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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.59 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007
ARTIGOS
O fracasso escolar no cenário das patologias da contemporaneidade
Schooling failure within the scene of contemporary pathologies
Francisco Ramos de Farias
Universidade de Brasília (UnB)
Endereço para correspondência
RESUMO
Abordar o fracasso escolar no âmbito das patologias contemporâneas requer situar a dimensão histórica das relações sociais características de uma época. Quando nos referimos ao aforismo o inconsciente é o social (ASSOUN, 1994), estamos desvinculando-nos das leituras que opõem indivíduo e sociedade e pensando o fracasso escolar como reflexo de contingências, transformações históricas e determinações inconscientes na rubrica de sintoma social, cuja estrutura é o reflexo da produção do discurso dominante de uma época. Por isso, faz-se necessário situar o discurso e a prática pedagógica que surgiram na era moderna para compreender o fracasso escolar, expressão que vai de encontro às expectativas da escola em termos do funcionamento ideal de aprendizagem. Mas, se o sintoma resulta de uma verdade recalcada, que verdade figura no fracasso escolar? Trata-se do retorno e da insistência decorrentes do destino que a civilização confere ao mal-estar do ser falante. Assim, o fracasso escolar, retorno de uma verdade, atrela-se à contingência histórica, ou seja, concerne às patologias da atualidade, nas quais persistem o ideal de transformar e melhorar a sociedade pelo aprimoramento da técnica e do progresso científico, condições para libertação e felicidade. A execução de tal empreitada se pauta em um modelo forjado que enquadra a criança em uma infância tecnicizada. De resto, o fracasso escolar insinua-se na contramão das demandas sociais, que exigem igualdade e ceifam as expressões de singularidade, pois revela uma verdade subjetiva excluída dos espaços instituídos pelo discurso dominante, que prima por modalidades ortopédicas para sustentar o ideal de homens perfeitos.
Palavras-chave: Fracasso escolar; Sintoma social; Subjetividade; Inconsciente.
ABSTRACT
An approach to schooling failure, within the sphere of contemporary pathologies, requires placing the social relationships in a historical dimension, characteristic of an epoch. When we refer to the aphorism: the unconscious is the social (ASSOUN, 1994); we disengage ourselves from readings that place the individual versus society and think schooling failure to be the reflex of contingencies, historical transformations and unconscious determinations that carry the initials of the social symptom, which is structured as the reflection of discourse production dominant of the period. It is therefore necessary to place discourse and pedagogical practice, which emerged in the Modern era, in order to understand schooling failure, an expression that directly opposes the ideals expected of schooling in terms of excellence of the learning function. What truth is depicted from schooling failure if the symptom results from repressed truth? It refers to the return and insistence stemming from the destination that civilization confers to the discomfort lived by humans. Thus, schooling failure, the return of a truth, attaches itself to a historical contingency or belongs to present day pathologies, wherein, the ideal to transform and to better society with scientific progress and improvement of technique persist as conditions for liberty and happiness. The execution of such an assignment is aligned to a forged model that imprisons the child in a technical childhood. Finally, schooling failure, as it reveals subjective truth, insinuates itself into the wrong direction to social demands that impose equality and cut out expressions of singularity excluded from spaces established by the dominant discourse, which give priority to orthopedics forms in order to sustain the ideal of perfect men.
Keywords: Schooling failure; Social symptom; Subjectivity; Unconscious.
INTRODUÇÃO
Inicialmente voltada para os interesses da classe dominante, a instituição escolar, de acordo com Cordié (1996), excluía aqueles que eram provenientes de camadas sociais desfavorecidas economicamente, bem como os portadores de quaisquer indícios que classificassem o sujeito como entidade negativa no contexto social. Em um primeiro momento, nem mesmo era aventada a possibilidade de o “diferente circular na escola, visto que havia medidas excludentes adotadas para reagir às diferenças” (MANTOAN, 2003, p. 8). Em seguida, foram criados os primeiros “depósitos” de crianças com diversas dificuldades, com a terminologia “classes especiais”, cuja finalidade era manter a segregação.
Acerca dessa segregação, cabe salientar que se fundamenta em um mecanismo assim descrito: identificam-se características nos sujeitos; em seguida, os mesmos são inscritos negativamente no contexto social; e, enfim, segregados. Eis o processo de exclusão do diferente, considerado como uma ameaça aos padrões vigentes. Sendo assim, a segregação “se apresenta como uma via de tratar o insuportável” (SOLER, 1998, p. 46), dirigida às diferenças que não são passíveis de serem reduzidas. Quer dizer, excluem-se aqueles que não participam da distribuição dos bens da civilização atual, por apresentarem uma diferença que, para o contexto vigente, os tornaria inválidos; seja a exclusão apoiada no discurso científico, seja para não ir de encontro aos valores estabelecidos pelento dominante. Nesse sentido, as classes especiais não se apresentam apenas como um espaço de discriminação, uma vez que o vetor prevalente é a segregação. Nesses e em outros espaços ortopédicos pretendia-se, então, forçar o sujeito a um processo de adaptação, por considerá-lo em estado de desvio, de erro, de anomalia ou de defeito. Nesse modo de proceder, a diferença deveria ser completamente apagada, e, caso isso não acontecesse, era conhecido o fracasso da utilização de procedimentos encarregados para a correção. No âmbito escolar, quando essa prática pedagógica foi alvo de severas críticas, tentou-se uma nova política, o processo de integração, em que o sujeito-alvo deveria realizar um contorcionismo para se integrar aos demais, considerados pela norma vigente como “normais”. A escola oferecia alternativasao sujeito para que se desdobrasse em esforços, visando integrar-se a um conjunto de valores considerados inabaláveis, próprios do repertório do modo de proceder da elite dominante do mundo ocidental. Assim, pretendia-se fazer a inserção do diferente, fundamentando-se em uma matriz teórico-metodológica que continha, às vezes, vertentes divergentes. O questionamento da segregação, no século XX, fez com que a prática da integração tivesse lugar, tendo como eixo para tal empreendimento, o conceito de normalidade, que serviu para o entendimento das pessoas afetadas por uma incapacidade ou uma dificuldade (DORÉ; WAGNER; BRUNET, 1996).
