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Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.spe Fortaleza 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21iesp1.e9909
ESPECIAL: PSICOLOGIA & FENOMENOLOGIA
O cuidado com a criança na clínica fenomenológico-existencial
Child Care in the Existential Phenomenological Clinic
El Cuidado con el Niño en la Clínica Fenomenológico-Existencial
Le Soin avec des Enfants chez la Clinique Phénoménologie Existentielle
Lívia Grijó HalfeldI; Cristine Monteiro MattarII
IMestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduanda em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial no NUCAFE/Unyleya
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutora em Filosofia pela Universidade de Évora. Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
Neste artigo buscamos refletir sobre o cuidado clínico com crianças baseado na analítica do Da-sein de Martin Heidegger e na psicologia fenomenológico-existencial. Iniciamos com uma breve retomada histórica do surgimento da noção de infância. Em seguida, analisamos existencialmente o sercriança do ponto de vista filosófico, tomando como referência a fenomenologia hermenêutica empreendida em Ser e Tempo. A criança, tal como todo ente humano, possui o modo de ser do Da-sein, ser-aí. Sendo-no-mundo, está desde sempre e de início na disposição e compreensão das orientações e interpretações já dadas e sedimentadas pela tradição. Em nosso tempo, a doação de sentido que já nos dispõe como ente utilizável é desvelada como a técnica moderna. No horizonte da técnica, a criança, assim como todos nós, é convocada desde sempre a render, a produzir resultados que já estão definidos a priori. Ao corresponder ou não a este apelo, podem surgir os chamados problemas de adaptação ou desenvolvimento, considerados falhas neste horizonte epocal. Frente a esses problemas, o psicólogo clínico é chamado a ajustar o que "não vai bem", ocupando um lugar que poderá ser o de adaptador ao modo técnico calculante ou o da meditação serena sobre ele. Nossa aposta é nessa segunda opção, em uma prática de cuidado antepositivo-libertador que, com a criança e sua família, busque ampliar as compreensões ali em jogo, permitindo que novos sentidos e possibilidades de lida com o existente nessa fase da vida possam vir à luz sem a rigidez dos enquadres identitários que vigoram em nosso tempo. Iniciamos o artigo com uma seção que procura ir além do registro historiográfico do fenômeno infância; introduzimos uma análise ontológico-fundamental do fenômeno; propomos modos possíveis de cuidado com a criança, destacando-se a lida na clínica psicológica, que não estejam cegamente entregues ao uso técnico; e, por fim, narramos uma situação clínica.
Palavras-chave: cuidado; criança; clínica; fenomenologia; Heidegger.
ABSTRACT
In this article, we seek to reflect on clinical care for children based on Martin Heidegger's Da-sein analytics and existential-phenomenological psychology. We begin with a brief historical review of the emergence of the notion of childhood. Then, we analyze existentially being-a-child from a philosophical point of view, taking as reference the hermeneutic phenomenology undertaken in Being and Time. The child, like every human being, has the way of being of Da-sein, being-there. Being in the world, it is always and from the beginning in the disposition and understanding of the orientations and interpretations already given and settled by tradition. In our time, the donation of meaning that already disposes of us as a usable entity is unveiled as the modern technique. In the horizon of technique, the child, like all of us, is always called upon to surrender, to produce results that are already defined a priori. By responding or not to this call, so-called adaptation or development problems may arise, considered failures in this epochal horizon. Faced with these problems, the clinical psychologist is called upon to adjust what "does not go well", occupying a place that could be that of adapting to the calculating technical mode or of calmly meditating on it. Our bet is on this second option, in an anti-positive-liberating care practice that, with the child and his family, seeks to expand the understanding there at stake, allowing new meanings and possibilities of dealing with what exists at this stage of life to come to light without the rigidity of the identity frameworks that prevail in our time. We begin the article with a section that seeks to go beyond the historiographical record of the childhood phenomenon; we introduce an ontological-fundamental analysis of the phenomenon; we propose possible ways of caring for the child, highlighting the ones in the psychological clinic, which are not blindly given over to technical use; and, finally, we narrate a clinical situation.
