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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.61 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2009

 

ARTIGO

 

O filho fora do tempo: atos infracionais, uso de drogas e construção identitária

 

The son out of time: practice of illegal acts, use of drugs and identity construction

 

 

Maria Aparecida PensoI; Maria de Fátima Olivier SudbrackII

IUniversidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, Brasil
IIUniversidade de Brasília (UnB), Brasília, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo busca compreender a contribuição da dinâmica familiar no processo de construção identitária de adolescentes que cometeram atos infracionais e são usuários de drogas, vivendo em situação de pobreza e exclusão social. Para isto, discute conceitos como construção identitária, adolescência, relações familiares, uso de drogas e envolvimento em atos infracionais a partir da Teoria Sistêmica. Utiliza-se da metodologia qualitativa de pesquisa-intervenção com dez adolescentes em medida socioeducativa de semiliberdade e suas famílias. Sendo parte dos resultados de uma tese de doutorado, descreve uma das metáforas usadas para definir o lugar do filho na dinâmica familiar, intitulada ''o filho fora do tempo''. Os resultados apontam para o uso de drogas e o cometimento de atos infracionais como formas de buscar pertencimento ao grupo de pares, sendo uma das saídas encontradas pelo adolescente para lidar com a situação, permitindo a resolução da crise identitária.

Palavras-chave: Família; Construção identitária; Adolescência; Drogas; Atos infracionais.


ABSTRACT

This study intends to comprehend the contribution of the family's dynamics in the identity construction process of adolescents who have committed illegal acts and are drug users, living in poverty situation and social exclusion. With this goal, it discusses concepts as identity construction, adolescents, family's relationship, drug use and involvement in illegal acts based on the Systemic Theory. It uses the qualitative methodology of research-intervention with ten adolescents under social-educative committals of semi-liberty and their families. As it is part of the results of a doctoral thesis, it describes one of the metaphors used to define the place of the son in the familiar dynamics, called ''The son out of time''. The results aim to the use of drugs and the practice of illegal acts as ways to seek the belonging into the group of pairs, as one of the exits found by the adolescente to deal with the situation, allowing the outcome of the identity crisis.

Keywords: Family; Identity construction; Adolescence; Drugs; Illegal acts.


 

 

CONCEITOS TEÓRICOS: O USO DE DROGAS E O COMETIMENTO DE ATOS INFRACIONAIS NA ADOLESCÊNCIA

Apresentamos inicialmente os conceitos da Teoria Sistêmica que nortearam este estudo. Para esta teoria, a identidade é uma construção prioritariamente familiar, em que a família é compreendida como a ''matriz de identidade'' de seus membros e envolve os processos de separação e pertencimento ao longo do Ciclo de Vida Familiar e da história transgeracional. Tais processos adquirem maior importância na adolescência, quando são questionados em função da expansão das relações do adolescente e da sua construção identitária, gerando uma crise na família que afeta e modifica todos os seus membros (AUSLOOS, 1982a; 1983; COLLE, 2001; CUENDET, 1991; FISHMAN, 1996; MIERMONT et al., 1994; VIEYTES-SCHMITT, 1991; BOWEN, 1976; MINUCHIN, 1982; MINUCHIN; FISHMAN, 1990; ROSSET, 2003).

Compreendida como fase do Ciclo de Vida Familiar, a adolescência possui algumas tarefas específicas, que envolvem todos os membros da família, já que o crescimento dos filhos pressupõe a evolução dos pais frente a essa nova realidade. São importantes neste momento a permeabilidade das fronteiras familiares, a flexibilidade de papéis, a negociação e uma nova modulação da autoridade parental (PRETO, 1995; CARTER; MCGOLDRICK, 1995). Alem disso, esta fase provoca mudanças também na família extensa, redefinindo os relacionamentos e exigindo mudanças estruturais e renegociação de papéis, em pelo menos três gerações. O movimento dialético de pertencimento e separação reatualiza as regras transgeracionais e os padrões de relacionamento dos diferentes sistemas familiares de origem, sendo que o movimento de autonomização dos filhos varia em função dos mitos familiares de cada um dos pais (MIERMONT et al., 1994). Este processo é descrito por Bowen (1991) sob a denominação de transmissão multigeracional e compreeende a transmissão dos níveis de diferenciação do self da família, por meio das gerações múltiplas.

Quando a família enfrenta dificuldades no processo de construção identitária de seus filhos adolescentes, podem surgir sintomas que as denunciam. Nesta pesquisa, tais sintomas são o uso de drogas e o envolvimento com atos infracionais compreendidos como fenômenos relacionais, que têm uma função no e para o sistema (MIERMONT et al., 1994). Isto significa que funcionam como reguladores do sistema, tentando superar a crise, sem que nenhuma mudança real ocorra (AUSLOOS, 1977; FISHMAN, 1996; SAMANIEGO; SCHÜRMANN, 1999). Sua função é conduzir uma mensagem que revela falhas do sistema familiar e social, indicando a necessidade de mudança no seu funcionamento (BULACCIO, 1992; ROSSET, 2003).

Deste modo, o uso de drogas na adolescência denuncia as dificuldades familiares em atravessar essa etapa do Ciclo de Vida Familiar, em que ocorrem os movimentos de crescimento e individuação, essenciais na busca do jovem pela sua autonomia e independência do grupo familiar (SUDBRACK, 2003). A fantasia criada pelos pais, de que estão perdendo o seu filho, quando este demonstra movimentos de saída do sistema familiar, gera um estado nomeado por Stanton e Todd (1988) como ''pânico parental''. Mais do que uma reação comum de medo pelo desconhecimento do processo da adolescência ou de tristeza pela falta do filho permanentemente em casa, o que aparece é um sentimento de pavor que não pode sequer ser nomeado, mas que paira todo o tempo sobre o sistema familiar, ameaçando-o de destruição. Isto ocorre porque a possibilidade de crescimento e independência do filho é vista como uma ameaça à continuidade familiar. Assim, esse ''pânico'' confirma a impossibilidade da separação, vista como ruptura e abandono (GOUBIER-BOULA; REAL, 1982).

