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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2018

 

ARTIGOS

 

Efeito do álcool na ilusão da máscara côncava: uma revisão

 

Effect of alcohol on the hollow-face illusion: a review

 

Efecto del alcohol en la ilusión de la máscara cóncava: una revisión

 

 

Lívia da Silva BachettiI; Sérgio Sheiji FukusimaII; Maria Amélia Cesari QuagliaIII

IDoutora em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
IIIDocente da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A ilusão da máscara côncava ocorre quando o observador a determinada distância percebe uma máscara facial côncava como convexa. Isso pode ser explicado pela sobreposição dos processos de alta ordem da percepção visual sobre os de baixa ordem. Pesquisas com indivíduos intoxicados e em Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA) revelaram um prejuízo em perceber essa ilusão. O objetivo foi realizar uma revisão da literatura sobre o tema. Após buscas em bases indexadas, cinco pesquisas foram encontradas. Os resultados para os alcoolistas em SAA moderada revelaram uma menor frequência nas respostas de percepção da ilusão. Os resultados foram contraditórios quanto ao grupo de alcoolistas com SSA leve. Pesquisas futuras com metodologias diferentes são necessárias para testar as hipóteses explicativas da ilusão da máscara côncava em alcoolistas. É importante considerar os processos de tomada de decisão do observador diante da observação dos objetos como base a Teoria de Detecção de Sinal (TDS).

Palavras-chave: Síndrome de abstinência do álcool; Ilusão da máscara côncava; Teoria de detecção de sinal; Percepção visual.


ABSTRACT

The hollow-face illusion happens when the observer perceives a concave facial mask as convex, at a given distance. This can be explained by the overlap of top-down on bottom-up visual processes. Researches demonstrated that intoxicated and Alcohol Withdrawal Syndrome (AWS) individuals had deficit in perceiving this illusion. This study aimed to review the literature on this topic. A survey of indexed databases found five studies. The results for alcoholics with moderate AWS were similar and showed a lower frequency in the answers of illusion perception. However, results were contradictory to the alcoholic group with mild AWS. Future researches with different methodologies are necessary to test the hollow-face illusion hypotheses in alcoholics. Therefore, it is also important to consider the observer's decision-making processes in the objects observation based on the Signal Detection Theory (SDT).

Keywords: Alcohol withdrawal syndrome; Hollow-face illusion; Signal detection theory; Visual perception.


RESUMEN

La ilusión de la máscara cóncava ocurre cuando el observador a cierta distancia percibe una máscara facial cóncava como convexa. Esto puede ser explicado por la superposición de los procesos de alto orden de la percepción visual sobre los de bajo orden. Las investigaciones con individuos intoxicados y en el Síndrome de Abstinencia del Alcohol (SAA) revelaron un perjuicio en percibir esa ilusión. El objetivo fue realizar una revisión de la literatura sobre el tema. Después de buscar en bases indexadas, se encontraron cinco encuestas. Los resultados para los alcohólicos en SAA moderada revelaron una menor frecuencia en las respuestas de percepción de la ilusión. Los resultados fueron contradictorios en cuanto al grupo de alcohólicos con SSA leve. Las investigaciones futuras con metodologías diferentes son necesarias para probar las hipótesis explicativas de la ilusión de la máscara cóncava en alcohólicos. Es importante considerar los procesos de toma de decisión del observador ante la observación de los objetos como base la Teoría de Detección de Señal (TDS).

Palabras clave:Síndrome de abstinencia del alcohol; Ilusión de la máscara cóncava; Teoría de detección de señal; Percepción visual.


 

 

