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Mental
Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X
Mental vol.13 no.24 Barbacena July/Dec. 2021
ARTIGOS
Relato de experiência - conexões com a família no trabalho na saúde mental infantojuvenil: entre um ideal e o cotidiano
Lines of connections with the family in child and youth mental health work: between the ideal and the daily life
Líneas de vinculación con la familia en el trabajo en salud mental infantil y juvenil: entre lo ideal y lo cotidiano
Roberta Carvalho RomagnoliI; Tulíola Almeida de Souza LimaII
IPsicóloga; Mestre em Psicologia Social (UFMG); Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Pós-doutora em Análise Institucional (Universidade Cergy-Pontoise - França); profa. do PPG em Psicologia da PUC Minas
IIPsicóloga; Mestre em Psicologia - Estudos Psicanalíticos (UFMG); Doutoranda em Psicologia (PUC-MG)
RESUMO
Este trabalho problematiza algumas relações vivenciadas pelos técnicos de políticas públicas que atendem o público infantojuvenil e suas famílias a partir de uma pesquisa-intervenção sobre intersetorialidade. Inicialmente, são apresentados elementos históricos sobre a composição da Rede de Atenção em Saúde Mental do município de Belo Horizonte e os fluxos de atendimento nesta rede para o referido público. Em seguida, são feitas considerações sobre as famílias atendidas e os desafios nas relações com os técnicos, passando pelas prerrogativas de acompanhamento baseadas na Reforma Psiquiátrica e em serviços territoriais. Analisa-se, então, um caso com demanda para a saúde mental através de linhas que indicam possibilidades de enlaces e articulações dos atores envolvidos e que passam pelas múltiplas vulnerabilidades comuns a muitos jovens e familiares, incluindo a problemática das drogas, ideais de funcionamento e composição familiar dos sujeitos atendidos; relações com Conselho Tutelar; possibilidades de trabalho intersetorial e outras condições para o cuidado em saúde mental. Conclui-se que, apesar dos desafios do trabalho com esse público, uma análise da composição das forças que atuam nos diferentes encontros é essencial para a construção de uma prática potente e resolutiva que contribua para a autonomia das famílias de crianças e adolescentes acompanhados nas políticas públicas.
Palavras-chave: Famílias; Saúde mental; Crianças; Adolescentes.
ABSTRACT
This paper discusses some relationships experienced by technicians of public policies that serve children and youth and their families from a research-intervention on intersectoriality. Initially, historical elements are presented about the composition of the network of mental health care in the city of Belo Horizonte and the service flows in this network for this audience. Then, considerations are made about the families assisted and the challenges in the relationships with the technicians, going through the prerogatives of monitoring based on the psychiatric reform and territorial services. A case with a mental health demand is then analyzed, through lines that indicate possibilities of links and articulations of the actors involved and that go through the multiple vulnerabilities common to many young people and their families, including drug problems, ideals of family functioning and composition of the subjects assisted, relationships with the Guardianship Council, possibilities of intersectoral work and other conditions for mental health care. We conclude that, despite the challenges of working with this public, an analysis of the composition of the forces that act in the different meetings is essential for the construction of a powerful and resolutive practice that contributes to the autonomy of the families of children and adolescents assisted by public policies.
Keywords: Families; Mental health; Children; Adolescents.
RESUMEN
Este trabajo discute algunas relaciones experimentadas por los técnicos de las políticas públicas que atienden a los niños y jóvenes y sus familias, a partir de una investigación-intervención sobre la intersectorialidad. Inicialmente, se presentan elementos históricos sobre la composición de la red de atención a la salud mental en la ciudad de Belo Horizonte y los flujos de servicios en esta red para este público. A continuación se hacen consideraciones sobre las familias atendidas y los retos en las relaciones con los técnicos, pasando por las prerrogativas de seguimiento basadas en la Reforma Psiquiátrica antimanicomial y los servicios territoriales. También se analiza un caso con demanda de salud mental, a través de líneas que indican posibilidades de vínculos y articulaciones de los actores involucrados y que pasan por las múltiples vulnerabilidades comunes a muchos jóvenes y sus familias, incluyendo la problemática de las drogas, los ideales de funcionamiento y la composición familiar de los sujetos atendidos, las relaciones con el Consejo Tutelar, las posibilidades de trabajo intersectorial y otras condiciones de atención a la salud mental. Se concluye que, a pesar de los desafíos de trabajar con este público, el análisis de la composición de las fuerzas que actúan en los diferentes encuentros es esencial para la construcción de una práctica potente y resolutiva, que contribuya a la autonomía de las familias de los niños y adolescentes seguidos en las políticas públicas.
Palabras-clave: Familias; Salud mental; Niños; Adolescentes.
1. A Saúde Mental Infantojuvenil nos Territórios de Belo Horizonte
No município de Belo Horizonte (MG), a rede de saúde mental se constituiu articulada com o movimento da Reforma Psiquiátrica e tem a participação de atores do movimento da luta antimanicomial, partindo das prerrogativas de assistência aos cidadãos em situação de sofrimento mental de modo democrático, com a participação ativa dos sujeitos e com o cuidado em liberdade inserido em uma rede de cuidados integrada, para além das necessidades estritamente ligadas à saúde mental. Nesta rede, os pontos de atenção a crianças e adolescentes são três: Centros de Referência em Saúde Mental Infantojuvenis (CERSAMIs); equipes de saúde mental na Atenção Primária à Saúde (APS), compostas por psicólogos em todas as Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou Centros de Saúde (CS) e psiquiatras de referência; Equipes Complementares (EC) em cada regional de saúde da cidade, compostas por terapeuta ocupacional, fonoaudióloga e psiquiatra infantil e uma Unidade de Acolhimento Transitório Infantojuvenil articulada aos CERSAMIs. As equipes do NASF (Núcleos de Apoio à Saúde da Família) também atendem essa faixa etária, bem como as equipes de Consultório de Rua.
