no qual Freud se defronta com o real da carne que é traumático). Seja qual for o caso, podemos ver que não se segue nem a ordem das razões, nem a ordem das coisas, pois nem em uma ordem nem em outra encontramos essa tão propalada unidade.
Não se trata, então, de saber se a alma existe ou não, ou tratar desse problema como se ele fosse da ordem de uma realidade; quando estamos às voltas com problemas anímicos, estamos às voltas com problemas da ordem dos valores, do pensamento e da orientação. Mas, como tratar de problemas dessa ordem? Como afirma Freud nesse texto:
Um desses meios é, sobretudo, a palavra, e as palavras são também a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achará difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de "meras" palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico. (FREUD, 1890/1905, p. 283).
Freud, nesse texto, aponta para a dimensão em que o corpo é um corpo tomado pela linguagem. Esse texto de Freud de 1890 aponta para uma ordem de problemas que não pode reduzir ao corpo, e que o transtorna: a alma. Freud demonstra isso em vários exemplos sobre as paralisias histéricas (um sujeito passa a mancar quando pensa ter dado um mau passo na vida; outro fica cego sem nenhuma afecção patológica: mais uma vez, estamos lidando com algo que coloca em questão qualquer ideia de unidade, como o sintoma). Essas paralisias são produzidas a partir da relação entre representações que ressignificam experiências infantis. É aqui que entra em jogo a questão da causalidade a posteriori que não pode ser prevista: é da ordem do que vem depois, por meio das representações, que algo passa a ser tido como originário. Esse procedimento só faz sentido se remetermos inteiramente a um registro psíquico, sem a necessidade de apelar para nenhum evento biológico ou físico. E é por isso que Freud se vê sistematicamente levado a abandonar conceitos que seriam do campo da neurologia e cada vez mais se referir a conceitos psíquicos: por buscar, incansavelmente, uma causalidade psíquica.
Nos próprios termos de Freud: a ferramenta essencial para o tratamento anímico é a palavra. E isso por duas razões: a primeira é porque dando a oportunidade da fala podemos responsabilizar o sujeito; e a segunda é porque é a partir das palavras que podemos afetar um sujeito. Se voltarmos ao exemplo do corpo, encontramos relatos da época da ditadura de sujeitos que mesmo torturados não se submeteram ou não entregaram seus companheiros. A tortura do corpo não indicava necessariamente uma mudança da alma. Podemos também pegar um exemplo de Lacan que ilustra muito bem isso do que estamos falando: certa vez perguntaram a ele como fazer para tirar alguém de sua consciência. Ele respondeu: esfolando! Quando estamos lidando com o anímico, não se trata de consciência no sentido de estado vigil em oposição ao estado de sono; trata-se de consciência no sentido de uma lógica e de uma organização. E se Freud, a partir do tratamento das histéricas, recusa essa lógica, foi porque recusava essa lógica consciencial que definia o conceito de normalidade e de loucura.
Nesse mesmo texto, Freud lembra ainda o quanto será insuficiente buscar no cérebro a etiologia das neuroses e da cisão do aparelho psíquico.
Até aqui, entretanto, a investigação do cérebro e dos nervos desses doentes não permitiu encontrar nenhuma modificação palpável, e alguns dos aspectos do quadro patológico chegam até a proibir a expectativa de que um dia se possa apontar, com meios de investigação mais apurados, modificações de tal ordem que sejam capazes de esclarecer a doença. (FREUD, 1890/1905, p. 273).
E mais adiante Freud conclui que tal investigação deveria, na verdade, se voltar para outro ponto para ser bem sucedida.
Nesse processo, fez-se a descoberta de que, pelo menos numa parcela desses enfermos, os sinais da doença não provinham de outra coisa senão da influência modificada da vida anímica sobre seu corpo, devendo-se, portanto buscar no anímico a causa imediata da perturbação. (FREUD, 1890/1905, p. 274).