Introdução

Na percepção visual, as informações captadas pelos olhos são integradas aos conhecimentos adquiridos no decorrer da vida do indivíduo e às hipóteses perceptuais que ele possui e utiliza para significar suas experiências. O processamento visual ocorre em função das informações sensoriais provenientes dos objetos, assim como do conhecimento prévio e das expectativas do indivíduo. Ao primeiro, damos o nome de processamento de baixo para cima, ou bottom-up, que é determinado pela entrada dos estímulos sensoriais. A ênfase está no estímulo capturado pela retina. Ao segundo, de processamento de cima para baixo, ou top-down, em que são requeridas funções cognitivas mais complexas e envolvem a formação de conceitos, expectativas e memória. Assim, os conhecimentos sobre um determinado objeto são tão importantes na percepção visual quanto os impulsos sensoriais provocados por ele em nossos olhos (Baldo, & Haddad, 2003; Gregory, 1997; Lent, 2001). No entanto, a identificação de um estímulo também pode ser influenciada por suas consequências e por expectativas criadas pelo observador. Um modelo explicativo para esse comportamento é oferecido pela Teoria de Detecção de Sinal (TDS). Segundo esta abordagem, aquele que observa não recebe passivamente as estimulações ambientais, mas sim participa ativamente do processo decisório de identificação do estímulo. Tão importante quanto a informação sensorial é o comportamento de tomada de decisão, o ponto de corte ou o critério que o indivíduo utiliza para responder de forma positiva ou negativa durante a observação de um objeto. Desta forma, alguns fatores que não são de natureza sensorial também influenciam na tomada de decisão do observador (Feitosa, 2010; Green, & Swets, 1966/1988; Lawless, 2013).

Desta forma, nem sempre percebemos visualmente um estímulo da maneira como ele realmente se apresenta na natureza. Isso porque podem ocorrer algumas ambiguidades durante a formação de um percepto visual e aquilo que se espera ver não corresponde ao que de fato é captado pelos olhos (Baldo, & Haddad, 2003; Gregory, 1997). Assim como na percepção habitual, a interpretação destes estímulos imprecisos ou ruidosos dependerá também de nossas aprendizagens, do aparato cognitivo que possuímos enquanto indivíduos e enquanto espécie, e de fatores motivacionais presentes durante a identificação dos mesmos (Scocchia, Valsecchi, & Triesch, 2014) e dos critérios de decisão admitidos pelo observador (Fukusima, & Landeira-Fernandez, 2012; Lawless, 2013). Para lidar com esses estímulos que admitem interpretações diferentes, o cérebro tenta ajustar os perceptos gerando novas inferências. Isto é uma possível origem de algumas ilusões visuais, que são soluções criadas para resolver tais incoerências (Baldo, & Haddad, 2003; Gregory, 1997). Para Gregory (1997), elas podem ser classificadas como resultantes de uma causa física ou de uma causa cognitiva.

Um exemplo de ilusão de origem cognitiva é a da máscara côncava ou hollow-face illusion. Ela é ocasionada por uma tentativa do cérebro de interpretar, mesmo que de forma imprecisa, um estímulo físico improvável, uma face côncava, para torná-lo plausível, uma face convexa (Scocchia, Valsecchi, & Triesch, 2014). Nessa ilusão, ocorre uma inversão da percepção visual da profundidade de uma máscara côncava, que passa a ser percebida como convexa. Diante da inexistência de faces côncavas na natureza, nosso sistema visual entende ver esta como uma face convexa. Apesar dos processos cognitivos atuarem simultaneamente aos sensoriais durante a percepção visual, tal julgamento da máscara baseia-se em especial nos conhecimentos prévios sobre esse objeto. Os aspectos cognitivos de alta ordem, top-down, seriam assim predominantes sobre as informações sensoriais de concavidade do objeto, advindas dos processos de baixa ordem ou bottom-up (Gregory, 1997; Scocchia, Valsecchi, & Triesch, 2014). Os seres humanos possuem uma sofisticada habilidade para perceberem faces e esta é uma das suas funções cerebrais mais complexas e desenvolvidas (Haxby, Hoffman, & Gobbbini, 2002). Desta maneira, a grande familiaridade com os rostos auxilia a percepção ilusória e, mesmo sabendo se tratar de uma ilusão, a máscara côncava é percebida como convexa (Gregory, 1997; Hill, & Bruce, 1993; Hill, & Johnston, 2007; Quaglia, & Fukusima, 2009).

