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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O saber no lugar da verdade e a verdade com o saber a mais

 

The knowledge in the place of truth and the truth with the one more knowledge

 

 

José Luís LongoI; Marta Regina de Leão D' AgordII

Psicólogo; Mestre em Psicologia Social e Institucional, UFRGS; E-mail: iosellongo@yahoo.com.br
Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicologia; Professora do PPPGPSI/UFRGS e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS; E-mail: mdagord@terra.com.br

 

 


RESUMO

O artigo faz uma discussão sobre o materna dos quatro discursos de Lacan, formulado no Seminário 17, articulando- o ao Seminário 16. Para isso, colocamos o acento no discurso do psicanalista, mais especificamente no saber ocupando o lugar da verdade e as características que disso resultam. Após, contrapondo ao que encontramos nos quatro discursos, retomamos a releitura lacaniana da aposta de Pascal, em que ele muda a pergunta: de Deus existe? para Eu existe? Concluímos que o reposicionamento do saber a partir do giro do materna já havia aparecido no seminário anterior.

Palavras- chave: psicanálise; quatro discursos; materna; saber.


ABSTRACT

The article discusses Lacan's four discourses mathema, formulated during his Seminar 17, articulating this with the Seminar 16. For this purpose, we emphasize the psychoanalyst discourse, more specifically, the knowledge in the place of the truth. After that, contrasting to our findings in the four discourses, we returned to the lacanian re- reading of the Pascal'sWager, in which he changes the question: from Does God exsit? to Does I exist? We concluded that the repositioning of the knowledge due to the materna rotation had already appeared in the preceding Seminar.

Keywords: psychoanalysis, four discourses, mathema, knowledge.


 

 

 

A descoberta freudiana inaugurou um novo paradigma, que deslocou o peso da razão, no sentido de mostrar que, além da consciência, há um inconsciente que pensa. Lacan, décadas depois, faz uma releitura de Freud, ressituando as descobertas freudianas a partir de um novo prisma, inspirado principalmente na linguística e na matemática. Era uma proposta de Lacan a formalização do que Freud havia desenvolvido conceitualmente, reescrevendo os mitos freudianos a partir das estruturas formais subjacentes a esses mitos. Assim, haveria a chance de contornar equívocos inerentes à tentativa de transmissão de conceitos por uma via textual. E, no que diz respeito a essa formalização, encontra-se na obra de Lacan, mais precisamente em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1992[1969-1970]), o matema dos quatro discursos, uma das realizações mais acabadas que o uso da lógica e da articulação significante permitiu a Lacan. Embora tenha sido nesse seminário que o matema fora formulado, Lacan, na primeira lição, deixa um indício de que essa temática já vinha sendo trabalhada:

Ocorreu-me com muita insistência no ano passado distinguir o que está em questão no discurso como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos ocasional. O que prefiro, disse, e até proclamei um dia, é um discurso sem palavras. (LACAN, 1992[1969-1970], p. 11).

Destacamos que Lacan inicia referindo algo em que insistia desde antes. Se formos considerar essa pista que ele nos oferece, e também que a pesquisa de Lacan, sendo psicanalítica, dava lugar ao que lhe ocorria, podemos inferir que muito das bases da formulação do matema dos quatro discursos pode ser encontrada no que ele desenvolvera no seminário imediatamente anterior, o Seminário, livro 16: de um Outro ao outro (LACAN, 2008[1968-1969]). Partindo dessa consideração, propomos desenvolver uma articulação entre o saber no lugar da verdade, no discurso do psicanalista, formulado em O Seminário, livro 17, e a aposta de pascal, trabalhada por Lacan em O Seminário, livro 16. Nossa aposta é de que lançar luz sobre algo que forneceu a Lacan os pilares para a subsequente proposição do matema dos discursos - aspecto frequentemente negligenciado nas investigações psicanalíticas - permita- nos mapear como essa construção foi sendo elaborada e a relação direta entre lógica e psicanálise que a aposta de pascal evidencia.

