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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72i1p.8-24 

ESPECIAL COVID-19

 

Desigualdades raciais em tempos de pandemia na cidade do Rio de Janeiro: reflexões a partir de 1918 e 2020

 

Racial inequalities in times of pandemic in the city of Rio de Janeiro: reflections from 1918 and 2020

 

Desigualdades raciales en tiempos de pandemia en la ciudad de Río de Janeiro: reflexiones de 1918 y 2020

 

 

Laiza da Silva SardinhaI; Patrick Silva BotelhoII; Marina Wanderley Vilar de CarvalhoIII

IPrograma de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIDefensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este manuscrito se propõe a compor com os debates acerca da pandemia do novo coronavírus, ainda em curso, buscando complexificar discussões sobre seus possíveis efeitos democráticos para o contexto global. Ao olharmos para a realidade brasileira, com foco na cidade do Rio de Janeiro, percebe-se uma ilusão democrática que não condiz com os impactos desiguais no atual contexto da pandemia, sobretudo para a população negra, majoritariamente pobre em nosso país. Em um exercício genealógico, recuperamos estudos sobre a chamada "Gripe Espanhola", pandemia que atingiu gravemente o Brasil em 1918. Assim, tomamos ambas pandemias enquanto dispositivos de análise para a realidade social brasileira e como forma de fazer emergir o debate sobre a desigualdade racial, um analisador fundamental neste contexto. Mudanças sociais no sentido de democratização precisam sempre levar em conta tal desigualdade, consequência de séculos de escravização.

Palavras-chave: Pandemias; Desigualdade Racial; Coronavírus; Gripe Espanhola.


RESUMO

This manuscript proposes to compose with the debates about the pandemic of the new coronavirus, still ongoing, seeking to complex discussions about its possible democratic effects for the global context. When looking at the Brazilian reality, focusing on the city of Rio de Janeiro, a democratic illusion is perceived that does not match the unequal impacts in the current context of the pandemic, especially for the black population, mostly poor in our country. In a genealogical exercise, we recovered studies on the so-called "Spanish Flu", a pandemic that hit Brazil in 1918 seriously. Thus, we took both pandemics as devices of analysis for the Brazilian social reality and as a way to raise the debate on racial inequality, a fundamental analyzer in this context. Social changes towards democratization must always take this inequality into account, a consequence of centuries of enslavement.

Keywords: Pandemics; Racial Inequality; Coronavirus; Spanish Flu.


RESUMEN

Este manuscrito propone componer los debates sobre la pandemia del nuevo coronavirus, aún en curso, buscando discusiones complejas sobre sus posibles efectos democráticos para el contexto global. Al observar la realidad brasileña, centrándose en la ciudad de Río de Janeiro, se percibe una ilusión democrática que no coincide con los impactos desiguales en el contexto actual de la pandemia, especialmente para la población negra, en su mayoría pobres en nuestro país. En un ejercicio genealógico, recuperamos estudios sobre la llamada "gripe española", una pandemia que golpeó a Brasil en 1918. Por lo tanto, tomamos ambas pandemias como dispositivos de análisis de la realidad social brasileña y como una forma de elevar el debate sobre la desigualdad racial, un analizador fundamental en este contexto. Los cambios sociales hacia la democratización siempre deben tener en cuenta esta desigualdad, consecuencia de siglos de esclavitud.

Palabras clave: Pandemias; Desigualdad racial; Coronavirus; Gripe Española.


 

 

Introdução

Uma doença contagiosa, uma epidemia, não tem em si qualquer significado, é apenas um microrganismo que ganha significância pelo modo como interfere na vida das pessoas, pelas reações que provoca, pela expressão cultural (Sontag, 2002) e pelos valores políticos que adquire (Ranger, & Slack, 1992 citado por Goulart, 2005, p. 117).

Não há dúvidas de que poucos acontecimentos da história recente tenham produzido tantas mudanças em tão pouco tempo nas relações sociais como a pandemia por Covid-19, sobretudo pela quantidade de pessoas afetadas, assim como as esferas das nossas vidas que são influenciadas. Diante desta nova pandemia, ainda em curso, muitas pessoas vêm se perguntando sobre o que ainda está por vir, fazendo emergir uma série de reflexões e até mesmo previsões sobre o que será da humanidade daqui para frente. Pensadores contemporâneos de todo o mundo aproveitam o momento para compartilhar suas análises sobre o presente e o futuro.

Nesse contexto, o esloveno Zizek (2020), que atualmente reside em Londres, publicou, no dia 27 de fevereiro, um texto trazendo um pouco de suas reflexões sobre a atual pandemia para aquele momento. Nele, o autor diz sobre a Covid-19 ter desencadeado, além de outras grandes epidemias ideológicas já latentes, como as notícias falsas, teorias da conspiração e racismo, o aparecimento de um outro vírus ideológico: o vírus do pensamento de uma sociedade alternativa pautada na solidariedade e cooperação global em um momento que tornaria as nossas diferenças insignificantes.

Acreditando não ser mais possível continuarmos trilhando o mesmo caminho de antes, Zizek (2020) chama a atenção para que um dos efeitos da pandemia seja o ataque ao sistema capitalista global, utilizando como metáfora o golpe mítico "Five Point Palm Exploding Heart Technique", em referência ao filme "Kill Bill 2", de Quentin Tarantino, de 2004. Em seu texto, retoma uma fala do então vice-ministro da saúde do Irã, Iraj Harirchi, sobre estarmos diante de um vírus democrático que não distingue ricos e pobres, estadista e cidadão comum e complementa dizendo que estamos, enfim, todos no mesmo barco.