Destaca-se o Programa Arte da Saúde, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, para crianças e adolescentes de seis a 18 anos, que visa a fortalecer a capacidade criativa e expressiva dos usuários através de atividades que promovam a sociabilidade, inclusão social, convívio familiar, escolar e comunitário. O Programa oferece oficinas de arte variadas: dança, música, teatro, circo, artesanato, artes plásticas, entre outras e atividades socioculturais realizadas em equipamentos disponíveis nos territórios. Tais oficinas visam a contribuir para um processo de politização sobre as queixas que serviços, escolas ou famílias fazem sobre as chamadas crianças-problema, no sentido de ampliar a análise sobre os casos para além de uma patologização dos comportamentos e funcionarem como ateliês de cidadania (TEIXEIRA, 2008). Busca-se trabalhar com a subjetividade dos participantes, potencializando aptidões e talentos que possam contribuir para o enfrentamento de situações de vulnerabilidade social, usando a arte e outras possíveis expressões para a produção de cidadania (PINTO, 2008). Há iniciativas também de circulação na cidade, com visitas a parques, museus, cinema, dentre outros locais. As equipes de saúde podem encaminhar usuários para o Arte da Saúde, bem como mediar a demanda para encaminhamentos que outros equipamentos da rede intersetorial possam realizar. Uma dificuldade comum, porém, é o acesso e permanência dos participantes em função de restrições do território ou de inserção social que requerem pactuações permanentes entre os agentes para uma assistência adequada e superação dessas restrições.
No ano de 1993 começaram a atender, na rede pública, as primeiras equipes exclusivas para o público infantojuvenil, no projeto-piloto com duas equipes de referência na cidade: os extintos Centros de Referência da Infância e Adolescência (CRIA). Em 2002, a partir da demanda de familiares e responsáveis pelas então chamadas crianças especiais, as Equipes Complementares foram montadas. Ao longo dos anos 2000, seminários e jornadas ocorreram visando a definir e implementar uma linha política e assistencial para o público em questão, como aponta Pinto (2008). Embora seja este o percurso histórico, dadas as condições atuais da rede, sabemos que a carga horária e oferta de assistência das EC não supre a demanda, gerando dificuldades de articulação e sobrecarga profissional. A função dessas equipes é auxiliar no diagnóstico diferencial, auxiliando na atenção a crianças e adolescentes com a continuidade de acompanhamento em outro ponto da rede, simultaneamente.
O fluxo de encaminhamento para as EC varia conforme a faixa etária, havendo critérios clínicos para as intervenções, como na chamada Intervenção a Tempo (MESSIAS, 2008). Embora hajam fluxos gerais, evidentemente há variações nas formas de organizar o atendimento conforme, por exemplo, o modo de divisão da avaliação entre as profissionais das EC, modo de acompanhamento e grupos de pais, dentre outras - conforme as condições deste trabalho vivo em ato, força que opera em processo e em relações (MERHY et al, 2007). Profissionais das EC relatam dificuldades em manter cuidado compartilhado com equipes no território dos usuários, em dar alta quando completam 18 anos de idade devido ao vínculo estabelecido e pela dificuldade de outros serviços da rede receberem usuários que apresentam alterações de comportamento em função de outros quadros, tais como em decorrência de comprometimentos neurológicos, para além da situação de sofrimento mental.
A rede se organiza através de uma série de dispositivos, incluindo diversas reuniões, para manutenção de contato e articulação para continuidade da atenção aos usuários. Reuniões de microáreas, fóruns temáticos específicos, reuniões municipais ampliadas sustentam o projeto de atenção a crianças e adolescentes, público tantas vezes considerado não prioritário entre os trabalhadores da saúde mental.
Dentre os desafios atuais para a continuidade desse trabalho, além da deficiência de recursos humanos para a demanda crescente populacional, há o reconhecimento das prioridades clínicas, as discussões sobre usos prejudiciais de drogas, a evitação de automatismos ou espécies de burocratização da assistência pela reprodução de fluxos e protocolos que não consideram as particularidades das situações. Em nossa experiência profissional, notamos que o acolhimento e a contra referência entre os serviços de urgência e outros pontos da rede, incluindo o referenciamento para o território, são também pontos frágeis. Nem sempre os serviços têm recebido condições para o transporte dos usuários, algo fundamental em um município de grande porte com rede de transportes públicos precária. As altas nem sempre são feitas de modo articulado à rede assistencial ou social. Em alguns serviços, os contatos com familiares ficam restritos, o que restringe as possibilidades de tais articulações. Pouca oferta de especialidades, como neurologia infantil e participação de pediatras nas discussões clínicas de rotina, são dificultadores. Atividades de promoção de saúde e outras específicas para adolescentes são desafios para as equipes, especialmente na atenção primária. Por vezes, as equipes de saúde passam a ter conhecimento de usuários em função de intercorrências que os trazem para a rede via outras políticas setoriais. Capacitações relacionadas à farmacologia, bem como orientações e protocolos alinhados às Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde são mencionados como necessidades cotidianas (BRASIL, 2010). As funções específicas de gestão impactam diretamente na qualidade e integração da assistência, havendo necessidade da sensibilização de gestores locais, especialmente para as especificidades da saúde mental na infância e adolescência (FIOCRUZ, 2015).