3 O PROJETO DE 1895
Freud estabeleceu dois postulados que, inter-relacionados, formam as bases da primeira parte do Projeto. O primeiro postulado é a teoria do funcionamento energético quantitativo que diz respeito à capacidade de processamento da quantidade de energia pelo aparelho neuronal. A esta quantidade de energia Freud chamará, em 1895, de Q. Ela será a base para a posterior construção do conceito de pulsão como força constante e exigência de trabalho feita à vida anímica. O segundo postulado trata da teoria neurônica na qual Freud descreve o neurônio como partícula material, elemento constituinte do aparelho psíquico, além de identificar as barreiras de contato entre eles, as quais facilitam ou dificultam a passagem de quantidade de energia pelos neurônios. Os neuropsicanalistas acreditam que esses dois postulados podem explicar respectivamente os conceitos de pulsão e recalque, ou, pelo menos, indicar um caminho para pensá-los cerebralmente. Entretanto, o Projeto de 1895 é um texto que podemos considerar como fundante da teoria psicanalítica ou um texto que contém alguns elementos, mas não seus princípios? Para responder a essas questões passaremos por dois pontos que são fundamentais: em primeiro lugar as teorizações de Freud contidas no Projeto; segundo, a necessidade de percorrer os impasses que levaram Freud ao abandono das explicações neurológicas e que levou ao desenvolvimento da noção freudiana da sexualidade.
A partir da relação dos dois postulados, Freud classifica os sistemas de neurônios em:
permeáveis Ф (aqueles que não oferecem resistência e nada retêm), destinados à percepção; impermeáveis ψ (aqueles que são dotados de resistência, retentivos de Q), que são portadores da memória e com isso provavelmente também dos processos psíquicos em geral. (FREUD, 1895, p. 352).
Mais adiante, através dos estudos sobre a consciência, de como as qualidades (sensações) se originam e se apresentam no aparelho psíquico, Freud vê a necessidade de um novo sistema de neurônios, o sistema ω. O sistema ω é consciente e, diferentemente dos outros dois, ele é excitado através dos estímulos perceptuais receptados pelos órgãos sensoriais produzindo diversas qualidades que ele chama de sensações conscientes. Vemos aqui o início do que Freud, na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900), chamará de divisão do aparelho psíquico, mas sem a necessidade de apelar para substrato neuronal.
A partir da classificação dos neurônios, Freud vai questionar o que torna um neurônio permeável ou não e quais são os fatores que induzem a facilitação da passagem de Q e os quais a dificulta. Ele relacionou essas características à localização do neurônio e à Q. Sendo que os neurônios permeáveis são geralmente encontrados nas periferias do sistema ω, pois este sistema recebe quantidades mínimas de energia. O sistema ω é completamente permeável e não apresenta memória, ao contrário do sistema ψ. Freud presume então que
toda a resistência das barreiras de contato se aplica somente à transferência de Q, mas que o período do movimento neuronal é transmitido a todas as direções sem inibição como se fosse um processo de indução. (FREUD, 1895, p. 362).
Ele busca o conceito período nas ciências exatas, mais especificamente na mecânica física, e tem característica temporal. Freud vai considerar ω como incapaz de receber Q sendo apenas excitado pelo período que proporciona um investimento mínimo de Q que vai estabelecer a consciência.
Freud afirmará que o sistema nervoso tem por característica livrar-se do excesso de Q (GARCIA-ROZA, 1991, p. 88), e denominará isso de princípio de inércia neurônica. Este excesso provocaria desprazer ao sistema nervoso. Ele relacionará esse princípio ao modelo de funcionamento do arco reflexo, no qual as excitações de origem externas recebidas pelos neurônios sensitivos, permeáveis, tendem a ser completamente descarregadas nas extremidades motoras. As excitações de Q, por serem de origem endógena, não podem ser evitadas por meio da fuga como pode ocorrer com um estímulo externo; assim ele não consegue se descarregar totalmente do investimento que seria a tendência inicial do princípio da inércia que seria reduzir Q a zero, o sistema nervoso então vai tentar manter esta quantidade de energia o mais baixo possível, a fim de se evitar o desprazer causado pelo aumento do investimento no aparelho. Quando há um excesso Q nas vias endógenas que atravessaram pelas "telas" de Ф, que são dispositivos que impedem que grandes quantidades de energia passem provocando algum dano ao aparelho, isso provocará um aumento do investimento em ψ, "que é sentido como desprazer pelo ω" (FREUD, 1895, p. 372). Podemos considerar isso como uma exigência de trabalho feita ao aparelho psíquico, requerendo uma descarga. Aqui temos Freud estabelecendo a existência de uma "estranha" quantidade de energia que nunca cessa, quando sabemos que, na biologia, as estimulações internas são sempre cíclicas. E que será o que Freud em 1915 denominará de pulsão (FREUD, 1915).