A ilusão da máscara côncava vem sendo estudada sob uma diversidade de variações do estímulo máscara e das condições de sua observação para testar sua força e os possíveis fatores interferentes. Algumas das primeiras variações experimentais foram realizadas por Hill e Bruce (1993). Eles encontraram que a observação da máscara côncava com apenas um dos olhos facilitou a percepção ilusória, assim como o seu posicionamento vertical, de cabeça para cima, e a direção da fonte de iluminação percebida como vinda de cima da cabeça da máscara. Desde então, vários autores vêm ampliando as pesquisas sobre essa ilusão. Hill e Johnston (2007) encontraram resultados semelhantes e afirmaram que a ilusão se tornou mais forte para a máscara observada de cabeça para cima, pintada na tonalidade bege e percebida como iluminada por cima. Estes resultados vão de encontro aos de Papathomas e Bono (2004), no que se referem ao posicionamento e direção da fonte de luz, e aos de Yoshida (2006), quanto ao posicionamento e coloração da máscara côncava. Pesquisas mais recentes também corroboraram os resultados encontrados por Hill e Bruce (1993), Hill e Johnston (2007), Papathomas e Bono (2004) e Yoshida (2006), descritos anteriormente. A ilusão foi mais predominante para as máscaras na posição vertical (Vlajnic, Papathormas, Keane, Zalokostas, & Silverstein, 2014; Quaglia & Fukusima, 2015) e percebidas como iluminadas por cima da cabeça (Quaglia & Fukusima, 2015). O fator familiaridade com o objeto face parece também ter exercido um papel importante na percepção ilusória (Hill & Johnston, 2007; Keane, Silvesrtein, Wang, & Papathomas, 2013; Vlajnic et al., 2014) assim como a tendência do nosso aparato perceptivo para interpretar como convexas as superfícies tridimensionais ambíguas (Keane et al., 2013; Kleffner, & Ramachandran, 1992). Importante ressaltar que, com exceção de Hill e Bruce (1993), e a despeito das diferenças metodológicas entre si, todas as pesquisas foram realizadas na condição binocular de observação. Pesquisas na condição monocular não têm encontrado a mesma interferência de fatores externos na percepção ilusória, demonstrando a prevalência da inversão monocular da profundidade sob as alterações de cor, iluminação e posicionamento da máscara côncava (Quaglia, Bachetti & Alves, 2014a; Quaglia, & Fukusima, 2009).

Apesar da existência de fatores externos capazes de fortalecer a ilusão binocular da máscara côncava, algumas condições psicopatológicas e comportamentais parecem, por outro lado, dificultar a percepção. Dentre elas estão o a intoxicação alcoólica e a Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA), sendo esta última um dos indicadores mais importantes da Síndrome de Dependência do Álcool (SDA) (Cordeiro, Figlie, & Laranjeira, 2007; Nicastre, & Laranjeira, 1996;). Sabe-se que o uso prejudicial das bebidas alcoólicas se mostrou o terceiro maior fator de risco de doenças e incapacitação no âmbito mundial em 2012 (World Health Organization, 2014), com um custo anual de até US$665 milhões (Andrade, Anthony & Silveira, 2009). Cinquenta e dois por cento da população brasileira pode ser classificada como bebedora regular de álcool, sendo este responsável por 8% a 14,9% do total de problemas de saúde da população (Laranjeira, Pinsky, Zaleski, & Caetano, 2007). O Ministério da Saúde (2009) apontou o aumento crescente do consumo abusivo, atingindo 19% da população brasileira naquele ano. Além disso, 12% na população brasileira possuíam o diagnóstico médico de uso nocivo ou de dependência de álcool (Laranjeira et al., 2007). Os efeitos nocivos do álcool ao organismo são diversos e vão do âmbito físico ao psicológico e social, podendo chegar à dependência à substância (Sakellari, Psychogiou, & Sapountzi-Krepia, 2003). O álcool é capaz de causar uma redução da atividade do Sistema Nervoso Central (SNC) e consequente desorganização da atividade neural (Carlini, Napo, Galduróz, & Noto, 2001; Galdino, Silva, Santos, & Simas, 2010).