As famílias são essenciais nas práticas de cuidado com adolescentes e crianças em sua complexidade e necessidade de sustentação cotidiana. Vários são os casos que têm comprometimento das condições de vida em função da violência, desigualdade social e pobreza, falta de acesso a equipamentos de cultura e lazer, com especificidades territoriais, compondo uma série de vulnerabilidades e riscos que repercutem nos processos de adoecimento e saúde. No entanto, apesar desses desafios cotidianos, as prerrogativas de promoção de saúde por parte das equipes incluem práticas de cuidado familiar ampliado, dependendo das diferentes estruturas e funcionalidades das famílias (BRASIL, 2010).
Consideramos a composição atual da rede de Belo Horizonte como um exemplo potente de atenção psicossocial a crianças e adolescentes, sujeitos de direitos, sendo função do Estado promover bem-estar social e proteção integral a esse público (BRASIL, 2014). Mas destacamos que o público de adolescentes requer uma necessidade de sensibilização e qualificação de atendimentos que considerem questões voltadas à diversidade de identidade, saúde sexual e reprodutiva, além da exposição a violências nos territórios, sendo estes temas demandados nas discussões coletivas sobre as condições de assistência.
As relações entre o público infantojuvenil, seus familiares e os técnicos que os atendem podem ser analisadas como processos com composição heterogênea, nos quais existem não somente endurecimentos e reproduções, mas também um aglomerado de forças imanentes ao campo social, conforme diferentes processos se agenciam ou não nos grupos familiares atendidos. Nesse sentido, abordamos a rede e as relações estabelecidas em sua complexidade e em sua força de reprodução e de mutação, funcionamentos diferentes com efeitos distintos (DELEUZE e GUATTARI, 1995). No viés teórico da esquizoanálise, perspectiva ligada à obra de Deleuze e Guattari, essas relações são compostas por linhas duras, por modelos transcendentes que tentam representá-los e também por linhas de virtualidade, de acontecimentos que conduzem à invenção, com possibilidades de sustentar novas práticas e outras composições (ROMAGNOLI, 2004). Essas linhas, com funcionamento transversal, sustentam situações em que aparecem relações hierarquizadas e reprodutivas, com diferentes níveis de exercício de poder entre os envolvidos e também conexões produtivas com práticas potentes, sendo necessária uma leitura processual sobre essa interação, considerando sua dinâmica e seus movimentos próprios. É por esse olhar que pretendemos rastrear o que ocorre entre os usuários, as famílias e os técnicos, percorrendo linhas que ora se endurecem, ora se conectam, já que as normativas técnicas e legais orientam o trabalho, mas não são suficientes para garantir práticas efetivas, sendo a micropolítica das relações um aspecto primordial para que os processos se desenvolvam em uma perspectiva de promoção de vida e saúde.
2. Possibilidades de Inserção das Famílias na Saúde Mental
A rede de saúde mental prevê a participação de familiares e usuários em consonância com as atuações dos técnicos e profissionais, seguindo o paradigma da atenção psicossocial desenvolvido a partir da Reforma Psiquiátrica. Destaca-se, hoje, a descentralização das equipes de atendimento para serviços de base territorial, especialmente as UBSs, que são referência para a população residente próxima ao seu território e têm como prerrogativa o funcionamento articulado à rede de atenção. Belo Horizonte adota o formato de equipes mínimas de saúde mental na APS, que referenciam casos e auxiliam o atendimento dos mesmos pelas outras categorias da Estratégia de Saúde da Família (ESF), através de práticas de matriciamento e outros dispositivos para o cuidado compartilhado. A atuação das categorias profissionais nessa lógica de atenção é certamente um desafio diante da hegemonia histórica do saber médico-centrado e de demandas de atenção baseadas em ideais de resolutividade rápida e eficácia medida a partir da remissão de sintomas. O modelo comunitário, portanto, com a rede de serviços territoriais, requer atuações profissionais que ampliem seu repertório de ação e concepção dos problemas, considerando também o saber dos usuários e familiares atendidos, além de práticas intersetoriais atentas à complexidade dos casos apresentados.
Atualmente, o trabalho na rede de saúde mental implica em uma clínica com a influência das mudanças propostas por Basaglia (1985), com deslocamento de ênfase na doença para o sujeito que adoece. No modelo que pretende superar certa fragmentação entre a biologia, subjetividade e sociabilidade, objetiva-se criar projetos terapêuticos amplos e aposta-se na atitude do próprio sujeito para manter sua saúde geral, considerando que as ações de saúde são sempre práticas submetidas a determinantes sociais, políticos e econômicos (CAMPOS, 2002). Assim, o tratamento deve ser feito em liberdade, com a perspectiva de garantia dos direitos de cidadania dos usuários, contribuindo para maior contratualidade social do sujeito e suas possibilidades de trocas sociais. Trata-se de construir uma prática ampliada, que leve em conta a reabilitação do usuário atendido, sendo necessárias intervenções comunitárias - no campo social e cultural - para que a sociedade também modifique seu modo de se relacionar com a loucura (AMARANTE, 2007), bem como suas representações sociais sobre os fenômenos do sofrimento humano. As famílias podem ser percebidas, neste contexto, como suporte para as trocas, mas também como local em que se exerce a violência ou o poder.