Talvez não caiba aqui dizer sobre os vírus e a sua incapacidade de distinguir os indivíduos a partir de suas desigualdades sociais, sendo, dessa forma, "democráticos". Por outro lado, a crença observada no surgimento de uma sociedade solidária, no fim do capitalismo e na ideia de nossas diferenças terem se tornado insignificantes, tudo isso em decorrência da pandemia, faz emergir algumas questões sobre a realidade brasileira. Afinal, o que há nesta pandemia capaz de fazer com que o capitalismo, todas as forças que o produziram e o expandiram e tudo por ele estimulado tenham seu fim decretado? Como pensar em adjetivar uma situação como democrática em uma nação que não chegou de fato a construir plenamente uma democracia?

Ao olharmos para o passado, vemos que o surgimento de uma pandemia com a gravidade da que estamos vivendo não é uma situação exatamente inédita em nossa história, embora esta guarde singularidades devido ao contexto em que surge. Se atualmente a Covid-19 já vem sendo considerada a mais grave pandemia do século XXI e a pior crise global desde a 2ª Guerra Mundial (Nações Unidas Brasil, 2020), no século passado a chamada "Gripe Espanhola" ficou conhecida mundialmente como a mais mortal da história. Ao analisá-las neste momento histórico, logo percebemos que apesar de separadas por pouco mais de 100 anos, talvez elas não estejam tão distantes assim.

Nesse sentido, este manuscrito surge de uma aposta em retornar à história da "Gripe Espanhola" junto aos acontecimentos mais recentes da Covid-19 como importante ferramenta crítica na compreensão da atual pandemia e das reflexões que emergem no presente. Acreditamos que eleger as duas pandemias como dispositivos de análise (Foucault, 2008) pode nos trazer importantes elementos para pensar a sociedade brasileira e, em especial, a cidade do Rio de Janeiro, complexificando as discussões sobre passado, presente e futuro.

A partir de uma perspectiva genealógica (Foucault, 1999) não pretendemos trazer elementos do passado para pensar uma suposta linearidade histórica, evolucionista, mas sim compreender as racionalidades que estão imbricadas nas práticas executadas pelas instâncias de poder e nos seus efeitos para distintos grupos sociais. Cavalcanti, Barbosa e Bicalho (2018) entendem a racionalidade, a partir de Michel Foucault, como a relação entre razão e poder na organização das práticas. É na história dos dispositivos que compõem essas relações que podem ser observados os sentidos instrumentais dos discursos tomados.

Para explorar tais racionalidades presentes nestes dois momentos históricos, partiremos de alguns recortes, que nos auxiliam a compreender aspectos de cada uma das pandemias e seus contextos. Elegemos como analisador - elemento que emerge da pesquisa e que nos auxilia na produção de análises (Lourau, 1993) - as desigualdades raciais, fenômenos estruturantes em nossa sociedade. Pensar em democracia e em transformação social passa pela análise do racismo estrutural em nossa sociedade e o estudo das pandemias se mostra como ferramenta para visibilizar esta realidade.

Seguimos os passos da política da cartografia, a qual refuta a utilização da "tradicional dicotomia quali-quanti" (César, Silva, & Bicalho, 2014, p. 161) em uma pesquisa, tomando como base o mapeamento de estudos que oferecem dados quantitativos acerca da conjuntura social. Assim, dados quantitativos nos permitem conferir, neste momento sócio-histórico, o emprego de estratégias que contribuem para a existência de hierarquização de uma raça em relação à outra, medidas que privilegiam o acesso aos direitos a uma população específica. A ilusão democrática dos efeitos do SARS-CoV-2 perde o sentido quando se verifica quais são os corpos mais atingidos de forma letal pelo vírus.

 

O início das duas pandemias

Covid-19

A situação que se desdobra dramaticamente no momento presente teve início no ano anterior, com os primeiros casos da Covid-19 registrados em um mercado de frutos do mar e animais vivos na cidade de Wuhan, na China (Wu et al., 2020). Surgidos a partir do recrudescimento de quadros de pneumonia sem causa identificável durante o mês de dezembro de 2019, as autoridades sanitárias locais precisaram notificar a situação, levando ao primeiro sinal de alerta emitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em poucos dias, a China descobre se tratar de um novo coronavírus, conseguindo isolar seu código genético e nomeando-o como SARS-CoV-2. Assim, o sequenciamento genético recém-descoberto é compartilhado com a comunidade científica internacional, dando início a uma corrida contra o tempo por mais respostas capazes de orientar a tomada de novas decisões.

Apesar da rapidez em identificar o agente etiológico da doença, isso não significou o seu controle e já no mês de janeiro foram noticiados casos em que a doença havia sido exportada para outros países, como Tailândia, Japão e Coreia do Sul. Diante da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional pela OMS (OPAS, 2020a) no dia 30 de janeiro de 2020, diversas ações foram sendo adotadas ao redor do mundo a fim de prevenir e controlar a propagação do novo coronavírus em decorrência de sua alta taxa de infecção humana.

No dia 26 de fevereiro de 2020 tivemos o primeiro diagnóstico confirmado para o novo coronavírus no Brasil (Brasil, 2020a). O caso envolveu um empresário de 61 anos que havia retornado de viagem da Itália, na cidade de São Paulo, mas, de acordo com análises feitas por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgadas na Revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, há indícios de que o SARS-CoV-2 pode ter começado a se propagar no Brasil entre meados de janeiro e início de fevereiro de 2020 (Delatorre, Mir, Gräf, & Bello, 2020).