E qual o papel da escola? Na condição de instituição formal, apenas reproduzia os interesses da classe que se encontrava no poder, sem que fosse pensada qualquer possibilidade de transformação ou mudança. Mas, questionamentos e inquietações colocaram em xeque a própria instituição escolar no tratamento do diferente, sinalizando os efeitos negativos de uma política adaptativa ou integrativa. Em nome desses questionamentos se começou a pensar na categoria da inclusão, que pressupõe, como ponto de partida, a interação entre os diversos que compõem um segmento da tessitura social. Não se trata mais de querer desfazer a diferença, nem eliminar o diferente, mas, sim, proceder a um outro tipo de tratamento com o diferente. Eis a tônica da escola nas últimas décadas do século XX. Assim sendo, a escola inclusiva representa um questionamento dos paradigmas da modernidade que norteavam as práticas pedagógicas, o que certamente se revela como um momento de crise. Em primeiro lugar, como dar suporte a uma prática educativa inclusiva em uma sociedade que funciona com o objetivo explícito da exclusão? Em princípio, somos constantemente alertados acerca das exigências sociais, no sentido de que, somente o sujeito com especialidade de ponta e grande eficiência ocupa um espaço no mercado de trabalho.
Além do mais, a própria escola resiste à inclusão, utilizando-se de argumentos que refletem “a sua incapacidade de atuar diante da complexidade, da diversidade, da variedade e do que é real nos seres humanos” (MANTOAN, 2003, p. 50). Como a escola reage às diferenças sem se desligar das diretrizes do contexto social que funciona de modo excludente e segregativo? Nisso, estamos diante de uma grande contradição: a escola incluiria o diferente que apresentasse uma dificuldade global do desenvolvimento, mas não ofereceria condições para que tal sujeito concorresse no difícil mercado de trabalho, pois, enquanto instituição, estaria atravessada pelos vetores da eficiência e da competência. E como formar uma nova geração de educadores que façam a escolha por uma educação inclusiva em nome dainteração e cooperação?
Ao longo da história das transformações referentes ao processo educativo, é comum assinalar as situações de impasses surgidas do encontro entre o aluno e a instituição escolar, geralmente expressas em termos que, quase sempre, sugerem idéias de falhas, problemas, déficits e, enfim, fracasso escolar.
É interessante observar que a idéia de fracasso escolar, durante muitas décadas, era concebida como algo relativo às possíveis deficiências e incapacidades do aluno de se ajustar aos modelos formulados pela instituição de ensino. Nesse sentido, apontava-se para o processo de maturação do aluno em termos de atraso ou falta e, em alguns casos, levantavam-se questões sobre a ineficácia do método, ou mesmo carência cultural. Mas, é preciso assinalar que os termos “dificuldade” ou “distúrbio de aprendizagem” têm seu equivalente em fracasso escolar.
Para que possamos analisar a questão do fracasso escolar como um novo sintoma produzido no século XX, é necessário situar acontecimentos diretamente vinculados ao aparecimento desse fenômeno. Não obstante, antes teremos de apresentar nosso entendimento do que seja sintoma social, para refletir sobre o fracasso escolar nessa rubrica. Se tomarmos o discurso dominante de uma sociedade em uma dada época, teremos os esteios para fazer uma articulação sobre o sintoma social, conforme encontramos em Melman (1992). Sendo assim, enveredaremos por outra direção na análise do fracasso escolar, em vez de seguirmos aquela que toma, como parâmetros explicativos, a idéia de métodos de ensino inadequados, professores despreparados, condições culturais desfavoráveis, bem como déficits do sujeito. Indubitavelmente, partimos do pressuposto de que o fracasso escolar, na rubrica de sintoma social, é, antes de tudo, uma resposta do sujeito às exigências de seu mundo, ou seja, trata-se de uma produção singular de um sujeito inscrito em um dado contexto histórico.
O século XX, em todas as suas manifestações, traz as marcas do declínio dos esteios fincados com o advento da ciência moderna. Também reflete a herança de duas grandes revoluções ocorridas no solo europeu ocidental: a Revolução Francesa, que defendeu o lema da igualdade, liberdade e fraternidade; e a Revolução Industrial, da qual decorreu a construção do primeiro sistema fabril do mundo moderno. Ambas são responsáveis pelo surgimento das relações inéditas na história, em detrimento das quais são elaborados novos modos de laço social. Sendo assim, o fenômeno fracasso escolar refere-se, sobretudo, à rápida transformação no âmbito do trabalho, momento em que a sociedade se torna cada vez mais tecnicizada. Mas, alertemos que o fracasso escolar somente pode surgir com a escolaridade obrigatória, no final do século XIX (LAJONQUIÈRE, 1997), e que no século XX toma proporções cada vez mais significativas, em conseqüência das mudanças radicais na sociedade. A esse respeito é conveniente salientar que tal fenômeno não resulta apenas das exigências da sociedade moderna, visto que temos no fracasso escolar “um sujeito que expressa seu mal-estar na linguagem de uma época em que o poder do dinheiro e o sucesso social são predominantes” (CORDIÉ, 1996, p. 17). Desse modo, podemos afirmar que a pressão social serve somente de agente de cristalização de uma problemática que se inscreve na história singular de cada um.
