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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.59 no.1 Rio de Janeiro June 2007
ARTIGOS
Símbolo, mito e interpretação da passagem para a vida adulta
Symbol, myth and interpretation of the crossing to the adults' life
Olga Sodré
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
RESUMO
Este artigo apresenta a relação dos filhos com os pais, na passagem para a vida adulta, por meio do mito dos Titãs e da criação do Olímpio, traçando o processo histórico-cultural em jogo na sucessão das gerações. Focalizando a dinâmica de identidade-alteridade no desenrolar dos conflitos familiares, ressalta o estreito entrelaçamento entre o desenvolvimento psicológico, a cultura e a vida social. Delineia um percurso de transformação deste conflito até chegar ao reconhecimento mútuo e à abertura do espaço pessoal, familiar e público. Procurando resgatar a contribuição do mito para a restauração da plenitude do sentido da linguagem, no mundo contemporâneo, conjuga os esforços filosóficos e psicológicos para aprofundar a linguagem simbólica por intermédio da qual o mito exprime o conflito entre pais e filhos. Desenha a radical transformação do universo das crianças e as dificuldades de passar para o mundo adulto, aceder à posição dos pais e ingressar na vida da pólis. Analisa a questão da transgressão e o lado obscuro e destrutivo deste conflito, indicando as possibilidades de sua transformação.
Palavras-chave: Mito; Conflito de gerações; Dinâmica de identidade-alteridade; Percurso para o reconhecimento; Mundo adulto; Pólis; Transgressão.
ABSTRACT
This article presents the children's relationship with parents, at the passage to adult's life, through the Titans and Olympus creation's myth, drawing the historic-cultural process brought into play at generation's succession. Focusing the identity – alterity's dynamic along the family conflict's unrolling, it underlines the close interlace between psychological development, culture and social life. It paints a way of transforming this conflict until arriving to the mutual recognition and the opening of the personal, familiar and public space. Trying to recuperating myth's contribution to the wholeness of language's meaning, at contemporary world, it puts together the philosophical and psychological efforts to deepen the symbolic language used by myth to express the parents and children's conflict. It draws the radical transformation of the children's universe and the difficulties to cross to the adults' world, to accede to the parents' positions, and to enter to the polis' life. It analyzes the problem of transgression and the dark and obscure side of this conflict, indicating the possibilities of its transformations.
Keywords: Myth; Generation's conflict; Dynamic of identity-alterity; Way to recognition; Adult's world; Polis; Transgression.
ARTICULAÇÃO ENTRE CONDIÇÃO HUMANA, VIDA ADULTA E PÓLIS
Ao estudar a passagem para a vida adulta, observei um estreito entrelaçamento entre o desenvolvimento psicológico, a cultura e a vida social. Fui assim levada a aprofundar reflexões que confirmam a importância da atual conjugação dos esforços filosóficos com as pesquisas em diferentes áreas do conhecimento social e humano. Mostrarei, neste trabalho, como a abordagem filosófica de Paul Ricoeur chega a uma nova visão do mito, incorporando diferentes contribuições a este respeito e integrando-as em uma concepção mais ampla da linguagem simbólica, da narração e da dinâmica da identidade-alteridade (SODRÉ, 2004; 2005; 2006).
As transformações pelas quais passam os jovens e as relações entre pais e filhos, no momento do acesso à vida adulta, exigem uma abordagem que não se situe apenas no nível racional e individual, mas possa traduzir a ebulição dos impulsos vivida pelos jovens e levar em conta o processo histórico-cultural em jogo na sucessão das gerações. As descrições sobre os conflitos e os vários aspectos do desenvolvimento humano nesta passagem nos ajudam a situar os problemas dos jovens, mas não permitem apreender a dinâmica dos impulsos e conflitos, seus sentidos e significados. Para isso, é necessário o conhecimento da linguagem simbólica por meio da qual estes se exprimem, e que pode ser encontrada nos mitos.
A concepção narrativa do ser elaborada por Paul Ricoeur (1983; 1984; 1985; 1988; 1990) forneceu o embasamento para uma reformulação teórica de trabalhos com os jovens, na França e no Brasil (SODRÉ, 1983). Proponho-me a expor as linhas gerais desta reflexão, demonstrando o interesse de aprofundar o diálogo entre a fenomenologia hermenêutica e a psicanálise a este respeito. Antes de desenvolver meu argumento, quero lembrar que privilegio o mito e a antiga filosofia grega como fontes relevantes do conhecimento sobre o acesso à idade adulta, em função da articulação que estabeleceram entre esta passagem, a condição humana e a vida na pólis, mas considero, ao mesmo tempo, necessária uma revisão mais profunda do assunto que integre os conhecimentos trazidos pelas ciências humanas e sociais, e situe a questão no mundo contemporâneo.
A atual revolta dos jovens e o clamor destes pelo reconhecimento e pela integração ao espaço público chamaram minha atenção para estas questões.1 Sendo estas claramente formuladas e consideradas como fundamentais para a passagem à vida adulta, na Grécia Antiga, pareceu-me interessante retornar à abordagem grega a este respeito. Relendo os mitos, pode-se perceber a visão dos gregos sobre a animalidade e a civilização, e melhor entender a relação que estabelecem entre a dinâmica dos impulsos humanos e a passagem para o mundo adulto, ligando a integração dos jovens à vida na pólis ao domínio das paixões. Embora possa nos parecer estranho, as crianças não eram consideradas pelos gregos antigos como fazendo parte da ordem humana. Como mostra muito bem Jean-Pierre Vernant (2002), o mundo dos jovens correspondia ao mundo da alteridade juvenil, e era visto como integrando o mundo animal, não tendo havido ainda a radical separação com a vida animal por intermédio dos ritos de iniciação à deusa Ártemis.