O efeito neurotóxico do etanol pode ter consequências danosas na cognição e percepção dos indivíduos. Ele prejudica significativamente o processamento das informações visuais pelo cérebro (MacArthur, & Sekuler, 1982) e as modificações cognitivas e perceptuais decorrentes disto vão desde prejuízos nas funções visuoespaciais e executivas, na psicomotricidade e na memória. (Andrade, Anthony, & Silveira, 2009; Cunha, & Novaes, 2004; Sullivan, Rosenbloom, & Pfefferbaum, 2000). O álcool também provoca alterações na cognição espacial e na capacidade do indivíduo de navegar no espaço (Matthews, Simons, & Best, 1996; Silvers, Tokunaga, Berry, White, & Matthews, 2003), persistentes até mesmo por dias após a desintoxicação (Beatty, Hames, Blanco, Nixon, & Tivis, 1996; Beatty, Blanco, Harnes, & Nixon, 1997). Outros danos à percepção visual provocados pelo consumo de álcool relatados na literatura ocorrem: no processamento neural das informações visuais (Khan, & Timney, 2007), na estereoacuidade (Watten, & Lie, 1996), na percepção profundidade (Wegner, & Fahle, 1999), na paralaxe de movimento (Nawrot, 2001; Nawrot, Nordenstrom & Olson, 2004; Joyce e Nawrot, 2007), no movimento sacádico dos olhos (Joyce, & Nawrot, 2007; Vorstius, Radach, Lang, & Riccardi, 2008), na percepção de contraste (Cruz, 2010; Galdino, Mendes, Vieira, Simas, & dos Santos 2011; Watten, & Lie, 1996) e na integração de informações visuomotoras (Luchtmann et al., 2013).

Pesquisas que investigaram a inversão binocular da profundidade de objetos côncavos com alcoolistas na SAA e durante a intoxicação alcoólica encontraram um prejuízo significativo na capacidade dos mesmos de realizar a inversão da profundidade de uma máscara côncava. A principal explicação para esta ocorrência é a de que tal substância provocaria um desequilíbrio nos componentes bottom-up e top-down da percepção visual, prejudicando o sistema nervoso central na correção de hipóteses perceptuais implausíveis. Assim, o indivíduo não seria capaz de realizar a inversão da profundidade da máscara côncava. Estudar a percepção visual é, portanto, uma ferramenta importante nas investigações sobre as consequências prejudiciais do álcool na consciência (Schneider et al., 1996a; Schneider, Leweke, Sternemann, Emrich, & Weber, 1996b).

Desta forma, visando caracterizar mais um dos prejuízos causados pelo álcool à percepção humana, o objetivo do presente artigo é apresentar uma revisão da literatura sobre a percepção da ilusão da máscara côncava em indivíduos alcoolistas para elencar e discutir: (a) os possíveis prejuízos causados pelo uso do álcool na capacidade de perceber essa ilusão; e (b) as hipóteses explicativas apresentadas para o fenômeno.

 

Método

Inicialmente, foi realizada uma busca bibliográfica de artigos científicos, disponibilizados na internet, que relacionassem o uso de álcool e a inversão visual da profundidade. Os indexadores pesquisados foram SciELO, Bireme, Science Direct, Isi Web, Lilacs e Medline. As palavras-chave procuradas em português foram: percepção visual, ilusão visual, álcool, alcoolismo, ilusão da máscara côncava, inversão da profundidade, uso do álcool; e em inglês: hollow-face illusion, visual illusion, depth perception, visual perception, depth inversion, alcohol e alcoholism.

Os critérios de inclusão considerados para a seleção dos artigos foram: (a) estudos empíricos de comparação entre dois ou mais grupos; (b) uso de instrumentos de avaliação da SAA e SDA baseados no DSM-IV ou na CID-10; e (c) uso de testes estatísticos para a análise dos dados. Os critérios de exclusão considerados foram: (a) artigos de revisão; (b) artigos de validação de instrumentos; (c) não especificar o tamanho da amostra; e (d) pesquisas qualitativas.

 

Resultados

As buscas retornaram um total de cinco pesquisas que investigaram a ilusão da máscara côncava com alcoolistas, todas elas obedeceram aos critérios de inclusão e exclusão. Dessas cinco, três investigaram a inversão binocular da profundidade da máscara côncava em pacientes alcoolistas durante a SAA (Schneider et al., 1996a; b; 1998) e a intoxicação por álcool (Schneider et al., 1998), e duas a inversão monocular da profundidade durante a SAA (Bachetti, Quaglia, Alves, & Oliveira, 2013; Quaglia et al., 2014b). A Tabela compila esses estudos, seus autores, suas hipóteses, o método utilizado e os resultados alcançados.