Nessas famílias, não há a percepção de que os vínculos são permanentes, mas que não são estáticos e que as pessoas co-evoluem em relação, em um processo dialético entre autonomia e dependência (COLLE, 2001). Assim, o uso de drogas oferece-lhes uma solução paradoxal ao dilema criado sobre manter ou dissolver a família (STANTON et al., 1988). Esse filho, cuja tarefa é manter a estabilidade da família, encobrindo a realidade inaceitável da passagem do tempo, ao drogar-se, oferece a si mesmo em sacrifício pela manutenção do equilíbrio do sistema familiar (CASTILHO, 1994; COLLE, 2001; KALINA, 1988). Segundo Kalina et al. (1999, p. 47): ''O filho que esteja destinado a não ser, ou seja, a não ter uma identidade própria, em seu afã por ser escolhe uma forma de não-ser, como é a identidade do drogadito''. Para os autores, essa solução, a despeito do sofrimento que traz para o adolescente e sua família, é bem-vinda, pois a independência do filho é uma ameaça mais destrutiva para a família do que a dependência química.

O uso de drogas, assim, é um mecanismo substitutivo em uma tentativa de equilíbrio que não está sendo possível de ser realizada dentro do sistema familiar, a respeito da autonomia do adolescente, resultando em uma pseudo-individuação (AUSLOOS, 1982b; GOUBIER-BOULA; REAL, 1982; STANTON; TODD, 1988). Em outras palavras, é uma tentativa inapropriada de um membro da família em negociar sua emancipação do sistema familiar, que resulta em ciclos repetitivos de partidas e retornos da casa dos pais (SILVESTRE, 1996). Um fracasso na separação, vivido sob forma de rupturas violentas que resultam em reconciliações fusionais, reforçando as dependências relacionais. Neste caso, o sujeito é um dependente da sua família, na qual a co-dependência afetiva é um laço indestrutível e estável (CASTILHO, 1994; SUDBRACK, 2003). Deste modo, as mudanças do Ciclo de Vida Familiar, que deveriam perturbar esses vínculos, parecem ter como único efeito as oscilações, mas mantêm inalterável a homeostase do sistema (COLLE, 2001). Nessas famílias, o adolescente está triangulado no conflito parental, superenvolvido com a mãe, em uma relação descrita como quase incestuosa, configurada pela ausência de barreiras geracionais e confusão de papéis (KAUFMAN, 1985; MIERMONT et al., 1994; PRATA et al., 1996). São também famílias nas quais se observa a presença de segredos e mentiras como um mecanismo de proteção, acobertamento e negação do comportamento do dependente (KRESTAN; BEPKO, 1994; SUDBRACK, 2003).

Semelhantemente ao uso de drogas, o envolvimento em atos infracionais pode ser interpretado como uma tentativa inadequada de assinalar de forma dramática que os problemas enfrentados pela família, nesse momento do Ciclo de Vida Familiar, não podem mais ser resolvidos pelas regras familiares habituais (CHIROL; SEGOND, 1983). São famílias regidas pela ''lei do silêncio'', na qual os conflitos não podem ser explicitados pela via da linguagem. Neste caso, o ato infracional tem como função comunicar as dificuldades vividas no interior da família, em um movimento de agir fora do ambiente familiar o que não se pode falar no seu interior. Também para Segond (1992), o aparecimento da delinqüência na adolescência está relacionado às dificuldades específicas de comunicação e a características relacionais dentro da família, mais do que a aspectos individuais de personalidade ou a fatores estruturais, como divórcio, situações de famílias não casadas ou número de filhos. Fishman (1996) apresenta algumas características que podem ser resumidas da seguinte forma: a autoridade parental encontra-se debilitada em função de um desacordo crônico entre os pais sobre a educação dos filhos, sendo que um deles está excessivamente envolvido com o filho delinqüente. A respeito da educação dos filhos, Leborgne (1997) descreve os pais como companheiros ou como cúmplices da delinqüência dos filhos. Nesses casos, os adolescentes são colocados no lugar de adultos e conduzidos progressivamente a fazer valer sua ''lei'', primeiramente dentro da família e depois no exterior dela.

 

MÉTODO

Esta pesquisa teve um delineamento de natureza qualitativa. Compreendemos o qualitativo como todo o processo de produção de conhecimento, não apenas o instrumento ou a técnica utilizada na coleta de informações. Buscamos na pesquisa qualitativa, como coloca Demo (2001), enfatizar uma maior compreensão do que é o humano nas histórias dos adolescentes usuários de drogas e envolvidos em atos infracionais e suas famílias. As etapas, por meio das quais construímos nosso objeto de investigação, vêm sendo tomadas como um processo integral e global, constituído a partir do estabelecimento de relações complexas entre nós, pesquisadoras, e os sujeitos alvos de nossa intervenção e pesquisa.

 

SUJEITOS

Participaram desta pesquisa dez adolescentes do sexo masculino, com idades entre 17 e 18 anos e escolaridade entre 3a série do 1o grau a 1o ano do 2o grau, cumprindo medida socioeducativa de semiliberdade, com história de uso de drogas, e suas famílias, encaminhados pelo juiz da Vara da Infância e Juventude para atendimento psicossocial no Centro de Formação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. A escolha destes adolescentes obedeceu a três critérios: 1) disponibilidade em participar de pelo menos duas entrevistas clínicas de pesquisa; 2) concordância de que sua família participasse da pesquisa; e 3) participação da família em, no mínimo, uma das duas Entrevistas de Avaliação Familiar Sistêmica.

 

PROCEDIMENTOS DE APROXIMAÇÃO DA REALIDADE

Foi utilizada a metodologia qualitativa de pesquisa-intervenção (LÉVY, 2001). Em uma proposta de aproximação e interpretação da realidade, foram pensados vários momentos para a pesquisa, em que fosse possível apreender a realidade complexa desses adolescentes: 1) junto aos adolescentes em medida socioeducativa de semiliberdade (observação participante em grupos de atendimento psicossocial e Entrevistas Clínicas de Pesquisa); 2) junto às famílias (observação participante em reuniões familiares e Entrevista de Avaliação Familiar Sistêmica, elaborada a partir da construção do Ciclo de Vida Familiar e da história transgeracional - genograma); e 3) junto às instituições (observação participante no Centro de Desenvolvimento Social (CDS) e pesquisa documental dos processos na Vara da Infância e Juventude. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas; para as atividades de observação, foi utilizado um diário de campo.