Atualmente, o que é postulado, sobretudo a partir da influência da experiência basagliana, é o protagonismo da família, como parceira na organização das propostas de cuidado social, planejadora e sujeito dos serviços de saúde mental, nas pesquisas, na formação e capacitação de recursos humanos e nos projetos de trabalho, co-autora nas decisões e nas ações (ROSA, 2011, p. 75).
A prática no campo da saúde mental implica também no acolhimento do grupo familiar através do qual a pessoa com sofrimento mental se insere na sociedade. Se em períodos anteriores o isolamento social era a principal medida para lidar com a loucura, a família passa, então, a ser requisitada como parceira dos serviços e espaço possível de provimento de cuidados (BRASIL, 2013). Esta relação com a família faz parte do objetivo de reconstrução da cidadania de tais usuários, mesmo porque a reinserção social encontra com frequência, como um dos seus desafios, a inclusão do usuário no próprio grupo familiar. Entretanto, com frequência os serviços não têm estratégias para informação e participação dos familiares no tratamento de usuários em situação de sofrimento mental grave ou não têm ações efetivas para a construção de autonomia desses grupos (DELGADO, 2014). Há trabalhos que corroboram a importância de se incluir tais grupos na rotina de atendimento dos serviços (BARROS et al., 2013; DELFINI et al., 2017), através de ajuda mútua entre eles, compartilhamento de experiências e até mesmo fiscalização pelas famílias e usuários dos serviços oferecidos (DELGADO, 2014). Outros aspectos frequentemente abordados na literatura sobre o tema, como a sobrecarga vivida pelos familiares, dúvidas sobre a origem dos quadros de sofrimento mental, bem como estigmas relacionados a essas vivências, são questões que requerem maior apropriação por parte das equipes dos serviços da rede de atenção (FIOCRUZ, 2015).
As relações das famílias com os técnicos de referência variam conforme a natureza das instituições de tratamento, dos processos de trabalho existentes, além de aspectos não facilmente identificáveis, mas nem por isso menos operantes, tais como os valores pessoais relacionados às condições de vida do público atendido e as perspectivas teórico-práticas que são utilizadas como referenciais para as intervenções. Rosa (2011) demonstrou como as famílias elaboram um conhecimento sobre o transtorno para então desenvolverem um cuidado cotidiano e como se relacionam com as intervenções dos profissionais. Já em relação aos profissionais psicólogos, eles têm focado suas ações majoritariamente nos indivíduos, deixando os coletivos para um segundo plano, que passam a ser ignorados ou desvalorizados (ROMAGNOLI, 2004). O atendimento a grupos e familiares acaba sendo algo pouco conhecido e a família, muitas vezes, não se constitui como objeto de intervenção e de propostas de mudanças nas relações com os próprios usuários em tratamento sendo, porém, responsabilizadas pelas diversas manifestações e alterações dos mesmos.
No contexto de pesquisa que realizamos sobre as famílias e as políticas intersetoriais observamos, por um lado, técnicos frustrados por não conseguirem mudanças significativas na qualidade de vida dos usuários atendidos e, por outro, usuários e familiares submetidos a um discurso de saber dos profissionais que sofrem com os transtornos de seus membros e se veem sem condições de mudar positivamente a relação com os mesmos. Impasses que, no nosso entender, emergem hoje no domínio da saúde mental. Apesar desses desencontros, há recomendações para atendimentos coletivos em documentos normativos, como estratégia de atendimento para o público infantojuvenil. Para a atuação na APS, considera-se o grupo como espaço potencial de promoção de saúde e prevenção de agravos em uma perspectiva de promoção de direitos da população. Já a proximidade com espaços de convivência e instituições diversas pode facilitar ações integradas no território (BRASIL, 2010).
Aliás, destaca-se que a superação do modelo centrado nos hospitais psiquiátricos demorou significativamente: neste campo, o percurso de desenvolvimento da rede encontra o desafio ainda atual de superar a desassistência e a institucionalização dos jovens. As especificidades das relações das famílias de crianças e adolescentes com os serviços das diferentes políticas públicas relacionam-se ao fato de tais sujeitos serem frequentemente levados para os atendimentos sendo falados pelos adultos - sejam responsáveis, cuidadores ou familiares - o que marca a necessidade de parceria no cuidado (COUTO e DELGADO, 2015). A clínica com bebês e crianças pequenas, por exemplo, intervém no vínculo entre os pais e responsáveis com seus filhos no modo como lidam com as expectativas do nascimento da criança e do seu desenvolvimento, ressignificando experiências relacionadas aos quadros de sofrimento mental. Ao se trabalhar com esses adultos, busca-se proporcionar trocas de experiência entre os familiares, novos saberes sobre a criança e a situação que a levou ao tratamento, além de se oferecer um novo olhar sobre a criança e seu destino (SILVA e MELO, 2012).
Nas demandas escolares e clínicas, o trabalho com as famílias se faz necessário e geralmente indispensável para o progresso e continuidade do que é ofertado a esse público, já que a articulação dos adultos que convivem com crianças e adolescentes permite o aumento do acesso a condições adequadas para seu desenvolvimento, atestando que a intersetorialidade é um ponto de partida para a intervenção dos agentes públicos e deve ser continuamente construída.