A condição humana era definida em oposição à condição animal e tinha como modelo de identidade o cidadão grego e adulto, que ingressou na vida cívica pelos ritos de iniciação. Para compreender esta colocação, é preciso levar em conta, contudo, que este trajeto do mundo animal ao mundo humano é até hoje percorrido pelas crianças nos livros de história infantil. Assim sendo, não se deve considerar esta referência à animalidade como algo negativo, mas como uma maneira de diferenciar o mundo animal, humano e divino, distinguindo o infantil e o adulto e propiciando a passagem de um a outro. Meu trabalho clínico com símbolos de animais permitiu-me entender esta referência à condição de animalidade da criança e de alteridade juvenil em relação ao modo de funcionamento dos impulsos ainda não delimitados e ordenados segundo os lugares e relações do mundo adulto.
Ártemis, chamada de Diana pelos romanos, é a irmã gêmea de Apolo e os dois são freqüentemente representados juntos como duas polaridades opostas. Apolo é o símbolo do sol e da luz civilizadora, o deus das artes, da beleza, do progresso e dos ideais da juventude. Ele inspira os profetas, os poetas e os artistas, sendo associado àharmonia e equilíbrio dos desejos. Ártemis, a deusa da caça e dos animais selvagens, representa, ao contrário, a possibilidade de lidar com a animalidade e com o lado obscuro e indomado dos instintos. Ela preside o nascimento e o desenvolvimento dos seres, sendo, ao mesmo tempo, a deusa das fronteiras ou confins e da articulação entre as margens e o centro, que cuida dos limites da cidade grega e de seu estado, separando a cultura da selvageria, configurando o espaço social e cultural e delimitando as fronteiras políticas.
Na Grécia Antiga, constituiu-se, desta forma, um modo cultural de abordar e transformar o impulso humano pelo mito. Por meio dele, definem-se os limites e contornos da ordem animal, humana e divina, distinguindo-se a civilização da desordem e anarquia dos impulsos. Nesse sentido, Ártemis e os demais deuses gregos representam aspectos da consciência humana, em estreita relação com a alteridade desta e com a tentativa de distinguir a humanidade da animalidade pela ordenação e delimitação dos impulsos. As preocupações gregas com a delimitação do universo cultural e político associam-se a um esforço para formular a passagem do mundo situado nas fronteiras da cultura ao mundo social onde os papéis e identidades são claramente definidos. A antiga filosofia grega articula esta passagem aprofundando a reflexão sobre a relação entre a condição humana, a vida adulta e a pólis.
Platão e outros filósofos gregos, em particular Aristóteles, ligam a realização do ser à relação com o outro, nos quadros da pólis. Platão, por exemplo, propõe que os cidadãos sejam educados a ultrapassarem a multiplicidade anárquica de seus desejos e a ordenarem suas relações de modo a favorecer a felicidade dos cidadãos e a consolidação de seus laços de amizade. Janine Chanteur (1980) explica muito bem esta relação estabelecida por Platão entre a ordenação dos desejos e a realização mais harmoniosa da pólis, assim como sua articulação entre o bom funcionamento da pólis, a ascese filosófica para o domínio das paixões humanas e a educação dos jovens. Apesar do reconhecimento da dinâmica dos desejos e da incorporação de elementos do mito, este é gradativamente substituído por uma forma distinta de racionalidade e de linguagem discursiva. Tendo em vista minha proposta de resgatar a contribuição do mito na interpretação da passagem para o mundo adulto, é importante, portanto, compreender melhor esta relação do mito com a alteridade.
A ALTERIDADE, O MITO E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O MUNDO CONTEMPORÂNEO
As profundas transformações do pensamento grego e o surgimento de sua filosofia ocorreram dentro de um mais amplo e anterior processo de mudanças, que abala a hegemonia do mito. A perda do acesso a esta forma de linguagem se acentua posteriormente com as transformações do mundo ocidental, contribuindo para relegar a rica experiência dos mitos e desterrar o conhecimento de sua linguagem e de suas formas simbólicas2. Esse processo de grande complexidade, cuja análise ultrapassa os limites deste trabalho, está relacionado a uma profunda transformação social da consciência, da linguagem e da cultura ocidental, que vem sendo discutida por alguns filósofos, entre eles Michel Henry (2004). A atual retomada do mito não corresponde mais ao seu papel na Grécia Antiga, mas recupera a contribuição deste para a vida contemporânea. Paul Ricoeur (1990) situa claramente esta questão, como mostrarei mais adiante ao desenvolver sua concepção do símbolo e da narração. Ele apresenta sua abordagem do si-mesmo e da alteridade como um aprofundamento da pluralidade de sentidos do ser recebida de Platão e Aristóteles.
No entanto, sua abordagem não é uma reprodução atualizada desta concepção grega do ser, nem representa uma simples continuidade da visão do Mesmo e do Outro, na Grécia Antiga. Trata-se de uma profunda reformulação destes fundamentos, que integra as contribuições gregas em uma outra visão do mundo e em uma outra concepção filosófica, construída a partir da filosofia da consciência e da filosofia hermenêutica contemporânea. A filosofia grega e sua concepção das relações entre os cidadãos e das relações de amizade situam-se nos quadros do Mesmo: o cidadão e o amigo são considerados como um outro mim mesmo com o qual posso estabelecer relações de amizade. Assim sendo, este outro é, ao mesmo tempo, próximo e distinto, mas continua sendo um outro semelhante a mim mesmo.
É importante não esquecer que os gregos distinguem este outro semelhante do estrangeiro. Neste caso, existe já uma experiência do alter como sendo um outro eu sou, mas ela não é ainda uma experiência completa e universal de alteridade. Dessa experiência, está excluído o que é considerado como estranho e fora do grupo dos cidadãos gregos: os estrangeiros, os escravos, as mulheres e os jovens. A filosofia grega chega, portanto, a uma reflexão fundamental sobre o outro, que será a base de uma belíssima concepção da ética e da política, mas esta relação ao outro é, no entanto, ainda restrita. Ao assinalar estes limites e exclusões, não quero dizer que os gregos da Antiguidade não tivessem o conhecimento da alteridade como relação com o que é estranho e desconhecido, mas considero que este conhecimento da alteridade era vivido e elaborado por intermédio do mito.
