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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.62 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2010
ARTIGOS
Constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas
Constitution of the researcher in human sciences
Apoliana Regina Groff; Kátia Maheirie; Andréa Vieira Zanella
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Santa Catarina, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o processo de constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas, cunhadas a partir de um olhar ancorado na psicologia histórico-cultural e no diálogo com algumas idéias de Bakhtin e escritos de alguns de seus interlocutores. Dessas reflexões decorrem as compreensões de que pesquisar é um processo dialógico e ideológico, onde a pesquisa e o(a) pesquisador(a) se constituem mutuamente na relação de autoria/alteridade. Compreendemos também que a produção de conhecimentos é sempre uma criação singular com contribuições coletivas e que ao assinar a autoria de uma pesquisa ou de um texto, o(a) pesquisador(a) se encontra numa posição de responder ao outro e também de responsabilidade por aquilo que produziu. Findamos com a afirmação de que a constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas possui características peculiares a este campo de conhecimento, pois sua relação como os sujeitos e contextos pesquisados se sustenta em escolhas éticas, estéticas e políticas.
Palavras-chave: Pesquisador(a); Ciências humanas; Autoria; Alteridade; Dialogia.
ABSTRACT
The objective of this article is to present some reflections on the process of constitution of the researcher in human sciences, minted from a view anchored in the historical-cultural psychology, and in the dialogue with some of Bakhtin’s ideas and writings of some of his interlocutors. From these reflections arise the understanding that researching is a dialogical and ideological process, in which the research and the researcher are mutually constituted in the relation of authorship/alterity. We also comprehend that the production of knowledge is always a singular creation with collective contributions, and as the researcher signs the authorship of a research or text, he finds himself in a position of responding to the other and also of responsibility for what he has produced. Finally, we assert that the constitution of the researcher in human sciences has attributes peculiar to this field of knowledge, since his relation with the subjects and contexts researched is sustained by ethical, aesthetic and political choices.
Keywords: Researcher; Human sciences; Authorship; Alterity; Dialogism.
INTRODUÇÃO
A proposta deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o processo de constituição do(a) pesquisador(a), dessa pessoa que lê, relê, escreve, apaga, cria e recria, questiona, questiona o outro, questiona a si mesmo, dialoga, emaranha-se nos textos que produz e reproduz para responder às suas inquietações e às demandas sociais que necessitam de aportes teórico-práticos. Em foco, falamos do sujeito que se permite a autoria de discursos sobre a vida dos(as) homens/mulheres em contextos sociais e que, muitas vezes, não se dá conta da produção do conhecimento como processo dialógico. Em síntese, falamos de um sujeito que, ao mesmo tempo em que produz conhecimento, vai se constituindo enquanto pesquisador, na relação de autoria/alteridade.
Para problematizar a questão da autoria/alteridade e refletir sobre o processo de constituição do pesquisador no campo da produção de conhecimento em ciências humanas, partimos de um olhar ancorado na psicologia histórico-cultural e no diálogo com algumas idéias de Bakhtin e também nos escritos de alguns de seus interlocutores. Destaca-se, desse diálogo, a compreensão de que o pesquisar é um processo dialógico e ideológico, onde a pesquisa e o pesquisador se constituem mutuamente. Também está em discussão neste artigo, que o processo de produção de conhecimentos é marcado pelo intenso diálogo com múltiplas vozes que o constituem: mesmo sendo construído e assinado por um único pesquisador, o texto que se apresenta como resultado desse processo oferece esse (in)tenso debate e carrega, nas entrelinhas, diversos outros autores que compõem junto com o pesquisador a produção textual.
O PESQUISADOR E O (A) PESQUISADOR (A) EM CIÊNCIAS HUMANAS
Para problematizar a constituição do(a) pesquisador(a), enceta-se esboçando a concepção de sujeito aqui adotada a partir do enfoque com o qual trabalhamos, a saber, a psicologia histórico-cultural. Nesta perspectiva, falar em constituição do sujeito é também falar da constituição do coletivo, pois a relação que se apresenta entre sujeito e sociedade, entre o nós e o eu, caracteriza-se como processo dialético onde um é condição da existência do outro.