 

ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES

A partir do enfoque da epistemologia qualitativa, em uma postura de produção de um conhecimento construtivo-interpretativo (GONZÁLEZ REY, 1997; 1999; 2003), os diferentes momentos de apreensão da realidade foram analisados. Inicialmente, foram apontados indicadores em uma leitura geral de todas as informações, obtidas nas entrevistas que foram transcritas e nas leituras do diário de campo. Esse procedimento foi naturalmente mostrando paulatinamente os sentidos comuns entre eles e, desse modo, foram construídas Zonas de Sentido (GONZÁLEZ REY, 1997), entre elas a que denominamos ''o filho fora do tempo'', que discutimos neste artigo. Vale ressaltar que as Zonas de Sentido foram construídas a partir da compreensão dos papéis desempenhados por esses adolescentes na dinâmica de suas famílias, ao longo do Ciclo de Vida Familiar, levando em consideração as relações da tríade pai-mãe-filho e seus respectivos papéis, que, em uma perspectiva sistêmica, são interdependentes (MINUCHIN; FISHMAN, 1990).

 

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Logo no início do nosso contato com os adolescentes, um deles nos disse:

Eu fui criado pelos meus avós, porque minha mãe era muito nova e tinha que aproveitar a vida. Não tinha tempo pra cuidar de mim1.

Essa colocação provocou-nos uma inquietação e começamos a nos perguntar o que significava para esses adolescentes e sua família essa questão, que remetia à vivência do tempo e também do abandono. Em outro momento, uma mãe, contando a história do seu último filho, nosso sujeito, afirmou: O Gerson foi o que ficou pra trás, quando nos explicava seu nascimento, dez anos após seu último filho. Configurava-se aqui nosso interesse em discutir como esses adolescentes e as suas famílias vivenciam a dimensão temporal. Assim, focamos as nossas leituras do diário de campo e das entrevistas nestes aspectos, o que nos permitiu o levantamento de indicadores e a construção da zona de sentido intitulada ''o filho fora do tempo'', em que se configuraram duas situações específicas, conforme destacamos a seguir.

1. O adolescente nasce antes do tempo, pois pais são muito jovens e vivem um namoro de adolescentes (mesmo quando vivem juntos), estando ainda muito ligados aos seus pais (família de origem). O filho, então, é doado para os avós maternos, permanecendo em uma relação definida na dinâmica familiar como irmão da mãe. O pai, por sua vez, desaparece, morre ou também se comporta como irmão do filho, não possibilitando espaços de identificação. Os avós não conseguem propiciar a esse adolescente um espaço de matriz identitária, já que a doação tem um caráter de provisoriedade, dificultando o exercício dos papéis parentais. Nesse contexto, o processo de separação/pertencimento, essencial para a construção identitária, ocorre de forma precária. Sem um papel definido de filho, seja junto aos pais biológicos, seja junto aos avós, esse adolescente ocupa papéis transitórios ao longo do Ciclo de Vida Familiar - irmão, neto, companheiro da mãe, amigo do pai, problema da mãe e dos avós -, dificultando o processo de construção identitária.

2. O adolescente nasce muito depois dos irmãos, não havendo mais nos pais, principalmente na mãe, uma disposição para ter filhos. Além disso, não há, na dinâmica familiar, papéis disponíveis para serem desempenhados por esse adolescente, pois todos já estão preenchidos e os grandes conflitos já foram resolvidos. A mãe, indiferente ao seu nascimento, não o nomeia enquanto filho. O pai, de início também indiferente, passa a agir como pai/avô do filho, dando carinho e sendo amigo, mas sem disposição para impor limites e educá-lo, esperando que o mundo o faça. Sem um pertencimento garantido ao sistema familiar, o processo de separação é prejudicado, ficando esse adolescente preso aos pais, em um movimento paradoxal, sem conseguir se individuar.

Nas duas situações, o uso de drogas e o envolvimento em atos infracionais surgem como busca de vinculação alternativa a um grupo de pares, que se apresenta para esses adolescentes como espaço de pertencimento e de afirmação da sua existência, conferindo-lhes um senso de identidade, levando-nos a pensar em dependências de contexto, mais que de substâncias. A seguir, discutiremos os diferentes aspectos desta zona de sentido, a partir dos indicadores encontrados, ilustrando esta nossa discussão com falas dos adolescentes e suas mães, extraídas das entrevistas, quando acharmos relevante para uma melhor compreensão do leitor.

 

O TEMPO E A EXISTÊNCIA DO ADOLESCENTE

Quando um adolescente nos disse que a mãe não tinha tempo de cuidar dele, começamos a nos questionar sobre os significados que podem ter sido atribuídos a esse fato e qual a sua contribuição no processo de construção identitária deste adolescente. Inevitavelmente, retornamos ao mistério da existência do homem, que fatalmente conduz a uma reflexão sobre a temporalidade. Segundo Heidegger (1996a; 1996b), o homem, ao ser lançado no mundo, pode tomar a iniciativa de descobrir o sentido da existência, descobrindo a temporalidade, pois, ao tentar compreender o seu ser, dá sentido ao passado e projeta o futuro. Este filósofo, em sua obra Ser e tempo, parte do pressuposto de que o ser é temporal e vive o tempo, não apenas vive no tempo, mesmo sendo os dois termos inseparáveis. Isso significa que o futuro se revela como aquilo para o qual a existência é projetada e o passado é aquilo que transcende a existência (ARANHA; MARTINS, 2001). A temporalidade é o sentido ontológico da totalidade da pre-sença - Dasein2 (HEIDEGGER, 1996b). Assim, temporalidade e existência estão sempre inter-relacionadas, não sendo possível referir-se a uma sem remeter à outra, já que o tempo é uma dimensão da existência de cada um.

Considerando o tempo como uma construção complexa do homem, a partir das suas experiências, e não havendo uma noção comum, o que podemos afirmar é que se trata de processos seletivos, em que as semelhanças e diferenças são criadas e selecionadas pelo observador (GLASERSFELD, 1994; PRIGOGINE, 1996). Isto significa que existem diferentes dimensões do tempo: individual, social e familiar, e que, além disso, para uma mesma pessoa, dependendo das circunstâncias, o tempo é vivido de forma diferente. Neste sentido, Prigogine e Stengers (1991, p. 211) escrevem: ''Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, ramificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas''.