O desenvolvimento da antiga filosofia grega acompanha o movimento de superação da visão puramente mítica do mundo e de introdução de um novo tipo de racionalidade como meio de compreensão da realidade. Não me parece adequado identificar este movimento de afastamento em relação ao mito com um surgimento histórico da razão em oposição à irracionalidade do mito, pois racionalidade e irracionalidade convivem ao longo de toda história humana. Trata-se apenas de uma mudança no modo de usar a razão humana, ou mais precisamente da passagem de um modo de racionalidade para outro, no momento de transformação da tradição oral para a tradição escrita. A reformulação de Paul Ricoeur (1990), como ele próprio observa, situa-se em um outro momento de mudança do modo de racionalidade, pertencendo ao que Jean Greisch (1985; 2001) denomina a idade hermenêutica da razão.
A atual reformulação da racionalidade e a tentativa de recuperação da linguagem do mito situam-se neste momento hermenêutico de transformação do pensamento filosófico e de sua relação com a alteridade. Outros filósofos e pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais, entre eles Jean-Pierre Vernant (1999; 2002), contribuem para uma revisão do enfoque da razão, da alteridade e do mito. Em sua abordagem sobre mito e política, Vernant (2002) aprofunda a idéia sobre a "alteridade horizontal", que os jovens gregos exploravam sob os auspícios de Ártemis, e a "alteridade vertical", que os gregos viviam em relação àquilo que atrai para baixo (para o terrível ou para o caos) e para o alto (para a fusão extática com o divino). Esta referência mítica persiste e amplia a experiência grega da alteridade, mesmo após a perda de hegemonia do mito, o estabelecimento da pólis e de suas exclusões socioculturais, e a ênfase na identidade social grega. Predomina, portanto, uma tendência do pensamento grego ao Mesmo, uma exclusão do outro que não está integrado à pólis, e uma ausência do totalmente Outro. Assim sendo, não é colocada filosoficamente, na Grécia Antiga, a questão da alteridade em toda sua radicalidade, enquanto reconhecimento do outro como um outrem irredutível ao mesmo.
Este caminho é seguido por Paul Ricoeur (1990), que não apenas aprofunda o estudo da linguagem, do símbolo e da interpretação, mas o relaciona à sua concepção do ser e da consciência. A via longa para o ser pelo caminho da linguagem e do símbolo permite-lhe chegar a uma nova concepção narrativa do ser e apresentar os símbolos como expressões de duplo sentido, que constituem o segundo grau dos sinais, exprimem a intenção de significar veiculada pela palavra e exigem interpretação.3 Partindo da convicção de que a compreensão de si-mesmo é uma questão fundamental da filosofia e que a linguagem é a condição de toda experiência humana, Paul Ricoeur (1990) conclui que a compreensão de si-mesmo não pode ser baseada em uma intuição imediata. Avançando neste caminho apoiado na hermenêutica, integra sua concepção do ser e da linguagem, realçando a interpretação do símbolo e a cultura.
Paul Ricoeur (1988) lembra, no entanto, ser necessário situar, na nossa época, a questão do mito. Tendo em vista o processo crítico de formação do pensamento contemporâneo, os antigos mitos deixaram de ser uma forma de explicação do mundo e não têm mais ligação com o contexto de nossa vida atual. Teriam eles ainda algo a nos ensinar? Para responder a esta questão, é preciso compreender o que é a linguagem simbólica e seu modo atual de funcionamento. No contato com o pensamento científico, ocorreu um processo de "desmitologização", que não é possível ignorar. No entanto, por paradoxal que isto possa parecer, Ricoeur (1988) ressalta que o mito foi integrado ao pensamento moderno, tendo sido revestido com a dignidade do símbolo. Assim sendo, embora não se acredite mais na deusa Ártemis ou no deus Hermes da mesma forma com que os gregos neles acreditavam, a narração destes mitos continua a transmitir orientações e sentidos. Como isto é possível? Uma análise do processo de "desmitologização" mostra que o pensamento científico modificou a relação com os símbolos e os mitos, mas não os eliminou nem pôde ocupar o lugar deles.4
Paul Ricoeur (1988) apresenta uma concepção mais ampla e diferenciada da linguagem simbólica, que integra não apenas a pesquisa da linguagem onírica e do mito, que foram pesquisados pela psicanálise, mas também a pesquisa das linguagens poética e religiosa. Estas três formas de linguagem se distinguem uma das outras, mas apresentam uma extraordinária convergência, que indica seu terreno simbólico comum. Para Ricoeur, a linguagem simbólica é essencialmente ligada aos conteúdos dos símbolos, e tem a particularidade de relacionar intimamente o conteúdo primário ao segundo conteúdo, em uma plenitude de intenções e significações, que se revelam ao longo dos fios tecidos pela linguagem.
LINGUAGEM SIMBÓLICA, CONFLITO E RECONHECIMENTO
Meu enfoque da passagem para o mundo adulto leva em consideração as mudanças na linguagem e nas formas de pensamento, mas estas são abordadas no processo mais amplo de mudança social de posições e relações. Revendo a questão da permanência e mudança do ser no tempo, Paul Ricoeur (1990) recusa-se a tratar a identidade do sujeito de um modo abstrato e indeterminado, não aceitando uma visão a-histórica do eu em termos de uma identidade de "mesmidade". Esta perspectiva é fundamental para tratar da mudança da identidade infantil para a identidade adulta. Os jovens questionam-nos, pois nos confrontam com a potencialidade do ser em sua pluralidade de facetas ainda em gestação e em plena ebulição.