A obrigatoriedade de escolarização pressupunha a quebra da barreira entre pobres e ricos pela igualdade de chances para todos, sonho que esteve e ainda está muito longe de se realizar. Mas, se tal obrigatoriedade é ditada por esse ideal, temos, na tentativa de supressão das distinções mediante a educação do povo, a simples tradução de necessidades econômicas, pois a Revolução Industrial, que assumiria um papel significativo no campo da economia, modificou profundamente a paisagem social: as máquinas deveriam substituir os homens. Era o que se desejava, mas, como se temia, fazia-se urgente a necessidade de adaptação do homem a esse novo cenário, no sentido de adquirir novas competências, em termos de um saber particular, que em muito se diferencia do saber-fazer manual. A exigência de um saber técnico se colocou nessas circunstâncias e, a partir de então, não ter tal modalidade de saber veio a ser considerado como incapacidade ou indício de uma deficiência. Os ofícios exigiam o conhecimento técnico, e aquele que não o possuísse engrossaria a lista fatal dos excluídos. Essas foram as conseqüências da passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, o que não ocorreu sem marcadas convulsões sociais, visto que o domínio do mundo pelo discurso capitalista produziu mudanças irreversíveis em todo o planeta em maior ou menor grau.
Nesse cenário, ainda no século XIX, seguindo a diretriz do pensamento de Mantoan (2003), constatamos que a política educacional traz a marca dos três grandes vetores responsáveis pelas ruínas das pilastras que serviam de suporte ao homem no Mundo Antigo: a) a crença no poder da razão e da racionalidade científica como o legado cartesiano; b) o projeto liberal de mundo com a dimensão de igualdade para pôr em ocaso a indesejável desigualdade, baseada na tradição de herança familiar; e c) a luta pela consolidação dos Estados nacionais, ou seja, a instauração da ideologia nacionalista, defensora do arranjo político mais ofensivo para a implantação de redes públicas de ensino.
Mas, as propostas não mostraram os resultados esperados. Em princípio, o século XX, palco das grandes contradições, demonstrou que a idéia de escolarização obrigatória, no sentido de transformar a humanidade para redimi-la da ignorância e da opressão, ainda é um sonho. Isso quer dizer que o ingresso do homem no campo das letras, das máquinas, da ciência e da moralidade não se constituiu em argumentos convincentes para livrá-lo da tirania, da desigualdade social e da exploração. É nesse contexto, na chamada “era dos extremos, com o colapso da sociedade burguesa do século XIX, com a desintegração de velhos padrões de relacionamento social humano” (HOBSBAWM, 1995, p. 24), que o fracasso escolar fez seu surgimento, como mais um dos sintomas que encabeçam a lista das diferentes modalidades de sofrimento que acometem o homem da era contemporânea.
Este panorama constituiu uma espécie de ontologia educativa que levou ao desencadeamento de pesquisas e políticas educativas. Em princípio, disso resultou certa “psicologização” do cotidiano escolar, quando o processo educativo foi definido como o desenvolvimento de capacidades, aptidões e habilidades (LAJONQUIÈRE, 1997). Obviamente, essa visão partia do pressuposto de que as capacidades já deviam fazer parte do repertório de condutas do aluno, pelo menos, em estado nascente. O não-desenvolvimento dessas capacidades era interpretado a partir de questões centradas no aluno e, assim, a responsabilidade da escola não era sequer cogitada, ou seja, os agentes do processo educativo passavam incólumes ao se isentarem de tomar partido nesse processo. Não faltaram pesquisas para apontar as causas do fracasso escolar. Certamente, cada investigação se revestia de uma ideologia em função das premissas apontadas.
O fracasso escolar, pensado como um insucesso, uma conseqüência de defeitos, deficiências ou falhas, ou seja, o mau êxito na escola, foi abordado em um contexto teórico que apontava três vertentes etiológicas, quando as pesquisas se detinham nos aspectos do aluno, sem considerar a teia de processos que reveste o contexto das relações sociais. Disso resultou um processo de psicologização da educação, mediante o qual se interpretavam as condições do aluno a partir de decisões pedagógicas pautadas em três fontes: a) as dificuldades de aprendizagem resultantes da falta de maturação das capacidades cognitivas; b) a estrutura da dinâmica familiar, em termos do conjunto de relações estabelecidas entre os diferentes membros do grupo familiar; e, c) a dificuldade de acesso aos objetos que circulam no mercado de bens.
PERSPECTIVAS ETIOLÓGICAS DO FRACASSO
A Concepção das Anomalias Orgânicas
O primeiro movimento nessa busca de causas para explicar o fracasso escolar consistiu no apelo às anomalias orgânicas, que eram também consideradas para explicar outras nuanças das condutas do homem que não estivessem em consonância com os padrões vigentes em uma dada época. Esse é o fruto da herança referente ao ato revolucionário empreendido por Vesálio, que, desafiando a ordem sagrada, dedicou-se ao estudo do interior do corpo (FOUCAULT, 1977). Como os achados corpóreos foram tomados para explicar a dinâmica do corpo vivo, então se produziram indícios para explicar as variações de ação humana pelo uso do conceito de lesão.
De igual modo, a vertente que postula as causas orgânicas para explicar o fracasso escolar empenhou-se na mensuração de valores indicadores de inteligência, que eram tomados como parâmetros nas decisões dos educadores sobre o destino do aprendente. Havia a assunção da ideologia de que a genialidade era um fator decorrente da hereditariedade. Assim, o fracasso escolar passa a ser definido, no âmbito de uma condição patologizante, em termos de incapacidade, o que concorreu para a segregação das diferenças, na medida em que, pela utilização de critérios normativos, o insucesso era localizado no aprendente a partir de suas limitações cognitivas. Nessa abordagem, de cunho biológico, atribui-se ao aprendente a provável falta de aptidão ou prontidão necessária ao processo de aprender, em função de um déficit corpóreo. Essa visão ideológica, na modernidade, evoluiu para a prática da medicalização como forma de correção de possíveis desvios. A idéia de correção já estava presente no auge da era medieval, visto que todos aqueles que apresentavam aspectos diferenciais (canhotos, cegos, surdos, mudos, aleijados, deficientes mentais e tantos outros) eram sacrificados segundo a crença de portarem uma força demoníaca. Assim, os diferentes eram eliminados. Obviamente, com a eliminação dos diferentes, não era possível sequer pensar no aprendizado de um ofício e, muito menos, na condição de fracasso nesse processo. Como os sujeitos portadores dessas características, entre outros, foram alocados na rubrica de “anormalidade”, esse mesmo tipo de prática perpassa o século XIX, sendo ainda realizada no século XX (PORTER, 1990).
