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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.67 no.1 Rio de Janeiro 2015
ARTIGOS
Ato e deriva pulsional na clínica da anorexia-bulimia*
Act and instinctive drift in the clinic of anorexia and bulimia
Acto y deriva pulsional en la clínica de anorexia y bulimia
Cristina Moreira Marcos
Docente. Programa de Pós Graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
RESUMO
Os sintomas contemporâneos parecem se sustentar em um rechaço do inconsciente e resistem a entrar no discurso. A anorexia-bulimia vai na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem e o revela como fixação de gozo, indicando uma recusa do inconsciente. Esse aspecto evidencia-se na clínica da anorexia-bulimia, na medida em que ali se verifica uma substituição do significante pelo gozo, apontando para uma clínica do ato mais do que uma clínica das manifestações do inconsciente. Esse tema será abordado a partir do depoimento de Fabíola De Clercq, publicado em Todo o pão do mundo. Sua parceria com a anorexia e a bulimia revela a inexistência da alteridade através da entrega a uma deriva pulsional. A partir desse testemunho, buscamos interrogar o modo particular de apresentação dessa clínica na qual a dimensão do ato é determinante.
Palavras-chave: Anorexia; Bulimia; Ato; Pulsão.
ABSTRACT
Contemporary symptoms seem to be based on a denial of the unconscious, refusing to be turned into words. Anorexia and bulimia go against the symbolic feature of the symptom as a message. It shows the symptom as a fixation of the jouissance. In the clinic of anorexia and bulimia, the signifier is replaced by the jouissance. It is a clinic of the act more than the manifestations of the unconscious. We will examine this subject using the testimony of Fabiola De Clercq, Tutto il pane del mondo (Every bread in the world). Based on her testimony, we will investigate what makes anorexia and bulimia unique, in which the act is crucial.
Keywords: Anorexia; Bulimia; Act; Instinct.
RESUMEN
Los síntomas contemporáneos parecen sostenerse en un rechazo del inconsciente y resisten a entrar en el discurso. En lugar de resaltar el aspecto simbólico del síntoma, la anorexia-bulimia revela el síntoma como la fijación de goce, lo que indica un rechazo del inconsciente. Este aspecto se evidencia en la práctica clínica de la anorexia y bulimia, en los que se ha hallado un intercambio del significante para el goce, que apunta a una patología del acto y no de las manifestaciones clínicas del inconsciente. Esta cuestión se abordará a partir del testimonio de Fabiola De Clercq, publicado en Tutto il pane del mondo (Todo el pan del mundo). Su asociación con la anorexia y la bulimia revela la ausencia de la alteridad a través de la entrega a una deriva pulsional. A partir de este testimonio, se busca cuestionar el modo particular de presentación de esta clínica en la que la dimensión del acto es decisiva.
Palabras clave: Anorexia; Bulimia; Acto; Pulsional.
Os sintomas contemporâneos parecem se sustentar em um rechaço do inconsciente e resistem a entrar no discurso (Helkier e Miller, 2005). A clínica da anorexia-bulimia vai na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem, para evidenciá-lo como fixação de gozo, recusa do inconsciente, na medida em que ali se verifica uma substituição do significante pelo gozo, apontando mais para o ato do que para as manifestações do inconsciente (Helkier e Miller, 2005). Este tema será abordado a partir do depoimento de Fabíola De Clercq, publicado em Todo o pão do mundo - Crônica de uma vida entre a anorexia e a bulimia (De Clercq, 2012). Sua parceria com a anorexia e a bulimia garante a inexistência da alteridade através da entrega a um gozo mortífero, a um excesso, a uma deriva pulsional que vai ao limite da autodestruição. Estamos diante de uma fixação de gozo, que não passa pelo Outro sexo (Consenza, 2011), e que parece opaco ao sentido e ao discurso. A partir desse testemunho, buscamos interrogar o modo particular de apresentação da anorexia-bulimia, na qual a dimensão do ato é determinante.
Há uma particularidade nesses sofrimentos que se localiza em seus atos e nos riscos físicos que eles acarretam, não se reduzindo apenas à recusa em comer, ou a uma atuação compulsiva em comer, mas à impossibilidade de dizer, implicando uma linguagem sem mediação da palavra. São exemplos das diversas modalidades do ato os silêncios nos atendimentos, as tentativas de autoextermínio, as automutilações e até a interrupção nos tratamentos. A anorexia e a bulimia têm um modo particular de apresentação clínica, na qual a dimensão discursiva tende a se eclipsar, dando lugar a uma ação separada da ordem simbólica. Sendo assim, partimos do pressuposto de que a clínica da anorexia-bulimia está vinculada à clínica do ato, na medida em que trocam o significante pelo gozo, "são patologias do ato" (Hekier e Miller, 2005, p. 25).
É preciso dizer que, na perspectiva psicanalítica que adotamos, anorexia e bulimia não encerram um diagnóstico estrutural, mas são tomadas como posições subjetivas em sua pluralidade. O singular do caso permitirá a circunscrição do lugar e da função do ato e das estratégias clínicas diante de tais manifestações. Nessa medida, o caso clínico nos permite abordar tais manifestações, não a partir de uma compreensão generalizada, mas a partir do um a um do caso clínico e de sua singularidade. Abordam-se assim as diversas modalidades do ato: passagem ao ato e acting out, saídas encontradas pelos sujeitos diante do mal-estar vivenciado por cada um, assim como a definição lacaniana que permite postular todo ato como uma infração, uma transgressão de um limite simbólico (Lacan, 1986), para se colocar a questão das relações entre ato e feminino a partir da clínica da anorexia-bulimia.
