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Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.71 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2019
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.3-5
EDITORIAL
A trajetória histórica de Arquivos Brasileiros de Psicologia: testemunha, resistência e horizonte
Cláudia Henschel de Lima; Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Conforme afirmamos no Editorial do número 71.1, o ano de 2019 é um ano especial para a Arquivos Brasileiros de Psicologia, pois representa o marco histórico dos 70 anos do periódico no cenário da psicologia brasileira.
Desde a sua criação em setembro de 1949 pelo Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), da Fundação Getulio Vargas, como Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, passando pela alteração do nome do periódico para Arquivos Brasileiros de Psicologia em 1970, até sua transferência em 1990 para o Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o periódico demonstra o papel relevante da produção científico-intelectual da psicologia no Brasil, bem como condensa a história acumulada dessa produção. O que vem sendo reconhecido por meio da consolidação de sua classificação como A2 no Qualis-Periódicos de 2019.
Retomando suas condições de surgimento em 1949 no ISOP, constatamos sua orientação inicial para a investigação científica do trabalho. Neste sentido, vale retomar um trecho do editorial do primeiro número da revista, escrito pelo então Presidente da Fundação Getulio Vargas, Luiz Henrique Simões Lopes:
A publicação dêstes Arquivos visa conclamar os que estudam o assunto do ponto de vista científico, os profissionais da psicotécnica, os nossos administradores, empregadores, nas atividades públicas ou privadas, "consumidores" do fator humano, que tanto necessitam de mão de obra adequada, a encetarmos, juntos, uma forte campanha de aumento da produção nacional, de maior rendimento, de maior felicidade no trabalho, através da Seleção e da Orientação Profissional (Lopes, 1949, p. 6).
No entanto, hoje, verificamos que a Revista ultrapassou sua vocação inicial para o registro e publicização da produção científica na área do trabalho, para os mais variados temas e domínios de investigação científica no campo da psicologia: os processos psicossociais, a psicopatologia, a avaliação psicológica e a psicanálise são apenas uma amostra do escopo generalista de Arquivos Brasileiros de Psicologia. Esse escopo generalista permite ao leitor visualizar não só sua consolidação no cenário científico nacional, já mencionado mais acima, como também o coloca como testemunha dos próprios caminhos assumidos pela história do pensamento científico brasileiro. Sendo testemunhal, Arquivos Brasileiros de Psicologia registra a presença marcante da produção científica em psicologia nas universidades públicas e sua inseparabilidade com relação ao campo decisório das políticas públicas para educação, saúde e direitos humanos. Mas, também, a própria inseparabilidade da pesquisa em psicologia em relação às condições políticas de investimento em ciência no país.
Consideramos, aqui, como científico a definição que o historiador e filósofo francês Alexandre Koyré apresenta em seu artigo Do Mundo do "mais-ou-menos" ao Universo da Precisão (2011). Koyré define a ciência pela subordinação do real ao rigor da atividade racional e localiza na física-matemática de Galileu Galilei e na construção de um novo sistema do mundo por Descartes o marco da dissolução da concepção escolástica, que dividia o mundo entre a precisão matemática do mundo supralunar e o mundo do mais-ou-menos, sublunar, que se furtava à matematização. Para Koyré, o traço que define a ciência como revolucionária é a ruptura com a escolástica em nome da redefinição do conhecimento: o conhecimento dos fatos só se torna uma ciência quando submetido a um tratamento teórico. Essa ruptura com a escolástica, localizada por Koyré no fundamento da ciência, evidencia sua posição na condição de funcionamento da época. Consideremos, brevemente, as condições de época no século XVII.
Koyré (2011) situa o conflito entre a forma escolástica de conhecimento e a física-matemática de Galileu, que estabeleceu as leis matemáticas no estudo da natureza por meio da realização do impossível. A hipótese escolástica da queda dos corpos sustentava que a velocidade de queda de um corpo é proporcional a seu peso. Mas para a física-matemática de Galileu, não deveria ter qualquer influência na velocidade de queda. E a comprovação seria simples: bastava jogar do alto da torre corpos com diferentes pesos e mensurar o tempo de queda. A literatura mais fantasiosa relata a execução de uma experiência em que bolas de 10 gramas e de 1 grama teriam sido lançadas da Torre de Pisa, sob o testemunho dos escolásticos, e todas teria chegado ao solo ao mesmo tempo. No entanto, não houve a experiência de Pisa, não só porque Galileu jamais a mencionara como porque Galileu conduz um experimento mental: eliminada a resistência do ar e outros fatores (a forma e o material dos corpos lançados), obedecida as condições do vácuo, ambos os corpos chegariam o solo ao mesmo tempo: "Isso é tão improvável que não o podemos seriamente admitir, a única explicação possível para esse silêncio é a seguinte: se Galileu nunca fala da experiência de Pisa, é porque ele não a fez" (Koyré, 2011, p. 202).