Se esses sujeitos eram eliminados, então não se observava o fenômeno do fracasso. Somente quando as práticas de eliminação e integração foram questionadas é que se tiveram as evidências do fracasso escolar, inicialmente vinculado às falhas ou deficiências orgânicas. Assim, esse era alocado na rubrica de anormalidade, uma vez que a diferença era considerada como aquilo que produz um desvio, quer dizer, se afasta da norma. Daí o surgimento da expressão criança anormal.
Dinâmica do ambiente familiar
A hipótese de um ambiente familiar desfavorável como produtor do fracasso escolar resultou do empréstimo de termos do campo do saber psicológico, que se propunham a explicar as dificuldades de aprendizagem em função da dinâmica nas relações familiares, especialmente nos primórdios da vida. Eis a marcante psicologização da prática educativa. O reflexo disso foi a adoção, pelas escolas, de especialistas para operarem tanto no campo da prevenção quanto no do “reparo” dos problemas de aprendizagem, supostamente decorrentes da vivência do aluno em ambientes familiares entrópicos. A partir daí, a escola passa a adotar o modelo de intervenção psicológica no processo educativo, em uma ilusão de que a intervenção clínica seria isomórfica à prática educativa (MARPEAU, 2002). Assim sendo, o fracasso era o resultado de um desajuste no âmbito das relações familiares, e, como tal, era passível de tratamento clínico.
Cabe salientar que, se na abordagem genética o fracasso seria entendido como anormalidade, quando se considera o contexto familiar na sua entropia, o fracasso passa a ser o resultado de um desajuste, e disso surge o rótulo criança-problema. Assim, os especialistas são convocados para oferecer uma solução, seja pela possibilidade de mudanças no âmbito das relações familiares, seja pela explicação a partir da causa apontada em termos de declínio da função paterna (BARUS-MICHEL, 2001).A hipóstese da carência cultural
A teoria da carência cultural também comparece na lista de possibilidades de explicações do fracasso escolar, visto que valores, crenças, hábitos e habilidades consideradas como típicas de uma classe social, são tomados como mais adequados para um desenvolvimento psicológico sadio.
Preconceitos e estereótipos são os eixos que norteiam a prática pedagógica em que os indivíduos oriundos de classes menos favorecidas são considerados mais agressivos, desinteressados e inconstantes. Certamente, encontra-se aí a formulação de que o pobre é o depositário de defeitos. Tal teoria advoga que a criança, produto da privação cultural, demonstra deficiências nas funções relacionadas às operações cognitivas (PATTO, 1991).
Na tentativa de suprir a carência surgiram os programas de educação compensatória, com o objetivo de oferecer às crianças das classes sociais marginalizadas condições para recuperarem o atraso, diminuindo assim seu estado de carência. Esse modo de proceder se assentava na ideologia de que o modus vivendi de uma classe social poderia, facilmente, ser transportado para outra. Eis um projeto equivocado, que pretendia mudar as condições de vida de uma criança sem que nenhuma abordagem institucional fosse posta em prática para discutir a escola, conforme assinala Mannoni (1981)
A ABORDAGEM PSICANALÍTICA SOBRE O FRACASSO ESCOLAR
Além das três vertentes apresentadas, temos aquela que focaliza o significado do aprender para a criança, e o ensinar para o professor. Assim como o aprender pode ser fruto da curiosidade infantil transformada em desejo de saber, o ensinar atrela-se ao desejo de transmitir o legado cultural construído pelos antepassados. Temos, assim, duas molas em ação: o desejo de saber e o de transmitir.
No tocante ao desejo de saber no aprendente, imagina-se que o fracasso escolar pode resultar da pressão da demanda de uma sociedade, da família ou mesmo da escola, pois sabemos que esta ensina, mas não faz nascer em alguém o desejo de aprender. pois há “algo que escapa e que ultrapassa, que está além ou aquém da pura e consciente vontade de fazer com que alguém saia do limbo da ignorância e passe para o lado dos que conhecem” (STOLZMANN; RICKES, 1999, p. 41).
O desejo de aprender concerne à própria subjetivação, ou seja, faz parte da condição humana, mas pode encontrar-se embotado ou mesmo inibido. Por isso, o fracasso escolar pode ser a denúncia de uma forte pressão no sujeito para atender a um ideal que o anule e o impeça de se expressar em termos de sua dinâmica desejante, pois crianças repetentes trazem “à tona a questão da diferença, do Outro e não são fáceis. Borram os limites, apesar de viver entre limites. Viver no entre, que é um lugar de vertigem, entre repetir e não mais, entre estar na escola e fora dela. Ser repetente é viver o entre da escola” (ABRAMOVICH, 1997, p. 196). Analisado nesses termos, o fracasso escolar pode ser compreendido como uma modalidade de sintoma social, ou seja, como uma resposta do sujeito às exigênciasde uma época, em nome da eficiência desmedida que, em um mundo globalizado, é tomada como índice de realização e parâmetro de felicidade, bem-estar e sucesso. Não obstante, convém salientar que, se entendemos a contemporaneidade como a era atual, marcada por uma radical transformação de valores, é provável que o homem, ainda nostálgico dos esteios da era moderna, produza respostas sintomáticas aos vetores em evidência no seu cotidiano.