 

O saber no lugar da verdade no discurso do psicanalista

Com o matema dos quatro discursos, Lacan estabelece uma máquina em que quatro letras, S1 (significante-mestre), S2 (saber), $ (sujeito) e a (mais- de- gozar), em uma sequencia específica, giram sobre quatro posições fixas (agente, trabalho, verdade e produção). Essas posições são escritas como na figura abaixo (LACAN, 1992[1969-1970], p. 179):

 

 

Ao operar o matema, girando as letras sobre esses lugares fixos, e respeitando que a ordem das letras não se altera, encontram-se como resultado quatro possibilidades de escrita. Essas quatro possibilidades de escrita são os quatro discursos, do mestre, da histérica, do psicanalista e do universitário. Cada um desses discursos tem suas peculiaridades, sua maneira específica de lidar com o impossível advindo da linguagem. No discurso do psicanalista, encontra-se no lugar de agente, o a; no lugar de trabalho, o $; no lugar de produção, S1; no lugar de verdade, Stsub (LACAN, 1992[1969-1970], p. 72):

 

 

Cada elemento, em cada discurso, ocupa um lugar distinto. E, ao ocupar um lugar distinto, o mesmo elemento tem função diferente. Ou seja, o S2, no discurso do psicanalista, ao ocupa o lugar da verdade, tem função diferente do caso em que S2 ocupa o lugar do agente - no discurso universitário. E certamente uma análise do discurso do psicanalista poderia ser feita apoiando-se em qualquer um desses elementos, mas o que nos propomos aqui é situar algo sobre o S2 no lugar da verdade, ou seja, sobre os contornos que a verdade e o saber passam a ter a partir da entrada no discurso do psicanalista.

Gilson (s/d) salienta que a verdade com a qual trabalha a psicanálise não se encontra no matema dos quatro discursos. Essa afirmação causa estranhamento, uma vez que há, no matema dos discursos, o lugar da verdade. Mas qual seria a verdade com que trabalha a psicanálise? E por que a verdade com que trabalha a psicanálise não aparece nem nas letras nem nos lugares do matema? Sobre a verdade em psicanálise, diz Gilson:

Existe, pois, na experiência humana, uma fraqueza fundamental que resulta da perda da abordagem do gozo sob o modo do saber. Essa fraqueza especial não é mais do que a Verdade. Essa hiância, essa fraqueza, é também aquilo que Freud tinha chamado de castração (s/d).

Sublinhamos que é sob o modo do saber que se dá essa perda. Ou seja, há perda no saber. E 2, o saber nos quatro discursos, representa diante de S1 a bateria de significantes S2, S3, S4... Sn. Essa ordenação -2, 3, 4... n - indica que ao incidir em S2, na relação fundamental (S1S2 ), incide em uma estrutura, ou seja, que tem uma ordenação, tem suas regras, as quais não se pode deixar de seguir. Por isso, Lacan afirma que "o pensamento não é regulável a meu bel- prazer, acrescentemos ou não o infelizmente. Ele é regulado." (LACAN, 2008[1968-1969], p. 13). O sujeito, portanto, ao surgir como efeito da incidência de S1 em S2, está fadado, desde esse instante, a uma perda: é impossível escapar da regulação dessa estrutura. Essa perda inevitável ao sujeito é a verdade com que trabalha a psicanálise. No entanto, apesar de trabalhar com ela, ela não é acessível diretamente. Não há como encontrar algo que, para o sujeito, já nasceu perdido. No entanto, essa perda pode ser abordada por uma figura discursiva: o paciente, ao dirigir-se ao analista, tem sua fala organizada em função dessa falta, dessa estrutura que regula. E no matema, em que um dos lugares é o da verdade, não consta uma figura discursiva, não há ali uma fala, mas apenas letras; trata-se de uma estrutura algébrica, e, nessa estrutura, a impossibilidade de se chegar à verdade está apontada. No matema dos quatro discursos, portanto, o lugar da verdade, não contém a verdade, mas apenas afirma que qualquer um dos quatro discursos vai necessariamente se deparar com ela. E o discurso do psicanalista, ao situar S2 no lugar da verdade, tem a sua maneira peculiar de lidar com esse impossível.