A proposta teórica que permite tal afirmação é a psicologia criada por Vygotski e outros psicólogos russos que têm como base epistemológica o materialismo histórico e dialético. Essa teoria se apresentou à época de sua fundação, e ainda hoje, como uma proposta inovadora para a psicologia na medida em que “(...) afirma a síntese entre os aspectos fisiológicos e psicológicos e confere ao ser humano uma existência ao mesmo tempo biológica, psicológica, antropológica, histórica e essencialmente cultural (...)” (ZANELLA, 2004, p.128). O processo de constituição do sujeito é, portanto, social e histórico, é marcado pelas conquistas do gênero humano e pelas marcas singulares que são produzidas sob a égide dessas conquistas, não deixando desse modo de serem sociais e históricas (ZANELLA, 2005).
Além do posicionamento teórico dentro das matrizes da psicologia, é preciso explicitar que, ao problematizar a constituição do pesquisador, problematizamos também nosso próprio fazer enquanto pesquisadoras e o movimento em que nos constituímos enquanto tal. Porém, entendemos que este processo de olhar o(a) pesquisador(a) como outro e, ao mesmo tempo, compreender que falamos de um outro, o qual também somos, complexifica o posicionamento exotópico, ou seja, dificulta a possibilidade de que eu possa desdobrar olhares a partir de um lugar exterior ao que me proponho a discutir (AMORIN, 2003). No entanto, Sobral (2008b) ressalta que essa posição exotópica é um estar fora relativo, pois é uma posição de fronteira, móvel e que não ultrapassa o mundo, mas o vê com certa distância com o objetivo de transfigurá-lo na construção de uma obra, seja ela estética ou não. De certo modo, o presente texto, na medida em que procura situar as condições de sua produção e algumas das vozes com os quais estabelece interlocução, é marcado por esta posição de fronteira e caracteriza-se, assim como todo e qualquer discurso, como dialógico e ideológico1.
A dialogia, conceito fundamental que assinala as tensões que caracterizam todo e qualquer discurso, consiste no
“espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor uma certa centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.)” (FARACO, 2006, p.67).
Nesse jogo de forças toda palavra proferida apresenta sua condição ideológica, pois está para um outro como um signo, sempre e necessariamente posicionado em relação a um leitor pressuposto e ao próprio foco do discurso. Toda palavra é, portanto, contrapalavra que, com sua condição polifônica e polissêmica, ao mesmo tempo reflete o tenso debate que a inaugura e o refrata, pois está aberta a tantas outras contrapalavras.
A palavra escrita, nesse sentido, assim como todo e qualquer signo, só existe em relação, ou seja, entre os sujeitos. Para Bakhtin (1992, p.36), “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. (...) A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social”. A palavra/signo, portanto, caracteriza-se por uma tensão entre seus variados sentidos coletivos/singulares, e uma vez proferida caracteriza cada discurso como acontecimento em que sentidos outros podem ser produzidos. Desta forma, a escrita, além de seu caráter ideológico, também é dialógica, pois objetiva um (in)tenso debate com palavras outras, com vozes sociais que são apropriadas e com as quais o sujeito que escreve estabelece relações de acolhimento, oposição, indiferença, resistência.
A dialogia no processo de produção de um texto levanta, desde já, a questão da autoria, pois não escrevemos nem pensamos sozinhos: afirma Bakhtin (1992) que toda palavra própria é palavra alheia tornada própria, em consonância com a afirmação de Vygotski (1987, p. 162) de que cada sujeito, ainda que “(...) a sós consigo mesmo, segue funcionando em comunicação”2. Estamos, portanto, necessariamente em relação com um outro, presente/ausente, sendo a produção do conhecimento em sua forma escrita sempre compartilhada e articulada com outros saberes e fazeres. A palavra escrita pode ser compreendida, então, como objetivação de um processo dialógico não necessariamente harmonioso, processo onde variadas vozes sociais estão em relação e podem vir a ser modificadas no próprio processo de produção de conhecimentos.