PRÁTICA EDUCATIVA E CONHECIMENTO
Comecemos pela palavra educar, que, derivada do latim educare, quer dizer criar, alimentar, ter cuidado com, adestrar animais, formar e instruir. Eis o sentido geral, pois, em uma acepção poética, educar significa moldar, esculpir e escrever. É importante salientar que, na educação, atualiza-se algo da ordem de uma marca que molda, que possibilita certa condição existencial e que burila o ímpeto próprio da suposta condição selvagem, considerada como uma modalidade de natureza presente na cria humana (LAJONQUIÈRE, 1997). Nessa acepção, o termo educar tem a conotação de endireitar, no sentido de ajustar a um modelo considerado ideal.
Ao se formular um processo para promover certa retidão, no entanto, é preciso que algo seja percebido no contexto social como diferente, e que isto receba uma conotação negativa, como a história nos retrata nas apreciações das fatalidades conhecidas como “crianças selvagens” (MALSON, s/d).
Não obstante, existem outras interpretações do que seja a educação.
Em primeiro lugar, podemos nos referir a um processo de transmissão de um conjunto parcial de conhecimentos. Isso quer dizer que o aprendente adquire certo domínio sobre algum dos mundos possíveis e acaba sendo marcado por aquilo que é aprendido. Assim, entendemos que o aprendente, quando aprende, chega enfim a se perceber em um laço com seu mestre, firmando, desse modo, um traço de identificação, e, ainda, encontra-se submetido a uma tradição empreendida como uma dose de existência, ou seja, uma cota de saber-fazer com a vida.
Em segundo lugar, podemos entender a educação como a transmissão de certo saber existencial, que não se reduz ao conhecimento sobre nenhum mundo possível, visto que “se o saber, na sua transmissão, deve levar em conta o singular de cada um, pode-se dizer que é apenas no estilo de mestria que podemos esperar algo da ordem de uma singularização” (HOHENDORFF, 1999, p. 58). Tal formulação nos leva a compreender que a construção do conhecimento se estende para além das fronteiras da vida cotidiana. Isso quer dizer que, na curiosidade em relação ao saber, há uma temporalidade própria de cada um, que não é balizada pelas ocorrências de ordem cronológica que, em seu conjunto, compõem o modus vivendi atual. Em certo sentido, sabemos que o saber faz um apontamento para um ideal que não é encontrável nas diferentes situações da vida.
Em terceiro lugar, podemos compreender a educação como dívida existencial ou simbólica, pensada na relação credor-devedor, no sentido hegeliano, parâmetro para se pensar a condição de existir e de desejar. Em se tratando do desejar, tem-se algo que se articula ao saber. Mas é pertinente se advertir que, sobre o desejo, não há conhecimento possível. Em princípio, pelo fato de que o desejo do homem é sempre o desejo de um desejo e, portanto, comporta um enigma que concerne ao Outro. Além disso, como o desejo coloca o homem na condição de ser-para-a-morte, há sempre uma zona sombria, que não se desvela no percurso do sujeito em seu viver. Daí, quando situamos a díade saber-desejar, estamos diante de um paradoxo, caracterizado pela relação entre o que se quer saber e o recalque que aí opera. No tocante à dívida, sabe-se que o aprendente tem com o ensinante uma modalidade de dívida simbólica, visto que o patrimônio transmitido é da ordem dos signos e dos símbolos e não da ordem das coisas, pois, “a transmissão não comporta divisão: é mesmo um excesso que está em jogo” (FARIAS, 2005, p. 68). Da mesma forma, o conhecimento construído na relação se dá também a partir dos símbolos, o que quer dizer que o aprendente nada deve, no real, porque aquilo que é transmitido não faz parte de qualquer propriedade do ensinante. Dito de outro modo: o ensinante doa ao aprendente aquilo que faz parte de uma tradição dos sistemas de conhecimento. Assim, entendemos que o ensinante invoca uma tradição, de modo que o conteúdo transmitido é um signo da dívida do ensinante pelo empréstimo que faz com a tradição e também do desejo em causa no ato educativo. Isso pode ser compreendido como se o transmitir fizesse parte de uma totalidade, mas não é, de longe, todo o conhecimento.
Em quarto lugar, entende-se a educação como a transmissão de uma saber ideal, uma vez que, no ato educativo, há uma cota de dever ser. Em se tratando do ideal, destacam-se a vertente simbólica relativa ao saber que é veiculado como um saber não sabido e a vertente imaginária que se apresenta como se o saber fosse algo semelhante a uma certeza.
Esses quatro vetores (conhecimento, saber, desejo e dívida) se articulam em todo o processo educativo, de modo que o educar ocorre por um ato de filiação às idéias, aos sistemas epistêmicos e às dívidas. Assim, estamos diante de ferramentas importantes para refletir sobre o fracasso escolar, não como um déficit orgânico, intelectual ou mesmo uma carência cultural. Sem sombra de dúvida, essas condições devem ser consideradas como acessórias e não como causas de um processo tão complexo, imbricado nas teias da era contemporânea.
FRACASSO ESCOLAR: UM SINTOMA SOCIAL
Para circunscrever a temática referente ao fracasso escolar é preciso assinalar que, no âmbito da vida cotidiana, a constituição da subjetividade e as transformações decorrentes do ato educativo se pressupõem e, às vezes, se confundem. Isso quer dizer que o ato educativo opera em um campo de legalidade, em um espaço em que, de um lado, encontra-se o dever-ser (mais ou menos cumprido) e, de outro, uma modalidade de amor, em última instância, não correspondido, ou seja, “o discurso amoroso se apresenta vinculado ao conhecimento da transmissão” (FILHO, 1998, p. 98). De igual modo, a constituição dos arranjos subjetivos somente é possível dentro de certos limites.