Keywords: care; kid; clinic; phenomenology; Heidegger.
RESUMEN
En este trabajo buscamos reflexionar sobre el cuidado clínico con niños basado en analítica del Da-sein de Martin Heidegger y en la psicología fenomenológico-existencial. Iniciamos con una rápida reanudación histórica del surgimiento de la noción de niñez. Luego, analizamos existencialmente el ser-niño del punto de vista filosófico, tomando como referencia la fenomenología hermenéutica realizada en Ser y Tiempo. El niño, tal como toda persona humana, posee el modo de ser del Da-sein, ser-ahí. Siendo-en-el-mundo, está desde siempre y de inicio en la disposición y comprensión de las orientaciones ya dadas y sedimentadas por la tradición. En nuestro tiempo, el hecho de donar sentido que ya nos dispone como persona utilizable es revelado como la técnica moderna. En el horizonte de la técnica, el niño, así como todos nosotros, es llamada desde siempre a rendir, a producir resultados que ya están definidos a priori. Al responder o no a este llamamiento, pueden surgir los dichos problemas de adaptación o desarrollo, considerados fallos en este período. Ante estos problemas, el psicólogo clínico es llamado para ajustar lo que "no va bien", ocupando un sitio que podrá ser el de adaptador al modo técnico calculista o el de la meditación serena sobre él. Nuestra apuesta es en esta segunda opción, en una práctica de cuidado ante positivo- libertador que, con el niño y su familia, busque ampliar los entendimientos en juego, permitiendo que nuevos sentidos y posibilidades de lidiar con lo existente en esta fase de la vida puedan venir a la luz sin las cuestiones identitárias que rigen en nuestro tiempo. Iniciamos el artículo con una sección que busca ir más allá del registro historiográfico del fenómeno niñez; introducimos un análisis ontológico-fundamental del fenómeno; propusimos modos posibles de cuidado con el niño, enfocando el trabajo en la clínica psicológica, que no estén ciegamente entregados al uso técnico; y, por fin, narramos una situación clínica.
Palabras clave: cuidado; niño; clínica; fenomenología; Heidegger.
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous cherchons à réfléchir sur le soin clinique des enfants à partir de l'analytique du Da-sein de Martin Heidegger et sur la psychologie phénoménologique existentielle. Nous commençons par un bref rappel historique de l'apparition de la notion d'enfance. Ensuite, nous avons analysé de façon existentielle l'Être-enfant d'un point de vue philosophique, en prenant comme référence la phénoménologie herméneutique exécuté en Être et Temps. L'enfant, comme tout être humain, a la manière d'être du Da-sein, c'est-à-dire, Être-là. L'être-au-monde, il a toujours été et, aussi, depuis l'origine dans la disposition et la compréhension des orientations et des interprétations déjà données et fixées par la tradition. Actuellement, la donation de sens qui nous dispose déjà comme entité utilisable se dévoile comme la technique moderne. Dans l'horizon de la technique, l'enfant, comme nous tous, est toujours appelé à s'abandonner, à produire des résultats déjà définis a priori. En répondant ou non à cet appel, des problèmes dits d'adaptation ou de développement peuvent apparaître, considérés comme des échecs dans cet horizon d'époque. Face à ces problèmes, le psychologue clinicien est appelé à ajuster ce qui « ne va pas bien ». En faisant ça, il occupe une place qui pourrait être un adaptateur au mode technique calculateur ou de le méditer sereinement. Nous croyons en cette seconde option, c'est-à-dire, en une pratique de soins prépositifs libérateur qui, avec l'enfant et sa famille, cherche à élargir les compréhensions qui y sont en jeu, permettant des nouvelles significations et des possibilités pour cette étape de la vie à venir au premier plan sans la rigidité des cadres identitaires qui prévalent à notre époque. Nous commençons l'article par une section qui dépasse l'enregistrement historiographique du phénomène de l'enfance ; nous introduisons une analyse ontologique-fondamentale du phénomène ; nous proposons des modes de soins possibles de l'enfant, en mettant en évidence la clinique psychologique, qui ne soient pas aveuglément voués à l'usage technique ; et, enfin, nous racontons une situation clinique.