Cada grupo humano abstrai, ordena e descreve os dados do mundo exterior a partir de esquemas cognitivos específicos, construindo uma multiplicidade de realidades, cada uma com seu próprio tempo ou com seus próprios tempos. Desse modo, quando uma comunidade chega a acordos sobre certas descrições do mundo, elas assumem um caráter de realidade (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996). A noção de tempo é, portanto, um fenômeno cultural, compartilhado e validado por um grupo específico (BARUDY, 1992). Assim, diferentes culturas terão parâmetros diferentes para determinar as questões relacionadas ao tempo vivido como social, como, por exemplo, a periodicidade dos ciclos de trabalho e descanso. Mas também esse tempo compartilhado pelo grupo social não é equivalente às múltiplas realidades temporais do sujeito, mesmo que alguma coerência seja necessária entre as realidades externas ou sociais e as internas ou individuais. Ou seja, sua vivência é diferente para cada sujeito, sofrendo a influência de vários fatores, como os lugares e as circunstâncias que estão estreitamente ligados à percepção da sua duração, fundamentada em ritmos interiores de cada pessoa e em fatores ambientais que oferecem a cada um diversas possibilidades de experiências temporais (AUSLOOS, 1996).

A idade é um dos fatores que influenciam de forma considerável a percepção do tempo, principalmente no que diz respeito à sucessão e à simultaneidade de eventos, como comprovaram os estudos de Piaget (1946), em que a vivência do tempo foi associada a estágios do desenvolvimento cognitivo da criança. Isto nos leva a questionar como os adolescentes vivenciaram a sucessão de eventos díspares e descontínuos que ocorreram em suas vidas, em uma idade em que ainda não haviam desenvolvido tal capacidade de compreensão. O depoimento, cheio de lacunas, de um dos adolescentes, sobre os diferentes lugares em que viveu até os 14 anos, por períodos temporais que ele não consegue precisar, é um exemplo dessa situação:

Eu era muito pequeno. Aí ela [referindo-se à mãe] ficou tipo descontrolada, né? Aí, ela foi pra uma clínica em A. Minha mãe tava doida, aí ela fez o papel de adoção meu e do meu irmão. Aí adotaram meu irmão. Aí meu tio não deixou me adotar, porque ainda não tinham assinado a minha adoção. Aí eu fui morar com meus avós. Mas antes eu fiquei no CRT, até o juiz dar a guarda pra minha vó. Depois fiquei também em outros lugares: numa casa religiosa no Guará, que não sei o nome, no lar do La Salle, mas eu era muito danado. Quando minha mãe saiu do hospital, eu fui morar com ela. Às vezes, eu voltava pra casa dos meus avós, às vezes eu ficava na rua. Mas quem tinha a minha guarda era a minha vó (Homero)3

Além da reflexão sobre o tempo individual vivido pelo adolescente, esse depoimento, extremamente rico, permite a discussão sobre o tempo familiar. Para Fontaine (1992), o tempo de uma família é a maneira como ela equilibra a manutenção e a mudança, a continuidade e a adaptação, bem como a estabilidade e a flexibilidade. Nas famílias estudadas, esses processos se apresentam polarizados, em uma sucessão de acontecimentos que mudam rapidamente a organização familiar, com entradas e saídas bruscas de pessoas e ''tragédias'' familiares quase diárias e imprevisíveis, sendo que ''o tempo está ritmado pelos acontecimentos, aquilo a que chamamos um tempo eventual. Sem necessidade de olhar para o relógio, os acontecimentos sucedem-se de cinco em cinco minutos'' (AUSLOOS, 1996, p. 51).

 

OS DESENCONTROS DO TEMPO DA FAMÍLIA E DO TEMPO DO ADOLESCENTE

Cada ser humano tem a sua noção de tempo, sendo que, nas relações interpessoais, os tempos individuais misturam-se para que surja um tempo compartilhado, podendo haver concordância ou discordância sobre esse tempo (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996). Na família, quando esses tempos concordam, suas vivências se reforçam mutuamente, ou seja: é o seu tempo de ser filho e o meu tempo de ser mãe ou pai, então, é o nosso tempo de sermos pais e filhos. Caso contrário, ocorre um desafio às próprias premissas de cada um: é o seu tempo de ser filho, mas ainda não é o nosso tempo de sermos mãe e pai. Instala-se aqui uma situação profundamente ambivalente nessa família, que vive um desacordo quanto aos rituais de encontro (MIERMONT et al., 1994). Portanto é importante compreender como os diferentes membros dessas famílias vivem a dimensão temporal ao longo do seu Ciclo de Vida Familiar e da sua história transgeracional e como esses tempo estão conectados.

Não podemos nos esquecer de que a dimensão temporal contempla a espacial, que são inseparáveis e complementares (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996; FONTAINE, 1992; PIAGET, 1946). No nosso contato com as famílias, o que nos chamou a atenção de imediato foi a falta de espaço, na organização familiar, para o adolescente, que nos remete às fronteiras inter e intrageracionais e aos papéis familiares, no sentido da compreensão dos lugares designados a cada um nas famílias. Posteriormente, as afirmações das mães e dos adolescentes levaram-nos a buscar compreender o tempo familiar.

Uma descrição do tempo da família não pode limitar-se a considerar os tempos de cada membro e o modo como se interpenetram, sem levar em consideração o conceito da família como um sistema desenvolvendo-se por meio dos tempos, possuindo uma dimensão sincrônica e outra diacrônica que se interpenetram e se complementam (AUSLOOS, 1982a; 1996; BOSCOLO; BERTRANDO, 1996). A primeira dimensão diz respeito ao momento atual, aos modos de relações estabelecidos entre seus membros no presente. Já a segunda se refere aos eventos irreversíveis ocorridos ao longo do Ciclo de Vida Familiar, bem como ao longo das gerações e das complexas relações vividas entre o sujeito e sua família nesse processo.

