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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.61 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2009

 

RELATO DE PESQUISA

 

Codificação fonológica e ortográfica na dislexia de desenvolvimento: evidência de um estudo de caso

 

Phonological and orthographic coding in developmental dyslexia: Evidence from a case study

 

 

Cláudia Cardoso MartinsI; Mirelle França Michallick-TriginelliII

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investiga a habilidade de codificação fonológica e ortográfica de uma criança com dificuldade de leitura de base fonológica (Idade = 12 anos e 8 meses). Quinze crianças com desenvolvimento típico para as suas idades cronológicas (Idade Média = 8 anos e 7 meses), cuja habilidade de ler palavras era semelhante à da criança disléxica, também participaram do estudo. A codificação fonológica e ortográfica foi avaliada por meio de um ditado de palavras contendo relações letra-som mais ou menos regulares. Os resultados questionam a hipótese de que a habilidade de codificação ortográfica seja superior à habilidade de codificação fonológica na dislexia do desenvolvimento. Embora a criança com dificuldade de leitura tenha apresentado desempenho semelhante ao dos leitores normais nas palavras com regras contextuais, seu desempenho foi muito inferior nas palavras contendo sons cuja grafia é ambígua. Os resultados também sugerem que, relativamente a leitores típicos, crianças com dificuldade de leitura podem ter dificuldade em fazer uso de regularidades morfossintáticas para escrever palavras.

Palavras-chave: Dislexia de desenvolvimento; Codificação fonológica; Codificação ortográfica.


ABSTRACT

The present study investigates the phonological and orthographic skills of a Brazilian Portuguese-speaking child with a history of persistent reading difficulties (Age = 12 years and 8 months old). Fifteen typical readers with similar reading ability participated as controls (Mean Age = 8 years and 7 months old). Phonological and orthographic coding skills were evaluated through the ability to spell words that varied with regard to the more or less regular nature of their letter-sound correspondences. Results question the hypothesis that orthographic coding skills are superior to phonological coding skills in developmental dyslexia. Although the reading disabled child performed similarly to controls on words containing contextual rules, her performance was substantially inferior on words containing sounds whose spelling is ambiguous. Results also suggest that, relative to typical readers, dyslexic readers may have difficulty in making use of morphosyntactic regularities to spell words.

Keywords: Developmental dyslexia; Phonological coding; Orthographic coding.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Dois processos, pelo menos, estão envolvidos na aprendizagem da leitura de palavras em um sistema de escrita alfabético (OLSON et al., 1989). A codificação fonológica diz respeito à habilidade de ler por meio da tradução das letras ou grupos de letras em seus sons correspondentes. A codificação ortográfica, por outro lado, refere-se ao conhecimento específico da grafia da palavra e é especialmente importante para o reconhecimento de palavras que contêm relações letra-som irregulares ou ambíguas.    

Alguns autores (CASTLES; COLTHEART, 1993; CASTLES et al., 1999; COLTHEART et al., 1993) têm argumentado que a codificação fonológica e a codificação ortográfica desenvolvem-se de maneira relativamente independente uma da outra e que deficits em um processo podem, até certo ponto, ser compensados pela integridade do outro. Consistentemente com essa hipótese, Siegel, Share e Geva (1995) sugeriram que a codificação ortográfica deveria desempenhar um papel particularmente importante em crianças com dislexia do desenvolvimento, transtorno caracterizado por dificuldades acentuadas na aprendizagem da leitura, a despeito de inteligência normal e condições adequadas de instrução (VELLUTINO et al., 2004). A razão para isso é que, de modo geral, as dificuldades de leitura na dislexia do desenvolvimento parecem resultar de deficits fonológicos, os quais interferem de maneira negativa na aprendizagem da leitura por meio da codificação fonológica (SNOWLING; HULME, 2005; VELLUTINO et al., 2004; VELLUTINO; FLETCHER, 2005).