Da falácia da experiência de Pisa à sustentação de um experimento mental, na qual o vácuo era uma fórmula matemática, Koyré (2011) define a atitude intelectual da ciência moderna, no século XVII, por dois eixos complementares:
1. A destruição do Cosmo e, consequentemente, o desaparecimento de todas as considerações baseadas nessa noção.
2. A matematização do espaço, isto é, a substituição do espaço qualitativamente diferente da escolástica pelo espaço infinito e abstrato da física-matemática, governado por leis universais.
A definição da atitude intelectual da ciência moderna, por Koyré (2011), revela que Descartes e Galileu realizaram a destruição da concepção escolástica inaugurando um novo sistema do mundo. A partir dessa atitude intelectual, daremos um passo adiante adotando um posicionamento frente a ciência, similar ao de Alexandre Koyré, para refletir sobre as condições políticas de possibilidade para a produção de conhecimento científico.
Entre nós, as condições políticas são adversas à continuidade da produção do conhecimento científico e, em especial, no domínio das ciências humanas. E, neste sentido, confessamos que nossa reflexão, neste editorial, é marcada pela inquietude e preocupação com os dias que estão por vir. Foi, na verdade, essa preocupação que nos fez retomar a referência de Alexandre Koyré, por ser um filósofo que localizou na revolução científica, também, um ato político de contraposição e ruptura com as condições políticas de época.
Globalmente, desde o final da Guerra Fria, testemunhamos a ascensão de uma racionalidade que compreende a existência em termos econômicos, redefinindo vocabulários, princípios jurídicos e de cidadania, expandindo valores de mercado a todas as esferas da vida. Nessa hiperbolização da economia como razão, parâmetros de lucro decidem a produção de conhecimento científico nas universidades (Brown, 2017). No Brasil, não ficamos imunes à constituição dessa nova racionalidade que pode decidir pela desvalorização das ciências humanas e pela retração do investimento nessa área. E essa é nossa preocupação e esse é nosso temor, e também o sentido de repetirmos o anúncio dos 70 anos de Arquivos Brasileiros de Psicologia. São 70 anos de história da produção de conhecimento científico no Brasil que, nos dias de hoje, resiste ao apagamento produzido pelo neoliberalismo como razão econômica. Diante do que aqui expusemos, o número 71.2 expressa a nossa resistência diante desse estado de coisas testemunhando mais uma vez, a produção da comunidade de pesquisadores em psicologia.
Registramos, mais uma vez, nosso profundo agradecimento à equipe de Arquivos Brasileiros de Psicologia: nós os editores, que assinam este editorial, os editores de seção - Ana Cristina Barros Cunha, Cristiana Carneiro e Pedro Paulo Pires - e os assistentes editoriais, Jéssica da Silva David, Maria Stela Campos, Alice Sofia Padilha, Thalles Sampaio e Julia Cunha.
Agradecemos, ainda, a cada autora e a cada autor dos artigos aqui publicados que confiaram no periódico, durante todo o processo editorial de montagem deste número.
Agradecemos, ainda mais uma vez, à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que financiam nosso periódico.
Agradecemos também aos indexadores, que permitem a difusão do conhecimento aqui produzido, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao qual estamos vinculados, e aos nossos leitores que, pacientemente, aguardam a publicação de cada número de Arquivos Brasileiros de Psicologia.
Referências
Brown, W. (2017). Undoing the demos: Neoliberalism's stealth revolution. New York, NY: Zone. [ Links ]
Koyré, A. (2011). Do mundo do "mais-ou-menos" ao universo da precisão. In: Koyré, A. Estudos de história do pensamento filosófico (pp. 271-288). Rio de Janeiro, RJ: Forense. [ Links ]
Lopes, L. S. (1949). Apresentação. Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, 1(1), 5-6. [ Links ]