Em cada momento da história familiar, é muito importante uma sincronia entre os tempos individuais e familiares. Segundo Boscolo e Bertrando (1996), famílias que não conseguem criar uma sincronia lingüística, de conduta, de afetividade e cognitiva apresentam riscos grandes de ''disfunções'' posteriores, pois a experiência da intimidade fica comprometida. Neste estudo, a dimensão sincrônica das relações estabelecidas entre os adolescentes e suas famílias aponta para uma indisposição familiar quanto à sua aceitação em casa, alegando que não há lugar (espaço concreto) para ele, bem exemplificado nos relatos de um adolescente e da avó de um outro:

Ela tava lá falando da minha liberação, que tá vindo aí dia 15 agora. Aí ela [referindo-se a sua mãe] falou desse jeito assim: ''É, o Homero vai ser liberado, vai ser uma benção pra ele e um inferno pra mim''. Ela disse isso, porque eu não ia sair lá de casa e ela não quer eu lá. (Homero)

Minha filha disse: ''Mãe, eu não quero esse menino aqui. Eu não quero ele aqui, porque fica a senhora e a minha filha aqui sozinhas e eu tenho medo de um dia alguém vir e fazer um mal aqui pra você''. Outro dia, acho que foi no dia de Natal que ele foi, tava todo mundo reunido ali na porta e ele chegou, tadinho, na bicicleta. Aí, ele na porta, ela falou: eu não quero que você entra aqui não. (Avó do Mateus, referindo-se ao fato de não ter lugar para o neto ficar nos finais de semana, quando saía da casa de semiliberdade.)

Na dimensão diacrônica, por sua vez, o desenvolvimento dos adolescentes, no tempo, foi marcado por desencontros temporais, desde o seu nascimento, entre as suas necessidades e aquilo que suas famílias, especialmente seus pais, puderam lhes oferecer, comprometendo o seu desenvolvimento. Portanto, a falta de lugar não é um evento isolado desse momento em que o adolescente está ou esteve preso por problemas na justiça. Neste estudo, encontramos duas situações: no primeiro caso, quando eles nasceram, não era o tempo de as figuras parentais serem pais e mães, pois ainda viviam os conflitos da adolescência, situando-se ainda como filhos, na dinâmica familiar de suas famílias de origem; no segundo caso, já havia passado o seu tempo de serem pais de filhos pequenos. Nos dois casos, as crianças ''nasceram no tempo familiar errado'', queimando etapas do Ciclo de Vida Familiar, e não foram frutos de um desejo paterno e/ou materno.

A criança doada aos avós: eu era muito nova para ter filhos

Nascidos fora do tempo familiar, esses adolescentes não possuem papéis na dinâmica da família. Quando nascem ''antes do tempo familiar para ter filhos'', são ''doados'' para os avós, a quem são delegadas as funções de cuidado, educação, afetividade e sustento, sendo que o casal parental não se constitui, pois cada um dos seus membros está ainda profundamente vinculado aos seus papéis de filho e filha e tem filhos ''indesejados''.

A mãe, ainda presa ao seu papel de filha, não consegue exercer o papel de mãe e se comporta como irmã do filho, delegando o papel materno à sua mãe, denunciando as dificuldades na sua família de origem que a impedem de desempenhar o seu papel educativo e afetivo junto ao filho (CIRILLO et al., 1997).

Eu tinha uns 14 anos, o pai dele acho que 17, a gente se conheceu no colégio. Nós nunca morou junto. Quando W. nasceu, eu morava com meus pais, ele com os dele. Eu não queria ter filhos na época, né? (Mãe de William)

Quando eu fiquei grávida, eu fiquei com medo assim, porque eu não queria ficar grávida, porque eu era muito nova, não pensava bem. Tanto que quando eu fiquei sabendo que tava grávida, eu tomei remédio para abortar. (Mãe de Wendel)

A doação desse filho para os avós permite a experiência do papel de filho em alguma dimensão. Mas essa doação parece ter sempre um caráter transitório e efêmero, sendo sempre concedida à mãe a prerrogativa de tentar resgatar seu papel materno junto a esse filho, que viverá então o dilema da divisão entre as duas mães. No jogo transgeracional, entre essa mãe e seus pais, mais especificamente sua mãe (a avó do adolescente), este filho-neto parece ser a peça menos importante. Um dos adolescentes define essa posição incômoda de forma muito clara:

Eu não chamava minha mãe de mãe. Ela brigava comigo, falava assim: ''Eu sou sua mãe''. E eu: ''Não, você não é minha mãe, não. Minha mãe mora lá em baixo''. Minha mãe, quem sempre tinha cuidado de mim, era minha vó, né? Aí eu falava pra ela: ''Você não é minha mãe, não. Minha mãe é quem me criou''. E, tipo assim, eu sofri muito. (Homero)

O pai, por sua vez, estando também ligado à sua família de origem e sendo ainda muito imaturo, não é capaz de exercer a paternidade nos diferentes níveis propostos por Sudbrack (1992), a partir da especificidade do papel desempenhado pelo pai junto à criança e, sobretudo, da natureza dos vínculos afetivos estabelecidos entre ambos e que definem o pai genitor, o pai provedor educador, o pai legal e o pai simbólico. Na impossibilidade de se colocar no papel de pai, nas dimensões descritas, esses homens, quando não desaparecem e se recusam a assumir a paternidade, comportam-se como ''irmão'' do filho.

Meu pai, ele era muito distante. Ele aparecia, aí a gente ia no pesque pague. Aí, tinha vez que minha avó deixava eu dormir onde ele morava. Mas meu pai não tinha condição de cuidar da gente. Meu pai bebia também e não tinha condições nenhuma de olhar a gente. Ele aparecia e sumia. Depois, aí teve uma hora que ele sumiu de vez. Desde os meus 13 anos ele sumiu. Ele tinha uma mulher, ele vendeu tudo que ele tinha aqui e foi atrás dela. Até hoje não voltou. (Mateus)

Meu pai é doidão até hoje. Ele fuma um baseado. Até hoje, toda vez que eu vou lá, eu fumo um baseado com ele. (Wiliam)

O filho/neto: eu já estava muito velha para ser mãe

Mas existe também aquele adolescente que nasce depois do tempo familiar para ter filhos, pois os pais já tinham os filhos que desejavam e não se imaginavam novamente com um bebê. Os papéis familiares já estavam preenchidos e os grandes conflitos da vida familiar já haviam sido resolvidos ou delegados a outros filhos. Assim, é uma criança esquecida e abandonada à própria sorte, sem papel na dinâmica familiar, em que a mãe, sobrecarregada por ter de cuidar de tantos filhos, sem contar com o apoio do marido (alcoólatra em praticamente todos os casos desta pesquisa) e das famílias de origem, não teve tempo para esse filho. Nesse contexto, permanece indiferente ao seu nascimento, já que esse é apenas mais um problema na sua existência já tão conturbada.