O depoimento autobiográfico e o caso clínico
A partir do depoimento de Fabíola De Clercq (2012), podemos pensar a função do ato e suas modalidades na clínica da anorexia-bulimia. O recurso à autobiografia impõe, como preliminar, uma questão metodológica: por que o recurso ao depoimento pessoal? Seguimos aqui um caminho inaugurado pelo próprio Freud (1907/1989b, 1910/1989c, 1911/1989d). Dentre os métodos de investigação utilizados por ele, há, por exemplo, o recurso aos escritos de Schereber, a partir dos quais se constrói uma rica elaboração clínica e teórica acerca da paranoia. Porge (2005) afirma que "os estudos de casos literários publicados por Freud são psicanálise na mesma medida que seus relatos clínicos" (p. 27).
Sem dúvida, a psicanálise suscitou e influenciou diversas formas narrativas, a saber: os relatos de casos, as vinhetas clínicas, as dissertações monográficas, os registros diários de sessões de análise, os relatos de passe, entre outros. O modo como Freud escuta suas pacientes modifica o relato do caso (Marcos, 2007). A mera descrição dos fenômenos patológicos não é suficiente para transmitir o que se passa no espaço analítico. O nascimento da psicanálise confunde-se com os casos clínicos freudianos, inaugurando um método de pesquisa no qual o singular do caso permite, por um lado, aprofundar na compreensão do objeto estudado e, por outro, fazer avançar a teoria e reexaminar diversos aspectos teóricos e clínicos (Freitas, 2000). A construção do caso clínico permite a articulação entre teoria e prática e a produção de um saber a partir da prática clínica, implicando a produção de um saber do particular, concernente ao ponto mais singular de cada caso, o que não resulta em uma desconsideração da dimensão geral do saber que o insere em determinada categoria clínica (Barroso, 2003; Bourguignon & Bydlowski, 2006; Pinto, 2006, 2008). Há um valor metodológico do caso clínico na psicanálise, indicado por Lacan (1966a) como o que se encontra naquilo que o caso tem de mais particular, não sem considerar a categoria clínica na qual ele se insere.
A escolha da escrita de Fabíola De Clercq (2012) como aquilo que pode nos ensinar acerca das relações entre o ato e a anorexia afirma o valor do testemunho menos pelo seu estatuto autorreferencial do que pela afirmação que aí se realiza de uma invenção singular de um sujeito. Fabíola apresenta-se não apenas como uma anoréxica, mas também como alguém que fez a experiência de uma análise e que escolhe a escrita como via de um testemunho da sua vida imersa na anorexia e na bulimia. Crônica é como ela nomeia a descrição desses dias. Entramos aqui no cerne das discussões acerca da escrita de si. Lejeune (1975), responsável por importantes estudos acerca da autobiografia, define-a como um contrato de leitura estabelecido mediante o nome próprio, e não como uma relação estabelecida entre a verdade extratextual e sua fiel reprodução. É a partir do nome próprio, única marca extratextual que remete a uma pessoa real, que se produz o discurso autobiográfico. Seria a não identidade entre autor-narrador-personagem e a palavra romance escrita na capa que estabeleceriam, em oposição ao outro modo de leitura (referencial), o pacto ficcional. Lejeune revê e reavalia algumas de suas posições em pesquisas posteriores (Lejeune, 1980, 1983a, 1983b, 1986, 1990). A identidade entre autor-narrador-personagem, postulada antes em termos absolutos, é repensada como um conjunto de jogos que comporta graus e ambiguidades. O autor reavalia também a ênfase dada ao contrato de leitura em detrimento de outros elementos (conteúdo, narrativa, estilo) que, se não são suficientes, são necessários à autobiografia. O próprio caráter único do pacto é reavaliado como um processo duplo: o engajamento e a apresentação escolhida pelo autor e o modo de leitura escolhido pelo leitor, podendo haver, portanto, uma discrepância entre a intenção inicial e a que lhe empresta o leitor, ou mesmo interpretações diferentes do mesmo contrato proposto. Entretanto, Lejeune sempre mantém como articulador e pivô da especificidade desse gênero literário o nome próprio.
Em resposta a Lejeune, Doubrovsky propõe o termo autoficção para nomear sua autobiografia intitulada Fils (Doubrovsky, 2001). Para Doubrovsky (1996), toda narrativa de si é ficcional, mistura de realidade e ficção na qual a escrita oscila entre o autor e o outro ficcional. Segundo ele, a autoficção não é nem autobiografia nem ficção, mas oscila entre os dois, remetendo a um lugar impossível e inacessível fora do texto. Desse modo, Doubrovsky faz surgir um entre-lugar no qual a veracidade autorreferencial é impossível de ser estabelecida, deslocando assim nossa perspectiva da busca em estabelecer possíveis relações entre vida e obra para o interesse pela invenção singular do sujeito.
Nenhuma busca de uma correspondência entre a escrita e o referente é almejada, mas, antes, o lugar da enunciação do sujeito. A crônica escrita por Fabíola De Clercq (2012) nos ensina acerca das relações entre o ato e a anorexia, na medida em que ela é lida não na busca de uma significação final, nem a partir de uma redução da questão textual pela interpretação analítica, mas antes na tentativa de localização dos pontos de enunciação e de gozo desse sujeito. Starobinski (1970) afirma que
se a psicanálise traz uma ajuda preciosa ao leitor da autobiografia, não é porque ela explica o indivíduo à luz de sua história e de sua infância, mas porque ela persegue essa história dentro do seu discurso e faz da enunciação o lugar da sua pesquisa (p. 276).