Nos meses seguintes o contágio seguiu avançando de forma rápida para os diferentes continentes e no dia 11 de março a OMS declarou oficialmente a situação de pandemia (OPAS, 2020b). Esta doença se tornou uma nova ameaça global e, no final de maio, já havia superado a marca de 6 milhões de pessoas infectadas, 371 mil pessoas mortas em 188 países, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins (2020).

Gripe de 1918

A partir de meados de 1918, o mundo viveu a chamada "Gripe Espanhola", período em que se aproximava do fim da 1ª Guerra Mundial. De acordo com Goulart (2003), mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a pandemia de 1918 causou, internacionalmente, mais mortes que a 1ª e a 2ª Guerra Mundial, a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnã juntas, não havendo registro histórico de uma gripe como a que ocorreu na pandemia de 1918 até então.

Apesar de seu conhecido potencial devastador, Goulart (2003) relata que, com o fim da pandemia, foram escassas as publicações em torno do tema. De acordo com a autora, houve, no Brasil, a publicação de três livros escritos logo após a gripe, todos eles por médicos1. No entanto, menciona que, depois disso, "[...] grande foi o silêncio imposto ao tema pelas publicações. Ainda hoje, extremamente reduzida é a produção bibliográfica que se volta para o estudo da gripe espanhola, principalmente em se tratando do Brasil" (Goulart, 2003, p. 6). Somente décadas mais tarde, a partir de meados dos anos 1980, algumas pesquisas sobre o ocorrido começaram a surgir e ganhar notoriedade, sobretudo com o pioneirismo do historiador Cláudio Bertolli Filho.

Apesar de comumente chamada de "espanhola", as hipóteses sobre o(s) lugar(es) em que o contágio teria iniciado não fazem referência à Espanha. No entanto, os principais motivos pelos quais a pandemia assim ficou conhecida possui "raízes políticas" (Goulart, 2005, p. 102). O primeiro estava relacionado com a posição de neutralidade da Espanha durante a 1ª Guerra. Ao contrário de outros países em meio à guerra, a Espanha expôs ao mundo os efeitos da doença no país, não impondo a censura em sua divulgação como os demais países afetados o fizeram principalmente por meios militares; nesse caso, era como se a doença fosse um problema da Espanha. O segundo motivo, o qual fez com que a Inglaterra cunhasse o nome de "Gripe Espanhola", teria relação com "demonstrações de simpatia" por uma parte do governo espanhol aos alemães. Por fim, haveria também a explicação de que a doença teria produzido reações xenófobas contra a Espanha por parte da vizinha França diante da migração de trabalhadores espanhóis durante a pandemia (Goulart, 2005). Apesar de ter sido nomeada de formas diversas, citamos aqui a referência à Espanha por ter sido a versão mais popularizada no Brasil.

Nesse período, afirmar a existência de um contágio durante o período final de uma guerra simbolizava também a derrota frente à figura do inimigo. Talvez o desconhecimento sobre a doença tenha contribuído ainda mais para o surgimento de versões como essas sobre o acontecimento.

No caso do Rio de Janeiro, a versão de que o vírus teria sido criado pelos alemães contra os países aliados, chegou a ser publicada em veículo de comunicação de grande circulação à época (Goulart, 2005). Vale lembrar que o Brasil teve sua participação na guerra após ataques alemães a navios brasileiros no ano de 1917. Percebe-se, então, uma série de questões envolvendo a divulgação de informações sobre o contágio, para além da ausência de conhecimentos médico-científicos necessários na compreensão do problema enfrentado.

De acordo com os registros oficiais da época, a gripe vitimou pela primeira vez os brasileiros antes mesmo que ela aportasse em nosso país. A contaminação teria ocorrido em agosto, a bordo do navio La Plata, no qual a Missão Médica Brasileira estava presente a caminho de Dakar. A chegada do vírus no Brasil se deu entre o final de agosto e início de setembro, tendo atingido o Rio de Janeiro um pouco depois, em meados de setembro, com a chegada do navio Demerara na capital. No entanto, é importante frisar que é possível que a contaminação no país tenha começado antes de setembro (Goulart, 2005).

 

Discussão

A antropóloga Schwarcz (2020) aponta que a humanidade no curso da sua história tem como hábito adotar o uso de xenofobia e preconceito como tentativa de resolução de questões que emergem em contextos epidêmicos. Apesar do conceito de raça não possuir mais utilidade biológica para afirmar a existência de um purismo e de um determinismo biológico entre os seres humanos. "Toda vez que não foi possível explicar o infortúnio, entender uma grande mortandade, dar guarida ao medo, e assim por diante, a saída sempre foi culpar ao 'outro' e 'agir com racismo'" (Schwarcz, 2020, s/p).

De acordo com Mbembe (2017), em um contexto global na atualidade marcado pela constante produção de "políticas de inimizade", o racismo, em suas múltiplas dimensões, apresenta-se como uma tecnologia de poder capaz de regular as relações. Se no século passado por questões políticas houve a tentativa de apontar responsáveis pelo contágio inicial do vírus durante a pandemia de 1918, na atualidade observa-se um movimento similar de culpabilização ao povo asiático pelo surto do novo coronavírus.