Siegel et al. (1995) avaliaram a sua hipótese em um estudo que comparou a habilidade de codificação fonológica e ortográfica de crianças disléxicas com a de crianças com desenvolvimento típico da leitura. A codificação fonológica foi avaliada por meio de uma tarefa de leitura de pseudopalavras, isto é, palavras que não existem e, portanto, só podem ser lidas pela codificação das letras ou grupos de letras em seus sons correspondentes. A codificação ortográfica, por sua vez, foi avaliada por meio de uma tarefa de escolha forçada em que a criança deveria identificar, entre duas sílabas sem sentido, aquela que mais se assemelhava à de uma palavra real. Para cada par, uma sílaba continha uma sequência de letras que nunca ocorre naquela posição em inglês, enquanto a outra continha um bigrama ortograficamente legal na mesma posição. Por exemplo, no par 'filv-filk', a sequência 'lv' nunca aparece no final de palavras em inglês. Embora os leitores disléxicos tenham apresentado desempenho inferior ao dos leitores típicos na tarefa de leitura de pseudopalavras, seu desempenho foi relativamente superior na tarefa desenvolvida para avaliar a codificação ortográfica. Uma vez que os dois grupos de crianças tinham sido equiparados em função da habilidade de ler palavras, é pouco provável que essas diferenças pudessem ser atribuídas a diferenças no seu nível de desenvolvimento da leitura. Em vez disso, Siegel et al. (1995) sugeriram que crianças disléxicas baseiam-se, sobretudo, em processos de codificação ortográfica para aprender a ler.   

Uma série de dificuldades limita, contudo, as conclusões de Siegel et al. (1995). Por exemplo, nem todos os pesquisadores têm encontrado diferenças entre indivíduos com e sem dificuldade de leitura na tarefa utilizada por Siegel e seus colaboradores (1995) para avaliar a codificação ortográfica (STANOVICH; SIEGEL, 1994; GREENBERG et al., 1997). Além disso, não é certo que essa tarefa constitua uma medida adequada da habilidade de codificação ortográfica. De uma maneira geral, sílabas que contêm sequências de letras ortograficamente legais são mais fáceis de serem pronunciadas do que sílabas com sequências ilegais. É possível, portanto, que o desempenho nessa tarefa baseie-se, em parte, na habilidade de codificação fonológica.

Finalmente, a hipótese de que a codificação fonológica e a codificação ortográfica constituem processos independentes não é universalmente aceita. Com efeito, de acordo com um ponto de vista alternativo (EHRI, 1998, 2005; GOUGH; WALSH, 1991), o conhecimento específico da grafia das palavras depende, em grande parte, da habilidade de ler por meio da tradução das letras ou grupos de letras em seus sons correspondentes. Ehri (1998, 2005) tem argumentado que a razão para isso deriva do fato de que a formação de conexões letra-som fornece ao leitor um sistema mnemônico poderoso, possibilitando, dessa forma, o armazenamento completo da grafia da palavra no léxico mental. Há, de fato, evidência de que a habilidade de ler pseudopalavras é um importante preditor da leitura de palavras contendo relações letra-som irregulares e que, portanto, não podem ser lidas com base apenas em processos de codificação fonológica (ver GOUGH; WALSH, 1991, para uma discussão dessa questão). É possível, portanto, que crianças cujas dificuldades de leitura resultam de deficits fonológicos apresentem dificuldades especialmente acentuadas em tarefas que avaliam a habilidade de codificação ortográfica.

O presente estudo de caso avaliou a habilidade de codificação fonológica e ortográfica de uma criança com dificuldade de leitura de base fonológica e de um grupo mais jovem de crianças com desenvolvimento típico da leitura, cuja capacidade de ler palavras era, contudo, semelhante à da criança disléxica. Tendo em vista as dificuldades com a tarefa de escolha forçada de Siegel et al. (1995), a codificação fonológica e ortográfica foi avaliada por meio de um ditado de palavras.  Especificamente, a codificação ortográfica foi avaliada por meio da competência de a criança escrever palavras contendo relações letra-som ambíguas, enquanto a codificação fonológica foi avaliada por meio da habilidade da criança de escrever palavras contendo relações letra-som contextuais. 