O discurso do analista, ao situar S2 no lugar da verdade, implica conceber que a verdade nunca poderá ser enunciada toda; aquilo da verdade a que temos acesso constitui apenas fragmento, indício de que algo da verdade ali se desvela. É por isso que Lacan indica que a verdade permite apenas um semidizer; um dizer que não se completa, que não fecha sentido algum. (LACAN, 1992[1969-1970]). Isso viabiliza que a verdade comporte um enigma, que é da ordem da enunciação: que se sabe que não há saber que possa ser enunciado sem considerar sua enunciação. E considerar o sujeito da enunciação é situá-lo na fenda aberta pelo intervalo instaurado na relação S1 S2, ou seja, que ele está entre dois significantes, sendo efeito dessa relação. Lacan, por diversas vezes em sua obra, fala da experiência analítica como um recurso fundamental para seu processo de elaboração teórica, e essa experiência comporta o encontro com o assujeitamento ao Outro:

Pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro. (LACAN, 2008[1968-1969], p. 178)

O que temos, então, na experiência analítica é o encontro com essa divisão, a sujeição ao campo do Outro. Por isso, no discurso do analista, já se sabe que não há como dominar as arestas do que se fala, pois não seria possível, enquanto efeito de uma relação, antecipar-se a ela dominando o que dela decorrerá. Por isso, Lacan (1992[1969-1970]) diz:

Na estrutura chamada de discurso do analista este último, vejam bem, diz ao sujeito: vamos lá, diga tudo o que lhe passar pela cabeça, por mais dividido que seja, por mais que isso manifestamente demonstre que ou bem você não pensa, ou bem não é absolutamente nada, isso pode funcionar, o que você produzir será sempre válido. (p. 112)

No discurso do analista, portanto, sabe-se da existência de uma verdade que não é suscetível de ser traduzida em um saber. Ainda que se saiba disso, a fala prossegue, delineando a divisão entre os significantes. O saber no lugar da verdade indica que o saber será apenas uma versão da verdade do sujeito. Uma versão possível ao sujeito, ou seja, uma ficção, mas da qual o sujeito possa se valer para dar conta de uma questão. É interessante que Lacan (1992[1969-1970]), ao responder à pergunta o que nos ensina a posição de S2 no lugar da verdade? Recorre ao mito de Édipo e Quimera. Lacan (1992[1969-1970]) diz:

E a quimera propõe um enigma ao homem Édipo, que talvez já tivesse um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar seu nome. Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se torna Édipo.

À pergunta da Quimera, poderia ter dado muitas outras respostas. [...] Creio que vocês veem o que aqui quer dizer a função do enigma - é um semidizer, como a Quimera faz aparecer um meio- corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução. (p. 37)

Lacan brinca com a figura do mito, dizendo, sobre o saber ocupando o lugar da verdade, que há várias versões possíveis. Várias delas poderiam fazer o meio- corpo da Quimera desaparecer. A verdade, como a Quimera, vem pela metade, como semidizer. E, depois de obter alguma resposta satisfatória, a Quimera - ou a questão - some. Foi assim com Hans (FREUD, 1996[1909]). Depois que a mãe de Hans lhe ameaçara, dizendo que se ele pusesse a mão novamente em seu "faz pipi", o doutor o cortaria fora, o menino construira uma fantasia na qual o médico, caso o cortasse, seria apenas para colocar um maior. Freud, diante disso, comenta: "Com a última fantasia de Hans, a ansiedade que foi provocada pelo seu complexo de castração também foi superada, e suas dolorosas expectativas receberam uma transformação mais feliz" (FREUD, 1996[1909], p. 94). Salientamos o caráter de ficção do saber de Hans. Nele, não está em jogo a existência de um lastro de realidade que ampare a história que lhe ocorreu para dar conta do complexo de castração; nenhum analista perguntaria a Hans se o doutor, de fato, comprovadamente, dissera que iria lhe dar um "faz pipi" maior. Mas o que permite a Hans construir sua resposta? A história que Hans elabora não sobreviveria a um escrutínio científico, ela tem arestas, furos, deixa restos; é uma ficção. É assim o discurso do psicanalista, com o saber no lugar da verdade. Mas o que permite ao sujeito trabalhar com essa história incompleta, cujas peças têm um encaixe imperfeito? Em que momento o sujeito se permite montar uma saída ficcional para uma questão? Se formos tomar os quatro discursos para responder, é no momento em que o saber ocupa o lugar da verdade, ou seja, é ao passar ao discurso do psicanalista.