As questões de gênero relacionadas aos cuidados de familiares apontam a presença e referência principal à mãe dos usuários em acompanhamento, tida como responsável central pelo cuidado (MUYLAERT, DELFINI e REIS, 2015). Na composição sociofamiliar é predominante o pai (figura masculina) como principal provedor de renda, mesmo com a participação materna, o que representa um excesso de tarefas e responsabilidades às mães. Nessas composições, entendemos que necessitamos priorizar intervenções que potencializem esses grupos singulares que apresentam circuitos reprodutivos e, muitas vezes, convivências conflituosas e difíceis. Tais intervenções podem problematizar os assujeitamentos e reproduções, sustentando a importância das relações e seu campo de efeitos, considerando os diferentes arranjos familiares com os quais lidamos para além da naturalização sobre a composição familiar e papéis pressupostos para homens e mulheres.
Nas publicações sobre as famílias de crianças e adolescentes em tratamento na rede de saúde mental existentes em número inferior ao campo adulto, é comum a queixa de fragmentação do cuidado e a dificuldade de acesso a serviços especializados, como indicam Delfini et al. (2017). Por vezes, as famílias se sentem desamparadas, sem acolhimento, encaminhadas de um especialista a outro, especialmente quando suspeitam de alteração nas crianças. Apesar de a atenção psicossocial não priorizar somente o atendimento em nível especializado de atenção, os relatos sugerem que um trabalho efetivo em rede tem ocorrido através de articulação de serviços a partir da atuação dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSi), em funções assistenciais e de organização do cuidado. A associação de quadros de sofrimento mental e violências foi estudada por Assis et al. (2009), com indicações de padrões violentos de comunicação intrafamiliares, o que pode suscitar angústia nos profissionais que atendem este público, mas partem de outras referências para analisar relações afetivas. A necessidade de maiores estudos, no entanto, é indicada recorrentemente. Outros temas estudados tratam das dificuldades de as equipes lidarem com configurações familiares variadas, o que temos considerado como ponto de análise neste trabalho.
3. Caso Lucas: Quando a Rede Protetiva Convoca a Saúde Mental
Nesse cenário, propomos abarcar o cotidiano de trabalho na rede de saúde mental com crianças, adolescentes e famílias através do caso de Lucas. Esse foi um caso associado à pesquisa-intervenção que teve como objetivo analisar a intersetorialidade através do modo de gestão do trabalho entre as políticas setoriais a partir das relações estabelecidas no NIR Técnico (NIR-T) de uma das regionais de Belo Horizonte. O NIR-T discute casos graves de violação de direitos assistidos pelas políticas de saúde, saúde mental, assistência social e educação, visando a agilizar e a qualificar a entrega de serviços públicos aos usuários e a assegurar a interlocução entre as gerências das políticas setoriais regionais, apoiando a sua função nas intervenções dos casos discutidos, sustentando ações coletivas e coordenadas. Nesse contexto, um dos desafios é o acompanhamento ao público infantojuvenil, pois as condições de garantia para bem-estar e proteção social nesta faixa etária pertencem a inúmeros setores e equipamentos institucionais, com dependência da mediação dos responsáveis que, por inúmeras razões, estão também em situação de vulnerabilidade.
Entendemos que as práticas de cuidado em rede desenvolvidas com Lucas e sua família devem ser abordadas por imanência, fazendo-se em movimentos associados às reproduções mas também a potências. A imanência é imprescindível para se pensar, na tentativa de sair do domínio das verdades e das causalidades, deslocando-nos para a experimentação e as conexões, sustentando as linhas de tensão da realidade para que as virtualidades possam se atualizar e as potências possam aflorar nos encontros entre esses grupos. Assim, levantamos as seguintes linhas: a linha do modelo ideal e a linha da vulnerabilidade, que serão traçadas concomitantemente à apresentação do caso. Essas linhas formam territórios compostos pelas famílias, pelos usuários e pelos técnicos. São redes de relações nas quais circulam marcas que afetam a todos e os enlaçam em ressonâncias muitas vezes endurecidas e reprodutivas.
Vamos ao caso: em um dia de rotina na gerência de atenção à saúde, recebemos a ligação de uma técnica do Programa de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) / Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) para nos informar sobre a situação de um adolescente que precisava de acompanhamento na rede de saúde mental. Foi marcada então uma reunião entre parte da equipe do Centro de Saúde, PAEFI, Conselho Tutelar e a referida gerência, com o objetivo de nos aproximarmos da complexidade do caso e pensar como lançaríamos pontes entre os serviços, sustentando uma prática intersetorial para além de leituras reducionistas e assistencialistas, na tentativa de buscar saídas para a problemática apresentada e integrar serviços, técnicos e políticas.
Lucas, 16 anos, residia com a avó de 89 anos. A mãe, Marlene, estava em situação de rua. O irmão mais velho vivia em São Paulo e outros familiares em cidades da região metropolitana, embora primos e tios demonstrassem grande desgaste com a situação. Apenas uma tia materna estava disponível para responder por ele nos diversos acionamentos da rede. O caso havia sido encaminhado ao PAEFI dois anos antes, por violação de direitos da idosa (a avó). Havia histórico de negligência da mãe e a relação entre eles sempre foi conflituosa, ao mesmo tempo em que a avó parecia representar uma espécie de figura materna para Lucas, que tinha com ela uma relação mais afetuosa.