Com base na hipótese de que a codificação fonológica é o alicerce da codificação ortográfica, esperávamos que a criança disléxica apresentasse um padrão de desempenho semelhante ao das crianças com desenvolvimento típico da leitura. Ou seja, como essas crianças, ela deveria apresentar um número maior de erros nas palavras com relações letra-som irregulares do que nas palavras com relações letra-som regulares. Contudo, tendo em vista as suas dificuldades fonológicas, esperávamos que ela apresentasse mais erros do que as crianças sem dificuldades de leitura em ambos os tipos de palavras. 

A tarefa de ditado também incluiu um grupo de palavras contendo relações letra-som de natureza morfossintática, isto é, com sons cuja representação depende da categoria gramatical. Uma vez que esse tipo de regularidade nem sempre é ensinado explicitamente na escola, esperávamos que todas as crianças apresentassem um número maior de erros nessas palavras do que nas palavras com regras contextuais. Tendo em vista o caráter regular das dificuldades ortográficas envolvidas, esperávamos, contudo, que as crianças apresentassem um número menor de erros no ditado dessas palavras do que no ditado das palavras com relações letra-som ambíguas.

 

2 MÉTODO

2.1 PARTICIPANTES

Participaram do estudo 1 criança com história de dificuldade persistente de leitura (sexo feminino, 12 anos e 8 meses de idade) e 15 crianças sem dificuldade de leitura (7 meninas e 11 meninos), cuja  idade variava entre 7 anos e 10 meses e  9 anos e 3 meses  (M = 8,7 anos, DP = 5,4 meses). O grupo controle foi selecionado de uma amostra de 18 alunos matriculados em classes do 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola particular e que possuíam habilidade de leitura de palavras semelhante à da criança disléxica. Nenhum apresentava história de dificuldades de aprendizagem. Além disso, apenas os alunos que apresentaram um escore situado entre um desvio padrão acima ou abaixo da média de todo o grupo em um teste de leitura de pseudopalavras foram incluídos no estudo. Esse critério foi utilizado com o objetivo de assegurar que os participantes do grupo controle apresentassem processamento fonológico típico para a sua idade cronológica. A criança com dificuldade de leitura frequentava uma escola particular na cidade de Belo Horizonte, MG. Contudo, ela estava matriculada em uma classe do 5º ano.

Todas as crianças apresentavam inteligência normal ou acima do normal. A criança com diagnóstico de dislexia apresentou QI igual a 105 na Escala de Inteligência Wechsler para Crianças-III (WISC-III, WECHSLER, 2002). O percentil das crianças do grupo controle, calculado com base em seu desempenho no teste de Matrizes Progressivas de Raven - Escala Especial (RAVEN et al., 1999), variou entre 60 e 99 (M = 87). 

2.2 PROCEDIMENTO

As crianças do grupo controle foram avaliadas em uma sala silenciosa da escola em que estudavam, e a criança com dificuldade de leitura foi avaliada em um consultório particular. As avaliações ocorreram no segundo semestre do ano letivo e envolveram as tarefas de leitura, de escrita e de consciência fonológica.

2.2.1 Leitura

1. Palavras frequentes e infrequentes: solicitou-se às crianças que lessem trinta palavras frequentes (p. ex., boneca) e trinta palavras infrequentes (p. ex., jangada) em livros para crianças do pré-primário e das séries iniciais do Ensino Fundamental (PINHEIRO; KEYS, 1987).

2. Pseudopalavras: solicitou-se às crianças que lessem trinta palavras inventadas segundo as normas ortográficas da língua portuguesa (p. ex., muriçaco).

As palavras apareciam impressas em letras maiúsculas no centro de cartões individuais. Para cada tipo de palavra, o escore da criança consistia no número de palavras lidas corretamente.