 

Verdade com o saber a mais

Em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, Lacan (2008[1968-1969]) faz um resgate do que ficou conhecido como Aposta de Pascal, uma argumentação racional que tenta mostrar que, sem saber se Deus existe ou não existe, mais vale acreditar que existe. O interessante é que não se trata de uma tentativa de argumentar a favor da existência de Deus, mas sim de calcular o que se poderia ganhar ou perder ao acreditar ou não em Deus. Pascal (1995) parte de duas possibilidades, que ele toma como complementares: ou Deus existe, ou não existe. Considera-se ainda que, caso Deus exista, seríamos, diante de sua infinitude, incapazes de conhecer não apenas o que ele é, mas também se ele é. Isso nos impediria de balizar a escolha a partir de um exercício de racionalidade que tentasse concluir se Deus existe ou não. O que decorre dessa impossibilidade é que a escolha entre viver concernido à doutrina religiosa, mantendo no horizonte o suposto paraíso pós-morte, ou viver tendo em vista a vida terrena, não passaria de uma aposta, uma escolha realizada sem que se possa basear-se em especulações sobre o que está do outro lado. Diante da impossibilidade de uma argumentação visando à existência de Deus, Pascal (1995) tenta esclarecer as possibilidades de ganho e de perda ao escolher acreditar ou não em Deus, e, com isso, calcular em qual opção a aposta seria mais vantajosa. O prêmio máximo dessa aposta é uma infinidade de vidas infinitamente felizes (PASCAL, 1995). Por outro lado, o que se perde, aquilo que o apostador empenha para poder entrar no jogo, é sua vida finita. Se colocarmos frente a frente o que se aposta e o que se pode ganhar, encontramos uma quantidade finita diante de uma infinita. Pascal vale-se do seguinte artifício de cálculo: qualquer quantidade, por maior que seja, somada ao infinito, não aumenta o infinito (oo+1=oo), ou seja, a quantidade finita, diante do infinito se torna irrelevante. E, com esse artifício, Pascal compara o que o apostador poderia vir a ganhar com o que certamente perderia ao apostar. No caso, o apostador estaria apostando algo irrelevante, um nada, sua vida finita, em troca da chance de ganhar tudo, a infinidade de vidas infinitamente felizes. Mas em qual alternativa apostar? O cenário do jogo permite quatro variações: 1) acreditar em Deus e Ele existir - apostador ganha o paraíso; 2) acreditar em Deus e Ele não existir - apostador não perde nada; 3) não acreditar em Deus e Ele não existir - apostador não perde nada; 4) não acreditar em Deus e Ele existir - nesse caso, o apostador perde, pois se considera que nesse cenário ele seria condenado a estar infinitamente no inferno. Atentando às quatro variações, descobre-se que acreditar em Deus implicaria que o apostador ou ganharia o prêmio ou não perderia nada. Já no caso de não acreditar em Deus, o apostador, ou não perderia nada, ou iria para o inferno. Estando postas essas alternativas, a escolha passa a ser uma questão matemática: a aposta que minimiza a possibilidade de perda e maximiza a possibilidade de ganho, de acordo com o cenário montado por Pascal (1995), é a de acreditar em Deus. Com essa escolha, o pior que poderia ocorrer é perder um nada.

Lacan (2008[1968-1969]) retoma a Aposta de Pascal, inserindo- a no campo do Outro. Para Pascal (1995), é impossível não participar do jogo: ou se acredita em Deus ou não se acredita, e todos estariam situados de algum jeito em uma das duas alternativas. Já Lacan (2008[1968-1969]) considera que a participação no jogo só passa a ser inevitável depois que se é interrogado pela pergunta de Pascal - Deus existe ou não existe? -, ou seja, "a partir do momento em que [os apostadores] se autorizarem a ser Eu nesse discurso" (p. 117). O que Lacan faz é interrogar se, nesse jogo em que se aposta, há, no outro lado, o outro jogador. Ou, o Outro jogador. Lacan (2008[1968-1969]) pergunta-se retoricamente "Que é o Outro?" (p. 24), respondendo a seguir:

É o campo da verdade que define como sendo o lugar em que o discurso do sujeito ganharia consistência, e onde ele se coloca para se oferecer a ser ou não refutado. (... ) Nesse nível, o que pode, no Outro responder ao sujeito? Nada, senão aquilo que produz sua consistência e sua ingênua confiança em que ele é como eu (LACAN, 2008[1968-1969], p. 24).