Para Faraco (2006, 2008), assumir uma autoria é se colocar numa posição axiológica, ou seja, numa posição marcada por valores que conotam a própria existência e o lugar pressuposto no diálogo travado com variadas vozes sociais. Ao assumir uma posição axiológica, todo sujeito pesquisador responde, refuta, cria e confirma algo, sendo que para Bakhtin (1926/1976, p. 2), “todos os produtos da criatividade humana nascem na e para sociedade humana”.
Nesta perspectiva, produzir conhecimentos requer assumir uma posição de responsabilidade e responsividade pelo que se produz, como também problematizar o próprio lugar social de onde se fala. Afinal, a produção de conhecimentos não é neutra, o(a) pesquisador(a) é um agente que intervém e transforma os contextos onde atua na medida em que produz discursos e saberes sobre estes contextos e sobre os sujeitos com os quais pesquisa. A posição do autor(a)/pesquisador(a) é, portanto, de “responsibilidade”, ou seja, ele precisa responder pelos próprios atos e também responder a alguém ou ao contexto por aquilo que produz (SOBRAL, 2008a). A produção de conhecimentos em ciências humanas, nesse sentido, precisa ter como seu fundamento orientador o compromisso social e ético com o humano, com as possibilidades de vida em suas diferentes manifestações balizadas pelas condições de convivialidade.
Fundamental também se faz problematizar a relação intrínseca entre o pesquisador e as condições de produção do conhecimento, e também sobre as relações com os muitos outros com os quais dialoga. Parece algo simples, partindo da consideração do axioma outro-eu/eu-outro, ou seja, da alteridade. Esta é entendida como relação constante com a diferença, pois a existência de um sujeito só é possível por meio de relações sociais sempre marcadas pelos muitos outros que caracterizam as culturas (ZANELLA, 2005). A ciência, neste caso, não trata da realidade propriamente dita, mas de uma construção possível de uma época, possível a um sujeito e à cultura que o constitui, com as variadas vozes que participam desse diálogo.
Faz-se necessário, então, produzir conhecimentos que não se pretendam universalizantes, posto que a diversidade e a possibilidade de diferir caracterizam o humano. Ao contrário, é preciso produzir uma ciência humana que problematize as condições em que se vive, condições locais, situadas historicamente, (re)produzidas e (re)inventadas por sujeitos que são complexos, heterogêneos e que estão em contínuo movimento de vir a ser, balizado pela história da coletividade da qual ativamente participam e dos projetos de futuro, coletiva e singularmente construídos. Ciência, portanto, dos acontecimentos.
Para Bakhtin, o acontecimento, evento ou ato, conceitos trabalhados como tessitura em uníssono, é um estar sendo num tempo-espaço, onde o recorte do evento é o acontecimento. No acontecimento, os sujeitos atuam, ou pode-se dizer que os atos constituem eventos3. Segundo Sobral (2008a, p. 27), “o evento é um ato abarcador que inclui os vários atos da atividade do homem ao longo desse diálogo permanente que é a vida”. Bakhtin (2003, p. 128) esclarece que “o homem vivente se estabelece ativamente de dentro de si mesmo no mundo, sua vida conscientizável é a cada momento um agir: eu ajo através do ato, da palavra, do pensamento, do sentimento; eu vivo, eu me torno um ato (...)”.
A partir deste olhar, para Bakhtin (2003, p. 395) “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”. Com esses termos abrimos espaço para a exposição de dois conceitos trabalhados por Bakhtin, importantes para a psicologia histórico-cultural, mas que se diferem em certa medida dos conceitos apresentados por Vygotski. Bakhtin (1992) esclarece os conceitos de sentido e significado da seguinte forma: todo enunciado4 possui um sentido (tema da enunciação) diferente, mesmo possuindo o mesmo conteúdo, pois o que difere são as entonações5, os presumidos6 e o contexto de sua enunciação, ou seja, o sentido é a forma ou o modo de falar de algo; já o significado é a coisa referida, que envolve a significação da palavra enquanto traço de união entre os interlocutores de um diálogo. Assim, “a significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor” (BAKTHIN, 1992, p. 132).