Seguimos uma importante advertência feita por Attié (2012): não se trata de fornecer uma interpretação acerca do que diz a escrita de Fabíola De Clercq como se fosse a fala de uma analisante. A questão central situa-se na causa dessa escrita e no modo como esse sujeito se vale dela para localizar e nomear pontos do real (Attié, 2012). Attié afirma que há uma dimensão do real que diz respeito à pulsão que não cessa de se escrever, de se repetir, até que algo se simbolize e tempere um pouco seu gozo. Na pulsão, algo funciona como necessário e por isso pode se escrever. Mas há também essa outra dimensão do real como impossível de se escrever, como a relação sexual (Attié, 2012).
Em Lituraterra, Lacan (2009) afirma que "a escrita é, no real, o ravinement do significado" (p. 116). O ravinement é um escoar com força, um cavar sulcos no solo. A escrita cava na língua todo tipo de significação.
Isto é para lhes definir por que se pode dizer que a escrita é, no real, o ravinamento do significado, ou seja, o que choveu do semblante como aquilo que constitui o significante. [...] A escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico (Lacan, 2009, p. 114).
Nesse texto, Lacan (2009) insiste na distinção entre o significante e a letra. Ele evoca uma paisagem vista do avião em sua viagem de retorno do Japão. Por entre as nuvens, ele vê uma planície desolada marcada unicamente pelo escoamento das águas. Os semblantes, como as nuvens, rompem-se, e o que se precipita fura o saber como um ravinamento do significado, como gozo. Assim como a chuva faz rasura na terra, o gozo faz sulcos no real. A letra é o litoral que faz borda entre estes dois campos heterogêneos: o saber (os semblantes e os significantes) e o gozo. Sendo assim, a letra pode articular saber e real.
Lacan continua afirmando que "o sujeito é dividido pela linguagem, mas um de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com o exercício da fala" (Lacan, 2009, p. 117). Enquanto, através da palavra, o sujeito vai em busca de uma significação, através da escrita, ele esbarra com um real sem sentido.
Attié (2012) afirma que aquilo que se escreve fica entre o significante e a letra; o significante chamando uma parte da verdade, e a letra sendo o índice do impossível. Sendo assim, as relações entre a escrita e o real dizem respeito seja ao necessário, aquilo que cessa de não se escrever, seja ao impossível, aquilo que não cessa de não se escrever. Nesse limiar situa-se a escrita de Fabíola De Clercq.
O caso Fabíola De Clercq
Desde o início do seu testemunho, Fabíola traça os contornos do que poderíamos chamar de uma nostalgia do pai.
Tínhamos dormido em um hotel a caminho de Bruxelas, vindo de Cannes - onde passávamos o verão -, e papai parou em um prado para me mostrar as ovelhas. Mais que tudo, era o calor do seu abraço que me deixava feliz. É esse contato que eu procurei por toda a vida (De Clercq, 2012, p. 17).
Parece ser em nome do pai, como um apelo, que veremos posteriormente um certo modo de desconexão com o Outro se colocar em marcha (Miller, 2005). Entretanto, esse chamado aproxima-se de um grito mudo. Como transformar isso que é um mero ruído, murmúrio atrás da porta, em discurso? Como entender que o chamado, suposto modo de conexão com o Outro, ganhe a forma de um silêncio?
Entre as lembranças da infância perfilam-se o alheamento da mãe, sempre ocupada consigo mesma e seus amantes; a morte do pai, marcada pelo não dito; o abuso sofrido em silêncio. Temos ainda outra lembrança da infância que faz surgir uma certa dimensão do ato, embora seja descrita como um acidente: aos três anos, brincando com o primo e se aproveitando de uma distração da mãe, Fabíola debruça-se na grade e cai da varanda. É como esse objeto que cai que ela descobre conseguir chamar a atenção de todos. "Tinha conseguido, com aquele acidente, atrair a atenção de todos sobre mim" (De Clercq, 2012, p. 19). Após a morte do pai, junto ao qual se sentia a única, Fabíola descreve uma solidão e um isolamento que parecem não comover sua mãe.
Vemos, em Fabíola, um vínculo de sujeição ao alimento, do qual ela se torna escrava, e reencontramos nesse vínculo a dimensão do ato, na qual o sujeito permanece entre parênteses, em silêncio; o que surge no lugar do sujeito é o objeto. Essa sujeição ganha forma aos 13 anos, durante a adolescência, momento em que se vê confrontada com a transformação do corpo, própria à idade, mas que será tomada como inaceitável, uma sensação de inchaço que provoca angústia. Iniciam-se as dietas, os remédios, os jejuns implacáveis e, por fim, o vômito. A estética perdida com o aumento de peso era o assunto privilegiado das discussões com a mãe, transformada em um ideal de beleza feminina inatingível.
O jejum e o vômito vão surgir então como "uma solução mágica de todos os problemas" (De Clercq, 2012, p. 44). No lugar da angústia, surge a comida; no lugar dos seus problemas pessoais, os problemas alimentares; no lugar do dizer, o fazer. Fabíola encontra uma saída na comida, e essa estratégia ocupa todo o espaço da vida. "Tudo o mais se torna secundário. A capacidade de resolver esse problema é o que lhe permite resistir à depressão, e o que impele sempre mais a desafiar-se e aos outros" (De Clercq, 2012, p. 48). Sucede-se "um vaivém de orgias alimentares e jejuns atrozes" (p. 44). A vida gira em torno dos vômitos e seus rituais, que se repetem três a quatro vezes por dia, durante 20 anos. Eles não cessarão nem durante a gestação do seu filho, nem com as glândulas salivares inchadas, nem com pontos costurados na boca. Nada vem barrar esse impulso incontrolável que nos remete à força da pulsão.