As duas primeiras pesquisas feitas na área foram direcionadas a pacientes alcoolistas com a SAA (Schneider et al., 1996a; b) e obtiveram resultados semelhantes. Schneider et al. (1996a) investigaram a inversão binocular da profundidade da máscara côncava em dez pacientes durante a síndrome de abstinência alcoólica leve, comparativamente a 11 indivíduos saudáveis. Para avaliar a gravidade da síndrome de abstinência foi utilizada a escala CIWA-Ar. Esta escala avalia e classifica a gravidade da SAA em três intensidades: leve para escores abaixo de 10 pontos; moderada para escores até 18 pontos; e severa para escores até 67 pontos. Nessa pesquisa, os pacientes possuíam entre 31 e 48 anos de idade, não possuíam histórico de transtornos mentais e não estavam sob uso de medicação psicotrópica. Os autores objetivaram testar a hipótese proposta por Emrich (1989) de que a síndrome de abstinência do álcool seria capaz de prejudicar o equilíbrio entre os componentes cognitivos e sensoriais da percepção visual, resultando em uma capacidade reduzida dos pacientes em realizar a inversão da binocular da profundidade de objetos côncavos. Todos os participantes observaram com os dois olhos um total de cinco slides estereoscópicos de figuras côncavas projetadas aleatoriamente. São elas: máscara da face humana, flores, casa de cabeça para baixo, máscara de ursinho e máscara da face humana de cabeça para baixo. Os slides eram apresentados por 30 segundos por dois dispositivos com luz polarizada orientada através de óculos com filtros. Os participantes descreveram os objetos projetados por meio de quatro critérios pré-determinados, podendo chegar a uma pontuação máxima de oito pontos em cada slide. Quanto maior a pontuação alcançada, maior o prejuízo na realização da inversão binocular da profundidade. A análise dos dados foi realizada por meio do teste estatístico de Mann-Whitney U. Encontrou-se uma diferença significativa entre os dois grupos estudados. Os pontos obtidos pelos pacientes foram significativamente maiores do que os obtidos pelos indivíduos saudáveis. As análises revelaram que durante a síndrome de abstinência alcoólica leve os pacientes apresentaram um déficit em sua capacidade de realizar a inversão binocular da profundidade. Este achado sustenta a proposição de que a desorganização entre a geração de hipóteses perceptuais e os dados sensoriais poderia explicar alguns dos fenômenos perceptivos durante a SAA

A mesma tendência foi observada por Schneider et al. (1996b), ao avaliarem 10 pacientes com SAA leve comparativamente a 41 indivíduos saudáveis. Concomitantemente, os autores avaliaram a capacidade perceptual de pacientes esquizofrênicos e pessoas em privação de sono. O grupo experimental foi composto por alcoolistas durante a SAA leve, que obtiveram escores abaixo de dez pontos na escala CIWA-Ar. Os autores utilizaram a mesma metodologia do estudo descrito anteriormente, com projeção de slides estereoscópicos de objetos côncavos, dentre eles o da face humana, observados binocularmente. Adicionalmente, os autores dividiram os objetos em dois grupos para compor os escores do teste. O escore número um foi composto a partir dos dados provenientes de objetos com alto grau de familiaridade para os observadores, como uma casa e uma face humana, enquanto que o escore 2 foi composto pelos escores dos objetos com baixo grau de familiaridade, como flores. Análises estatísticas por meio do teste Mann-Whitney U revelaram resultados semelhantes aos da pesquisa anterior e os que pacientes com SAA leve apresentaram um déficit na capacidade de realizar a inversão binocular da profundidade de objetos côncavos, percebendo menos vezes a máscara côncava como convexa, comparativamente ao grupo controle. Os pacientes com SAA leve tiveram a inversão binocular da profundidade prejudicada em comparação com indivíduos saudáveis, reforçando a possibilidade de um desequilíbrio na geração de conceitos durante a abstinência alcoólica.