2.2.2 Escrita

O conhecimento da ortografia foi avaliado por uma tarefa de ditado de palavras desenvolvida no Laboratório de Desenvolvimento Cognitivo e da Linguagem da Universidade Federal de Minas Gerais. A tarefa compreende quatro grupos de palavras, mas apenas os resultados obtidos para três deles foram incluídos no presente estudo: 1) palavras regulares contendo uma regra contextual, por exemplo, a regra segundo a qual o som /R/ é representado pelo dígrafo "rr" entre vogais, mas pela letra "r" em outros contextos; 2) palavras regulares contendo uma regra morfossintática, por exemplo, a regra segundo a qual o som /iw/ no final da palavra é representado pela sequência de letras 'il', se a palavra é um substantivo (p. ex., funil), mas pela sequência 'iu', se a palavra é um verbo (p. ex., partiu); e 3) palavras contendo um fonema cuja representação é ambígua, por exemplo, o fonema /∫/ que pode ser representado ou pela letra 'x' (p. ex., bruxa) ou pelo dígrafo 'ch' (p. ex., bicho), independentemente do contexto em que ocorre e da categoria gramatical da palavra.  

Os três grupos incluíam 134 palavras: 40 com regras contextuais (20 frequentes, 20 infrequentes), 48 com regras morfossintáticas (24 frequentes, 24 infrequentes) e 46 palavras ambíguas (22 frequentes, 24 infrequentes). As palavras foram ditadas em ordem aleatória, em quatro sessões separadas. A mesma ordem foi usada para todas as crianças. O examinador enunciava a palavra, depois enunciava uma frase contendo a palavra e, finalmente, enunciava a palavra novamente. As palavras e as frases foram ditadas conforme a pronúncia usual de Belo Horizonte, MG. Assim, por exemplo, para a palavra 'ficar', o examinador dizia: "'Ficá'. Pedro vai 'ficá' na praia alguns dias. 'Ficá'".

Em todos os grupos, as palavras foram equiparadas em função da frequência de ocorrência em livros para crianças e do tipo de dificuldade ortográfica envolvida. Para cada par, a dificuldade ortográfica era representada por uma grafia em uma palavra e por uma grafia alternativa na outra palavra (p. ex., no par 'carro-relógio', o fonema /R/ é representado pelo dígrafo 'rr' na palavra 'carro', mas pela letra 'r' na palavra 'relógio'_).

A correção das palavras levou em consideração apenas a representação da dificuldade ortográfica em questão. A criança recebia um ponto para cada par em que a grafia em questão estivesse representada corretamente em ambas as palavras.

2.2.3 Consciência Fonológica

Duas tarefas experimentais foram utilizadas para avaliar a consciência fonêmica. Na tarefa de subtração de fonema, a criança era solicitada a subtrair o primeiro som de uma palavra enunciada pelo experimentador (p. ex., gato: ato). A tarefa consiste de dez palavras de treinamento e vinte palavras-teste. O escore da criança equivalia ao número de respostas corretas dadas às palavras-teste.

A tarefa de troca de fonemas era composta de duas partes com dez itens cada. Na primeira, a criança era solicitada a retirar o primeiro som de uma palavra e substituí-lo por um som especificado pelo experimentador (p. ex., gato com /R/: rato). Na segunda, a criança ouvia pares de palavras e, para cada par, devia trocar o primeiro som entre as palavras. Assim, para o par 'banana - caturra', a resposta correta era 'canana - baturra'. Cada parte do teste foi limitada a um período de, no máximo, três minutos. A criança só passava para a segunda parte do teste se tivesse acertado pelo menos três dos dez ensaios experimentais da primeira parte. Na primeira parte, a criança ganhava 1 ponto para cada resposta correta. Na segunda parte, a pontuação de cada item variava de 0 a 2. A criança recebia 2 pontos, se acertasse as duas palavras, 1 ponto se acertasse apenas uma das palavras e 0 se não acertasse palavra alguma. 