A concepção da linguagem simbólica e do símbolo de Paul Ricoeur renova a abordagem filosófica do mito. Pondo em evidência que sua abordagem do mito é própria da cultura moderna, mostra que ela é uma contrapartida da ruptura com o sagrado e do predomínio da formalização e da técnica, que esvaziaram a linguagem. Tornou-se assim necessário um movimento de restauração da plenitude do sentido, que foi favorecido pelos estudos da filologia, da exegese, da fenomenologia da religião e da psicanálise. Esta restauração exige, contudo, que se respeite o enigma original dos símbolos, deixando-se ensinar pelo poder revelador de sua linguagem simbólica. Para abordá-la, Paul Ricoeur desenvolve uma forma de reflexão hermenêutica com base em uma crítica restauradora da plenitude do sentido do símbolo. A partir deste enfoque hermenêutico, Paul Ricoeur (1988) pesquisa diferentes narrações do mito, acompanhando o desenrolar da linguagem simbólica e relacionando-a com a experiência do ser no mundo.
Nesta perspectiva, procuro melhor compreender a revolta dos jovens e a relação dos filhos com os pais, na passagem para a vida adulta por meio do mito dos Titãs, situando culturalmente esta revolta na sucessão das gerações.5 Com base na abordagem do mito e da cultura, desenvolvi um trabalho psicossocial com jovens socialmente marginalizados, na França e no Brasil. Esta análise me levou a ver a passagem para a vida adulta como um período de formação de valores e ideais necessários para a constituição da identidade e para o acesso à vida comunitária. No decorrer deste trabalho, dei-me conta da importância da compreensão das diferenças culturais e religiosas para a elaboração destes valores e ideais, no processo de identificação e construção da identidade desses jovens, no difícil e conflituoso diálogo entre as gerações e as culturas. Percebi que, no pano de fundo do diálogo entre pais e filhos, estava a cultura. Esta é o alicerce da sucessão das gerações e o caldeirão no qual é preparado e transformado o caldo dos símbolos que sustentam a formação dos laços sociais e familiares.
Passei a compreender, então, a cultura não apenas como uma moldura ou o contexto do desenvolvimento psíquico, mas como uma dimensão integrante do processo de formação e transformação do ser humano, de sua consciência e de suas relações. Estas questões foram abordadas por Paul Ricoeur (2004), em seu último livro, no qual pesquisa o significado múltiplo do termo reconhecimento, o percurso até ele, e a questão do pluralismo cultural, sublinhando a relação privilegiada entre a idéia de reconhecimento e de identidade. Em seu livro Parcours de la reconnaissance, Ricoeur delineia mais claramente a base psicossocial do enfoque da identidade-alteridade e dos agentes da ação, abrindo o horizonte da reflexão para uma indagação a respeito das ações e dos agentes sociais, e discorrendo sobre as formas de identidade e sua renovação na época contemporânea. Esta indagação filosófica levou Sodré (1985; 1989) a reformular anterior concepção sobre os atores, o drama e seus personagens e a desenvolver uma nova abordagem da ação e da narração por intermédio da qual a autora pesquisou o diálogo inter-religioso e delineou os combates da vida monástica como uma epopéia dos monges em sua busca do Absoluto (SODRÉ, 2005; 2006).
Por meio de vários estudos macro e microssociais, Ricoeur (2004) introduz uma nova perspectiva que enfatiza a importância da capacitação social e da proteção contra os abusos de poder exercido pelos outros. Desse modo, sua teoria da ação e da capacidade de agir é enriquecida pela idéia da capacitação social como meio de transformar o mundo, conduzir a própria vida, resolver os conflitos e agir historicamente reconhecendo o direito do outro e a justiça social. O autor, que já havia aprofundado sua perspectiva histórica em um livro anterior (RICOEUR, 2000), aperfeiçoa, então, sua visão da dialética entre a reflexividade e a alteridade da consciência por intermédio de uma inovadora concepção de reconhecimento mútuo. Nesta, ele relaciona a intransponível diferença entre uma pessoa e outra com o desejo e a luta pelo reconhecimento, desenvolvendo um interessante enfoque histórico-cultural e social a este respeito.
O autor mostra que, para se atingir o reconhecimento mútuo, é necessário ultrapassar esta dessimetria para poder chegar à reciprocidade. A reflexão de Ricoeur sobre o percurso até o reconhecimento mútuo segue o caminho indicado por Hegel. Este introduz como alternativa para o estado natural de guerra a aceitação do desejo de ser reconhecido existente no viver em comum. Todos nós conhecemos a vida social baseada na competição, na desconfiança e na busca da glória, vantagem, e reputação para si-mesmo. Esse é o pano de fundo (ou a sombra) do diálogo, que tem de ser levado em consideração para ser transformado por meio de um longo percurso até o reconhecimento mútuo.
Levando em conta a situação de conflito social, Ricoeur recusa a busca da solução desse estado de guerra apenas em termos de interdição legal e de moral da obrigação. Considerando que a falha maior deste estado de guerra está na ausência de uma dimensão de alteridade, o autor procura no desenvolvimento das interações de conflito a fonte da ampliação das capacidades e das conquistas no reconhecimento de si-mesmo e da alteridade. Assim sendo, a concepção do reconhecimento mútuo torna-se uma base ética para abordar a vida social e política na pólis6, abrindo uma perspectiva para a compreensão do desejo de reconhecimento dos jovens.
A radical transformação do universo infantil, de suas relações e de seus valores realiza-se no momento de transição do grupo das crianças para o grupo dos adultos, quando ocorre a mudança de lugares na sucessão das gerações e o acesso dos filhos à posição dos pais, no mundo adulto. A necessidade de abandonar os antigos laços afetivos, de sair da dependência e proteção dos pais e ocupar a mesma posição destes no mundo adulto gera uma situação de conflito. Este toma a forma de uma revolta mais ou menos acentuada contra a autoridade dos pais e contra os símbolos que os revestem, de modo a construir a própria identidade e se emancipar dos laços familiares.