Mots-clés: soins; enfant; clinique; phénoménologie; Heidegger.
Para Além do Registro Historiográfico do Sentimento de Infância
Segundo o historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), em seu conhecido estudo sobre a infância e a família, não havia, na sociedade medieval, o sentimento de infância, isto é, a consciência da particularidade infantil que distingue a criança do adulto. Na época, as crianças muito pequenas, por sua improvável sobrevivência, não "contavam" e, assim que podiam viver sem a solicitude de sua mãe ou ama, ingressavam na sociedade dos adultos e não se distinguiam mais destes. Somente por volta dos séculos XVI e XVII pôde-se observar historicamente o surgimento de outro olhar, que constitui o que passamos a entender como infância. Para Ariès (2006), em uma sociedade em que a vestimenta era tão importante, a produção, entre as camadas mais ricas, de um traje peculiar à infância seria um marco na constituição das crianças em uma sociedade separada dos adultos.
Ariès (2006) dá destaque, ainda, ao desenvolvimento desse sentimento de infância. O primeiro deles, segundo o historiador, foi caracterizado pela "paparicação" surgida no meio familiar, na companhia das crianças pequenas, que, por sua ingenuidade, gentileza e graça, tornavam-se uma fonte de distração e relaxamento para os adultos, os quais não mais hesitavam em admitir o prazer provocado por suas maneiras e por "paparicá-las". O segundo sentimento de infância, ao contrário, proveio dos moralistas e educadores do século XVII, servindo de inspiração para toda a educação até o século XX. Tais moralistas estavam preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes, sendo o apego à infância refletido por meio do interesse psicológico e da preocupação moral. Considerada um ser imperfeito, a criança deveria ser educada para tornar-se uma pessoa honrada, honesta e racional. No século XVIII, esses dois sentimentos de infância teriam se associado, com a criança assumindo um lugar central na família, que passa a assumir uma função moral de formar seus filhos, de prepará-los para a vida.
Os fatos históricos apresentados por Ariès (2006)nos ajudam a compreender nosso modo de lida atual com a criança, uma vez que as cristalizações sociais em relação às crianças relatadas pela historiografia apontam para o acontecimento histórico do ser no tempo que é o nosso. Como afirma Heidegger (2014, p. 57), é somente com base na historicidade, isto é, no acontecimento histórico do ser, que os fatos históricos "e tudo que pertence historicamente à história do mundo, torna-se possível".
Em sua historiografia das mentalidades, Ariès (2006) revela uma modificação ôntica na correspondência e lida com o ser dos entes e, consequentemente, com o ser da criança e da família em dado momento da história ocidental, que responde à mudança do nosso horizonte epocal. O autor atribui a transformação da família à diferenciação na forma de perceber a criança. Em diálogo com a obra do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), podese analisar essa mudança como sendo da existência do homem como um todo, na correspondência entre homem e ser. A criança aparece na cena moderna a partir de outro desvelamento, não mais como vida supérflua, dispensável, mas como vida útil, recurso a ser investido, formado, desenvolvido para se tornar produtivo. Heidegger (2007) nomeia o atual horizonte histórico e de sentido, no qual está em jogo outro modo de correspondência entre homem e ser, de era da técnica. Nesta, os homens e as coisas desvelam-se para nós como recursos, em um registro de utilidade e produtividade que rege toda a nossa vida em sociedade. Nessa conjuntura epocal, devemos nos ocupar com aquilo que é útil, inclusive cada um de nós já se mostra ao modo da utilidade. É útil aquilo que desvela algo ao uso prático, que serve para alguma coisa, que dá lucros e produz resultados palpáveis.