A construção desta narrativa pode ser observada nos discursos de autoridades públicas em diferentes países, como o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, filiado ao Partido Republicano, que disse, durante o mês de março de 2020, ter fortes indícios de que o vírus foi fabricado em um laboratório em Wuhan, na China (Bento, 2020), apesar das evidências científicas apontarem ao contrário. Assim como no Brasil, com declarações na mesma direção feitas pelo Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filiado ao Partido Republicanos - filho do Presidente da República, Jair Bolsonaro - e pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Tal fato gerou uma grave crise diplomática entre os dois países, a ponto de levar a embaixada chinesa a solicitar um pedido formal de desculpas ao governo brasileiro.

Se no início da atual crise sanitária Zizek (2020) apostava na construção de uma sociedade alternativa pautada na efetivação de laços de solidariedade humana e cooperação global durante a gestão do Estado, na fase inicial do surto do vírus SARS-CoV-2, neste momento é possível observar o acirramento das relações diplomáticas, além do recrudescimento e a reprodução de mazelas sociais históricas na sociedade, como o racismo. De acordo com Almeida (2018), "a noção de raça ainda é um fato político importante, utilizado para naturalizar desigualdades, justificar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários" (p. 24). Portanto, o conceito raça enquanto categoria sociológica possui grande importância como elemento de análise da história das relações dos processos de socialização e de organização do Estado brasileiro.

 

As atuações do Estado

Covid-19

Os números atuais do desenvolvimento da doença indicam a grave situação no país. Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), divulgados no dia 31 de maio de 2020, passa de 498 mil o número de pessoas que testaram positivo ao novo coronavírus no Brasil e mais de 28 mil pessoas morreram em decorrência da doença (Brasil, 2020b). Pela primeira vez, de acordo com as informações oficiais, foram registradas mais de mil mortes em um único dia (19 de maio), situação que se repetiu algumas vezes até o final do mês. Após três meses do primeiro caso registrado, o Brasil, é o segundo país com o maior número de casos confirmados, ficando atrás dos Estados Unidos, e o quarto em número de mortes, atrás de Estados Unidos, Reino Unido e Itália (Johns Hopkins University and Medicine, 2020).

Julga-se importante salientar que estes dados não condizem com a real situação vivenciada no país. Apesar de demonstrarem o estágio avançado e descontrolado de transmissão comunitária, o reduzido número de testagem da população influi no elevado número de subnotificações da Covid-19, portanto, presume-se que a realidade é mais aterradora.

Apesar de, em 16 de março de 2020, o diretor da OMS, Thedron Adhanom, ter solicitado a todos os países que aumentassem os seus programas de testes, com o propósito de isolar as pessoas infectadas do convívio social para interromper o avanço do vírus, o governo brasileiro não tem conseguido apresentar ações eficazes para proporcionar a testagem em massa. Tal fato, associado à dificuldade de se efetivar medidas de distanciamento social, assim como à organização do sistema de saúde pública, coloca o Brasil como um potencial epicentro da epidemia no mundo.

Observa-se que a ineficácia do governo brasileiro na elaboração de um plano eficiente para o controle da pandemia auxilia na efetivação de um contexto catastrófico. Neste momento sócio-histórico, as autoridades brasileiras apostam no negacionismo ao pensamento científico, no acirramento das relações institucionais e sociais, na flexibilização das medidas de distanciamento social e no sucateamento de políticas públicas na área da saúde.

Pode-se citar como analisador desse cenário o fato de o Brasil ter sido um dos poucos países a trocar por duas vezes de ministro da saúde em meio à pandemia. No início da crise sanitária, em fevereiro de 2020, o responsável pela articulação e elaboração das propostas de enfrentamento à Covid-19 era Luís Henrique Mandetta, filiado ao Partido Democratas. Após se negar a seguir as recomendações do presidente da república, que exigia o afrouxamento das medidas de isolamento adotadas à época para a contenção do vírus, Mandetta foi substituído pelo médico Nelson Teich, o qual pediu demissão após menos de um mês no comando. Até a finalização deste manuscrito, 15 dias após a demissão, não havia nova nomeação pela Presidência da República.

Outro fator de discordância entre os ministros da saúde e o presidente da república foi quanto ao uso das substâncias Cloroquina e Hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Apesar de não possuir notórios conhecimentos na área da saúde, além de negar as recomendações de cientistas e da Organização Mundial da Saúde, Jair Bolsonaro realiza fortes pressões para o uso da medicação. De acordo com estudo divulgado pela Revista The Lancet, em 22 de maio de 2020, tais substâncias não possuem eficácias para o tratamento da doença, além de estarem associadas à maior chance de risco cardíaco e à morte. A publicação apresentou dados de um estudo observacional realizado com mais de 96 mil pacientes internados em hospitais de seis continentes. Diante de tais evidências a OMS retirou a medicação da lista de drogas que seriam testadas para o tratamento da Covid-19 (Mehra, Desai, Ruschitz, & Patel, 2020).

Gripe de 1918

Além da censura imposta pelos meios militares, camuflando por algum tempo a real situação enquanto a doença percorria o mundo, houve muita negação sobre a gravidade da doença, mesmo após sua chegada ao Brasil. Eram muitos os que acreditavam se tratar de uma gripe benigna. Além disso, muito se criticou o descaso por parte dos governantes na tomada de decisões estratégicas, tendo em vista que mesmo antes da pandemia as estruturas sanitárias e de saúde já não atendiam as demandas da população. Como se pode perceber:

Nenhuma estratégia de combate à moléstia foi previamente montada para socorrer a população. Muitas foram as deficiências das estruturas sanitárias e de saúde reveladas durante o período pandêmico, a começar pela administração sanitária, sobre a qual muito se falou que a epidemia demonstrou a falência (Brito, 1991 citado por Goulart, 2005, p. 106).