Na parte II do Projeto, Freud "procura inferir da análise dos processos patológicos alguns determinantes adicionais do sistema fundamentado nas hipóteses básicas" (FREUD, 1895, p. 401), encontradas na parte I. Procura nesse momento descrever a psicopatologia da histeria como uma compulsão exercida por ideias excessivamente investidas de Q. Essas ideias não provocariam nenhum mal-estar nas demais pessoas; pelo contrário, as outras pessoas parecem ridículas, ininteligíveis. Essa compulsão torna-se inteligível quando retornamos às suas origens. Freud observou que essas ideias eram resultado de uma defesa que indicava alguma situação de risco já vivida anteriormente pelo sujeito; essas ideias sofreram deformações para que fossem aceitáveis para a consciência. Freud acena aqui para uma singularidade do sujeito e não para uma determinação neuronal, uma vez que estas ideias investidas dependeram de um trabalho do mesmo.
Podemos ver isso retomando um texto contemporâneo ao Projeto: As Neuropsicoses de Defesa de 1894. Nele Freud dedica-se em buscar a etiologia das neuroses, caminho que uma vez assumido o levou à sexualidade, ou seja, a existência de um liame entre elas, não recorrendo aos neurônios para construir essa articulação. O enfoque neste texto está nas representações e não em neurônios. Freud afirma que as patologias psíquicas advêm da impossibilidade do sujeito "resolver a contradição da representação incompatível e seu eu por meio da atividade do pensamento" (FREUD, 1894, p. 55). A questão que se apresenta é a de um conflito psíquico. Freud conclui o raciocínio afirmando que essas representações incompatíveis estão no campo da experiência e das sensações sexuais. Estava inaugurada a via de investigação que atravessa toda sua obra; que jamais foi negada, ao contrário foi afirmada e reafirmada a cada nova etapa.
Neste texto, Freud lança mão do conceito de defesa, que podemos definir como um trabalho sobre as representações investidas sexualmente, visando impedi-la de fazer associações e retirando o afeto. Em Observações Adicionais sobre Neuropsicoses de Defesa (1896), a expressão "defesa" toma uma conotação generalizada, passando "recalque" a ser o mecanismo específico das neuroses contra a representação agora incompatível.
Em todo caso, há o problema do destino do excesso de excitação. Freud apresenta como possibilidade a esse excesso, aquilo que ele denomina , nesses textos, de afeto, tomar o caminho da "transformação de sua excitação em alguma coisa somática"(FREUD, 1894, p. 56). Denominando esse processo de conversão histérica, essa somatização do afeto representa a constatação de Freud da atuação do psíquico no somático e não o contrário. De forma que tanto a teoria do funcionamento energético quantitativo como a teoria neurônica se apresentam como explicações supérfluas quando estamos tratando de representações.
Freud observa que as ideias histéricas surgem a partir de um deslocamento psíquico entre duas ideias; uma provinda de algum acontecimento anterior, geralmente na infância e ligado à sexualidade do sujeito, que na época não sofria recalque deste, pois seu aparelho psíquico não estava maduro o suficiente para sentir a sua sexualidade como após a sua entrada puberdade. Essa primeira ideia não é inteligível ao sujeito, num primeiro momento, porque foi recalcada. A segunda ideia é a que causa sofrimento ao sujeito, ela é conhecida deste, sendo que muitas vezes pode ser tratada ou evitada, mas não desaparece, porque não é a origem do problema. Essa ideia é apenas um símbolo para o histérico da ideia original que lhe causa sofrimento, algo que lhe retorna à situação traumática. Ambas adquirem um aspecto ameaçador ao sujeito a partir do momento em que há uma construção do eu com representações que contrariam as vividas.