Para abordar este conflito entre pais e filhos, era necessário descobrir um percurso que desenhasse o quadro deste conflito e traçasse o seu desenrolar até o reconhecimento mútuo. Paul Ricoeur (1988) chama o mito da revolta dos Titãs de drama da criação, esclarecendo, contudo, que não se trata de modo algum de uma narração sobre a origem histórica da criação, e sim de uma a narração a respeito da passagem de um estado para outro. Esta interpretação de Ricoeur sobre o mito dos Titãs me ajudou a entender que o eixo central deste mito é a transformação dos conflitos entre pais e filhos, sendo que o ápice da narração é a passagem do estado de conflito destrutivo entre os deuses primitivos para o estado de reconhecimento mútuo na assembléia dos deuses do Olímpio.
O PERCURSO DO CONFLITO ENTRE AS GERAÇÕES
A partir daí, passei a perceber mais claramente o percurso do conflito entre as gerações e a vislumbrar a importância desta mudança das relações entre pais e filhos e sua articulação com a passagem para o mundo adulto, na saída da família e entrada na pólis. O mito dos antigos deuses gregos mostra a passagem do mundo dominado pelas figuras da Mãe e do Pai Arcaicos, a revolta contra a dominação destas figuras e o confronto com as forças a que estas figuras estavam associadas. Interpreto, portanto, este mito dos antigos deuses gregos não em relação à origem histórica do universo físico, mas como um processo de transformação simbólica das relações entre pais e filhos. Estas narrações evocam vivências das figuras parentais encontradas também nas lembranças do universo infantil, e com as quais se pode entrar em contato por intermédio de um mergulho no inconsciente e na pesquisa dos símbolos.
A narração do mito sobre a origem do universo descortina a formação de um universo em gestação, no qual Gaia e Urano, os pais primordiais, dão origem aos Titãs, uma série de divindades monstruosas, que não podem se tornar seres individuados, pois permanecem no seio da terra (Gaia). A mitologia conta que Urano, o céu, permanece deitado sobre Gaia, a terra, e não apenas engendra de forma desordenada, mas mantém seus filhos aprisionados na mais profunda região do ventre terrestre. Os Titãs constituem, portanto, a primeira geração de deuses gregos, e personificam as tendências mais primitivas, obscuras e indiferenciadas da consciência. O prosseguimento da narração permite entender como ocorre o desenvolvimento deste universo e a transformação deste estado mais primitivo por meio de um processo representado pela ação do mais novo dos Titãs, Cronos.
Cronos introduz a mudança inicial do universo primitivo ao mutilar e destronar Urano. Por intermédio deste processo, Cronos realiza a separação entre as duas polaridades primitivas (o céu e a terra). Após a separação entre os pais primitivos, surge um espaço para o desenrolar da sucessão das gerações. Acaba, desse modo, um reinado marcado pelo transbordamento de uma vitalidade excessiva e sem limites, e começa um império mais diferenciado. Supera-se a primeira oposição entre ordem e desordem e surge a questão central do poder. A castração de Urano pode, portanto, ser interpretada como uma castração simbólica do impulso criativo.
Para manter o seu trono, Cronos alia-se a outros Titãs e devora seus filhos, com medo que estes venham a ocupar seu lugar. A sucessão está aberta, mas ela não está ainda regularizada. Desencadeia-se uma luta mortal entre as gerações, que desperta sentimentos de medo e tendências destrutivas, tornando necessária a criação de uma ordem na qual o mundo possa viver em paz e com estabilidade. Esta vai ser a grande obra de Zeus, cujo símbolo introduz a terceira e última fase de desenvolvimento do universo dos deuses, que põe fim à era dos Titãs e dá início à era regida pela lei do Olimpo.
Associando ordem e poder, Zeus torna-se a divindade da justiça e passa a presidir a assembléia dos deuses olímpicos. A partir daí, surge a distinção entre a primeira e a segunda geração de deuses: entre as forças divinas que representam os impulsos primitivos, os Titãs, e as forças divinas do Olímpio, que personificam os ideais gregos. Este processo de separação entre as gerações dos deuses representa uma forma de ordenação de tendências opostas (as forças titânicas e as forças olímpicas), correspondendo a um passo adiante no desenvolvimento do universo dos deuses.
A figura de Zeus é central neste processo, pois ele encarna o equilíbrio estabelecido entre as forças olímpicas e titânicas, assim como a implantação da justiça e da lei do Olímpio. Ele representa, portanto, um novo tipo de pai que é o suporte da lei. Considero que o conflito de Zeus com seu pai e o encaminhamento dado a este conflito é diverso da revolta de Cronos e dos outros Titãs. Este conflito não se situa mais apenas no nível do confronto e da substituição de figuras no poder, mas introduz um novo modo de relacionamento baseado em um acordo tácito entre os deuses da terceira geração (os filhos de Cronos ou os deuses do Olímpio), e termina com o processo destrutivo da guerra entre as gerações de deuses. Essas transformações representam, portanto, uma mudança radical nas relações entre pais e filhos, que pode ser também acompanhada, em psicoterapia, no momento da passagem para a vida adulta.
Desse modo, a luta entre as gerações em termos de devoração e morte é substituída por uma nova forma de conflito entre os deuses. O conflito não desaparece, mas passa a ser orquestrado por princípios e ideais, sob a égide de uma nova forma de governo. Nas narrações míticas, surge a Assembléia dos deuses do Olímpio, presidida por Zeus, na qual se pode observar a distinção entre os diversos princípios divinos, encarnados pelos deuses da justiça, da beleza, da guerra etc. Estas narrações permitem verificar que os deuses passam a ocupar distintos lugares nesta Assembléia, que é sediada no alto da montanha do Olímpio e permanece oculta aos olhares dos mortais por um manto de nuvens. Representando diferentes ideais universais e potências espirituais, os deuses, assim reunidos em Assembléia, governam o destino dos heróis e dos mortais, e tomam decisões sobre os conflitos entre os próprios deuses.