Se Lacan adjetiva como ingênua a confiança da consistência do discurso do sujeito, é porque

o sujeito não encontra consistência alguma. Trata-se de um Outro que tem uma falha fundamental. Lacan (2008[1968-1969]), então, recorre ao conceito matemático de par ordenado, formulando o par S A. Se considerar S um significante e A o outro significante, e se considerar também A como o tesouro dos significantes - o conjunto de todos os significantes - fica colocado um problema de consistência. A relação S A necessariamente deve estar em A, pois este contém todos os significantes, o que levaria à reescrita da seguinte maneira: S (S A). Se for aplicada recursivamente a mesma operação, pode-se estender infinitamente: S (S (S ....). Ou seja, não se encontra o conteúdo de A. Disso, Lacan (2008[1968-1969]) conclui:

Que o grande A como tal tenha em si essa falha, decorrente de não podermos saber o que ele contém, a não ser seu próprio significante, é a questão decisiva na qual desponta o que ocorre com a falha do saber. Na medida em que é do lugar do outro que depende a possibilidade do sujeito, no que ele se formula, é das coisas mais importantes saber que o que o garantiria, ou seja, o lugar da verdade, é, em si mesmo, um lugar vazado. (p. 58).

Então, se, para Pascal, é necessário apostar na existência ou não de Deus, para Lacan essa aposta só é inevitável se considerar a consistência do sujeito jogador como dada. Lacan (2008[19681969]), então, reposiciona a pergunta: "o que está verdadeiramente em jogo na aposta de Pascal é uma outra questão (...) -será que Eu existe ou Eu não existe?" (p. 117). Portanto, se para Pascal tratava-se de um futuro, de ganhar ou perder em outra vida, Lacan situa a aposta no presente, o que se ganha ou se perde no presente. E, Lacan, ao ler Pascal, atenta a uma sutileza: Pascal diz que o apostador perderia um nada. O artigo um positiva o nada, faz dele alguma coisa, ou seja, com o um incluído talvez despretensiosamente por Pascal, o nada deixa de ser nada. E isso, que o apostador tem a perder, na versão lacaniana da aposta, é o a. Nela, o apostador deve escolher entre o eu e o a. Entre apostar na consistência do Outro - o que daria a consistência do Eu - ou apostar na falha que situa o sujeito como um efeito da relação entre significantes.

Uma aposta no Eu recai no mito do eu falo, mencionado por Lacan (2008[1968-1969]) na lição Da mais valia ao mais- de- gozar. Se o eu começa a falar, tropeça, gagueja, e aí já não é mais esse eu falando, ele escapa. Quem enuncia isso que é enunciado sem querer, sem que se saiba quem enunciou? Lacan (2008[1968-1969]) diz que o discurso psicanalítico "se coloca nesse lugar em que o sujeito pensante percebe desde logo que só pode se reconhecer como efeito da linguagem" (p. 157). Ou seja, se falamos o que não sabemos, é porque estamos na condição de efeito - e não de causa. O eu, do mítico eu falo, já é efeito, e por isso não poderia dominar a fala. Mas efeito de quê? E o que é isso que não sabemos? Essas duas perguntas norteiam o que vem a seguir.

A psicanálise faz sua aposta na falta a que se está sujeito na linguagem, a partir da qual o $ é efeito. Lacan (2008[1968-1969]) refere que:

(... ) a partir do momento em que se monta a mesa de jogo, e Deus sabe se ela já está montada, o sujeito, antes de ser pensante, primeiro é a. E é depois que se coloca a questão de ligar a isso o fato de que ele pensa. Mas ele não precisou pensar para ser fixado como a. Isso já está feito, ao contrário do que se pode imaginar em razão da lamentável carência, da futilidade cada vez mais flagrante de toda a filosofia, isto é, que é possível virar a mesa do jogo. (p. 157 e 158).