A essência da técnica moderna é a com-posição (Ge-stell), que é o apelo de exploração que desafia o homem a dis-por o real, a requerer o que se descobre, ao modo da dis-posição, da subsistência e da exploração. A técnica é o modo histórico de vigência da realidade como algo a ser requerido, extraído, estocado. Nela, o real se desvela como encomenda, em que já se conta com, sendo a natureza considerada um fundo de reserva a ser explorado e armazenado. Heidegger não condena a tecnologia, como alguns interpretaram equivocadamente, uma vez que a técnica moderna não é um efeito dos instrumentos técnicos, mas ela é a conjuntura que os torna possíveis, e também o destino de nossa época, não uma deliberação humana. Desse modo, o filósofo sugere uma meditação sobre esse horizonte histórico e seus efeitos para com ele estabelecer uma relação mais livre, isto é, não viver entregue ao esquecimento da técnica como o espírito da época, que ameaça dominar toda a existência, e não permanecer na ilusão de que a possuímos e controlamos, quando é o contrário, em geral, que acontece.
Nas mudanças históricas apontadas por Ariès (2006) já vemos presente o espírito da técnica moderna no lugar novo designado à criança e sua família. Se, antes, a formação se dava pelo aprendizado prático do trabalho artesanal, a nova formação é voltada para a produção de mão de obra em massa, disciplina, que é preparada na escola e, em breve, aproveitada na fábrica e na caserna. Essas transformações são sedimentadas, tornam-se tradição e, com algumas mutações, estão ainda presentes na atual compreensão e lida cotidiana com as crianças. Não mais a formação para a fábrica e a caserna, mas para a empresa.
Como o objetivo aqui não é de uma retomada exaustiva das diversas fotografias da infância que se tornaram tradição, já reladas por autores como Ariès (2006) e Postman (1999), buscamos, a partir da obra heideggeriana, uma compreensão mais originária do ser-criança e de nosso modo atual de lida com as crianças, obscurecidos pela tradição, bem como um cuidar que não seja apenas um cuidar para algo, que vise resposta, resultado, em uma correspondência irrefletida com a técnica moderna, pois, embora não se possa romper definitivamente com essas determinações, podemos delas nos apropriar.
A Analítica Existencial e o Sercriança
Na perspectiva fenomenológico-existencial, tendo em vista essa compreensão mais originária do ser criança, não tomamos a criança como ser em si, como natureza ou identidade. A criança, assim como o adulto, é compreendida na fenomenologia existencial, como um ente cujo modo de ser é ser-aí. Compreender o ente humano de tal maneira implica em abandonar todas as representações encapsuladas objetivantes do homem utilizadas tradicionalmente pela psicologia e pela psicopatologia, tais como sujeito, eu, pessoa, psique ou consciência (Heidegger, 2001).
Na clínica psicológica, essa compreensão da criança enquanto ser-aí implica na construção de um cuidado ôntico que se diferencia do cuidado que tem sido cotidianamente ofertado a crianças. Um cuidado que não busca dirigir a criança, tutelá-la, mas ajudá-la a se aproximar de si mesma e cuidar de si. Trata-se, então, de outro modo de estar com a criança, que busca suspender as compreensões sedimentadas para o ser criança presentes na tradição, que tomam a criança como ser frágil e dependente, ou como um mero produto do meio, ente a se desenvolver em etapas etc., para retomar a compreensão heideggeriana do homem como ontologicamente cuidado, para o qual cuidar de si é algo que lhe é constitutivo e que acontece senão na relação com os demais entes.