Podemos propor dois eixos norteadores da nossa questão: o estatuto e a função do ato nessas manifestações e sua relação com o feminino. O caso Fabíola evidencia de que modo a particularidade da anorexia-bulimia enraíza-se em uma dimensão de ato e ainda de que modo a anorexia-bulimia surge como uma resposta à questão do feminino.
Nessa clínica, o sujeito permanece fora da cadeia significante, preso ao seu não dizer, à sua mudez pulsional. Revela-se que não se trata do objeto comida, mas de um impossível de dizer. Fabíola afirma:
A comida não tem mais sabor, nem cor, não é mais comida. Talvez esteja só tapando a boca para não pedir ajuda, não desatar em um choro infindável que ninguém poderia interromper. Um choro reprimido todos esses anos, toda a dor e a raiva que nunca pude exprimir (De Clercq, 2012, p. 60).
Ou ainda: "Transferi as minhas aflições para a comida e para as dimensões do meu corpo: seu peso e sua circunferência" (De Clercq, 2012, p. 101).
Assoun (1995) afirma que, na anorexia, evidencia-se um domínio do querer, e a anoréxica se transforma na encarnação de uma escolha. Nesse sentido, a anorexia revela um puro querer na divisão entre querer e desejar. "De fato, o que ela não sabe [...] é que esse querer de ferro se apoia sobre uma negação do desejo" (Assoun, 1995, p. 135). A dor de depender e precisar do outro vira sinônimo de um outro invasivo. O corpo assim domado pelo querer parece fazer barreira à relação com o outro, seja na interrupção do circuito do desejo, seja no recolhimento da demanda bloqueada no próprio corpo.
Fabíola encontra uma resposta para sua angústia na dificuldade com o alimento. A dimensão do ato encontra-se presente nos rituais de vômito, na recusa do alimento, na anulação do discurso que se reduz às considerações sobre a comida, aos pesos e às medidas, no silêncio. "Choro em silêncio, sentada na beira da banheira, depois de me pesar. Um choro sem testemunha" (De Clercq, 2012, p. 61). No lugar da palavra, surge o silêncio e uma recusa de saber. A virada surgirá no momento em que Fabíola transforma essa questão, supostamente centrada no corpo, em um enigma. Após o nascimento do seu primeiro filho, Fabíola se depara com a anormalidade de suas ações e com a descoberta de que sua angústia não está relacionada à comida (De Clercq, 2012, p. 49).
A angústia indica que resta apenas um último ponto a atravessar para aceder à ausência do Outro (Lacan, 2005), ou melhor, embora exista ainda uma experiência do Outro, a presença do Outro como desejo do Outro (Lacan, 2005) não está em causa. A angústia é a clínica onde a falta falta. A angústia não é a falta, mas a desaparição da falta.
Os aumentos do número de atuações e da clínica da angústia estão inter-relacionados, pelo fato de que elas evitam e revelam a angústia, sendo uma maneira de interromper a espera, permitindo o sujeito sair da situação intolerável. A angústia mostra a falta de uma elaboração subjetiva conveniente, mostra a falta de uma elaboração simbólica desse afeto, o que leva o sujeito ao ato, como modo de evitá-la.
Recalcati (2003) situa a clínica da anorexia-bulimia entre a clínica dos chamados novos sintomas, testemunha de uma falência do simbólico no mundo contemporâneo. Reafirmando a tese de Miller (2004), segundo a qual haveria uma promoção do objeto mais de gozar (a) no mundo contemporâneo, Recalcati situa a clínica dos novos sintomas em uma clínica do vazio.
As atuações são repetições sob a pressão de uma compulsão. Freud (1920/1989f) admite a existência de uma compulsão à repetição na história de homens e mulheres, sendo que a compulsão à repetição tem um caráter pulsional - a pulsão é exatamente a força que sustenta a repetição. Lacan (1966b) articula essa repetição pela vertente do real e a articula como ponto ideal fora do traçado, que o mesmo nomeou de gozo. As atuações não ocorrem restritamente de forma casual, elas revelam que o sujeito não pode deixar de experimentar as mesmas coisas, mesmo que seja a partir do acidental ou do acaso. Frequentemente elas se apresentam sob forma de repetição, ou melhor, sob forma de seriação, já que há um núcleo inassimilável que persevera e que não pode ser (pre)visto. Trata-se, então, de considerar nas manifestações do ato uma certa impossibilidade de responder ao enigma pulsional.
Nas crises de bulimia, das quais testemunha Fabíola, estamos diante de um acting-out ou de uma passagem ao ato? Em Lacan (2005), o acting-out é algo que, na conduta do sujeito, essencialmente se mostra. A ênfase demonstrativa, a orientação em direção ao outro de todo acting-out, deve ser destacada. Podemos falar de acting-out quando há uma cena e esta cena é a da palavra, que se realiza sob o olhar do espectador, do Outro. Se pensamos na lembrança da infância na qual Fabíola cai da varanda e assim consegue chamar a atenção de todos, podemos supor que estamos diante de um acting-out. O acting-out é o aparecimento do objeto a sobre a cena, com seus efeitos de perturbação e de desordem. O sujeito traz esse objeto para a cena, enquanto na passagem ao ato o objeto encontra-se sob a barra, fora da cena.