Considerando essa pressuposição mútua, indica-se, geralmente, que o ato educativo tem lugar na confluência da adequação entre as características maturacionais, próprias da condição evolutiva e da utilização de estratégias científicas de ensino. Pelo menos, esse é o pensamento presente em nossos dias e que remonta à modernidade. Não obstante, se a educação fosse somente possível em decorrência dessa adequação, então se seria obrigado a concluir que o sucesso do ato educativo se deve ao emprego de um método adequado ao momento maturacional próprio ao aprendente. Certamente, temos de concluir que apenas existem métodos, mas nada pode ser afirmado no tocante à adequação. Sendo assim, a compreensão de uma adequação natural é bastante contraditória, além de ser inconsistente. Disso decorre então que, muitas vezes, o fracasso escolar é explicado pela falta de uma suposta adequação natural. Eis uma leitura problemática, por ser fundamentada em uma premissa ilusória.
Uma questão relevante é que o fracasso escolar tenha sido registrado nos tratados pedagógicos somente no século XX (LAJONQUIÈRE, 1997). Indagaríamos: essa condição não existia em outras épocas ou, caso existisse, teria passado despercebida? Certamente, a minoria, conhecida atualmente pela denominação fracasso escolar, não era objeto de interesse da ciência, no sentido de um registro estatístico, nem de preocupação pedagógica, mesmo porque esses sujeitos não eram evidenciados, em função das condições em que viviam. As exigências impostas ao homem eram de outra natureza, especialmente no tocante à educação, de modo que não produziram o fracasso escolar como sintoma social, uma vez que “sobre a etiologia do fracasso escolar [...] fazem parte [...] a manipulação das promessas de gozo, inerentes às ações, políticas de educação, amparadas por uma ética de ideais universais e globalizados” (COHEN, 2002, p. 252-253).
O cenário forjado no momento em que o cotidiano escolar passa a ser objeto de preocupação psicológica, nos finais do século XIX, coincide com o momento em que a categoria fracasso escolar faz sua aparição e passa a ser objeto de discussões e investigações, ou seja, circula nos meios científicos (HEBRAD, 1975).
Talvez tenha sido em função da psicologização do ato educativo que a categoria fracasso escolar tenha tido sua enunciação, mas, certamente, como defeito, falha, inadequação metodológica ou qualquer atraso na expressão das capacidades funcionais. Esse modo de compreender, herdeiro dos auspícios da modernidade, não aventou a possibilidade de considerar dois aspectos fundamentais no fracasso escolar. Um, de cunho meramente político, ou seja, o fracasso escolar encontra-se intimamente vinculado à degradação e aos elos frouxos no sistema de leis de um país, o que compreendemos como sendo a maior renúncia à educação. Outro, ligado ao engendramento da prática política e à produção de sintomas sociais como respostas contemporâneas às novas modalidades de produções subjetivas, ou seja, as modalidades de laços que o sujeito estabelece com o saber. De certo modo, “as palavras fracasso e escolar apresentam dois sentidos: fracasso na escola e fracasso da escola” (MILNER, 1984, p. 82). Não obstante, quando nos referimos ao pathos do fracasso escolar, constatamos que há nisso algo de uma ordem tal que ignora qualquer nuança de singularidade.
Assim, aproximamos fracasso escolar e sintoma social, uma vez que o sintoma social é produzido em consonância com o discurso dominante de um dado momento histórico. Sendo assim, não podemos mais pensar o fracasso escolar em termos das conseqüências da aplicação de um método de ensino inadequado, de condições desfavoráveis ou mesmo de professores despreparados. Tampouco podemos compreendê-lo como um sintoma surgido de uma história singular, entendido meramente como uma condição repetitiva do sujeito. Conforme assinala Cohen(2002),
«o fracasso escolar, dentre os novos sintomas da nossa contemporaneidade, aponta para a suposição que, um excesso, um transbordamento de angústia empurra o professor para fora da sala de aula e que os alunos, ao serem ameaçados de reprovação, não são mais afetados ou angustiados por esse valor.» (COHEN, 2002, p.253)
Estamos salientando que os sintomas sociais se revestem das roupagens próprias a cada época em função do discurso que impera e, sendo assim, não podemos desvinculá-los do cruzamento do discurso capitalista com o discurso científico na era contemporânea. Dito em outras palavras: procuramos entender como o fracasso escolar se articula no âmbito da inscrição desse cruzamento discursivo (SINATRA, 1995). Sem sombra de dúvida, a imperiosidade dessa convergência discursiva trouxe para o sujeito um espectro de exigências bem amplo, ao mesmo tempo em que reduplicou o número de oferendas dispostas como bálsamos ilusórios, destinadas a minimizar as agruras próprias do existir. Talvez, por esse motivo, convive-se, atualmente, no âmbito da escola, com aprendentes que não se transformam pelo saber ou que desistem da pertinência à escola. Esses indícios servem de alerta para a melhor compressão do processo de transmissão do saber. Notadamente, as expressões utilizadas para enunciar tal condição, como dificuldades de aprendizagem, fracasso escolar e outras, são, na verdade, um apelo extremado de que é possível existir uma outra forma de ensino que não deve estar ocorrendo na escola. Por outro lado, parte-se da condição de sucesso, sendo esse um caminho tão infrutífero quanto o que advoga pelo funcionamento ideal de aprendizagem.
Acredita-se que, se eliminados determinados obstáculos, o sucesso manifesta-se sem problemas. Estar-se-ia assim promulgando a ilusão de que haveria uma essência latente, impedida de expressão em razão de alguns obstáculos. Desse modo, o fracasso escolar é encarado como uma entidade externa que se instala no seio do processo educativo. Daí, então, medidas são desencadeadas no propósito de combatê-la. Mas, operando nessa impropriedade, o fracasso escolar tem passado incólume aos procedimentos destinados a revertê-lo, principalmente quando se tenta abordá-lo como um mal a ser eliminado ou uma doença a ser tratada.