Heidegger (2014) afirma que o homem é um ente que está em relação privilegiada com o ser. Em sua obra de maior difusão, Ser e Tempo, Heidegger (2014) irá se dedicar a realizar uma analítica existencial do ser-aí (Da-sein), para referir-se ao ente humano, como sendo o modo de ser do homem, o único ente que não é simplesmente dado, que ek-siste e que, existindo, constitui o aí. O termo Da-sein, já existente na língua alemã, traduzido como ser-aí ou ser-no-mundo, ganha uma nova conotação com o autor, que busca retomar seu sentido originário. O ente Da-sein é esse ente que é sempre esse aí (Da), essa abertura, que guarda o acontecimento do ser (sein). Este aí não nos aponta, então, para definição de um determinado lugar no espaço, mas indica a abertura ao ser no qual o ser-aí sempre se encontra, na qual os entes que vêm a seu encontro no mundo podem vir à luz, inclusive ele mesmo para si mesmo. Devido a isso, Heidegger (2014) afirma que a essência do ser-aí se encontra em sua existência, ek-sistencia, isto é, no fato dele ser esse ente que está sempre colocado (do latim sistere) para fora (do latim ek) de si mesmo, aberto e exposto ao ser.
O ser-aí não é compreendido, portanto, como um ente dotado de uma interioridade, mas como esse ente que se encontra jogado, lançado nesse mundo que é o seu. Pertence essencialmente ao ser-aí o ser-em-um-mundo, o ser em um determinado horizonte de sentido. O homem não está, nesse sentido, "dentro" do mundo, compreendido como algo emsi, de ordem material, simplesmente presente. O homem é numa relação de cooriginariedade com essa estrutura de sentido, contexto de significação, que é mundo (Sá, 2005).
O ser-aí é, pois, ser-no-mundo. Em sendo no mundo, ele é uma abertura para as possibilidades que lhe vêm à luz nessa clareira, o que faz do ser-aí um poder-ser tomado por essas possibilidades. O ser-aí está marcado, portanto, por uma negatividade e uma indeterminação que lhe são estruturais, uma vez que, em sendo esse poder-ser-no-mundo, não há nada que o defina positivamente, nenhuma determinação que o essencialize, nenhuma res, estando o seu ser em jogo em sua existência. Daí sua absorção inicial no mundo da impessoalidade cotidiana.
O ser-aí nunca é, então, uma imanência, algo que está encapsulado em si mesmo. Ele é sempre esse ente que está jogado para fora de si mesmo, no mundo, numa relação com os entes que vêm a seu encontro nessa abertura ao mundo que ele sempre é. O ser-aí é ontologicamente relação, ontologicamente cuidado. Mesmo o estar sozinho é um modo de ser-com, pois só para o ente que é ser-com o outro pode faltar.
O existencial cuidado (Sorge) é a estrutura ontológico-existencial articuladora da multiplicidade existencial do ser-aí. Na obra Ser e Tempo, Heidegger (2014) afirma que a totalidade estrutural do ser-aí não se encontra numa soma, numa montagem dos existenciais. Todas as estruturas ontológico-existenciais que constituem o ser-aí, a saber, a existência, o ser-no-mundo, ser-com, entre outras que não foram aqui apresentadas, como discurso, disposição, compreensão, angústia etc., se copertencem, estão imbricadas entre si, e essa multiplicidade existencial não desfaz a unidade que é ser cuidado.
O cuidado fala sobre o modo como o ser-aí, em sendo essa abertura ao ser, desvela o ser dos entes que vêm ao seu encontro no mundo, inclusive ele mesmo para si mesmo. Desse modo, o sujeito empírico da tradição, pela qual passamos a definir a nós mesmos, é tardio em relação a essa abertura originária que é nada de ser. O cuidado é a estrutura relacional sem a qual o homem, enquanto ser-aí, jamais seria esse ente que é. Ele é a condição ontológica de possibilidade para que qualquer cuidado, em seu sentido ôntico, se dê. É porque o ser-aí é ontologicamente cuidado, relação, que pode assumir modos diversos de cuidado ôntico, que pode inclusive descuidar-se de si e dos outros.
Segundo Heidegger (2014), o ser-com se estabelece a partir de diferentes modalidades de cuidado. Com aqueles entes que não têm o mesmo modo de ser do homem, aqueles entes simplesmente-dados, como a mesa e a cadeira, o ser-aí se ocupa. Já com aqueles entes que são também ser-aí, o ser-aí se preocupa.