Freud vai dizer, então, que é a partir da puberdade que ocorre a liberação sexual, que as experiências vividas anteriormente que tinham traços da sexualidade, mas que não eram assim sentidas são ressignificadas e retornam como lembranças de que a liberação sexual ocorreu prematuramente, que pode desencadear "perturbações que ultrapassam o normal" (FREUD, 1985, p. 411). Percebemos a elaboração daquilo que ficou conhecido como teoria da sedução traumática.
Freud descreve que as perturbações do pensamento pelo afeto provêm de um investimento de Q originado em alguma experiência dolorosa que gerou desprazer. Como sabemos pelo princípio da inércia neuronal que o aparelho psíquico tende a se livrar deste acúmulo de Q. Mas quanto maior a quantidade Q "mais difícil é para o ego a atividade de pensamento, que, segundo tudo indica, consiste no deslocamento experimental de pequenas Q" (FREUD, 1985, p. 412). Assim, o eu não estaria "maduro" para suportar a exigências dessa carga, o que ofereceu uma causa para os sintomas neuróticos: "alguma coisa contemporânea toma lugar de algo do passado, e alguma coisa sexual é substituída por algo não sexual que lhe é análogo" (FREUD, 1896, p. 170).
A teoria da sedução traumática significava um ponto de apoio para que Freud construísse a etiologia das neuroses. Contudo, ela é um momento pontual na obra de Freud, não se sustentando mediante os resultados da prática da clínica psicanalítica. Não havia como determinar um evento traumático específico; ou ainda nem sempre ocorriam, aliás, na maioria dos casos tratava-se de fantasias. Em Minhas Teses sobre o Papel da Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1906), o deslocamento da análise para as fantasias é evidente. Freud dirá que aprendeu "a decifrar muitas fantasias de sedução como tentativas de rechaçar lembranças da atividade sexual do próprio individuo" (FREUD, 1906, p. 260). As construções das fantasias pelo sujeito revelam que a sexualidade freudiana não possui acento no orgânico, ao contrário, trata-se de uma psicossexualidade, pois nesse mundo das ideias as pulsões sexuais podem encontrar satisfação.
Freud abandonou a teoria da sedução traumática, das explicações neurológicas, mas continuou a pesquisa, pois, restava a certeza de que a etiologia das neuroses estava relacionada com a questão sexual. No final do artigo A sexualidade na etiologia das neuroses (1898), Freud dá um passo que demarca sua diretriz afirmando que "as crianças são capazes de todas as atividades sexuais psíquicas, e também de muitas somáticas" (FREUD, 1898, p. 266). Freud conclui que há uma sexualidade infantil uma vez que uma neurose significava que havia atividade sexual, e que "as neuroses em crianças são muito comum, muito mais comum do que se supõe" (FREUD, 1917, p. 366). Devemos ressaltar a audácia de Freud e frisar seu modo de encaminhar a questão: investigar a sexualidade infantil somente encontra fundamento no campo psíquico, pois como sabemos seu estado de desamparo físico e ausência de maturidade dos genitais inviabiliza qualquer forma de atos que leve à reprodução! Podemos perceber um isolamento do Projeto, significando o abandono da capa neurológica como causa das neuroses, passando a enfatizar os processos pulsionais.
4 CONCLUSÃO
Após essas colocações, como será possível pensar uma disciplina intitulada neuropsicanálise, uma vez que a práxis psicanalítica não é da ordem nem de uma descoberta do que seria a natureza neuronal do homem?
Não estamos nos referindo aqui à neurociência. Em relação a ela, preferimos adotar a posição de Zizek: o que ela produz pode trazer mudanças psíquicas a partir do momento em que um saber pode afetar um sujeito, e não que seu saber seja sobre o que é da ordem do sujeito (ZIZEK, 2007). Estamos nos referindo ao acréscimo do termo neural para especificar ao que é próprio à psicanálise. Pois como vimos na exposição dos termos análise e psíquico, nós não temos a possibilidade de acrescentar a esse termo o neural. Não se trata de uma questão de dialogar ou não, mas de saber se há algum problema comum em torno do qual o diálogo seria possível.
A ênfase dada pelos neuropsicanalistas ao Projeto é uma tentativa de condenar um autor pelo que disse ou escreveu num momento pontual, não lhe oferecendo defesa ou mesmo desconsiderando convenientemente as mais de quatro décadas que se seguiram em sua obra. Como mostramos, o termo psicanálise, cunhado por Freud, remete às questões anímicas e à busca pela causa; o que contrapõe as ideias de objetivação e síntese.