O campo educacional pedagógico encara o fracasso escolar como uma entidade externa instalada no seio do processo educativo. A par dessa visão decorre a idéia de que se trata de um mal a ser prontamente combatido pelas diversas modalidades de práticas que têm suporte no discurso científico, como a medicalização, programas de suplementação alimentar (FONTES, 1999, p. 109), reformas educacionais, fomento e incentivo às pesquisas sobre o fracasso escolar, medidas técnico-admistrativas e educação compensatória. Todas essas indicações de práticas trazem embutidas a idéia de que existem falhas no desenvolvimento que deveriam ser compensadas. Não obstante, as inúmeras tentativas, decorrentes da utilização de diferentes metodologias, não vêm produzindo o resultado esperado pela pedagogia em termos da minimização dos chamados problemas de aprendizagem. A persistência dessa situação evidencia que não se pode pensar em garantias no que se refere ao processo de ensino, por envolver no seu contexto estratégias concernentes ao amor. Estamos, assim, diante do impossível, expresso de diferentes modos, tanto positivos quanto negativos. Além disso, não se pode pensar em sucesso quando a transmissão de saber é realizada por um “bom mestre” munido do saber e dos instrumentos para transmiti-lo, pois a produção do novo suscita impasses, o que, certamente, toca o ensinante no seu exercício cotidiano. Impotente diante de determinadas circunstâncias, deixa sair de cena os elementos que remetem à divida e, assim, a desloca para o aprendente, concorrendo para que, muitas vezes, o ensinante “não fale mais de um lugar de saber e sim da impotência” (SALDANHA, 1993, p. 154).
De resto, a ciência, por meio das mais variadas tecnologias, produz objetos e os disponibiliza para o consumo; nestes estão incluídos o perfil do aprendente ideal e do ensinante competente, pensado como um agente responsável em propiciar condições que se revertam em dispositivos capazes de minimizar o sofrimento da vida. Eis o ideal da modernidade que tomamos como matriz para entender o fracasso escolar. Em princípio, fracasso escolar se opõe ao sucesso na escola, que, por sua vez, é o lugar onde uma prática teorizada tem lugar, no sentido de possibilitar alternativas ao sujeito para alcançar sucesso em sua vida. Isso significa a promessa de acesso aos bens de consumo, difundidos como essenciais ao bem-estar e à felicidade. Certamente, a criança encontra-se aprisionada nesse ideal, principalmente se considerarmos a difusão em ampla escala da síndrome de atenção como elemento de explicação dos possíveis insucessos. Aqui, nos deparamos com uma via que toma a contramão do processo educativo, visto que a educação deve ser definida como o método cujo propósito é levar o sujeito a encontrar um lugar possível na sociedade, ou seja, no mundo das relações sociais que se estabelecem em decorrência da passagem pelas etapas da infância e da adolescência. Para alcançar tais propósitos é preciso que a educação seja suficientemente “boa”. Difícil é formular os balizadores para realizar o processo em tais condições. Temos, porém, um caminho para começarmos a trilhar nessa seara complexa: entendemos por uma boa educação o processo que implica deveres e direitos para as instâncias simbólicas de autoridade, que impõem ao homem os limites que abrem o pórtico do campo do desejo. Assim, temos condições de firmar laços sociais e exercer a cidadania, o que quer dizer que estamos diante de uma proposta do que seja o educar, muito diferente dos ideais formulados pela modernidade, em termos de individualismo e independência. Esclarecendo esse aspecto, queremos destacar que a proposta da modernidade se concentra na difusão do ideal de que a criança e o homem devem estar sempre felizes e radiantes. Para tanto, contou com um aliado poderoso, que são os meios de comunicação, ao disponibilizar a lista interminável de produtos e serviços para garantir a alegria e a felicidade do homem moderno. Mas, certamente, essa ação da mídia se verteu, por outro lado, em um grande paradoxo: os bens são divulgados, mas o sujeito deve ter poder econômico para adquiri-los. Sendo assim, estamos perante uma possibilidade de frustração nas comunidades de baixa renda, na busca de soluções para garantir os caminhos que levem a uma realização plena.
O cenário então é bastante exigente: as crianças perderam o direito de sofrer, de chorar e de se entristecer. Para garantir que não haja tristeza, infelicidade, dor, medo e outras nuanças da subjetividade, o saber científico produziu e disponibilizou para utilização uma legião de especialistas, como agentes técnicos, aptos a fornecer as melhores soluções aos problemas da vida. Esse modo de engendramento social tem conseqüências imediatas, isto é, a educação que tinha lugar no âmbito familiar foi terceirizada: os pais não são mais vistos como pessoas boas e eficientes para educar seus filhos, ou seja, de certa forma foram depostos de sua função junto aos filhos. Os especialistas são então representados, na tessitura social, como aqueles que sabem mais sobre as crianças, sendo tarefa deles proferir a última palavra. Além disso, há também uma tecnologia que, da mesma forma, destitui o professor de seu saber sobre como ensinar.
A ordem mundial pressupõe a construção de um mundo perfeito, funcionando de forma autônoma, para que o homem seja feliz (KUPFER, 2000). Mas a contrapartida da felicidade oferecida é o homem estar preparado, de forma versátil, para ocupar lugares nesse mundo competitivo. Sem dúvida, o homem encontra-se na obrigação de realizar esse ideal de perfeição na crença de que alcançará um futuro feliz mediante o consumo das oferendas disponíveis. Isso equivaleria a dizer que o ideal difundido é o de que todos sejam iguais, desprovidos de singularidade, competentes e sem falhas. Não estamos ante a promulgação de uma modalidade sofisticada de eugenia?
Não deixemos de salientar que a educação geral e a escolar seguem, em grande parte, a trilha traçada pelos anseios da modernidade, que, de certa forma, estabeleceu um padrão do que deve ser a criança e o aprendente: o aprendente ideal é aquele com o qual todos os professores desejam lidar, ou seja, o que aprende tudo, sem grandes questionamentos, sem dar muito trabalho, sem violências e sem desrespeito às normas estabelecidas. Fica assim patente que esse é o aprendente que se converte no protótipo para provar que as metodologias utilizadas são eficientes e boas. Quando esse ideal falha, torna-se então necessário buscar a causa do fracasso e desenvolver formas de superá-lo.