Corria pro hospital, menino chorava de madrugada, eu saía sozinha. Meu primeiro filho tava com um ano, teve sarampo, quase morreu, eu já tava com o outro com um mês e pouco. Eu punha um num braço, outro no outro e ia pro hospital... Eu não tinha ninguém pra contar na hora do desespero, não tinha ninguém. Meu marido acabou com tudo que a gente tinha. Ele achava que os filhos já tava criado. O G. não tinha nem nascido ainda. [...] Os filhos é tudo escadinha. Só o Gerson que ficou pra trás. (Mãe de Gerson)

O pai, que se vê já com os filhos criados e querendo viver a vida, de início, também é indiferente. À medida que este filho cresce, consegue ser carinhoso e companheiro em alguns momentos, mas não tem mais disposição para colocar limites e educá-lo, esperando que o mundo o faça.

Meu pai era carinhoso, colocava no colo, ia cobrir de noite. A gente viajava junto pra casa dos meus avós. (Gerson)

O pai dele não tava nem aí. Quando eu fui contar pro pai dele que ele, porque acusaram ele de ter dado uma ferramenta do pai dele pra um rapaz assaltar uma casa lá, aí eu falei pro pai dele o que tava acontecendo. Ele falou: ''Ah! O mundo ensina. Deixa que o mundo ensina''. (Mãe de Gerson)

Podemos concluir que em ambas as situações, seja pela precocidade, ou pelo retardo do nascimento deste filho no Ciclo de Vida Familiar, essas famílias vivem situações de descontinuidade entre os tempos dos pais e os tempos individuais dos filhos, impedindo a nomeação e o pertencimento desse adolescente à família, dificultando o seu processo de construção identitária.

Construções identitárias: continuidade, pertencimento, individuação e rituais familiares

A continuidade afetiva diz respeito à certeza de que os outros membros da família estarão disponíveis nos momentos de necessidade e, juntamente com a confiança recíproca, é um elemento necessário para a construção e manutenção de uma família, além de garantir a segurança, permitindo a cada um separar-se dos demais e concentrar-se em si mesmos (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996). Este processo pressupõe uma organização temporal que parece não existir nas famílias dos adolescentes deste estudo, que vivem uma sucessão de fatos tão rápida e intensa, impedindo a consolidação de rituais e a construção da memória familiar, fazendo com que o tempo eventual esteja despedaçado, fragmentado, decomposto, e com que as informações não possam ser retidas e memorizadas (AUSLOOS, 1996). Como afirma este autor, ''são famílias com transações caóticas'',e complementa: ''Passando rapidamente de crise em crise, de acontecimento em acontecimento, essas famílias nunca podem solucionar os conflitos se não for através de atos sucessivos'' (AUSLOOS, 1996, p. 54). São, portanto, famílias sujeitas aos estresses imprevisíveis, em que a existência de muitas crises as impede de responder às demandas do cotidiano (HINES, 1995). Lutam pela sobrevivência imediata, sem tempo para investir nos vínculos e nos rituais familiares que possibilitem o desenvolvimento de uma identidade de pertencimento e a transmissão dos mitos familiares (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996; NEUBURGER, 1999).

A garantia da continuidade familiar é fornecida pelos rituais, que atualizam o significado da família e consolidam seus vínculos com as gerações passadas. Sua função é regular a complexidade e consolidar a coesão e a continuidade em grupos onde as mesmas pessoas desempenham, simultaneamente, diversos papéis, permitindo uma definição clara da natureza das relações que se estabelecem entre as pessoas, bem como a transmissão das regras, crenças e mitos familiares (BOSCOLO; BERTRANDO, 1996; BUCHER, 1985; 1986; MARTINS; CERVENY, 1997; MIERMONT et al., 1994).

Quando os rituais se tornam empobrecidos, ocorre uma confusão na coordenação dos tempos familiares e a evolução da família fica comprometida. No contato com a realidade destas famílias, perguntamo-nos quais as possibilidades de vivência de rituais (lazeres, comemorações, reuniões de família, entre outros) em um contexto de vida marcado pela urgência do momento, com um paradigma familiar pouco definido. Além disso, o tempo dos membros da família não é sincronizado, havendo sempre uma prevalência dos tempos individuais sobre o familiar, impedindo a realização de rituais conjuntos e a vivência dos processos de pertencimento e identificação.

Fico muito sozinha; nos finais de semana, cada um tem uma coisa pra fazer. Aí eu fico em casa, sem ninguém. Às vezes, alguém passa lá em casa, mas nem sempre. (Mãe do Gerson)

Em tais contextos familiares, o adolescente não encontra continente afetivo junto aos pais ou aos avós no momento em que vive a adolescência e se prepara para um novo tempo de paixões e mistérios. Vivendo sempre papéis transitórios, não possui um lugar na dinâmica familiar, que se observava, não raro, na ausência de um lugar concreto para onde pudesse voltar ao término da medida socioeducativa de semiliberdade. Tendo vivido entre as casas dos avós e da mãe, não tem espaço garantido em nenhuma delas, porque nunca pertenceu, apenas permaneceu como hóspede, muitas vezes incômodo e indesejado. Assim, quando apresenta problemas, essa permanência deixa de ser garantida.