Refeito o caminho trilhado por Freud, seus impasses e inovações, podemos afirmar que o conceito de sexualidade surge devido à impossibilidade de uma explicação neurológica para a etiologia das neuroses. Diante de tal impasse Freud não recua, passando a enfocar um conflito psíquico ao nível das representações. Assim rompe com o primado do campo fisiológico explicando a somatização, conversão histérica, como resultado desse conflito, isto é, a atuação do psíquico no somático.
Ao elaborar a teoria da sedução traumática como causa das neuroses, Freud procurou sempre colocá-la em questão dentro da experiência psicanalítica. Tal teoria acabou, como desenvolvido, invalidada pela descoberta da possibilidade de satisfação pulsional através das fantasias, que longe de ser um retrocesso para a psicanálise, significou o afastamento do mundo aparente, isto é, de uma suposta realidade, e por outro lado abriu novas possibilidades de avanços para a pesquisa psicanalítica.
Nesse momento Freud tinha condições de articular o aparelho psíquico construído na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900) com aquilo que perturba esse sistema, que estava intrinsecamente ligado às neuroses e, por consequência, à sexualidade, à pulsão. Definida como uma força constante que impele o sujeito a buscar satisfação através de um objeto, e que uma vez negada pelo recalque leva a formação do sintoma. Entendemos como sintoma a atividade sexual do neurótico, uma satisfação paradoxal, pois pode gerar desprazer. Foi possível demonstrar durante o texto que Freud retira a sexualidade de qualquer determinação biológica, social ou a possibilidade de traçar uma linha de evolução. Assim, podemos dizer que o conceito de pulsão somente possui validade articulado dentro da grade conceitual psicanalítica.
A questão da escolha de objeto mostra-se uma das mais relevantes para a compreensão da sexualidade, uma vez que a pulsão mostra-se independente e anterior ao objeto. Apesar da necessidade de um objeto, Freud afasta qualquer fixidez na ligação entre pulsão e objeto. Portanto, o objeto é contingente e não originário o que permite falar em uma escolha na dimensão de um sujeito.
O problema tratado por Freud é de uma psicossexualidade que é fundante e possibilita a coerência do discurso e prática psicanalítica. A biologia se mostrará insuficiente para separar os sexos ou explicar a escolha de objeto. A análise das fantasias construídas pelo sujeito, isto é, de sua realidade psíquica é o que permite chegar à existência de um único sexo para o inconsciente, sexo fálico. Por isso, o que possibilita uma posição subjetiva diante da castração ou da falta é um significante que se articula no psiquismo, o falo; e não uma questão neuronal.
A obra do neurologista Freud se curva diante do reconhecimento do trabalho do psiquismo que encontra dividido e funcionando através de representações, e tendo que atender as exigências pulsionais constantes de satisfação.
É seguindo por esse caminho, e não o neurológico, que podemos compreender a sexualidade em Freud. Uma sexualidade afetada pelo significante a qual as consequências são a perda da referência para escolha de um objeto e a abertura da possibilidade de uma produção de infindáveis outros objetos. Tal situação retira a escolha de objeto da ordem biológica, levando-a para o nível individual, do sujeito e não da espécie humana. Materializar o psiquismo é tentar transformar as enfermidades psíquicas em tumores que bastam ser localizados e removidos por via cirúrgica; dessa forma, a neuropsicanálise no intuito de totalizar deixa de fora a sexualidade, aliás, deixa de fora a própria psicanálise.
Respeitando o sentido do problema da psicanálise, concluímos que conceitos como recalque e pulsão estão afastados de uma ordem biológica ou social. Portanto, a busca de uma base orgânica para os conflitos psíquicos será insuficiente para uma sexualidade que se desenrola no nível psíquico das representações. Desprezar a vinculação do psiquismo com a sexualidade torna a prática psicanalítica inexplicável.
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Artigo recebido em: 10/09/2009
Aprovado para publicação em: 20/09/2012
1Utilizamos esse termo da mesma maneira que Freud utiliza em alguns textos iniciais: o conjunto dos problemas.