A partir dessa composição familiar, inferimos a linha do modelo ideal de família, amparada na família nuclear como modelo imaginário de saúde e de harmonia. Na comparação de como a família de Lucas é e como deveria ser, a marca da inferioridade se inscreve nesses corpos, os define e os modela a ponto de afetar como cada um se percebe e se vê além da leitura da própria equipe. Percebemos, no modo como o coletivo ia construindo o saber sobre o caso, que estava implícito certo julgamento sobre esse arranjo familiar e o modo de exercício da maternidade por parte de Marlene. O fato de ela passar a viver na rua, sem o exercício de cuidado cotidiano com a idosa e com o filho, com necessidade de tratamento, parecia causar nos técnicos certo descontentamento, com desinteresse para a construção do vínculo nos serviços de atenção. Esse julgamento, presente também em outros momentos do trabalho em rede, se baseia ainda no uso das referências familiares dos técnicos com suas dinâmicas próprias, distanciando as equipes da concretude dos arranjos apresentados nos casos atendidos. Desconhecer outros modos de funcionamento dos grupos familiares, através de uma naturalização do modelo de família nuclear, leva a atitudes de opressão e culpabilização, frequentemente traduzidas em veredictos como o de família desestruturada (ROMAGNOLI, 2015a). Atitudes que atravessam as práticas de cuidado, afastando as famílias dos técnicos, não só da saúde mental, mas das outras políticas setoriais. Nas composições familiares atuais é usual a presença de famílias monoparentais, como a de Lucas, que devem ser abordadas em sua especificidade, em seu modo de exercer o cuidado e de ser família. Singularidade distinta dos arranjos das camadas médias, estrato social ao qual geralmente pertencem os técnicos.
A demanda inicial intersetorial foi a piora do quadro psíquico de Lucas nos últimos meses. Ele estava inquieto, desorganizado, não cumpria pequenos acordos. Mencionava querer ir morar com o irmão, mesmo sem documentos - pendência que mantinha seu vínculo com o CREAS. Passou a se dirigir espontaneamente e com agitação ao setor de políticas sociais e ao PAEFI, demandando cesta básica, zelo, atenção. Sabia-se que sua casa estava sendo frequentada por pessoas da comunidade, suspeitando-se de seu uso como ponto de consumo de drogas. Nesse período, envolveu-se em um furto no shopping e foi agredido por policiais. A dificuldade de contato e de manutenção de combinados incentivaram nova tentativa de articulação da rede de saúde mental. Como o passado de tentativa de inserção em acompanhamento nessa rede era conhecido, buscou-se outra possibilidade de vinculação, na suspeita de uma crise subjetiva agravada por fatores da sua vida social. Na trama complexa do caso, constatamos a linha da vulnerabilidade: em uma sociedade com grande desigualdade social gestada e mantida historicamente, as políticas públicas lidam com uma população socialmente desfavorecida, incluindo famílias, crianças e adolescentes que necessitam ser fortalecidos e amparados. A vulnerabilidade geralmente se associa à pobreza, mas não se reduz a ela, sendo uma soma de vulnerabilidades diversas na qual a baixa renda, a ausência ou precariedade de trabalho, o acesso precário a serviços básicos e a condições básicas de vida são aspectos que a produzem (ROMAGNOLI, 2015b). Essas situações podem se referir também ao ciclo vital específico, a adolescência, que se soma ao caso de Lucas, como fase de transição entre vida infantil e adulta com tensões próprias.
Na construção do caso, descobrimos que as equipes da rede de saúde sabiam que Lucas iniciou uso de substâncias psicoativas (SPAs) aos 10 anos de idade. Aos 14 anos foi levado a serviços de urgência e consultas em diferentes equipamentos. Houve hipótese diagnóstica de transtorno do humor associado ao uso de SPAs, com diversas prescrições medicamentosas, das quais fez uso irregular, não aderindo tampouco ao acompanhamento com a psicóloga no CS. A EC também trabalhava com o caso, apesar de inúmeras ausências às consultas agendadas. Anteriormente, seu caso fora levado à supervisão de saúde mental, discutido em matriciamento, realizadas visitas domiciliares. Nestas, nem sempre a equipe encontrava o familiar de referência; as orientações não eram seguidas e efetivadas, como exemplificam as ausências nas consultas agendadas para Lucas e Marlene em diferentes pontos da rede. Havia ainda relatos de evasão das unidades de saúde. Dificuldade recorrente era a presença de suporte familiar para a continuidade das condutas profissionais apresentadas. Meses antes da rearticulação da rede, sintomas como dores no corpo e outras condições sugestivas de quadros psicóticos começaram a se apresentar.
Diferentes pontos da rede foram acionados para realizar intervenções com a mãe, que esteve presente no PAEFI alcoolizada e agressiva. As seguintes tentativas foram feitas sem sucesso: vinculação ao CERSAM AD; inserção em trabalho protegido e no Programa de Educação de Jovens e Adultos - EJA (Lucas tem escolaridade até a quarta série). Embora Marlene estivesse em situação de rua, em locais e condições com acesso difícil, a equipe de saúde tentava novas abordagens em seu retorno ao território e região de moradia prévia, ou mesmo indiretamente, através da família, pois o vínculo com o CS era frágil e com o CERSAM AD não havia se consolidado. Os relatos da equipe indicam dificuldade de abordagem devido a um julgamento velado sobre o uso de álcool, que sugere reprovação implícita do consumo e justificativa das dificuldades de organização da vida prática em função do mesmo. Dada a gravidade do caso, a necessidade de tratamento e acompanhamento demandava ações intersetoriais.