A mãe dele morreu, ele tinha 4 ou 5 anos. Então, eles ficaram comigo, foram ficando. O pai desapareceu e eles não tinham com quem ficar. (Avó de Mateus)

Com 15 anos, fui morar com a minha mãe, porque minha avó é doente do coração. Aí eu tava dando muito problema. Não agüentei ficar com minha mãe, porque meu padrasto ficava xaropando, me mandando fazer as coisas. Aí fui morar sozinho no salão da minha mãe. (William)

Além disso, como apenas permaneceu sem pertencer, não desenvolveu, junto à família, um sentido de intimidade que garantisse viver simultaneamente seu próprio tempo individual e o tempo familiar. Assim, sem pertencer a lugar algum, esse adolescente vive uma temporalidade ''acelerada'', tornando-se responsável por si mesmo e muitas vezes pela família, em uma idade em que não possui ainda a maturidade para isso.

Com 11 anos, eu saí da casa da minha vó e fui morar sozinho. Depois eu voltei. Com 13, eu saí de novo e não voltei mais. Com 14 anos, eu comprei um carro e dirigia sem carteira. (Mateus)

Com 10 anos, eu já tinha cabeça, cuidava da minha mãe, porque ela vivia passando mal, desmaiando na rua. Nós trabalhava muito, eu de um lado, ela de outro. (Homero)

Não tenho pai: com quem vou parecer?

A importância do reconhecimento do filho pelo pai, no processo de construção identitária, é inegável, sendo que reconhecer e nomear o filho é um ato marcado pela transmissão de uma herança a respeito de valores individuais, associados à herança cultural (SUDBRACK, 1992; BOUCHART-GODARD, 1989). Neste estudo, as figuras masculinas (pais e avôs) são pouco presentes, excluídas e desvalorizadas, havendo um monopólio feminino na maioria das situações da vida familiar, fazendo com que os adolescentes não tenham filiação paterna (a maioria não possui o nome do pai), sendo criados pela mãe e/ou sua família. Tal situação acarretará dificuldades para a sua construção identitária pela impossibilidade de identificação com os aspectos do masculino, restando-lhes as avós ou as mães como possibilidades (interessante ressaltar que o avô, mesmo nos casos em que ele existiu e ajudou a criar o neto, não é ''escolhido'' como objeto de identificação).

Não me pareço com ninguém, mas gostaria de parecer com minha avó, porque ela reza muito e é muito alegre. Depois dos 3 derrames que ela teve, ela ainda tá lutando, andando. (Mateus)

Eu me pareço com a minha mãe... Nós tem o mesmo temperamento. (Homero)

Quando esses adolescentes se vêem parecidos com os pais, é em razão de este também ser usuário de drogas ou álcool e tal identificação é ambivalente apesar de ser a única e inevitável via de identificação que resta ao adolescente.

Minha tia sempre dizia que eu ia ser um bêbado como meu pai. Que eu era parecido com ele e que não tinha jeito pra mim não. (Mateus)

Pareço com o meu pai. Até as idéias dele são iguais às minhas. Sempre que vou lá, nós fuma maconha. Eu falo uma coisa assim, aí ele fala: ''puxa, eu também sou desse jeito''.(William)

Chamaram-nos muito a atenção um adolescente que não se lembrava do nome do pai e outro que nos disse que o pai tinha morrido, sendo que ele ainda estava vivo, só que era um mendigo. Durante todo o tempo em que estivemos com esses adolescentes e suas famílias, conseguimos conversar com um pai. Isto ocorreu porque muitos já haviam falecido, mas também porque alguns adolescentes, mesmo ainda tendo pai vivo, não autorizavam a sua participação, alegando que seu pai nunca participou de nada em sua vida e que não tinha sentido participar naquele momento, como resume muito bem um deles:

Pra que falar com meu pai? Ele nunca fez nada por nós. Pai só serve pra bater, espancar. Pra isso eu não preciso dele. (Juvenil)

A exclusão do pai não é apenas um movimento do adolescente, configurando-se como uma dinâmica familiar, como pode ser observado na situação que descreveremos a seguir. Em uma das representações com fantoches feitas por uma família sobre ela mesma, a avó não coloca o pai do adolescente (já falecido) nem o tio materno desaparecido. O adolescente, dizendo que faltam algumas pessoas, acrescenta mais dois bonecos, representando os dois homens, que a avó retira em seguida, afirmando que ele estava errado e ninguém mais questiona o fato. Essa desvalorização da figura paterna dificulta o processo de identificação do adolescente com o pai, perturbando sua relação com a autoridade (COSLIN; BRUNET, 1983).

O envolvimento com atos infracionais e com drogas: da impossibilidade de pertencer a uma família à busca da afiliação no grupo

Considerando a família como a matriz de identidade, em que se misturam os movimentos de pertencer e separar (MINUCHIN, 1982), esses adolescentes, sem pertencimento garantido, enfrentarão sérias dificuldades na sua construção identitária. Uma das saídas encontradas é ''acelerarem o tempo'' e tornarem-se adultos precoces, indo muito cedo para a rua, que os seduz com seus encantos e promessas de liberdade e felicidade, mas rouba-lhes o tempo de ser criança e adolescente com o direito à proteção e ao cuidado dos adultos.

Com 6 anos eu saía de casa e ficava correndo no centro da cidade. Eu subia e descia aquelas pistas, que nem um doidinho. [...] Com 11 anos, eu saía escondido à noite, ia pras festas. Elas nem sabiam que eu tinha saído [referindo-se à avó e às tias]. Eu sempre fui muito de ficar na rua, é a melhor coisa. (Mateus)

Na rua, o envolvimento com atos infracionais e com drogas surge como possibilidade de espaços de pertença e afiliação a um grupo de pares, bem como de afirmação e confirmação da sua existência, conferindo-lhe um senso de identidade. Tal processo aponta para as dependências de contexto descritas por Colle (2001) como um fenômeno relacional que extrapola o produto para incluir a dimensão da co-dependência e de outros níveis de dependência, pensados para além dos efeitos do produto, a partir das diferentes relações estabelecidas entre o uso de drogas e o sujeito. Sua proposta é que se pense essa relação como contendo níveis, entre os quais ele destaca seis: 1) dependência dos efeitos das substâncias ou suas combinações; 2) dependências relacionais afetivas; 3) dependência do fornecedor da droga; 4) dependência do provedor que paga a droga; 5) dependência dos pares; e 6) dependência de crenças na magia do produto.