Nas etapas anteriores à nova ordem do Olímpio, não há uma diferenciação dos lugares e um único poder, que é ocupado pelo pai. Após a vitória das divindades do Olímpio, ocorre uma transformação do poder e da organização do universo. O poder passa a ser partilhado pelo conjunto dos deuses, em uma Assembléia presidida por Zeus, e se estabelece uma diferença entre o domínio divino dos céus, o domínio dos infernos e o reino humano da terra. A radical transformação do universo narrada por este mito pode ser mais bem avaliada quando se compara o período regido por Cronos com o universo regido pela Assembléia do Olímpio. Nas antigas relações entre as gerações, só existiam duas posições, a dos pais e a dos filhos, e um único lugar de poder. No Olímpio, ao contrário, os deuses partilham o poder, ocupando diferentes lugares ou funções.7
A partir da constituição do mundo ideal do Olímpio, não é mais preciso eliminar o pai para ocupar o seu lugar. A psicologia estuda a construção da identidade, mostrando que esta se realiza por meio de relações com pessoas concretas. Contudo, esta construção só se consolida em função da configuração destes lugares no plano da consciência. Por intermédio da psicoterapia, não só se verifica a presença ou ausência destes lugares abstratos, mas pode-se atravessar diferentes cenários imaginários a eles relacionados. Quando se chega às camadas mais profundas da consciência, a cena descortinada passa a ser povoada por figuras que lembram o mundo dos deuses primitivos. É possível chegar a um espaço onde predomina ainda o modo de funcionamento caótico, desordenado e destrutivo das forças titânicas. A viagem de retorno segue o percurso até a construção do espaço do Olímpio e a instauração da lei que o rege.
A REVOLTA DOS TITÃS E A LEI DO OLÍMPIO
Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico, o reino de Zeus é bem diverso de seus predecessores Sua análise é de grande importância para o equacionamento da passagem da infância à idade adulta, e realça o valor das descobertas da psicologia sobre a passagem do pensamento concreto da infância para o pensamento abstrato do adulto. Vale salientar, contudo, que o exagerado predomínio da razão e desta forma de pensamento causa problemas a um desenvolvimento psíquico harmonioso. Assim sendo, procuro mostrar não apenas a relevância da formação do pensamento abstrato e dos ideais na passagem para a vida adulta, mas defendo igualmente, como o fazem alguns pesquisadores da questão, entre eles Joseph Chilton Pearce (1980),8 um desenvolvimento psicológico que preserve as formas do pensamento global e do pensamento concreto, e integre harmoniosamente os impulsos, os sentimentos e a razão.
O processo descrito pelo mito da revolta dos Titãs é vivido de diferentes formas por cada jovem, no desenrolar do seu desenvolvimento, de sua história pessoal e familiar, de seu grupo e de sua cultura. Ao deixar a infância, cada ser humano experimenta dentro de si o ímpeto dos impulsos titânicos e olímpicos, vive a revolta contra os pais, e enfrenta o desafio de ingressar na ordem social, de aceitar as leis do mundo adulto e de ocupar um lugar dentro dele. No mundo moderno, não apenas foram eliminados os rituais de passagem da infância para o mundo adulto9, como também esta passagem foi sendo diluída, prolongada e abalada pelas profundas transformações sociais e familiares.
Esta situação é propiciada pelo enfraquecimento da autoridade paterna, que contribui para a dificuldade em deixar o universo descrito pelo mito dos Titãs. Surge, assim, uma lacuna nos modos de elaboração desta passagem para a vida adulta por meio da cultura. Esta lacuna provoca profundos abalos na construção do edifício psicológico. Quando esta passagem não é bem-sucedida, o jovem continua regido pelos princípios autoritários e indiferenciados dos deuses primitivos, perde o acesso ao universo dos ideais olímpicos, e não finaliza o processo de identificação que lhe permite tornar-se um adulto, e assumir o lugar simbólico que lhe cabe na sucessão das gerações e na vida comunitária.10
Alguns psicanalistas, como Jean Pierre Lebrun (2004), relacionam também esta dificuldade na passagem para a vida adulta ao atual enfraquecimento do papel do pai, ressaltando a importância deste para o desenvolvimento psicológico e para a formação do universo simbólico. Estas conclusões da psicanálise correspondem ao que é sugerido pelo mito da revolta dos Titãs e pelo estudo de Paul Ricoeur a este respeito, e aprofundam de modo muito interessante a relação da figura do pai com o desenvolvimento da linguagem. Considero, portanto, da maior relevância acompanhar as distorções atuais dos valores e ideais e as transformações do universo simbólico, na passagem para o mundo adulto.
O abalo destes abre uma brecha para o recrudescimento da revolta dos Titãs, de modo que é importante analisar esta revolta também em relação com a transgressão da lei e sua atmosfera de violência. Sublinhando a violência dos crimes das primeiras gerações de deuses, Paul Ricoeur (1988) assinala que a ordem estabelecida por Zeus toma impulso a partir desta violência original, e que a desordem subsiste após a vitória deste deus, na forma de várias figuras terríveis (como a Morte, a Luta, o Sofrimento, o Esquecimento ou a Fome) e monstros que não são homens nem deuses (como o Cão de cinqüenta cabeças ou a Hidra). É neste conjunto de criaturas terríveis que ele situa as figuras dos Titãs.
O aspecto monstruoso e a violência de tais figuras parecem-me da maior relevância para o aprofundamento da questão do conflito entre pais e filhos na passagem para o mundo adulto, em particular no que diz respeito à distribuição dos lugares na família e à linguagem simbólica. A dimensão hedionda dessas divindades primitivas é ressaltada por Paul Ricoeur (1988) em seu comentário dos versos nos quais Hesíodo faz alusão ao significado da palavra Titãs, mostrando a associação destas divindades com a folia e com um horrível crime hediondo. Ricoeur assinala que, no relato deste poeta grego sobre os Titãs, estes não representam apenas os antigos deuses vencidos, nem são somente as testemunhas de uma antiga época ou de uma desordem original. Elas representam potências arcaicas e selvagens que não se dobram a nenhuma lei, e que subsistem após a criação do Olímpio. Indicam uma possibilidade de revolta e violência, que se relaciona com a transgressão da lei do Olímpio e a disseminação da destruição.