Tal situação acabou por acarretar terríveis impactos para a parcela da população que se encontrava mais vulnerável naquele momento. Diante da falta de amparo às pessoas mais pobres na prevenção e no enfrentamento à doença, muitos se viram à mercê de práticas caridosas por parte das instituições privadas. Conforme aponta Goulart (2005):

O quadro de insatisfações se tornou cada vez mais agudo devido à morosidade no estabelecimento de medidas profiláticas e às limitações estruturais das instituições sanitárias que se encontravam totalmente despreparadas e desaparelhadas para dar combate à doença. A escassez de verbas destinadas à saúde pública dificultava a implementação, o aparelhamento e a manutenção de instituições e projetos de saúde pública, contribuindo para a limitação dos socorros públicos durante a epidemia. O atendimento da população acabou dependendo, na maior parte do tempo, da iniciativa das esferas privadas: igrejas, escolas, clubes e a Cruz Vermelha Brasileira (p. 109).

Mesmo diante do número de mortes, que crescia rapidamente dia após dia, os discursos estatais ainda minimizavam a gravidade da situação vivida. Em sua dissertação de mestrado sobre esse período histórico, Goulart (2003) compartilhou importantes depoimentos de Nelson Antônio Freire, professor de filosofia e testemunha ocular da gripe de 1918, período em que tinha 18 anos de idade e morava com sua família na cidade do Rio de Janeiro. Sobre a sua experiência naquele momento, Nelson traz o seguinte relato:

Minha avó estava no hospital e ninguém sabia dela; fui com meu pai e meu irmão ver como ela estava, se estava viva. O hospital da Misericórdia estava lotado, tinha doente espalhado no chão dos corredores. Minha avó estava morta lá na capela junto com um montão de gente. O pior de tudo é que estava morrendo gente aos borbotões, e o governo dizia nas ruas e nas folhas, que a gripe era benigna. Certo dia, as folhas noticiaram mais de quinhentos óbitos, e mesmo assim a gripe era benigna, benigna, benigna (Goulart, 2003, p. 39).

 

Discussão

A falta de resposta efetiva diante de uma pandemia e a estrutura precária dos serviços de saúde são atuações políticas que afetam desigualmente a população. No início do século passado, não havia um sistema público organizado e a assistência em saúde era primordialmente exercida por instituições filantrópicas (Reis, 2020). No início do século XX, colhemos os bons frutos da construção do Sistema Único de Saúde, em 1988, mas também o sucateamento deste, notadamente através de decisão parlamentar que congelou os gastos em saúde e educação por 20 anos (Brasil, 2016). O sistema público de saúde é voltado para a população mais vulnerável de nossa sociedade, em sua maioria negra; portanto, compreender a saúde pública como gasto, e não como investimento, e não promover como uma política pública essencial aponta escolhas políticas que invisibilizam e precarizam esta população e reafirmam o racismo estrutural da nossa sociedade.

 

Quem foi mais atingido

Covid-19

A Covid-19 escancara as desigualdades existentes no país, sobretudo as desigualdades raciais. A situação catastrófica vivenciada neste momento coloca em visibilidade limitações históricas da sociedade brasileira, como a dificuldade em garantir condições básicas para que a população, sobretudo a mais vulnerável, adote o distanciamento. Se no primeiro momento a doença atingiu os grupos sociais mais privilegiados, neste momento atinge de forma desproporcional as populações mais vulnerabilizadas.

De acordo com um levantamento realizado por Barbon (2020), em 17 de maio de 2020, pretos e pardos correspondem a 35% dos óbitos pela Covid-19 registrados no país até o dia 8 de maio, de acordo com os dados epidemiológicos divulgados pelo Ministério da Saúde; este índice corresponde a 3.508 mortes das 9.897 registradas. Ao passo que brancos representam 34% do registro de mortes (3.508). No primeiro momento, a diferença não parece ser tão significativa. Desta forma, julga-se necessário levar em consideração a subnotificação de casos: 2.896 das 9.897 pessoas que perderam a sua vida neste período tiveram sua raça ignorada nos registros oficiais, o que corresponde a 29%. Se compararmos com as informações disponíveis um mês antes nos registros oficiais, a proporção de óbitos era de 40% entre os brancos e 22% entre os negros, considerando a subnotificação que era de 36%.

Os números apresentados possibilitam-nos perceber o crescimento acelerado de mortes de pessoas negras no país e a alta taxa de casos subnotificados, apesar da dificuldade encontrada pelo veículo de comunicação durante a sistematização do material, pois os dados em grande parte não são separados por critérios de raça/cor nos boletins epidemiológicos. Vale ressaltar que tais informações devem ser concebidas como uma importante variável social por colocarem em evidência a falta de equidade em saúde entre grupos raciais, além de auxiliarem na construção de políticas públicas (Araújo et al., 2009). O MS só passou a tornar informações públicas sobre o perfil racial das vítimas da Covid-19 em 11 de abril de 2020, após ampla reivindicação de organizações do Movimento Negro2, como a Coalizão Negra por Direitos (2020), que acompanham com preocupação o avanço da pandemia em favelas e periferias dos grandes centros urbanos, assim como em quilombos e comunidades tradicionais.