Por outro lado, em sua última publicação sobre o tema, Schneider et al. (1998) não obtiveram os mesmos resultados com relação ao grupo de alcoolistas com SAA leve. Foram avaliados 50 dependentes de álcool, sendo 10 indivíduos com SAA leve, 10 com SAA moderada, nove com SAA moderada em uso de carbamazepina, 10 com intoxicação alcoólica leve, 10 com intoxicação alcoólica grave e 41 pessoas saudáveis. Mais uma vez, a SAA foi avaliada por meio da escala CIWA-Ar. Os níveis de intoxicação alcoólica foram avaliados pela concentração da substância no sangue, alcoolemia. Foi utilizada a mesma metodologia e a mesma forma de analisar os dados dos experimentos anteriores para avaliar a capacidade de perceber a ilusão de inversão binocular da profundidade. Os slides projetados foram das seguintes figuras côncavas: flores, casa de cabeça para baixo, máscara de urso, cadeira de jardim de cabeça para baixo, face humana e face humana de cabeça para baixo. Os escores dos pacientes com intoxicação severa e SAA moderada sem uso de medicação foram significativamente maiores do que os dos participantes saudáveis, indicando uma capacidade reduzida de perceber objetos côncavos como convexos. Em contrapartida, alcoolistas com SAA leve, SAA moderada usando carbamazepina e intoxicação alcoólica leve obtiveram escores semelhantes aos do grupo de saudáveis, e realizaram a inversão binocular da profundidade.

Estes resultados são contrastantes aos encontrados por Schneider et al. (1996a;b) com relação aos alcoolistas na SAA leve. Os próprios autores questionaram a existência de um prejuízo na inversão binocular da profundidade durante a SAA leve. Apesar da contradição dos resultados, todos os estudos descritos até então utilizaram os mesmos métodos e testes estatísticos em seus estudos: o instrumento de medida foi a CIWA-Ar, os slides de objetos côncavos do mesmo tipo foram projetados estereoscopicamente da mesma maneira e o teste estatístico utilizado foi o Mann-Whithey U.

Até o momento, pode-se observar uma carência de informações sobre o fenômeno em indivíduos com SAA moderada e intoxicação alcoólica. Além disso, todas as três pesquisas avaliaram a inversão binocular da profundidade de objetos côncavos, caracterizando uma carência na literatura científica a respeito da capacidade dos alcoolistas de realizarem a inversão profundidade na condição monocular de observação do objeto.

No intuito de ampliar as investigações sobre o tema, Bachetti et al. (2013) e Quaglia et al. (2014b) investigaram os alcoolistas na condição monocular de observação. Bachetti et al. (2013) compararam 15 alcoolistas com SAA leve, 16 com SAA moderada e 16 indivíduos saudáveis em sua capacidade para perceber a ilusão da máscara côncava e estimar a profundidade ou o relevo desta. Os participantes realizaram três tarefas experimentais de classificação do objeto máscara: (a) indicar se percebem a máscara como côncava ou convexa; (b) classificar a intensidade da percepção em uma escala que vai de muito côncava a muito convexa; e (c) estimar a profundidade em centímetros da ponta do nariz até a base da face da máscara. Utilizou-se uma caixa de madeira com tampa de 80 cm de cumprimento e uma máscara côncava de plástico com 3 cm de profundidade, que foi iluminada por cima e por baixo alternadamente. Para a análise estatística dos dados categóricos, foi utilizado o teste Exato de Fisher e, para as atribuições em centímetros, o teste ANOVA. O grupo com SAA moderada apresentou um prejuízo significativo em sua capacidade de realizar a inversão monocular da profundidade. Por outro lado, o grupo com SAA leve não diferiu estatisticamente do grupo de saudáveis, ambos percebendo, em sua maioria, a ilusão da máscara côncava. Além disto, as atribuições de profundidade em centímetros para a máscara côncava não diferiram significativamente entre os grupos. Também não houve influência da direção da fonte de luz nos resultados encontrados.