As fórmulas de superação são estabelecidas em termos de uma ortopedia que desconhece que esse fracasso está relacionado a uma verdade subjetiva de uma dada prática discursiva. Sendo assim, não podemos atribuir o fracasso às causas apontadas em termos de condições econômicas, materiais, metodológicas, técnicas, cognitivas e biológicas. Essas, sim, seriam circunstâncias que são, eventualmente, tomadas como simplificações, mas, não devemos esquecer que tais condições devem ser consideradas para não cair em outra modalidade de simplificação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar o fracasso escolar requer situar as posições subjetivas ensinante e aprendente. Do lado do ensinante, sabemos que o mesmo não está isento de cometer omissões, embaraços e inibições. Isso não quer dizer que, por isso mesmo, não haja transmissão, mas que o aprendente sempre dará uma significação particular àquilo que lhe é transmitido. Daí, seguindo a trilha do pensamento freudiano, podemos afirmar que o exercício da transmissão comporta sempre um saber que não se sabe. Quer dizer: nem sempre o ensinante controla aquilo que transmite, como também não controla os efeitos provocados no aprendente. Assim, estamos diante de uma peculiaridade: “a constituição do saber tem vicissitudes que aquele que ensina ignora” (FERREIRA, 1998, p. 144).
Aprendentes que fracassam na instituição escolar podem trazer, com esse indício, questões relevantes de cunho subjetivo que, na relação com a família, com a escola e com o professor, podem estar exacerbadas em funções de ideais em pauta. Tais questões exigem um outro tempo e outros recursos para se considerar o aprendizado e, assim, podem ser uma forma de contestação e de transgressão do aprendente, quando se percebe diante da ameaça de ver anulada sua dimensão desejante perante a possibilidade de corresponder a uma demanda postulada em termos de um ideal a ser alcançado. Sendo assim, a escola, a família e o professor, estando em condições de escutar os ruídos que concernem à produção subjetiva dos alunos multirrepetentes, podem, de maneira proveitosa, desnaturalizar os processos da prática educativa, serializados e normatizadores, apoiados na idéia de que as capacidades de cada faixa etária se produzem gradualmente. Isso quer dizer que a construção do conhecimento não decorre de um processo acumulativo, progressivo e linear da aprendizagem, em um tempo previamente determinado. Antes de tudo, um alerta deve ser feito: mesmo diante da situação de fracasso escolar, o ensinante não pode esquecer de que tem algo a ensinar. É no seu exercício cotidiano que as dificuldades aparecem, tanto em como ocupar o lugar da mestria, quanto como transmitir os conteúdos aos quais se encarrega. Assim, conforma-se a assimetria em relação ao saber. Mas, tal assimetria não deve ser um fator de inibição para o aprendente, ou seja, o ensinante deve estar cônscio de que, além das tarefas didáticas, ensina algo pela via da transferência, em um exercício de amor ao ofício. Seria pertinente considerar também esse aspecto na compreensão do fracasso escolar como sintoma social.
Sendo assim, o sujeito que não aprende pode estar expressando, de forma salutar, uma alternativa de não se ver perdido em atender aos ideais da família, da sociedade, da escola e do professor. Isso seria adotar um sintoma para fazer a ruptura de uma ordem linear, para suscitar alguma mudança que possa representar um desafio ao conjunto de ideais cristalizados preestabelecidos. Desse modo, são tecidas condições para o questionamento da estrutura institucional, na medida em que o fracasso do aluno estaria, em certo sentido, indo de encontro às expectativas da instituição escolar. Sendo assim, a recusa ou inibição em aprender, não aprender ou ter problemas de aprendizagem nada mais são do que momentos e ritmos diferentes de percurso da aprendizagem. Constantemente, esses ritmos não são compreendidos, em função de julgamentos e expectativas, de acordo com padrões lineares das instituições educacionais: a família e, principalmente, a escola.
Se a escola, a família e o professor têm condições de pôr em contenção o nível de expectativas, principalmente o professor pode assumir um papel privilegiado no sentido de fazer valer seu desejo de ensinar. Basta, para isso, que seja acesa no aprendente a centelha da curiosidade, isto é, que ele seja mobilizado pelo desejo. Desse modo, o fracasso pode ser compreendido como um efeito da interação da criança com a escola e com o professor, que não abre mão de ter alunos ideais. Sendo assim, a compreensão da origem do fracasso funda-se no desconhecimento da importância de desafiar o sujeito a refletir sobre sua ação, pondo em evidência o desejo de saber.
Por fim, o fato de que, nos dias atuais, a escola se organiza segundo regras morais que primam pela homogeneidade, pela harmonia e pela eficiência, deve ser considerado. Sendo assim, compreendemos o fracasso escolar como resultado da inibição do desejo de aprender e também como dispositivo para a reflexão sobre os saberes e práticas pedagógicas instituídas na escola. Assim, salientemos que o fracasso escolar evidencia uma particularidade do sujeito; quer dizer, uma dificuldade, na medida em que traz à tona um sofrimento decorrente do conflito em que o sujeito se encontra. Podemos mesmo pensar que o sujeito, nessas circunstâncias, apresenta uma espécie de “ferida narcísica”, como um ser depreciado para si mesmo e para os demais. Claro que entendemos essa dificuldade, na sua face mais evidente, como a inibição intelectual para o aprender, o que aponta para as entropias encontradas no âmbito do saber. Daí cair o investimento voltado para o saber e, em decorrência dessa queda, descortina-se um sintoma.
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Francisco Ramos de Farias
E-mail:frfarias@uol.com.br
Recebido em: 18/05/ 2007
Aprovado em: 29/07/2007
Revisado em: 13/08/2007