Há evidência de que o desempenho em ambas as tarefas de consciência fonológica correlaciona-se positiva e significativamente com medidas da habilidade de leitura e escrita de palavras (p. ex., CARDOSO-MARTINS, 1995; CARDOSO-MARTINS et al., 2008).

 

3 RESULTADOS

Conforme ilustrado na Tabela 1, a criança com dificuldade de leitura apresentou um escore inferior ao escore médio das crianças do grupo controle em todas as tarefas de leitura e consciência fonológica. No entanto, como as crianças do grupo controle, ela leu praticamente todas as palavras frequentes e infrequentes corretamente.

A proporção de respostas corretas na tarefa de ditado aparece nas Figuras 1 e 2, separadamente para cada grupo de palavras. A Figura 1 apresenta os resultados para o ditado de palavras frequentes, e a Figura 2, os resultados para o ditado de palavras infrequentes. Como pode ser visto nessas Figuras, o mesmo padrão de desempenho foi obtido para a criança com dificuldade de leitura e para as crianças do grupo controle. Ou seja, todas as crianças apresentaram um número maior de acertos para as palavras com regras contextuais do que para as palavras com regras morfossintáticas ou para as palavras contendo sons cuja grafia é ambígua. Isso ocorreu independentemente da frequência de ocorrência das palavras. No entanto, embora o desempenho da criança disléxica tenha sido comparável ao desempenho dos controles nas palavras com regras contextuais, seu desempenho foi consideravelmente inferior ao desempenho daquelas crianças nas palavras com regras morfossintáticas e nas palavras contendo sons cuja grafia é ambígua. Esses resultados são discutidos a seguir.

 

4 DISCUSSÃO

O objetivo principal do presente estudo consistiu em avaliar a habilidade de codificação fonológica e ortográfica de uma criança com dislexia do desenvolvimento, à luz do desempenho de um grupo de leitores típicos com nível semelhante de leitura. A codificação fonológica e ortográfica foi avaliada por meio de uma tarefa de ditado de palavras que variavam em função da natureza mais ou menos regular das correspondências letra-som compreendidas. Especificamente, a codificação ortográfica foi avaliada por meio de um ditado de palavras contendo relações letra-som ambíguas, e a codificação fonológica por meio do ditado de palavras contendo relações letra-som contextuais. Conforme observamos anteriormente, esperávamos que a nossa participante com dislexia do desenvolvimento apresentasse um padrão de desempenho semelhante ao das crianças com desenvolvimento típico. Ou seja, esperávamos que ela apresentasse um número maior de erros nas palavras com relações letra-som ambíguas do que nas palavras com relações letra-som contextuais. Contudo, em vista de suas dificuldades fonológicas, esperávamos que ela apresentasse mais erros do que as crianças sem dificuldades de leitura em ambos os tipos de palavras.

Os resultados do presente estudo foram, de modo geral, condizentes com essa predição. Assim como as crianças sem dificuldade de leitura, a criança disléxica apresentou um número maior de erros nas palavras com relações letra-som ambíguas do que nas palavras com regras contextuais. No entanto, embora a criança disléxica tenha apresentado um desempenho relativamente inferior nas palavras com relações letra-som ambíguas, seu desempenho foi semelhante ao das crianças do grupo controle nas tarefas de codificação fonológica. Se for verdade que a codificação fonológica é a chave do conhecimento ortográfico, como explicar esse resultado aparentemente paradoxal?

É possível que a tarefa de ditado de palavras com regras contextuais não seja capaz de detectar as dificuldades de codificação fonológica de crianças em fases mais avançadas da aprendizagem da leitura. Uma vez que essas palavras são regulares, uma criança que aprendeu as regras de correspondência letra-som deveria ser capaz de gerar as suas grafias, independentemente de ela ter ou não dificuldade em fazer uso da codificação fonológica em situações mais naturais de leitura.