Reposicionar o sujeito como efeito, que ele só pensa depois, portanto, vira a mesa. Que seria essa virada de mesa? Ao afirmar que éa, Lacan, apesar do que o verbo ser poderia sugerir, não está dando materialidade a um ser. Ele está acentuando a dimensão da falta: "o objeto a é o furo que se designa no nível do Outro como tal, quando ele é questionado na sua relação com o sujeito" (LACAN, 2008[1968-1969], p. 59). Trata-se, portanto, de que o Outro com quem se aposta não é consistente desde antes do sujeito pensar (em apostar). Essa é a virada de mesa. O a só é nada se comparado à promessa de infinidade de vidas infinitamente felizes, só assim é válida a operação ∞+a=∞. Mas no caso de não se aceitar essa promessa - o caso da inconsistência do Outro -, ocorre que:

(... ) se A não existe, ou seja, se a promessa não é aceitável, se nada do que se situa além da morte ainda é sustentável, também temos aí um zero, mas um zero que não quer dizer nada, a não ser que a aposta, aquela do outro lado, representada por co, está perdida (LACAN, 2008[1968-1969], p. 143).

Com isso, o que temos é que a psicanálise faz sua aposta no a, que causa o sujeito. Sendo que nessa aposta, o Eu fica como efeito imaginário da relação de significantes. É por estar entre dois significantes, na relação em que um significante o representa frente a outro significante (S1 S2) que não é possível ao sujeito circunscrever-se em seu significante, uma vez que não há um significante específico que lhe seja seu. Se o que é mais próprio a um significante é que ele é diferente de todos os demais, o que temos é que ele encontra o que tem de seu nos outros, sendo impossível, então, circunscrever-se em si mesmo. Mas o mítico eu falo faz essa tentativa, tenta ser causa de sua fala, manter-se reduzido ao S1, mas na verdade ele é efeito de S1 S2. E, essa verdade, basta que se faça funcionar a linguagem, para que ela se mostre, ou, usando o verbo escolhido por Lacan (2008[19681969]), fale:

Eu, a verdade, falo, mas não a fiz dizer, por exemplo: Eu, a verdade, falo para me dizer como verdade, nem para lhes dizer a verdade. O fato dela falar não significa que ela diga a verdade. É a verdade, e ela fala. Quanto ao que ela diz, vocês é que têm de se haver com isso. (p. 169).

A verdade fala, mas ao falar, ela não fala a verdade. É essa a maneira de Lacan novamente colocar o destaque no dizer, não no dito, pois é no dizer que se pode encontrar a verdade falando. Ou melhor, é com o dizer que se produz essa verdade que fala. Que verdade? Que há um impossível no dizer: "que o real é o impossível equivale também a enunciar que ele é apenas a apreensão mais extrema do dizer, na medida em que o dizer introduz o impossível, e não simplesmente o enuncia" (LACAN, 2008[1968-1969], p. 64). As histéricas com quem Freud aprendeu psicanálise tinham essa verdade no corpo, um corpo em que a verdade falava. Tentavam que o corpo lhe obedecesse, mas não conseguiam por inteiro, pois sintomas - estranhos ao eu (falo) - com um saber no qual elas não se reconheciam interpunham-se entre o que queriam fazer com o corpo e o que de fato acontecia com ele. Lacan (2008[1968-1969], p. 195), em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, escreve uma fórmula que apresenta de maneira precisa como se articula esse saber, do qual não sabemos, com a verdade.

 

 