Para Vygotski (1934/1992), em contrapartida, os significados são sentidos generalizados, ou seja, uma palavra tem um ou mais significados que são compartilhados socialmente e possibilitam a comunicação intersubjetiva. O significado é para este autor ao mesmo tempo um fenômeno do pensamento e da palavra, pois só existe na medida em que o pensamento está encarnado na palavra. As palavras, no entanto, veiculam/evocam vários outros sentidos, para além daqueles que se compartilha com outros partícipes do mesmo contexto cultural. Sentidos produzidos nas experiências singulares e que singularizam os sujeitos em suas experiências. Há diferenças, portanto, nos conceitos de sentido e significado para Bakhtin e Vygotski, ainda que em ambos se destaque a dimensão inexoravelmente histórica e social de todo e qualquer signo, que se atualiza em cada ato de enunciação.
Sob os dois enfoques teóricos apresentados, tanto o processo como o conteúdo dos diálogos dos sujeitos com a vida, produtor de acontecimentos, constituem-se como foco de estudos do(a) pesquisador(a). Para Sobral (2008b), há um esforço em toda obra de Bakhtin de identificar a arquitetônica de seus objetos de estudo “sempre a partir do agir de um sujeito situado, responsivamente ativo e que se define na relação com os outros na sociedade e na história” (p. 110), o que não é diferente do enfoque da psicologia com que trabalhamos.
Nessa perspectiva, a produção de conhecimentos em ciências humanas compromete-se com as relações entre geral e particular, coletivo e singular, entre produto e processo; ou seja, considera as dimensões ética, estética e teórica da existência humana, dando ênfase ao aspecto processual dos sujeitos na relação com os muitos outros com os quais está em permanente diálogo, enfim, com a vida (SOBRAL, 2008b). Decorre dessa compreensão a premissa de que “o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKTHIN, 2003, p. 400).
Fazer uma ciência a partir dessa perspectiva implica, nesse sentido, em assumir uma posição de responsividade marcada por problematizações várias, como: para que eu quero conhecer? Por que eu quero conhecer? Qual o horizonte ético e estético do meu olhar e do conhecimento que produzo? Qual ética e estética baliza os encontros que, na condição de pesquisador(a), estabeleço com os outros com os quais dialogo no percurso da pesquisa?
Problematizar o lugar social de pesquisador(a) que procura conhecer e produz conhecimentos sobre algo é, assim, uma questão ética7, pois acreditar que o valor do conhecimento é o conhecimento em si acaba por responder a coisa alguma e, desta forma, não teria razão para existir a pesquisa (SOBRAL, 2008b). Essas perguntas, por sua vez, dialetizam o campo da ética e da ciência, na medida em que o pesquisador está no campo da responsividade, entendendo que a produção de todo e qualquer conhecimento é histórica e socialmente situada.
No campo da ciência, toda pesquisa precisa ter um empreendimento teórico que leve em conta a especificidade do estudo, como também a particular inserção do sujeito pesquisador em relação ao campo investigado, ciente de que toda pesquisa necessita de um conhecimento e um desconhecimento. Isso significa que há aspectos do objeto que ele só poderá conhecer a posteriori. O pesquisador precisa, neste sentido, considerar como mote para sua atividade o que quer conhecer, para que e porque quer conhecer, porém tendo sempre como horizonte a possibilidade de a pesquisa o levar ao insuspeitado (SOBRAL, 2008b).
No campo do ético, extremamente relacionado com o dito no campo da ciência, é ético por parte do pesquisador reconhecer seu lugar na pesquisa e seu lugar enquanto sujeito no mundo, e manter uma relação exotópica com o objeto de estudo. É ético por parte do pesquisador reconhecer a fragilidade de seu método ou teoria em relação ao objeto da pesquisa e, reconhecendo isso, investir em revisões teóricas e metodológicas e até mesmo, abandonar e recorrer a outros aportes para dar conta do estudo (SOBRAL, 2008b), pois “não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico” (BAKTHIN, 2003, p. 410).