Os resultados deste estudo questionam, portanto, a universalidade da hipótese de Siegel et al. (1995) de que as crianças com dislexia do desenvolvimento de base fonológica baseiam-se, sobretudo, em processos de codificação ortográfica para aprender a ler palavras. Caso essa hipótese fosse correta, nossa participante com dislexia deveria ter apresentado um desempenho melhor do que as crianças sem dificuldade de leitura nas palavras contendo relações letra-som ambíguas, principalmente nas palavras frequentes. Além de mais velha do que as crianças do grupo controle, ela possuía mais anos de escolarização formal. Sua dificuldade com as palavras de alta frequência que continham relações letra-som ambíguas é, portanto, consistente com a hipótese de Ehri e Saltmarsh (1995) de que, em virtude de suas dificuldades fonológicas, as crianças disléxicas aprendem a ler com base no processamento parcial de relações letra-som e, como resultado, armazenam representações incompletas da grafia das palavras no seu léxico mental.  

O presente estudo também investigou a habilidade dos nossos participantes de escrever palavras contendo sons cuja grafia depende da classe gramatical da palavra. Como a grafia das palavras com regras contextuais, a grafia dessas palavras pode ser gerada com base no conhecimento de regularidades ortográficas. Nesse caso, no entanto, as regularidades são de natureza morfossintática e, ao contrário do que ocorre no caso de regras contextuais, nem sempre são explicitamente ensinadas na escola. Seria natural, portanto, que as crianças apresentassem mais dificuldade com essas palavras do que com as palavras contendo regras contextuais. Por outro lado, em virtude da sua grafia ser regular, esperava-se um número menor de erros nelas do que nas palavras com relações letra-som ambíguas.

Os resultados para as crianças do grupo controle foram, em geral, consistentes com as nossas expectativas. Conforme pode ser visto nas Figuras 1 e 2, essas crianças acharam as palavras com regras morfossintáticas mais difíceis do que as palavras com regras contextuais. Além disso, essas crianças cometeram mais erros nas palavras cuja grafia era ambígua do que nas palavras com regras morfossintáticas, embora esses resultados só tenham sido observados para as palavras infrequentes. Esses resultados sugerem, portanto, que crianças com desenvolvimento típico de leitura são sensíveis a regularidades ortográficas morfossintáticas desde as fases iniciais da aprendizagem da leitura.

Conforme ilustrado nas Figuras 1 e 2, a criança disléxica teve muita dificuldade com as palavras com regularidades morfossintáticas. De fato, semelhantemente ao que ocorreu em relação às palavras infrequentes, contendo sons cuja grafia era ambígua, seu desempenho nas palavras com regularidades morfossintáticas não diferiu significativamente do desempenho que seria esperado, caso estivesse respondendo ao acaso.

Em suma, os resultados do presente estudo são consistentes com a hipótese de que, entre leitores típicos, a codificação fonológica é a base do desenvolvimento da codificação ortográfica (EHRI, 1998, 2005; GOUGH; WALSH, 1991). Os resultados obtidos para a criança disléxica sugerem que o mesmo é verdade para crianças com dificuldade de leitura de base fonológica.

Estudos de caso são, pela sua própria natureza, limitados. Uma tarefa importante para a pesquisa futura consiste, portanto, em investigar a generalização dos nossos resultados para um grupo representativo de crianças com dificuldade de leitura. Esses estudos deverão também investigar em que medida crianças com dislexia de desenvolvimento de base fonológica têm problemas com o componente morfossintático da linguagem. Como observamos anteriormente, relativamente às crianças com desenvolvimento típico, a criança disléxica que participou do presente estudo apresentou muita dificuldade no ditado de palavras contendo regras de natureza morfossintática.

Finalmente, estudos futuros são necessários para avaliar o pressuposto de que a habilidade de escrever palavras com regras contextuais e palavras com relações letra-som ambíguas reflete processos de codificação fonológica e codificação ortográfica, respectivamente.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Cláudia Cardoso Martins
E-mail: cacau@fafich.ufmg.br

Mirelle França Michallick-Triginelli
E-mail: mirellefm@yahoo.com

Submetido em: 28/11/2008
Revisado em: 03/02/2009
Aprovado em: 15/03/2009

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