O denominador do lado esquerdo da fórmula nos diz que há uma verdade da qual o saber está subtraído, ou, nas palavras de Lacan (2008[1968-1969]), "há em algum lugar uma verdade que não se sabe" (p. 195). Se levarmos em conta o numerador do mesmo lado da fórmula, é possível dizer que há um saber sobre a verdade da qual não se sabe, ou seja, que se sabe que a verdade tem em si algo do qual é impossível saber. Trata-se da posição da douta ignorância. Essa é a verdade sobre o saber - a relação do meio na fórmula. E saber que há esse impossível - a verdade - é um saber a mais que se pode obter dessa relação, ou seja, a verdade com um saber a mais, à direita da fórmula. Trata-se de uma transformação da posição do saber, que traz consequências na articulação entre saber e a verdade em relação a qual ele falta. Sobre esse momento em que ocorre a operação no saber, Lacan diz que é "quando alguém lhes apresenta coisas que são significantes e isso não lhes diz nada e vem um momento em que vocês se libertam, e de repente aquilo quer dizer alguma coisa" (LACAN, 2008[1968-1969], p. 196). É com o saber a mais, o clarão, que podemos rir do ato falho, quem goza nesse caso é o sujeito. Com isso, podemos situar um pouco melhor a aposta em a que faz a psicanálise. Apostar no a é apostar na falta. Lacan diz que "Nossa experiência, como dizem, na análise confronta- nos a todo instante com um efeito de perda. Ela atesta que esse efeito é encontrado a cada passo" (2008[1968-1969], p. 125). A perda, portanto, está a cada passo, ou seja, avança-se um passo, mas simultaneamente há uma perda. O que se ganha? Diante de um lapso, em vez de correr a dominá-lo para que não falhe, pode-se usufruir dele. Ou seja, usufruir do lapso implica suportar que o Outro não seja completo. Lacan faz uma associação entre o riso no chiste e a falha do saber: "ele [o chiste] provoca o riso, em suma, por estar propriamente preso à falha inerente ao saber" (LACAN, 2008[1968-1969], p. 62). E o paradoxal é justamente que, na falha, está o ganho, ou seja, fazer da verdade com saber a menos, o não saber, um saber a mais.

 

O giro em direção ao discurso do psicanalista e o saber a mais

O discurso do psicanalista é o único dentre os quatro discursos em que a verdade - que há um real impossível inerente ao sujeito - é concernente ao discurso, ou seja, em que não se tenta eliminar o enigma. Isso implica que, em qualquer um dos outros três discursos, essa incompletude, apesar de estar colocada - o lugar da verdade denuncia a incompletude -, está como algo que deve ser eliminado. Tendo isso em vista, e tomando o movimento de rotação do matema em direção ao discurso do psicanalista, temos que, no que diz respeito à verdade, o giro faz um movimento de ela deve ser eliminada a ela concerne. Há uma mudança radical nessa passagem. Radical não somente por serem posições divergentes, mas porque não há continuidade entre elas: ou se está na posição analítica ou se está em uma das outras três; elas são entre si, mutuamente excludentes. E essa mudança radical, um salto qualitativo, encontrada na entrada no discurso analítico, está também no que Lacan (2008[1968-1969]) trabalha em O Seminário, livro 16. O resultado da operação é a verdade com o saber a mais. Ou seja, não é verdade com mais saber - o que seria um pouco mais de saber na verdade -, mas a verdade com outra coisa, com o saber a mais. Com ele, sabe-se que há uma verdade sobre a qual não se sabe e que, por ser impossível de ser traduzida em um saber, dela só temos notícia por intermédio daquilo que Freud chamou de formações do inconsciente. Esse é o saber a mais que a psicanálise oferece.

A estrutura discursiva inclui, portanto, a verdade com um saber a mais e a verdade com saber a menos. É no desencontro entre elas que o sujeito passa à possibilidade de usufruir do enigma, de seu chiste, ou, parafraseando Lacan, de sua Quimera. Já no matema, é o objeto a que move o discurso, abrindo a possibilidade do sujeito passar a se situar como efeito de uma estrutura.

 

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos". In: FREUD, S. Duas histórias clínicas ("opequeno Hans" e o "Homem dos ratos"). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v. X, 1996[1909]. p. 13-136.         [ Links ]

GILSON, J. P. La topologie de Lacan: une articulation de la curepsychoanalytique. Montreal: Editions Balzac, 1994.         [ Links ]

GILSON, J. P. A topologia lacaniana: uma apresentação do sujeito. Tradução de José Luiz Caon. [S.l.]: [s.n.], s/d. Não comercial.         [ Links ]

LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992[1969-1970]         [ Links ].

LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008[1968-1969]         [ Links ].

PASCAL, B. Pensées andother writings. Oxford: Oxford University Press, 1995.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 13/8/2012
Aprovado em: 23/11/2012