A passagem ao ato não engana, é uma saída da cena que não deixa lugar para a interpretação, que não deixa lugar para o jogo significante. É por isso que podemos desarticular sua função da função do inconsciente. Há, na passagem ao ato, um não querer saber mais nada, nada querer saber (Lacan, 1986). Saímos do engano da cena para a certeza que encontramos em uma identificação em curto-circuito com o objeto a. Lacan (2005) fala em uma identificação absoluta com o objeto a (idem) como fora da cena. Lacan (2005) assinala que nós abandonamos os equívocos do pensamento, da palavra e da linguagem pelo ato. Nele o sujeito se subtrai aos equívocos da palavra e a toda dialética do reconhecimento. Ele é um não proferido ao Outro.
Na passagem ao ato, há a rejeição da cena e de toda demanda ao Outro, enquanto no acting-out, que é uma subida na cena, temos uma demanda ao Outro. O objeto a sobe à cena, e o sujeito o mostra. O a não sendo especularizável enquanto tal, o sujeito o mostra de lado, de viés. O sujeito é a necessidade de mentir; quando o objeto vem sobre a cena, no acting-out, é sempre uma falácia. Uma vez que ele sobe na cena, ele é pego no engano da mostração, nos engodos do significante e da verdade, e o real permanece alhures.
No testemunho de Fabíola, podemos pensar que encontramos estas duas dimensões do ato: o acting-out e a passagem ao ato. Há uma recusa da palavra que surge sob a forma de um ser um objeto, ou ainda, realizar-se em um objeto. Lacan (1986) articula a passagem ao ato a um sou e não penso. Nela há um rechaço do inconsciente. As crises parecem implicar um não penso, somente sou esta marca. Fabíola afirma: "Minha pele está amarelada e uma penugem loura e espessa me recobre o rosto e o resto do corpo. São esses os sinais da anorexia que conheço e que me confortam" (De Clercq, 2012, p. 56). Não haveria aqui uma identificação ao objeto? Voltaremos nesse ponto posteriormente.
"Estou convencida de que emagrecer é o único meio de manter longe a angústia" (De Clercq, 2012, p. 51). O sujeito sai da cena, cai fora dela, cedendo seu lugar ao organismo enquanto puro ser vivente de secreção. "Todos os dias, controlo automaticamente o meu corpo, várias vezes. Só quando sinto os ossos do meu esqueleto, como ontem, fico tranquila". (De Clercq, 2012, p. 56) Ou ainda: "Deito-me e, com a mão, faço uma ligeira pressão sobre a barriga, na altura do umbigo. Sinto os ossos da coluna vertebral. O meu esqueleto me conforta, contando que não se faça em pedaços!" (De Clercq, 2012, p. 87).
A estrutura da passagem ao ato pode ser evidenciada nas crises de bulimia. Diante do impossível de articular no nível significante, o sujeito se precipita identificado ao objeto; ele não está lá, e é a dimensão do fazer que impera. Fabíola não sabe dizer quais são as condições e o sentido das crises bulímicas. Elas são contínuas, intensas, obedecem a um impulso irrefreável e são habitadas por um vazio. "Hoje vomito o vazio, não como mais para preenchê-lo; quando vomito, tenho a sensação de vomitar uma placenta vazia" (De Clercq, 2012, p. 17).
A pulsão surge desenfreada, sem barreiras. O que está em jogo é a deriva pulsional. As crises não parecem estar articuladas a uma fantasia inconsciente e não respondem a nenhuma condição. São imperativos que remetem à força acéfala e demoníaca da pulsão de morte. O que surge é uma sensação subjetiva de vazio imenso. Nas crises de vômito, evidencia-se um circuito fechado da pulsão que suprime o encontro com o outro.
Ao mesmo tempo em que a repetição reiterada dos atos aponta para seu caráter pulsional, ela faz pensar também em uma outra dimensão. Lacan (1986) afirma que, quando alguém repete seus atos, desconfiamos que eles não são verdadeiros. A repetição torna-o semelhante ao sintoma: uma coisa é casar, outra é continuar casando-se. Ele perde seu valor inaugural quando se repete. Não à toa, Lacan (1986) escolhe a ação de César atravessar o Rubicão como exemplo do que é um ato: atravessa-se o Rubicão uma vez, o que marca um antes e um depois. Na repetição, seu caráter inédito desvanece. Fabíola marca esse momento em que o ato ultrapassa uma barreira, um limite, traçando um antes e um depois: "Vou ao banheiro e, pela primeira vez, provoco o vômito" (De Clercq, 2012, p. 37). Na medida em que o vômito se inscreve depois em uma série infinita de repetições sob a pressão de uma compulsão, seu caráter de acting-out evidencia-se.
Pode-se ler também a estrutura do acting-out quando Fabíola afirma:
É possível que eu tenha me transformado em um esqueleto de vinte e seis quilos para pôr à prova a minha mãe, para sensibilizar uma mulher para quem a prioridade sempre foi ela mesma e a sua vida, e que não vai se dispor jamais, entendo agora, a se colocar em questão (De Clercq, 2012, p. 113).
O caso único
Haveria, nessas manifestações, algo irredutível à lógica que preside a constituição neurótica do sintoma, tal como sugere Recalcati (2003) com a denominação novos sintomas. Os atos reiterados de Fabíola definem-se a partir de uma problemática que afeta sua constituição narcísica, indicando um defeito fundamental no narcisismo. Presa entre o olhar obsceno do abusador e dos homens e o não olhar da mãe, Fabíola dirá que não obteve "licença para viver" (De Clercq, 2012, p. 74). Essa falha na constituição afeta diretamente uma prática de gozo que parece excluir a existência do inconsciente. Esse gozo não se insere no intercâmbio com o outro; trata-se de um gozo assexuado, vinculado a uma prática pulsional determinada que exclui o Outro. Esse gozo não passa pela parceria sexual, eliminando o parceiro e revelando a desconexão entre o sujeito e o Outro. Nas crises de vômito, evidencia-se um circuito fechado da pulsão que suprime o encontro com o outro.