A vulnerabilidade também se expressa no uso prejudicial de drogas e, embora a responsabilização incida usualmente somente sobre o indivíduo, ela é resultante da relação entre componentes individuais e sociais. As pessoas em uso prejudicial estão sempre vulneráveis a algo mais além da droga, em algum grau, tempo e espaço definido (TEIXEIRA, ENGSTROM e RIBEIRO, 2017). A marca do fracasso e da incapacidade circula nessas vidas e pode ser mantido pelos profissionais sem que se deem conta. Apoiados em nossa formação científica, podemos desvalorizar as condições, as crenças e os conhecimentos dos usuários, insistindo na incompetência e na hierarquização de saberes, colocando os técnicos como únicos responsáveis pelo cuidado. Como o cuidado com o outro poderia se exercer nessa família com menos negligência? Quais crenças permeavam as relações dessas pessoas? Como a rede poderia respeitá-las?
No processo, soubemos que Lucas teve passagem no Liberdade Assistida, dois anos antes, do qual foi desligado por suspeita de abuso sexual em relação a uma prima menor (que ele). Passou pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte - CIA-BH, pelo envolvimento no furto relatado e estava com audiência agendada. No CIA-BH localizam-se a Vara Infracional da Infância e da Juventude, a Promotoria da Infância e da Juventude, a Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) e as Polícias Militar e Civil, instituições que compõem o sistema de justiça para a infância e a adolescência. A passagem do adolescente lá relacionava-se à apuração de atos infracionais, na qual os equipamentos do SUAS poderiam contribuir enormemente, dado seu conhecimento sobre as condições de vida do adolescente em seu território. Todas essas vulnerabilidades se somavam, compondo um território precarizado.
O diálogo com o Conselho Tutelar (CT) a respeito de Lucas e sua família era feito com certa frequência para informação e pactuação das medidas, pois o conselheiro responsável se manifestava a favor da demanda de internação feita por alguns familiares, preferindo esta modalidade de intervenção a outras possíveis na rede de saúde mental. Esta postura nos remete à demanda historicamente feita ao CT como local de autoridade para ordenar a relação da criança e do adolescente com seus responsáveis legais em casos de suposta ausência ou fragilidade desses últimos (AKERMAN, 2012). Por vezes, uma leitura psicologizante dos fenômenos das relações sociais sustenta a busca pela intervenção do CT. O estímulo a tratamentos de saúde mental baseados em internação reforça uma demanda implícita à manutenção da ordem pública, para a qual uma normatização psicológica pode, teoricamente, contribuir. Scheinvar (2012) aponta como o funcionamento institucional do CT tem refletido na judicialização do senso comum, já que o órgão representa, de fato, a visão da sociedade, mas age como se tivesse poder e autoridade de aplicar leis.
É importante pontuar que, a respeito das demandas apresentadas pelo CT, os técnicos da rede protetiva em questão buscavam reflexões sobre os impactos das medidas também em outros casos, questionando se havia real violação de direitos nas relações das famílias acompanhadas. A despeito do tom moralista presente nas análises dos conselheiros, pontuavam possibilidades de acolhimento das singularidades, evitando julgamentos ou controles sobre as organizações familiares. Isso nos parece um avanço das práticas intersetoriais na perspectiva da atenção psicossocial, zelando pelo acolhimento e construção de vínculos com disponibilidade aumentada para resolução de situações diversas.
Por outro lado, a demanda familiar expressa uma busca por recursos que facilitem a lida com o membro em situação de sofrimento mental - ainda mais quando em crise - e reflete uma lógica imediatista para a solução de problemas de saúde, dominante na nossa sociedade e afim com a lógica do consumo. A dificuldade de seguir determinada conduta prescrita pelas equipes de saúde pode indicar uma fragmentação no setor, denotando pouco diálogo e sinergia entre os diferentes técnicos que atendam determinado caso. O conhecimento que usuários e familiares possam ter sobre o modelo de atendimento psicossocial e sua pactuação com a rede técnica dependem da forma de organização dos serviços e das próprias concepções acerca do sofrimento mental. Nesse contexto, as mudanças sociais e culturais sobre a loucura devem atingir também as famílias, cuja promoção, a nosso ver, é função dos técnicos da política de saúde mental, como possibilidade de trabalho com tais grupos. Ainda que surjam tensionamentos e contradições nesses processos, as práticas devem contemplar demandas da população e adequações do modelo e das propostas às suas condições de vida (DELFINI et al, 2017). São essas mesmas demandas que auxiliam a avaliar a resolutividade das práticas, constituindo campo de reflexão indispensável na saúde mental.
No caso Lucas, os encaminhamentos na rede de saúde mental incluíram uma primeira opção de local de tratamento de urgência, em que ele fosse levado com algum familiar, dependendo da avaliação das equipes e da vinculação a ser construída. A equipe do CS tentaria abordar também a mãe, estivesse esta em situação de rua ou não. Talvez fosse necessário acionar a equipe de abordagem de rua (ligada às Políticas Sociais). Orientações à família precisariam ser feitas permanentemente, dada a fragilidade dos vínculos entre Lucas e a família com suas condições de vulnerabilidade, dentre elas o próprio adolescente em situação de sofrimento mental, a mãe em uso prejudicial de álcool e sem fonte de renda, a avó idosa, com saúde fragilizada, residindo longe de outros membros que pudessem fornecer auxílio cotidiano. Além disso, o fato de alguns familiares pleitearem internação para Lucas indicava uma compreensão sobre o sofrimento mental diferente da preconizada pela rede, como se a atenção médico-hospitalar fosse a conduta mais adequada. Postura que pode indicar, em situações do cotidiano do trabalho nesse campo, condições para o exercício do poder entre os indivíduos, ficando os usuários em situação menos privilegiada de escuta e compreensão, dada a desqualificação histórica da loucura e do saber que os sujeitos constroem sobre si mesmos. Essa marca histórica também é observada em casos de crianças e adolescentes em situação de sofrimento.