Resultados semelhantes foram encontrados por Quaglia et al. (2014b), ao investigarem a ilusão com alcoolistas durante a SAA leve. Foram investigados oito pacientes com a síndrome e oito indivíduos saudáveis na condição monocular de observação. A intensidade da SAA também foi avaliada pela escala CIWA-Ar. Assim como no estudo anterior, os autores utilizaram uma máscara côncava da face de uma boneca de plástico com 3 cm de profundidade, posicionada no interior de uma caixa de madeira com 80 x 37 x 37 cm. A máscara côncava foi iluminada alternada e aleatoriamente por cima, por baixo, pela direita e pela esquerda no intuito de avaliar a influência da direção da fonte de luz incidente sobre a percepção ilusória. Assim como no estudo anterior, os participantes foram solicitados a realizar três tarefas: a primeira de identificação da concavidade ou convexidade da máscara; a segunda de julgamento da intensidade desta percepção, de muito côncava a muito convexa; e a terceira de estimação de centímetros à profundidade percebida. Os dados foram analisados por meio de dois testes estatísticos, o Qui-quadrado para as atribuições categóricas e o Mann-Whitney U para as métricas. Não foram encontradas diferenças entre os grupos em nenhuma das condições e a maioria dos participantes relatou a inversão monocular da profundidade, sem influência da fonte de iluminação sobre a percepção ilusória. Os autores salientaram a força da ilusão e que nestas condições experimentais a ilusão da máscara côncava não foi adequada para caracterizar os indivíduos em SAA leve.

 

Discussão

Das pesquisas encontradas, apenas uma estudou alcoolistas em intoxicação alcoólica (Schneider et al., 1998), o que aponta a necessidade de maiores investigações. As realizadas na Alemanha utilizaram metodologias semelhantes de apresentação binocular do estímulo: slides estereoscópicos de objetos côncavos (Schneider et al., 1996a; b; 1998). As realizadas no Brasil também guardaram semelhanças metodológicas entre si, mas, diferentemente das realizadas no exterior, avaliaram a condição monocular de observação de um estímulo físico (Bachetti et al., 2013; Quaglia et al., 2014b). Apesar disto, as duas únicas pesquisas sobre a SAA moderada encontraram resultados semelhantes, apontando para o possível prejuízo na capacidade destes indivíduos de perceber a ilusão da máscara côncava (Schneider et al., 1998; Bachetti et al., 2013). Este prejuízo mostrou-se recorrente mesmo diante das variações metodológicas entre os estudos. A hipótese explicativa para este fenômeno, apontada por todos os autores supracitados, é a de que os processos cognitivos, top-down, estariam prejudicados em decorrência da síndrome de abstinência, dificultando a realização da inversão visual da profundidade. Por outro lado, os resultados relacionados à SAA leve permanecem controversos. Os dois primeiros estudos encontraram uma diferença entre o grupo com SAA leve e o grupo de indivíduos saudáveis, enquanto que nas três pesquisas subsequentes esta diferença não foi evidenciada e os indivíduos com SAA leve perceberam a ilusão da mesma forma que os saudáveis. Essa controvérsia põe em questionamento a explicação oferecida para a ocorrência do desequilíbrio entre os processos cognitivos e sensoriais durante a SAA leve.

Nas pesquisas realizadas com alcoolistas, pode-se observar uma redução significativa nas frequências de respostas de inversão da profundidade da máscara côncava, por volta de 60%. A hipótese explicativa para essa redução pressupõe que a SAA interferiria nos mecanismos ou processos perceptuais que regulam a ocorrência natural da ilusão de inversão de profundidade. Assim, os processos perceptuais de alta ordem, top-down, que invertem automaticamente a profundidade da máscara (Gregory, 1997), estariam prejudicados durante a SAA.

A percepção, enquanto construção e representação cognitiva a partir de estímulos sensoriais, considera a participação de informações diversas na construção perceptiva, como as provenientes do pensamento e da aprendizagem. As hipóteses perceptuais resultariam assim, de três frentes distintas e complementares: dos dados sensoriais advindos dos órgãos dos sentidos, dos conhecimentos prévios adquiridos e das hipóteses que poderíamos inferir a partir de nossas expectativas anteriores sobre a natureza do estímulo observado (Sternberg, 2010).

Contudo, outra hipótese possível para essa redução na capacidade de realizar a inversão visual da profundidade seria a de que o álcool não alteraria os mecanismos perceptuais que geram a ilusão, mas sim alteraria os processos decisórios que determinam os critérios dos observadores na emissão de suas respostas sobre o que foi percebido. A percepção de estímulos ambíguos não depende exclusivamente dos conhecimentos prévios do indivíduo sobre o mundo. Segundo Scocchia, Valsecchi e Triesch (2014), em situações de ambiguidade, aspectos motivacionais do indivíduo podem determinar a probabilidade de um determinado estímulo ser percebido.