Em relação à cidade do Rio de Janeiro, o primeiro caso foi confirmado em 5 de março (Gandra, 2020) e, no dia 13 do mesmo mês, a Prefeitura anunciou medidas de prevenção e contenção ao contágio na cidade (Rio Prefeitura, 2020a). Sob gestão do prefeito Marcelo Crivella, filiado ao Partido Republicanos (PR), instaurou-se naquele mesmo dia o gabinete de crise para o acompanhamento das decisões durante o período. Antes, com as recomendações em massa de higiene feitas pelo Ministério da Saúde, as desigualdades já estavam escancaradas, na medida em que uma parte expressiva da população brasileira não possui acesso à água potável e coleta de esgoto. Apesar de aparentemente simples, a higienização das mãos é fundamental e defesa de primeira linha para se evitar o contágio, o que expõe a gravidade da situação.

Com as novas medidas divulgadas pela prefeitura e as dificuldades de parte da população em adotá-las, logo se constatou que não estamos todos "no mesmo barco", como afirmou Zizek. Dentre as medidas publicadas, constavam recomendações para que os ônibus e os bus rapid transit (BRT) evitassem aglomerações; para que pessoas com baixa imunidade evitassem sair de suas casas; para que as empresas aderissem aos turnos de trabalhos alternativos e ao trabalho feito de casa; além da suspensão das aulas em escolas municipais. Naquele momento, surgiu como questão a realidade de muitos brasileiros, para os quais seria dificultada a adoção de tais medidas. Afinal, quem são os brasileiros e as brasileiras que conseguem adotar mais facilmente o distanciamento social e permanecer em casa diante da atual situação? Quais são os trabalhadores que podem trabalhar de casa e, mesmo que possam, tenham um ambiente minimamente preparado para o que ficou popularizado nas mídias em inglês como "home-office"? Como fazer com as crianças cujos responsáveis dependem da escola para garantir as refeições delas e conseguirem trabalhar? Quais são as realidades das moradias e dos bairros de milhares de brasileiras e brasileiros que esbarram nas importantes recomendações de saúde?

Logo em seguida a cidade entrou em estágio de alerta, o quarto mais grave numa escala de cinco, no dia 16 de março, e a prefeitura decretou situação de emergência (Rio Prefeitura, 2020b). Diversas reportagens noticiavam enormes filas em pontos e estações de transportes públicos e uma grande quantidade de aglomerações envolvendo grupos de risco, como idosos. Tudo isso poucos dias após a adoção de novas medidas de restrição à circulação das pessoas. A cada dia a situação se agravava mais rapidamente e poucas eram as respostas que pudessem garantir o amparo às pessoas em situação de maior vulnerabilidade social.

Os números de óbitos decorrentes do SARS-CoV-2 revelam que as localidades que possuem a maior concentração de habitantes negras e negros apresentam alta taxa de registros de mortes. De acordo com Muniz, Fonseca e Pina (2020), o bairro de Campo Grande, que possui a população composta por mais de 54% de moradores negros, é o bairro com a maior letalidade, de acordo com o monitoramento dos índices registrados até o dia 5 de maio de 2020 pela Secretaria de Saúde do Estado. Em seguida, aparecem os bairros de Copacabana, Bangu e Realengo. Destas quatro localidades, apenas um bairro não está localizado em uma região considerada periférica da cidade.

As favelas cariocas, muitas vezes não possuem os dados contabilizados de acordo com sua realidade, pois as estatísticas oficiais apenas delimitam bairros, o que invisibiliza uma enorme parcela da população. O portal Voz das Comunidades tem realizado o levantamento e dados de 31 de maio apontam a incidência de casos em 13 favelas da cidade, chegando a 1.123 moradores infectados e 226 mortes (Leta, 2020). Quando o número de óbitos por coronavírus totalizava 174, em 20 de maio, reportagem do G1 comparou este dado com os dos estados brasileiros e apontou que o número de mortes nas favelas cariocas era maior do que o registrado em 15 estados brasileiros até a mesma data, localidades com população muito maior. "Se for levada em consideração a proporção de mortes para cada 100 mil habitantes, as favelas do Rio teriam 46,6. O estado com maior proporção de mortes por 100 mil habitantes é o Amazonas, com 36" (Barreira, 2020).

Os dados apresentados refletem como funciona a organização do espaço na cidade do Rio de Janeiro. As favelas, periferias, territórios historicamente vulnerabilizados, locais onde majoritariamente pessoas negras e pobres habitam, não recebem do Estado investimentos de forma igualitária como outras regiões das cidades, formadas em grande parte por uma população branca e abastada. Campos (2005), geógrafo e importante referência nos estudos sobre as favelas, compreende os territórios como instrumentos fundamentais para a gestão das desigualdades. De acordo com suas reflexões sobre o surgimento das favelas no cenário carioca, não é possível falar sobre o processo de favelização na cidade do Rio de Janeiro sem compreender o período da escravização e a forma como o processo abolicionista se deu. Não à toa, Campos estabelece uma relação entre os quilombos e as favelas, afirmando que as situações observadas no presente devem ser compreendidas não como causadas por poucos anos de experiências, mas como resultado de um longo processo histórico.