Pareceu-me importante pesquisar esta possibilidade de subversão posterior ao estabelecimento da ordem para melhor compreender certas formas de violência e conflito, que eclodem na passagem para a vida adulta, e a relação destas com o desenvolvimento do ser humano.11 Observei que os conflitos dessa passagem podem conduzir ao desencadeamento das forças titânicas e ao alastramento de seu processo destrutivo, quando a ordem representada pelo Olímpio não consegue prevalecer. Paul Ricoeur (1988) chama também a atenção para alguns episódios, como o de Prometeu, que confirmam esta hipótese de uma associação das forças simbolizadas pelos Titãs com a subversão posterior ao estabelecimento da ordem do Olímpio.
Prometeu descendia dos Titãs, era um Gigante dotado de grande potência criativa e temido pelo próprio Zeus. A ele é atribuída a criação do primeiro homem a partir da argila, de modo que seu mito corresponde à idéia de uma criação evolutiva. Tendo roubado a fonte do fogo divino para oferecer à sua criatura, sua revolta mostra também uma evolução em relação à revolta dos Titãs, pois, neste mito, a revolta assume a forma de uma revolta do espírito e de uma tentativa de se igualar aos deuses. Por ter desafiado Zeus, este fez com que Prometeu fosse submetido a um longo suplício, associando sua revolta intelectual e o desafio feito ao poder dos deuses a uma punição inexpiável.
Ricoeur (1988) assinala que os relatos de Hesíodo sobre a luta dos Titãs contra os deuses do Olímpio têm um caráter ambíguo, pois, de um lado, dão continuidade ao drama da criação, e, de outro lado, anunciam um drama pós-divino, que dá prosseguimento ao combate das origens. O autor considera que o mito de Prometeu, ao menos no relato de Hesíodo, revela uma relação com a batalha entre as forças titânicas e as forças olímpicas, participando da derrota dos Titãs. Contudo, aponta também para a alteração posterior do mito, que transparece ainda mais claramente na versão de Ésquilo. Este transforma Prometeu em um herói trágico que enfrenta a cólera de Zeus. Estes dados indicam que o mito dos Titãs assume diferentes versões e sentidos, transformando-se ao longo do tempo.
Ricoeur (1988) considera a referência de Platão e de outros autores à natureza titânica do ser humano como um testemunho do deslocamento deste tema da teogonia para a gênese da condição humana, que focalizo nesta abordagem da passagem para a vida adulta. Minha interpretação da revolta dos Titãs procura, contudo, aprofundar também a relação do aspecto titânico da condição humana com a questão da transgressão da lei de sucessão das gerações e com a linguagem, seguindo as pistas indicadas por Paul Ricoeur sobre as variações deste mito. Sua análise literária assinala que a narração assume ainda mais a forma de uma gênese do humano, nos relatos míticos do orfismo, nos quais se misturam o mito de Orfeu e o mito dos Titãs. Segundo estes relatos, os Titãs devoram o deus Dionísio, mas de suas cinzas Zeus tira a raça atual dos homens. Esta versão do mito dos Titãs é, portanto, um elo importante para a abordagem da condição humana, pois introduz um protótipo do humano que contém uma dupla herança: a dos Titãs e a de Dionísio.12 Este deus recebe também o nome de Phallen (ou Phallènos), sendo este aspecto importante pela relação que permite estabelecer entre o falo,13 a fala e o poder da linguagem.
O mito dos Titãs assume, portanto, diferentes formas, que não são possíveis detalhar neste artigo, mas cujo maior interesse reside em mostrar o aspecto universal desta revolta e a transformação pela qual passa a apresentação deste conflito. Parece-me particularmente fecundo relacionar as transformações introduzidas na dinâmica deste conflito com o deslocamento do sentido do símbolo. Quando este é abordado na variedade das formas do mito, encontram-se vestígios esclarecedores deste processo de transformação. Pode-se, por exemplo, perceber que as forças titânicas, embora associadas ao desafio à divindade e à morte do deus Dionísio, são simbolicamente incorporadas à gênese da humanidade por intermédio do "castigo" e da absorção de suas "cinzas". Assim sendo, ocorre à primeira vista um crime e um castigo, mas este processo gera uma coisa nova associada à condição humana.
Acompanhando a transformação dos símbolos e do sentido do mito, pode-se perceber que ele aponta para uma dinâmica de transformação do conflito. O acompanhamento desta dinâmica é central para qualquer análise clínica e social, tendo em vista a possibilidade de oscilação, de polarização e ruptura entre as forças titânicas e olímpicas, em particular em algumas formas de distúrbio psicológico. O agravamento dos conflitos na sucessão das gerações abre caminho para uma profunda crise, que atinge os alicerces da cultura e da vida psíquica, com profundas repercussões na passagem para o mundo adulto e no acesso à vida na pólis. Tendo em vista a profundidade, a variedade e riqueza destas mudanças, o abalo das bases construídas ao longo dos séculos não tem, contudo, apenas aspectos negativos, podendo vir a descortinar um novo horizonte para a sucessão das gerações.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
Olga Sodré
E-mail: olgasodre@click21.com.br
Recebido em: 12/12/2006
Revisado em: 17/03/2007
Aprovado em: 05/04/2007
1A escuta dos jovens marginalizados social e culturalmente, em diferentes países, mostra que estes não almejam apenas o acesso aos bens materiais e ao trabalho. Eles manifestam o sentimento de estarem fora da pólis e de não serem integrados ao espaço público, reivindicando um reconhecimento social que muitas vezes só conseguem nas organizações marginais.