Chama a atenção nesse caso a quantidade de atores envolvidos e a qualidade da organização de uma rede extensa para atendê-lo. Boa parte desses atores já tinha consolidado uma experiência de trabalho conjunto no NIR-T, de modo que quando Lucas voltou em quadro agudo, rapidamente a rede foi acionada para abordá-lo. Apesar de o caso não ter passado por este dispositivo até então, acreditamos que a metodologia de trabalho intersetorial contribuiu para a articulação eficiente e rápida nesta situação de agravamento do contexto clínico e familiar. Assim, na gerência de saúde, bem como no PAEFI, para além do técnico específico de referência, todo o setor precisou estar ciente minimamente sobre o caso para poder lidar com a necessidade de orientação a outros pontos da rede na ausência das referências: seria preciso articular um transporte, com técnicos de serviços distintos participando da avaliação (exemplo: levar do CS ao CERSAMI) ou informar a outrem sobre certa marcação feita em curto espaço de tempo, sobre avaliações de plantões, dentre outros, de modo que a responsabilidade estivesse compartilhada entre todos os atores da rede.
Após algum tempo de acompanhamento intensivo regular, o caso obteve melhora clínica expressiva, até o momento em que a família informou sobre a mudança de município e a necessidade de rearticulação com novas redes, apostando nos saberes da família em relação ao quadro de sofrimento mental de Lucas, para que ele não deixasse de ser devidamente assistido em outro território. Este é um caso que nos ensina a trabalhar de modo integrado a partir das suas características particulares, para além dos fluxos protocolares estabelecidos, considerando a participação coletiva para o sucesso das condutas.
Das dificuldades desses casos e do compartilhamento de experiências extraímos, mais uma vez, a potência do trabalho no campo da saúde mental infantojuvenil, insistindo nas possibilidades de reorientações de vida para esses sujeitos que atendemos. Nesse processo, devemos sempre acreditar na potência das famílias e dos usuários. Em contrapartida, acreditar que as pessoas são incapazes podem colocá-las sob tutela, ao acharmos que elas não sabem cuidar de si mesmas. Essa atitude sustenta o saber do profissional como superior ao saber dos usuários, menosprezando as construções singulares em que estes pautam suas vidas e o modo como se cuidam. Essas são posturas que devemos problematizar, para não naturalizarmos a noção de que as famílias que circulam na rede de saúde mental são desestruturadas e não sabem cuidar de si mesmas.
Considerações Finais
Nesse texto apresentamos algumas dificuldades da rede assistencial no que se refere ao acompanhamento das crianças e adolescentes, público com o qual é inevitável lidar com a família - grande desafio ainda para as equipes, como vimos no caso de Lucas. Entendemos que perceber o que nos afeta e o que circula nas relações que são estabelecidas é essencial para que o cuidado em saúde mental se faça.
Ainda há no imaginário social a presença de uma naturalização da família nuclear, que surge de maneira abstrata como universal e verdadeira, deixando de lado o cotidiano desses grupos que formam agrupamentos sociais distintos entre si, singulares em sua forma de se agrupar e de lidar com as vulnerabilidades. Esse modelo é sustentado pelas famílias e pelos técnicos, impedindo conexões produtivas e inventivas a partir de como a família, de fato, se apresenta. Por outro lado, a vulnerabilidade também desestabiliza e precariza, dificultando a invenção, pois não é fácil lidar com vulnerabilidades múltiplas sem se vulnerabilizar.
O fato de as categorias profissionais, a partir da homogeneização discursiva dos saberes psi, especializarem-se em práticas de atendimentos individuais, esvaziando as influências sócio-políticas das subjetividades e do sofrimento psíquico, demonstra uma normatização das práticas assistenciais e um risco de naturalização de condições sociais na população atendida, sem problematizar as formas de produção das mesmas. Esse risco conduz a uma submissão dos usuários e familiares ao discurso dos técnicos, mesmo que os sujeitos envolvidos não as percebam. Assujeitamentos que geram diminuição de condições para exercer a autonomia e dificulta o surgimento de posicionamentos novos diante dos problemas e outros modos de convivência com a situação de sofrimento mental que se busca tratar. Assim, as subjetividades e as relações se tornam cristalizadas. O maltrato à vida é um risco que todos nós corremos, mas os casos ensinam que é possível refazer aberturas e avançar nas práticas coletivas sensíveis. Na trama que examinamos brevemente nesse texto, podemos afirmar que acolher as diferenças, sustentar intercessões potentes entre os agentes sociais e as famílias, sem encaixá-los em fôrmas preestabelecidas, é um exercício em favor da autonomia e da vida pois, desse modo, podemos seguir em nossas práticas, sem idealizações nem fugas da realidade dos casos que nos chegam.
Referências bibliográficas
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Notas:
1. Os nomes próprios relatados são fictícios.
2. Agradecemos à FAPEMIG e ao CNPQ pelo apoio à pesquisa registrada sob o CAAE (44396415.9.0000.5137).