Segundo Recalcati (2003), a clínica do vazio aborda os modos de desconexão com o Outro e as diversas declinações que essa recusa do Outro assume. Haveria uma desarticulação do vínculo dialético entre vazio, falta e desejo. Desse modo, o vazio não aparece em relação ao Outro através do movimento de abertura do desejo como expressão da falta. A falta se solidifica e se apresenta dissociada do desejo e assim inominável.
Nessa clínica, a referência fundamental não é o sintoma como formação de compromisso (Freud, 1917/1989e), mas a angústia, como revela Fabíola. O cerne do que se revela não está na compreensão do sintoma enquanto satisfação (Freud, 1917/1989e), mas na experiência de um vazio que aparece dissociado da falta (Recalcati, 2003). Vemos, em Fabíola, uma dispersão do sujeito, uma inconsistência do mesmo, uma percepção constante de inexistência que suscita uma angústia sem nome.
Essa ruptura do sujeito com o Outro tem como efeito uma contenção do objeto, de modo narcísico, no corpo do sujeito. O objeto não se encontra perdido; ao contrário, ele é mantido ao alcance da boca.
Engulo tudo rapidamente, já não sinto mais os sabores, entrevejo com dificuldade o que, furtivamente, estou engolindo. Com uma das mãos levo comida à boca, com a outra, busco ainda mais, assim às cegas. E cozinho também, mas o que conta agora é a quantidade, devo armazenar quanta comida meu estômago dê conta de conter (De Clercq, 2012, p 59).
Na psicose, o objeto a não está no campo do Outro, mas permanece preso ao sujeito a tal ponto que o sujeito coincide com o objeto. Em Fabíola, essa identificação do sujeito com o objeto ganha a forma de um fechamento, de uma desvitalização, de um empobrecimento da palavra, de uma obsessão pela comida e pelo próprio peso, da ausência de uma subjetivação do sentido. "Sou um recipiente provisório" (De Clercq, 2012, p. 60) ou "[...] sou agora um esqueleto" (De Clercq, 2012, p. 65), escreve ela, situando-se em uma posição de objeto.
Somos, em um primeiro momento, remetidos à referência da psicose, entretanto não podemos afirmar que se trate disto. Esses traços nos fazem pensar em uma clínica do "não-todo" (Lacan, 1975), na qual o sujeito se apresenta com aquilo que ele tem de mais singular, seu modo de gozo, o objeto a. Desse modo, encontramos o real e sua singularidade denunciando a variedade dos casos. Quando o sujeito se apresenta com o objeto a, com seu gozo, é a dimensão do real que surge, impedindo a classificação.
Anteriormente, a clínica clássica tinha como reposta uma estrutura do "todo", a estrutura da sexuação masculina, na qual o universal se manifestava. No entanto, hoje, o sujeito não se encontra mais ligado aos significantes do Outro. Os sintomas encontram-se a serviço do gozo, denunciando a ruptura dos laços com o Outro (Derzi, 2011, p. 107).
Essa clínica, na qual se situa o caso Fabíola, nos remete à pluralização dos Nomes-do-Pai relativa à função da metáfora paterna (Tendlarz, 2007). Na primeira clínica de Lacan (Tendlarz, 2007), temos como norte a presença ou a ausência do Nome-do-Pai. Na segunda clínica, borromeana, a diversidade de soluções inventadas pelo sujeito já não corresponde ao regime do Nome-do-Pai, mas ao regime do não-todo contemporâneo (Tendlarz, 2007). Podemos pensar que a clínica clássica, que corresponde à estrutura do todo e das classes, ou seja, da sexuação masculina, tornou-se uma clínica do não-todo. Revela-se que não há um todo universal, o que Lacan nomeou como não-todo.
Tomar o caso como único é extrair o que lhe é próprio e destacar a solução única que retira o sujeito das classificações (Miller, 2003). Se, por um lado, podemos pensar a anorexia e a bulimia como tipos clínicos em nossa contemporaneidade (Alvarenga, Favret, & Cárdenas, 2007), por outro, devemos nos perguntar sobre a particularidade das soluções encontradas pelos sujeitos, um a um, diante das dificuldades que experimentam na construção da relação com o Outro. Descrevemos como o caso se apresenta, a forma de gozo que ali se configura, entretanto o real em jogo não nos permite situar a estrutura. Qual a solução inventada por Fabíola? Se tomamos como eixo o declínio do Nome-do-Pai na cultura, podemos interrogar seus efeitos na clínica e nos sintomas contemporâneos. A pluralização dos Nomes-do-Pai (Tendlarz, 2007) aponta para a passagem de um elemento organizador ao múltiplo. Há que se ressaltar a importância do diagnóstico para a clínica psicanalítica e, ao mesmo tempo, levar em consideração o que há de único em cada sujeito. Miller (2003) recorda-se do neologismo lacaniano varité, uma condensação entre a verdade e a variedade, para afirmar o caráter relativo das classificações diagnósticas. O sujeito é sempre um deslocamento em relação à classe.
Miller (2003) se pergunta qual é a regra universal da espécie dos sujeitos sob a qual cada analisante subsume seu caso. A resposta é um universal muito particular: a ausência de regras. É o único universal que vale para um sujeito, porém é um universal negativo que significa a ausência de uma regra e que, portanto, revela que a relação do sujeito com o outro é aberta a contingências, às variações, à invenção. O que quer dizer que o ser falante não pode subsumir-se a si mesmo como um caso da regra da espécie humana. O sujeito é sempre exceção à regra, e seu sintoma é sua invenção (Miller, 2003) ou reinvenção da regra que lhe falta. Certamente temos sintomas típicos, mas eles são particulares a cada sujeito, únicos.