2Considero que o mito não desaparece, mas fica, no ocidente, restrito ao âmbito da religião, cedendo sua hegemonia social à filosofia e à ciência. No meu entender, este processo de grande complexidade implica uma profunda transformação social da consciência, da linguagem e da cultura ocidental, que tem aspectos positivos e negativos, cuja análise ultrapassa os limites deste trabalho. Michel Henry (2004) apresenta uma visão crítica deste processo, pondo em evidência a dimensão negativa da dissociação crescente entre a vida e a cultura, sublinhando o fato de que esta se torna cada vez mais impessoal, exteriorizada, dominada pela relação aos objetos e voltada para as aparências e para o espetáculo.
3Sendo mais complexo que o signo, o símbolo faz intervir uma dupla intencionalidade de significação, que se traduz na idéia do "ser como" e transmite analogicamente um segundo sentido. A linguagem comum tecida de símbolos é o fundamento de toda expressão simbólica, mas diferentemente dos símbolos técnicos (como, por exemplo, a fórmula da água), a significação simbólica da palavra água ou mancha, por exemplo, exige uma interpretação. Paul Ricoeur (1988) considera que a tarefa de uma filosofia hermenêutica é a de pensar a partir dos símbolos, verificando filosoficamente o que os símbolos apenas indicam, e elaborar os conceitos existenciais que lhes correspondem.
4Considero que as figuras dos deuses continuam nos falando, e nos tocam de uma forma muito mais contundente do que uma explicação racional pela relação estabelecida entre estes símbolos e experiências humanas fundamentais e difíceis de explicitar em toda sua complexidade por meio da racionalidade de tipo científico. Aprendi a respeitar esta complexidade do símbolo e descobri a riqueza do jogo de luz e sombra, de revelação e ocultamento do símbolo. A explicitação nem sempre esclarece, pois ela tende a reduzir em sinais mais pobres a força e complexidade de experiências humanas às quais se pode ter acesso pela linguagem simbólica. Esta se caracteriza por uma forma de expressão em diferentes níveis de simbolização, que vêem sendo pesquisados pela psicanálise e por outros campos do conhecimento, como a fenomenologia da religião.
5Por intermédio desta narração, vislumbrei o horizonte desta situação, seu percurso e sua relação com os conflitos entre pais e filhos. Passei, então, a estar atenta ao percurso do desenrolar desta luta, que conduz os impulsos ao equilíbrio, reorientando o imenso potencial das forças destrutivas em um sentido criativo e transformador do ser humano. Minha abordagem da mitologia enraíza-se, portanto, no trabalho clínico e social e focaliza o desenvolvimento psicológico, no momento da passagem para a vida adulta. Neste período, observa-se uma profunda crise dos jovens que se manifesta na instabilidade corporal e afetiva, nos problemas de construção da identidade, em mudanças no equilíbrio dos impulsos, na tentativa de domínio da agressividade, e na formação do pensamento abstrato. Situando o conjunto destes fatores no quadro geral da passagem para a vida adulta é que pude melhor entender o conflito entre as gerações.
6Esse conceito permite a Paul Ricoeur (2004) uma análise dinâmica, que parte do pólo negativo do desprezo e da injustiça até chegar ao pólo positivo da consideração e do respeito. Permite também uma articulação com aspectos sociais e institucionais específicos, que são mutáveis e correspondem a compromissos históricos e experiências de conquistas da igualdade (dos escravos, das mulheres, das crianças etc).
7Os diferentes lugares ocupados pelos deuses delineiam diferentes posições e constroem o plano abstrato dos ideais, tornando possível aceder à posição abstrata de pai, e não mais ao lugar concreto ocupado pelo próprio pai.
8Os trabalhos de Piaget sobre o desenvolvimento do pensamento abstrato, na adolescência, foram muito importantes para minha reflexão sobre a passagem para o mundo adulto, pois ele descreve como o jovem adquire a capacidade de pensar e raciocinar fora dos limites do próprio mundo, da realidade presente e das formas concretas do pensamento infantil. Com a aquisição do pensamento abstrato, o jovem pode se desprender do plano concreto, e situar o real em relação ao conjunto de situações e transformações possíveis. Pode, então, colocar-se questões sobre o modo de vida e sobre o futuro; assim como projetar ideais e sonhar com um mundo diferente daquele que se conhece e com outros planos da existência.
9Esta transição era antigamente realizada e transmitida de geração em geração, com base em rituais de passagem socialmente estabelecidos. Estes podem ser vistos como modos de elaborar este processo, fornecendo o acesso aos princípios simbólicos de uma cultura e a aceitação das leis que a governam. Os estudos desses rituais mostram que, no momento de acesso à vida adulta, os jovens eram separados dos grupos das mulheres, e deviam enfrentar uma série de provas e desafios para deixarem o mundo da infância.
10O modo de funcionamento do universo titânico pode ser observado com mais clareza nos bandos de jovens regidos pelo modo de funcionamento dos deuses primitivos, mas, com a generalização destas dificuldades, encontram-se cada vez mais adultos que são eternos adolescentes, em um mundo cada vez mais sem limites.
11Paul Ricoeur (1988) comenta que as divindades pré-olímpicas constituem um conjunto de figuras aterradoras em relação ao mundo da violência original do qual surge o reino justo de Zeus, revestindo-se das conotações amedrontadoras que remetem às imagens arcaicas e infantis, tais como a do pai castrado. Desse modo, as narrações a este respeito oscilam entre a criação mitológica – poética – e a especulação sobre o ser.
12Deus da vegetação e da vinha, Dionísio é considerado como um princípio de fecundidade animal e humana, simbolizando as forças instintivas. Ele representa freqüentemente a ruptura das inibições e repressões e a tentativa de descida às regiões obscuras do inferno. Sua representação relaciona-se, então, à busca de um estado de consciência que oscila entre o êxtase e a loucura.
13Representação do pênis adorado pelos antigos como símbolo da fecundidade da natureza.