A influência dos processos de tomada de decisão pode ser investigada e fundamenta na TDS aplicada à psicofísica. Trata-se de um modelo estatístico teórico e metodológico utilizado na investigação da sensibilidade sensorial e dos comportamentos decisórios relacionados à percepção. Na TDS, o reconhecimento de um determinado estímulo não ocorre apenas em função da intensidade do sinal percebido e de sua capacidade de sobrepor-se à modulação do ruído. A expressão comportamental deve-se também aos critérios de decisão que o observador escolhe para emitir sua resposta. Tais critérios possuem relação direta com a motivação, atenção ou mesmo a expectativa daquele que percebe. Assim, pode-se apresentar o mesmo estímulo repetidas vezes sem que o observador o perceba em 100% das vezes. Por exemplo, durante uma tarefa visual em que se têm várias tentativas para se identificar um objeto, o sujeito tentará aumentar o número de vezes em que escolhe a resposta correta e tal comportamento pode variar em decorrência das suas expectativas de recompensa ou não. A TDS considera separadamente os índices de sensibilidade sensorial ou de desempenho (d') dos critérios adotados pelo observador para se decidir por uma resposta em circunstâncias específicas. Esse método tem se mostrado eficiente para analisar o desempenho na identificação de um sinal na presença de um ruído e considera tanto as taxas de acerto e rejeição correta, quanto as respostas de falso alarme e omissão (Green, & Swets, 1966/1988; Lawless, 2013). Desta forma, pode-se estabelecer em que medida cada um desses fatores, sensoriais e decisórios, influencia a percepção visual.

Para que este método de investigação seja utilizado em estudos sobre a inversão visual da profundidade da máscara côncava, são necessárias diversas apresentações sucessivas não apenas do estímulo côncavo, mas também do convexo. Contudo, esta é uma limitação do método utilizado pelas pesquisas descritas acima. Os dados coletados são provenientes unicamente da apresentação do lado côncavo da máscara da face. Além disso, as frequências de respostas dizem respeito a uma única apresentação do estímulo. Nenhuma delas ponderou os dados obtidos da máscara côncava com os da apresentação do seu lado convexo. Não foi avaliada a capacidade dos indivíduos de discriminar convexidades e concavidades durante a apresentação de máscaras côncavas e convexas. Esta lacuna impossibilita o uso da TDS para avaliar a ilusão da máscara côncava e, consequentemente, excluem da investigação as possíveis influências devidas aos processos de tomada de decisão que ocorrem durante o fenômeno. Especialmente nos casos de intoxicação alcoólica e SAA, a investigação das possíveis causas da redução na frequência de respostas de inversão visual da profundidade auxiliaria no estudo dos prejuízos provocados pelo álcool na percepção. Assim, seja nos mecanismos sensoriais ou no comportamento de tomada de decisões, poderemos entender em que medida o uso inadequado de álcool influencia a percepção visual dos objetos.

 

Conclusões

O estudo dos processos cognitivos e de seus determinantes perpassa pelo entendimento da maneira como os seres humanos percebem os estímulos ambíguos, de como é a interação do cérebro com o meio externo durante a percepção (Scocchia et al., 2014). Schneider et al. (1996b; 1998) sugerem o uso da inversão da profundidade visual como uma ferramenta na investigação da ação de psicotrópicos e psicodélicos, assim como na avaliação de estados psicóticos durante a SAA, decorrentes de uma deficiência no sistema de regulação da percepção visual. Estudos futuros necessitam ser realizados nesta área para a ampliação do conhecimento deste fenômeno, especialmente a partir de métodos de investigação diversos. Pesquisas utilizando-se a TDS podem ser realizadas para entendermos mais detalhadamente os efeitos do uso abusivo de álcool na percepção visual humana, principalmente por proporcionar a identificação das proporções em que cada mecanismo perceptivo, sensorial e decisório, pode ser responsável pela percepção ou não da ilusão da máscara côncava.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Lívia da Silva Bachetti
livbachetti@yahoo.com.br

Sérgio Sheiji Fukusima
fukusima@usp.br

Maria Amélia Cesari Quaglia
melinha@ufsj.edu.br

Submetido em: 13/09/2017
Revisto em: 16/02/2018
Aceito em: 09/03/2018

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