Além da relação entre o campo da ética e da ciência, também podemos incluir o campo da estética, pois segundo Sobral (2008b, p. 115), “o caráter de construção arquitetônica de toda pesquisa, que envolve a criação de uma totalidade orgânica que permite à pesquisa ir além de uma construção mecânica e constituir-se em totalidade dotada de sentido, [é] que constitui o plano do estético”. O campo da estética articula-se então, com o da ciência e da ética, construindo um novo objeto, ou seja, o texto da pesquisa. A construção do texto, segundo Sobral (2008b), é um campo perigoso que beira o delírio, pois ele sempre pede mais, exige mais do pesquisador que escreve. No entanto, indica a necessidade de que “o todo do texto há de ser articulado autoralmente, o que envolve a relação com o outro e com o objeto; o outro é o objeto, são os sujeitos da pesquisa, são os membros da comunidade acadêmica etc.” (SOBRAL, 2008b, p.117).
Nessa perspectiva, o processo da pesquisa se constitui como uma totalização analítica e está implicado em uma postura ético-estética, a partir da atividade do conhecer, onde pesquisador e sujeito da pesquisa se constituem mutuamente, em relações dialógicas, alteritárias e necessariamente abertas ao outro. Por meio do processo que envolve tais relações, o(a) pesquisador(a) desconstrói significados fossilizados do saber psicológico para (re)construí-los a partir do discurso contextualizado tanto sobre o outro com o qual trabalha, quanto das relações que estabelece com esse outro e suas tensões. Ou seja, no processo de análise é fundamental que o(a) pesquisador(a) se posicione “dentro” e ao mesmo tempo “fora” do contexto pesquisado, o que é possível com um olhar outro, “estrangeiro”, com o movimento exotópico e o excedente de visão daí decorrente (BAKTHIN, 2003) que possibilita ao autor distanciar-se em relação ao vivido para problematizá-lo. A análise, nesse sentido, aponta para as relações dialógicas e o processo de constituição dos sujeitos em relação à inteligibilidade daquele que analisamos e, principalmente, em relação a nós mesmos.
Assim, a postura ética, a estética, as problematizações teórico-metodológicas, a produção do texto, os vários outros com os quais se dialoga, a responsividade, são condições e relações que constituem o sujeito pesquisador e ao mesmo tempo o contexto e os sujeitos com os quais pesquisa. Essas condições e relações se caracterizam pelo encontro com vários outros que constituem a cultura, pelo diálogo (in)tenso com múltiplas vozes que ecoam nas palavras próprias/alheias. Ou seja, o processo de pesquisar é caracterizado por relações de alteridade em que o(a) pesquisador(a) se afirma como autor(a) em uma condição inexoravelmente compartilhada, pois só há um eu em relação a um outro, e são os signos que mediam o processo de interação eu-outro, refletindo uma dada realidade e ao mesmo tempo possibilitando aos sujeitos refratá-la (BAKTHIN, 1992).
Refratar significa, na concepção bakhtiniana, que por meio dos signos os sujeitos, além de descreverem o mundo, também o (re)produzem no decorrer da história e das múltiplas e diversas experiências dos grupos humanos com os quais se relacionam (FARACO, 2006). Há então, um processo de relação no refletir e refratar a realidade, que pode ser compreendido por meio do movimento de subjetivação/objetivação, onde os sujeitos produzem e (re)criam o mundo, na mesma medida em que são produzidos e (re)criados por ele. Maheirie (2003) esclarece que,
ao constituir-se num determinado sujeito, o homem interioriza significações (com valores, idéias) e a própria ideologia presente nesta, num movimento denominado de subjetivação. E ainda, exterioriza-se, de uma forma peculiar, num movimento denominado de objetivação. Portanto, se sujeito é ser, ao mesmo tempo, subjetividade e objetividade, é ser objetividade que se subjetiva, subjetividade que se objetiva, constantemente (p. 63 e 64).
O(a) pesquisador(a) é, portanto, um sujeito que se constitui na relação de alteridade mediada semioticamente. Porém, problematizar o processo de sua constituição requer a problematização do seu agir que produz discursos sobre outros sujeitos e que propõe, muitas vezes, intervenções voltadas à vida de diferentes pessoas, em variados contextos e condições. Considerando essa dimensão ética e estética do processo de produção de conhecimentos, é fundamental que o(a) pesquisador(a) leve em conta, em sua práxis, as possibilidades e impossibilidades de reflexão criativa sobre as realidades que atua e que, com sua pesquisa, necessariamente irá modificar.