São regiões da cidade em que faltam investimentos em áreas essenciais, como saúde, educação, habitação, iluminação, entre outros serviços. Fatores esses que impõem a mobilização de organizações comunitárias na garantia do sustento de moradoras e moradores. No contexto da Covid-19, são observadas diversas mobilizações locais para o recebimento e administração de doações diante dos problemas enfrentados para o acesso a auxílios financeiros do governo. Assim, percebe-se que a pandemia evidência e reafirma o racismo estrutural e institucional constituinte da sociedade brasileira.

Gripe de 1918

Embora seja possível verificar que a gripe pandêmica de 1918 atingiu toda a população carioca, talvez os impactos não tenham se dado de forma igualitária a todas as pessoas. São diversos relatos de pessoas aglomeradas na tentativa de conseguir doações de alimentos e medicações, principalmente por parte da iniciativa privada. Em diversas reportagens sobre a cidade do Rio de Janeiro, observa-se o uso de expressões como "indigentes" e "pobres" para se referir ao público a quem se destinava tais ações, além do termo "esmolas" para dizer sobre as ajudas oferecidas (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2011).

Pioneiro nos estudos sobre a gripe espanhola, Carlos Bertolli Filho, em sua dissertação de 1986, "[...] analisa o aspecto nada democrático da gripe (que vitimou especialmente os pobres) e a desordem social instaurada na capital paulista" (Goulart, 2005, p. 6). O autor "[...] afirma que a sobrevivência às enfermidades, sejam elas epidêmicas ou não, sofre a influência das condições materiais de vida próprias a cada grupo social" (Souza, 2005, p. 570). Diante da ausência de análises como essas para a cidade do Rio de Janeiro durante a escrita deste manuscrito, tomamos essas referências como importantes contribuições para pensarmos os diferentes impactos da gripe para o cenário e população cariocas.

A partir de informações obtidas em seus estudos, o autor chama atenção para o fato de que os dados sobre morbidade e mortalidade por gripe registrados pelo Serviço Sanitário de São Paulo não corresponderam à realidade. Afirma também que contribuíram para isso os seguintes fatores: não havia notificação obrigatória para a gripe, nem todos os doentes tinham acesso aos serviços de saúde, faltavam funcionários na Repartição de Estatística Demógrafo-Sanitária e prováveis falhas nos registros feitos pelos médicos, os quais não atribuíram à influenza as causas que levavam o enfermo a óbito (Souza, 2005). Para comprovar sua tese de que os efeitos da doença não se davam de forma democrática, o autor analisou os coeficientes de mortalidade dos distritos centrais com os dos periféricos, verificando que "[...] a gripe ceifou mais vidas entre os pobres e os desvalidos, justamente aqueles que habitavam as áreas mais insalubres da capital paulista" (Souza, 2005, p. 571).

No caso do Rio de Janeiro, "A cidade foi progressivamente paralisando até ganhar um ar sepulcral" (Brito, 1997, p. 24). Em meados de outubro a gripe já havia atingido metade da população carioca, fato levou a exposição pública de cadáveres diante da dificuldade em se remover todos rapidamente. Muitos apresentavam estado avançado de decomposição, transformando algumas ruas em ambientes deploráveis. Como se pode perceber no relato a seguir, em determinadas situações, a população decidia ela própria intervir:

As denúncias avolumavam-se nos jornais, à medida que se iam multiplicando os casos similares àqueles descritos em "Cena macabra": "Desde domingo (era quarta-feira) jazia, atirado em plena via pública, na rua do Livramento, um cadáver de mulher grávida, em adiantado estado de putrefação. Moradores debalde pediram à polícia, à Santa Casa e à Saúde Pública a sua remoção para o necrotério. Cansados já e aterrorizados com aquele espetáculo, populares tomaram o alvitre de colocar o corpo no primeiro bonde que passou" (Correio da Manhã, 23.10.1918) (Brito, 1997, p. 24-25).

Além disso, muitas críticas foram feitas à Santa Casa da Misericórdia, a qual possuía o monopólio dos serviços funerários. Quando não se recusava a realizá-los, cobrava valores incompatíveis com a realidade dos mais pobres, "[...] lançando, às ocultas, os mortos nas valas comuns destinadas aos indigentes" (Brito, 1997, p. 25).

Apesar de a gripe ter ocorrido apenas duas décadas após a abolição normativa da escravatura de 1888 por meio da Lei Áurea, não foram encontradas nas bibliografias aqui estudadas menções às consequências da escravização na vulnerabilização da população negra durante a pandemia de 1918. Julga-se importante salientar que o período de escravização foi uma triste marca da história brasileira. A constituição de um sistema de dominação baseado em hierarquização racial advém desse período. "O Brasil nasceu como nação, forjou seu primeiro discurso sobre quem era o seu povo, criou a sua primeira literatura, forjou o seu direito, sustentou a sua monarquia, em um país que estava assentado neste pacto violento de todos contra os escravos (Vellozo, & Almeida, 2019, p. 2156).

 

Discussão

Se por mais de três séculos vivemos sob os efeitos diretos do regime colonialista, há de se esperar que as consequências do período tenham se dado das formas mais perversas e com consequências que perduram até os dias atuais. O Estado brasileiro no pós-abolição negou às negras e aos negros as condições mínimas de subsistência, como o acesso à educação, à saúde, à assistência social, à moradia, entre outros direitos fundamentais para sobrevivência humana (Góes, 2015). Jogada à sua própria sorte, a população negra sofre os efeitos de um meio social forjado através de uma estrutura racista e desigual.