Todo diagnóstico se refere à classe, e sabemos que nossas classes diagnósticas não têm um fundamento nem na natureza nem na observação, são antes artifícios que se fundam na prática linguística dos praticantes. O universal da classe nunca está completamente presente em um indivíduo. Há sujeito toda vez que o indivíduo se distancia do universal. Passamos assim do universal da classificação ao singular de cada caso, da estrutura aos modos de gozo.
O universal da classe, seja ela qual for, nunca está completamente presente num indivíduo. Como indivíduo real, pode ser exemplar de uma classe, mas é sempre um exemplar com uma lacuna. Há um déficit da instância da classe num indivíduo, e é justamente por causa desse traço que o indivíduo pode ser sujeito, por nunca poder ser exemplar perfeito (Miller, 2003, p. 30).
É isso que faz Miller (2005) referir-se à navalha de Ockam, tese segundo a qual as classificações são semblantes; o que existe são os indivíduos. O ponto de vista nominalista nos liberta do peso das classificações e faz surgir a singularidade. No entanto, há espécies objetivas, a estrutura existe, e por isto Lacan pôde dizer que era realista, e não nominalista (Miller, 2005). Na clínica há um momento nominalista, é esse no qual recebemos o paciente em sua singularidade, sem compará-lo com nada, como o inclassificável por excelência. Mas há um segundo momento, o momento estruturalista, no qual nos referimos a tipos de sintoma e à existência da estrutura. Miller (2005) afirma que Lacan parte do nominalismo: o ciframento do gozo é singular. Depois, ele passa ao realismo das estruturas e denuncia aí uma ilusão; as classes são semblantes.
O que se apresenta em cada caso como não remetendo à identificação no campo do Outro revela o real em jogo na prática clínica. Trata-se de se orientar e tomar o caso a partir do real em jogo. Lacan afirma, na introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, que:
[...] o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura, sobretudo não quando ela atinge o discurso. [...] Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do mesmo tipo (Lacan, 2003, p. 554).
Fabíola nos coloca diante de manifestações que parecem decorrer das novas coordenadas que regem a época atual. Sua parceria com a anorexia e a bulimia garante a inexistência da alteridade através da entrega a um gozo mortífero, a uma deriva pulsional que vai ao limite da autodestruição. Nessa estratégia, a tentativa de afirmar uma autonomia em relação ao outro se faz sentir. No entanto, ela se produz quando os laços com o Outro já não existem. Estamos diante de uma fixação de gozo, que não passa pelo Outro sexo, e que parece opaco ao sentido e ao discurso.
Dafunchio (2006) afirma que a "presença real do alimento nas anorexias é um indicador de que o pai não foi totalmente significantizado; certa dimensão de cadáver permanece, deixando o sujeito, por assim dizer, engasgado" (p. 16). A autora observa que na clínica da melancolia, na qual a rejeição do alimento é frequente, revela-se uma impossibilidade de perder o pai como corpo, para incorporá-lo como significante. Sendo assim, o momento posterior à incorporação, no qual o simbólico aspira ao corpo negativizando a carne, não se realiza. Essa função do simbólico, tornada possível pelo ao-menos-um da função paterna da exceção, não se efetua. Dafunchio (2006) fala de uma "eternização do luto pelo pai" (p. 16).
Não se afirma com isso um diagnóstico de melancolia. As anorexias se inscrevem também em outras estruturas. Podemos pensar com Dafunchio (2006) que encontramos nas anorexias diferentes modos de tratar o gozo que não se conseguiu extrair completamente do corpo, independentemente da estrutura. Quando algo da função do pai vacila, é a constituição mesma do gozo, sob a forma do mais-de-gozar, que está em questão. Fabíola se defende constantemente de um gozo que a invade corporalmente.
Anorexia e feminino
Dafunchio (2006) faz uma importante indicação acerca da afinidade entre a anorexia e o feminino. Por um lado, essa clínica coloca em discussão a dificuldade de fetichização do próprio corpo. Como vemos em Fabíola, o corpo não se constitui enquanto falo. Por outro lado, evidencia o declínio, próprio da nossa época, do Nome-do-Pai.
Não podemos deixar de mencionar que as dificuldades alimentares surgem, em Fabíola, como para outras jovens anoréxicas, na puberdade. Segundo Freud (1905/1989a), na adolescência, o sujeito se vê confrontado a transformações corporais e a uma reestruturação pulsional exigidas pelas modificações biológicas características da puberdade. Stevens (2004) fornece uma preciosa definição da adolescência, como uma sintomatização da puberdade. Nesse sentido, a função da adolescência seria a sintomatização do excesso pulsional ao qual o adolescente se vê confrontado. Dito de outro modo, a adolescência seria uma construção de um modo singular de fazer frente a essa força pulsional que atinge os sujeitos na adolescência.