(IN)CONCLUSÕES
A constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas, possui características peculiares que fazem do pesquisar um processo atravessado por questões afetivas e de compromisso com os sujeitos e contextos estudados. Este(a) pesquisador(a) estuda com e não sobre os sujeitos, pois compreende que a relação com o outro é o que há de mais rico no pesquisar, pois é onde sentidos são coletivamente produzidos e onde contextos e sujeitos são transformados.
Compreendemos que toda pesquisa é política, pois à medida que o(a) pesquisador(a) escolhe algo do real para ser estudado, deixa, possivelmente, de lado outras realidades. O conhecimento que produz, por sua vez, é discurso que funda práticas outras, sendo imprescindível a discussão de seus possíveis efeitos e do que pode daí advir. Em suma, o processo de pesquisar é complexo e contraditório e se produz conhecimento na e para sociedade, com os limites e possibilidades do pesquisar e do(a) pesquisador(a). Limites a serem tensionados, problematizados, perscrutados, tendo como fundamento desse diálogo a vida que se quer (re)inventar.
As reflexões sobre as questões de autoria/alteridade no processo de constituição do(a) pesquisador(a) abrem ainda a possibilidade para olhares novos. Apesar de não termos tratado diretamente neste texto sobre as interações engendradas no cotidiano do(a) pesquisador(a), seja na universidade, nos grupos de estudos, nos núcleos de pesquisa e junto às parcerias que produzem as co-autorias de artigos, dissertações, teses, etc., estas são discussões a serem lançadas, pois estes contextos marcam o sujeito pesquisador e produzem efeitos em seu fazer, pensar e agir.
Neste sentido, findamos com algumas afirmações, mas também com a abertura para novas discussões e contrapalavras, pois a arquitetônica que constitui o sujeito pesquisador pode continuar a ser problematizada com a afirmação de que ninguém “nasce pesquisador; vem-se a sê-lo, a merecê-lo, a receber-lhe o selo, na coerência teórico-metodológica, na consistência ética, na consciência estética, no espelho da esfera em que ser pesquisador faz, e cria, sentido” (SOBRAL, 2008b, p. 118).
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Endereço para correspondência
Apoliana Regina Groff
E-mail:apoliana10@yahoo.com.br
Kátia Maheirie
E-mail:maheirie@gmail.com
Andréa Vieira Zanella
E-mail:azanella@cfh.ufsc.br
Submetido em: 03/04/2009
Revisto em: 18/03/2010
Aceito em: 20/03/2010
1Para Bakhtin, “um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (Bakhtin, 1992, p.31). Sobre o conceito de ideologia em Bakhtin, ver também Miotello (2008).
2Reflexões sobre a dimensão da alteridade, característica da atividade psicológica segundo o enfoque histórico-cultural em psicologia, encontram-se em Zanella (2005).
3As idéias sobre evento-acontecimento-ato foram retiradas das anotações do “Seminário sobre Bakhtin”, promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Educação da UFSC em 2008 e, proferido pelo professor João Wanderley Geraldi.
4O enunciado compreende a parte percebida ou realizada em palavras e a parte presumida de um ato de comunicação (Bakhtin, 2003).
5A entonação sempre está na fronteira do verbal com o não-verbal, onde qualquer entonação alegre, triste, de desprezo, etc., pode agir na palavra ou no contexto extraverbal (Bakhtin, 1926/1976).
6Horizonte espacial e ideacional compartilhado pelos falantes, num contexto extraverbal, mas que não são individuais ou subjetivos, mas atos sociais reguladores da vida coletiva (Bakhtin, 1926/1976).
7Bakhtin leva em consideração, ao avaliar os princípios éticos, “sua aplicabilidade no plano concreto da vida, da realização concreta de atos pelos quais o indivíduo, ao neles deixar sua ‘assinatura’, se responsabiliza pessoalmente, mas perante a coletividade, e em termos específicos” (Sobral, 2008a, p. 25).