Todos esses níveis podem ser identificados nos adolescentes desta pesquisa. No entanto, com relação ao ''filho fora do tempo'', fica muito forte a dependência do grupo de pares, sendo que o envolvimento com atos infracionais e com drogas, ao mesmo tempo em que denuncia a crise familiar, permite a criação de espaços alternativos de pertinência e de afiliação, garantindo a construção identitária. Nesses casos, tais grupos deixam de ter um caráter de espaço transicional entre a família e a macrossociedade, na expressão da identidade do adolescente, para assumir um lugar de comunicação mágica mediante uma nova comunhão, cumprindo funções de continente e apoio afetivo, refúgio e proteção, além daquela de gerador de experiências em diversos planos da vida do adolescente, fornecendo a ilusão de terem encontrado o seu espaço (ALFARO; SILVA, 1991; RIVERA, 1988). Impedidos de ter acesso à ordem social pela família, fazem-no pelo grupo (SELOSSE, 1997).

Claro que nós usava em grupo, ninguém vai usar droga sozinho. (Gerson)

Nós morava era no mato, só vivia no mato, fumando maconha direto. Todo mundo drogado, todo mundo usando. (William)

Eu conhecia muita gente, vivia na rua. A gente saía, ia pra água mineral. Até hoje, eu tenho tudo que eu quiser de graça, porque eu conheço todo mundo. (Mateus)

O grupo de pares possibilita a vivência do tempo da margem, de uma nova gestação, permitindo a busca de identificações múltiplas e efêmeras, facilitando a construção de estilos de sociabilidade e solidariedade, o que alivia a angústia adiante da problemática identitária (SELOSSE, 1997). No entanto, os grupos aos quais esses adolescentes se afiliam, constituídos com o objetivo de cometer atos infracionais e usar drogas, não são capazes de desempenhar de forma plena tais funções. Isso porque, em virtude do contexto de exclusão social em que se encontram, o tecido relacional é pobre, e esses grupos, enquanto espaços de pertencimento, são marcados por rupturas constantes.

Apesar de todas as limitações desses grupos, eles são muito importantes porque instituem alguma ordem no caos vivido por esses adolescentes, mesmo que seja uma ordem desviante. Vindos de famílias nas quais sua existência foi parcialmente negada, encontram nesses grupos uma nomeação que, seja de usuário de drogas, seja de infrator, qualifica-os enquanto sujeitos e permite espaços de sociabilidade importantes na fase da adolescência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos neste estudo discutir as complexas interações entre relações familiares, construção identitária, uso de drogas e atos infracionais, na perspectiva da Teoria Sistêmica. Para esta teoria, a família é compreendida como a matriz de identidade dos seus membros, já que é no seu interior que ocorre a individuação de seus membros por meio da vivência dos processos de pertencimento e separação (MINUCHIN, 1982; MINUCHIN; FISHMAN, 1990; ROSSET, 2003). Nossa conclusão foi de que os adolescentes estudados, nascidos fora do tempo familiar, sem papéis específicos na família, buscam alívio para a angústia vivida no processo de individuação (marcado pelo equilíbrio entre pertencimento e separação) no grupo de pares. No entanto, isso leva-os ao uso de drogas e ao cometimento de atos infracionais, denunciando a dependência de contexto (COLLE, 2001), agravada pela falta de oportunidades diferentes de inclusão social.

Compreendemos que a dinâmica familiar que denominamos de ''o filho fora do tempo'' não é a única que pode estar presente em famílias de adolescentes envolvidos em atos infracionais e com drogas. Outras formas de organização familiar também podem dificultar o processo de construção identitária, levando-os a lançar mão de sintomas para conseguir se individuar.

Por outro lado, não pretendemos em momento algum estabelecer relações causais entre a dinâmica familiar e o uso de drogas e/ou o envolvimento em atos infracionais por adolescentes. Ao longo destes anos em que temos trabalhado com estas famílias, seja no atendimento, seja em pesquisas, muitas vezes, perguntamo-nos como elas ainda encontram forças para emitir alguma reação. Ausloos (1996) fornece-nos alguns indícios quando coloca que elas se comportam de forma impensada, não parando para refletir sobre o significado do que lhes está acontecendo ou sobre a forma como estão agindo. Ao contrário, fazem apenas o que conseguem, convivendo com a sensação de que são sempre vencidas pelos acontecimentos. No entanto, diferentemente de Ausloos, achamos que elas não se deixam vencer. Aprendem respostas adaptativas que são o reflexo de grande criatividade. Lutam todo o tempo, tentando manter alguma forma de pertencimento e continuidade, procurando sobreviver emocionalmente e construir algum sentido de família, a despeito da situação de desamparo social em que vivem. São famílias reativas durante todo o tempo, mesmo estando imersas em suas dificuldades, agravadas pelo caos social de um estado enfraquecido que não oferece condições mínimas de sobrevivência para seus cidadãos. Nesse sentido, concordamos com Aponte (1976), quando afirma que não se trata de famílias desorganizadas, mas sim suborganizadas, pois têm uma organização do sistema familiar, mesmo que essa apresente deficiências nos graus de constância, diferenciação e flexibilidade e que não possibilite um desenvolvimento considerado adequado de seus filhos.

Além disso, o fato de nossa pesquisa centrar-se nas relações familiares não significa que estamos desconsiderando os aspectos sociais, individuais e políticos que envolvem a relação do homem com as drogas e o ato infracional. Este foi apenas um recorte feito a partir da nossa experiência como terapeutas de família. Concordamos com Vasconcelos (2002) que a realidade é complexa e inesgotável, sendo todo conhecimento uma construção intersubjetiva, não havendo leis definitivas sobre a realidade.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Aparecida Penso
E-mail:penso@ucb.br

Maria de Fátima Olivier Sudbrack
E-mail: fatsudbr@unb.br

Submetido em: 16/10/2007
Revisado em: 12/02/2008
Aceito em: 13/03/2008

 

 

1 Os discursos das entrevistas foram aqui transcritos preservando-se as características e marcas das falas dos entrevistados.
2 ''A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Optamos pelo uso de 'pre-sença' - 'pré' corresponde a 'Da' e 'ença', como forma derivada de 'esse', corresponde a 'sein'. É na 'pre-sença' que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história'' (CAVALCANTE, 1993, p. 25).
3 Todos os nomes foram trocados para preservar a identidade dos adolescentes.

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