Consenza (2011) apresenta a hipótese de que o adolescente encontra-se diante de duas direções possíveis: a via do sintoma e a via de seu fracasso, naquilo que seria a recusa radical. A via do sintoma é a via neurótica clássica que encaminha o sujeito à vida sexual. É a aceitação de seu engajamento na vida amorosa e da inscrição da pulsão no campo do Outro pela mediação do parceiro. A via do fracasso do sintoma, ao contrário, revela-se como uma recusa da relação do sujeito com o sexo. Essa via não passa pela entrada na sexuação. Sendo assim, não conduz o sujeito à parceria amorosa e à assunção do próprio sexo, tomando a forma de uma recusa da castração simbólica e de um não acesso ao gozo fálico. Isso nos conduz a pensar em uma forclusão ou na ruptura do casamento com o falo, fórmula encontrada por Lacan para descrever a posição do toxicômano em relação ao gozo. A tese de Consenza é a de que a anorexia na adolescência se configura, à exceção da anorexia histérica, como um fracasso do processo de sintomatização da puberdade. A anorexia é assim concebida como o resultado do fracasso da função mesma da adolescência, que seria essa passagem na qual o sujeito faz do seu encontro com a pulsão na puberdade uma construção singular, um sintoma.
A anorexia em Fabíola pode ser tomada como uma resposta ao impasse encontrado no processo de sintomatização da puberdade. O caminho que Fabíola toma com sua dificuldade alimentar aos treze anos é o do fracasso da sintomatização. Ora, o que faz barreira à angústia é o sintoma. Quando o sintoma falha, é o Real que surge, e temos a passagem ao ato e o acting-out. Em Fabíola, o fracasso do caminho da sintomatização na puberdade nos esclarece a relação particular entre a pulsionalização do corpo feminino e a reposta anoréxica.
Emagrecendo, Fabíola profere um não ao tornar-se mulher através da recusa do alimento. Em vários momentos de seu relato, ela testemunha isso: "Destruí a linda menina saudável que minha mãe exibia" (De Clercq, 2012, p. 65). Há, em Fabíola, uma não aceitação do seu próprio corpo como corpo pulsional feminino. Essa recusa do corpo pulsional é uma recusa em possuir um corpo feminino, um corpo de mulher. Se na anorexia histérica estamos diante de uma falicização do corpo magro, não podemos reconduzir todas as formas de anorexia a esse quadro. Fabíola revela um outro funcionamento. Nela há um fracasso da entrada na adolescência. O impasse no qual ela se encontra na adolescência não permite uma inscrição subjetiva na lógica fálica. A equação simbólica corpo = falo não se realiza, e a entrada na dialética da vida amorosa se vê comprometida. Isso não significa que ela não possa ter uma vida sexual ou de casal. Ela relata diversos encontros amorosos. Entretanto, mesmo preservando um espaço para a vida sexual e amorosa, temos a impressão de que se trata de algo desprovido de valor fálico. O amor parece, nesse caso, não ultrapassar sua dimensão imaginária.
Dafunchio (2006) fala de um fracasso da incorporação do pai enquanto significante na anorexia e na bulimia, como dissemos anteriormente. O fracasso total da incorporação do pai na clínica da anorexia-bulimia nos leva a pensar na psicose, na qual a forclusão do Nome-do-Pai é estrutural. Consenza sugere que possamos falar não de uma "forclusão estrutural, mas antes de uma forclusão localizada ou parcial de uma posição do sujeito [...]" (Consenza, 2011, p. 363).
A ruptura com o gozo fálico conduz Fabíola a um gozo desmedido, sem limite, que devasta o corpo. Será que temos, nesse gozo sem limite, uma versão do não-todo fálico do gozo feminino? Consenza fala de outra versão do não-todo no sem limite anoréxico. Seu próprio corpo é o palco da devastação.
Se temos uma afinidade com o feminino na clínica da anorexia-bulimia, ela está menos em relação ao gozo feminino do que ao amor. Segundo Recalcati (2007), haveria uma afinidade estrutural entre o feminino e a anorexia, tomada não do ponto de vista de um discurso social, mas como posição subjetiva. Entretanto, tal afinidade não se encontra na expressão de um gozo feminino. Na anorexia não teríamos a expressão de um gozo mais além do falo, mas antes a negação do falo e do seu princípio, a castração, presente na anulação do corpo sexuado e da diferença sexual. A anorexia-bulimia é uma prática do gozo, uma desconexão entre o sujeito e o Outro. Entretanto, não se pode nomeá-lo como outro gozo. O outro gozo passa pelo falo, e na anorexia haveria uma recusa do falo. Há, contudo, o desejo de ser a única, como Fabíola afirma:
Eu era muito sedutora em relação a ele. Cada coisa que fazia era para buscar sua atenção, com a clara intenção de ser a menina irrepreensível e perfeita que ele queria. Os seus cuidados eram o principal objetivo de cada ação minha, a sua ternura fazia com que eu me sentisse única, e estava certa de ser a coisa mais importante da sua vida (De Clercq, 2012, p. 23).
Fabíola ensina que cada anorexia manifesta sua singularidade e que o real em jogo descompleta a classificação das estruturas. Sendo assim, permanece a pergunta sobre qual função ocupam suas dificuldades com o alimento a partir do enodamento dos três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Temos um modo de gozo dificilmente conectável com o inconsciente que sugere um desenlace do simbólico cuja consequência é a irrupção do real no imaginário. Presa entre a ausência do olhar materno e o olhar obsceno dos homens, Fabíola parece ter encontrado, na anorexia, sua solução diante do olhar que a invade quando começa a se tornar mulher.
Referências
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Endereço para correspondência:
Cristina Moreira Marcos
cristinammarcos@gmail.com
Submetido em: 19/06/2014
Revisto em: 30/12/2014
Aceito em: 03/02/2015
* Artigo referido às pesquisas "As manifestações do ato e sua singularidade em suas relações com o feminino", "Anorexia e Sexuação Feminina" realizadas com o apoio da Fundação de Ampa ro à Pesquisa/FAPEMIG e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUC-Minas (Programa de Incentivo à pesquisa).