Sobre isso, Frantz Fanon nos ajuda a pensar o lugar do colonialismo nas discussões raciais. De acordo com Alves (2018, p. 25), as reflexões do autor trazem importantes contribuições, pois compreendem que "[...] a raça estabelece a necessidade de entendermos os elementos impostos na colonização que se refletem em superioridade e inferioridade entre os povos, descritos através das ações políticas que impuseram forças contrárias e desiguais desde o contexto colonial".

Para Foucault (2005), é a emergência do biopoder que possibilita não o surgimento, mas a inserção do racismo como mecanismo fundamental do poder. Aqui, os inimigos não são adversários no sentido político do termo, mas um perigo biológico. Para o autor, "[...] o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo" (2005, p. 306).

Mbembe (2018), ao considerar insuficiente e noção de biopoder frente às formas de subjugar a vida ao poder da morte, propõe o conceito de necropolítica e necropoder "[...] para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de "mundos de morte" (p. 146). Dessa forma, Lima (2018) nos adverte que a "bio-necropolítica nos coloca frente aos desafios atuais para pensar a emergência e pulverização microcapilares das relações e mecanismos de poder, principalmente em contextos sociais advindos dos processos de colonização" (Lima, 2018, p. 22).

 

Considerações Finais

Entendemos que tomar as duas pandemias enquanto dispositivos de análise permitiram visibilizar a organização da cidade e compreender o racismo e a raça enquanto racionalidades que permeiam as relações e as decisões de poder, a partir das quais são constituídos sujeitos e sociedade, em específico, brasileiras e brasileiros e Estado brasileiro. Em ambos os contextos, o racismo e a raça apresentam-se como racionalidades capazes de controlar a vida e a morte dos indivíduos, seja por via dos tratamentos ofertados à população negra na sociedade, pelas condições precárias de sobrevivência ou por meio do extermínio em massa.

No Brasil, um país marcado pelos efeitos sombrios provocados pela colonização, por mais de 300 anos de escravização e de um sistema político-econômico na sua fase capitalista neoliberal, os tempos de pandemias evidenciam uma "distribuição desigual da vulnerabilidade" (Mbembe, 2020). Atualizam-se as formas de violências, mas os corpos brutalizados são sempre os mesmos. O corpo negro adquire a admissibilidade de ser exterminado de diferentes maneiras. Por isso a impossibilidade de uma análise histórica do crescimento do terror moderno omitindo-se o período da escravização, descrita por Mbembe (2017) como um dos primeiros exemplos de experiência biopolítica.

A filósofa Carneiro, em sua tese de doutorado, faz o uso do conceito foucaultiano de "dispositivo" atrelado à noção de racialidade, a fim de apontar o racismo como prática estruturante da sociedade brasileira. Por dispositivo entende-se os mecanismos de poder presentes na sociedade que são capazes de outorgar a produção de verdades e normas de vida, como as instituições, as leis, os discursos etc. Essa noção "oferece recursos teóricos capazes de apreender a heterogeneidade de práticas que o racismo e a discriminação racial engendram no meio social, a natureza dessas práticas, a maneira como elas se articulam e se realimentam ou se realinham para cumprir um determinado objetivo" (2005, p. 39).

Assim, "o dispositivo de racialidade" beneficia-se das representações formuladas sobre a negritude ao longo da História, sobretudo durante o período colonial, as quais legitimaram a constituição de senhores e escravos, a fim de ressignificar a subalternidade e a desumanização do indivíduo negro. Ao mesmo passo, produz privilégios à supremacia branca que o arquitetou. Para a autora, são esses privilégios que sustentam a permanência e reprodução do racismo como instrumento de dominação, exploração e exclusão social (Carneiro, 2005).

Desse modo, acredita-se que não levar em consideração raça e racismo como racionalidades presentes nos contextos de desigualdades existentes na sociedade brasileira, ao realizar análises sobre os eventos pandêmicos aqui retratados, contribui com o projeto de poder genocida imposto pelo Estado brasileiro. Vale destacar que o termo genocídio se apresenta como um importante instrumento discursivo para o Movimento Negro. Nascimento (2017) ressignificou e ampliou o uso do conceito a fim de analisar e denunciar o histórico de violência e de vulnerabilidades impostas à população negra ao longo da história, assim como para desmascarar o mito da democracia racial.

Por fim, cabe ressaltar que não se pretende, com este manuscrito, negar as mudanças decorrentes da Covid-19, mas questionar análises sociais que omitem as desigualdades raciais em suas construções, desigualdades essas a partir das quais o Brasil se estrutura. Da mesma forma, as apostas em outras formas de organização social pós-pandemia se colocam inviáveis quando não pensadas a partir da superação das diversas desigualdades sociais que atravessam a vida da sociedade de uma maneira geral, não apenas a brasileira. Isso só será possível com a construção de um projeto de poder baseado em princípios de equidade e da reparação sócio-histórica às populações mais vulneráveis.

 

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Endereço para correspondência:
Laiza da Silva Sardinha
laiza.sardinha@gmail.com

Patrick Silva Botelho
patrickbotelho.9@gmail.com

Marina Wanderley Vilar de Carvalho
mawvilar@yahoo.com.br

Submetido em: 01/06/2020
Revisto em: 22/06/2020
Aceito em: 22/06/2020

 

 

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2 "Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade. Participam dessa definição os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos, e artísticos com objetivo explícito de superação do racismo e da discriminação racial, de valorização e afirmação de histórias e da cultura negras no Brasil, de rompimento das barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade" (Gomes, 2017, p. 23-24).

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