Heidegger (2014) dá destaque em sua obra a dois modos extremos de preocupação, a preocupação substitutiva e a preocupação antepositivo-libertadora. Na preocupação substitutiva, o ser-aí salta para o lugar do outro, assumindo seu lugar em uma ocupação na qual esse Da-sein deveria se realizar. Deslocado de sua posição, retraído, esse Da-sein assume posteriormente essa ocupação como algo já pronto ou a dispensa completamente.
Já na preocupação antepositivo-libertadora, o ser-aí salta não para ocupar o lugar do outro, mas para se antecipar a ele em sua possibilidade existenciária, isto é, ôntica de ser. Objetiva-se, com isso, não uma retirada do cuidado do outro e sim a devolução (no sentido de trazer à atenção, pois o cuidado não foi perdido, sempre esteve lá) ao outro desse cuidado como tal. Está em jogo, nesse modo de preocupação, o relacionar-se autenticamente com o outro ser-aí, isto é, o relacionar-se com nosso coexistente, compreendendo-o não como mais um ente simplesmente-dado, mas como a abertura ao ser que é.
Como dissemos anteriormente, os traços ontológico-existenciais até aqui apresentados, a saber, existência, ser-no-mundo, ser-com, cuidado, indeterminação e negatividade, são apenas alguns dos traços que estruturam o modo de ser do ser-aí. Esses existenciais, bem como aqueles outros que aqui não citamos, estão presentes em qualquer experiência de mundo do ser-aí, incluindo aquele momento da vida do homem em que ele é reconhecido em nossa sociedade como criança.
É certo que na obra de Heidegger não encontramos muitas menções ao ser-aí da criança, fato compreensível, uma vez que o objetivo da obra do filósofo não era elucidar o ser-aí em sua totalidade, mas apenas as estruturas ontológico-existenciais do ser-aí necessárias à elaboração de questão do ser, até então olvidada pela metafísica. Heidegger buscou, durante toda sua obra, ainda que seguindo caminhos distintos para tal, demorar-se na questão do ser, não para definir o que é o ser, deixando de lado a diferença ontológica, isto é, a diferença entre ser e ente, como fez a tradição metafísica a qual o autor é crítico, mas para refletir sobre o sentido deste. Para a elaboração da questão sobre o sentido do ser, o ser-aí tinha um papel fundamental, uma vez que, como dito anteriormente, ele é esse ente que, em sendo abertura para o ser, encontra-se em uma relação privilegiada com este.
Tal fato não impede, no entanto, de nos aproximarmos de uma compreensão fenomenológico-existencial da criança como ser-aí, uma vez que, ao elucidar na analítica existencial os existenciais constitutivos do ser-aí, Heidegger (2014) já nos apresenta a constituição do ser-aí da criança ao afirmar, em sua obra Introdução à Filosofia (Heidegger, 2009), que, se o homem em suas primeiras etapas de vida, bem como o homem pré-histórico ou nos primórdios, for compreendido como homem, ele não pode ser simplesmente diverso em sua essência. Mas, como apontam Feijoo, Protásio, e Gill (2015), ao buscarmos compreender as crianças dessa maneira, como entes cujo modo de ser é também ser-aí, frequentemente surgem questões relativas à possibilidade de pensarmos a criança como ente marcado por uma indeterminação e negatividade estruturais, tendo-se em vista fenômenos compreendidos não apenas pela psicologia, mas também pelo senso comum, como fruto de uma determinação biológica, como o choro do recém-nascido.
Na obra heideggeriana encontramos, no entanto, outra compreensão desses atos. Para Heidegger (2009), atos do recém-nascido, como o choro e o movimento agitado no espaço, são atos que não possuem uma finalidade, mas que estão, contudo, dirigidos para..., que possuem, então, uma orientação. Orientação significa um estar-direcionado a..., estar-direcionado para..., estar-direcionado para fora de... Os atos de um recém-nascido não provêm, portanto, de uma determinação biológica, eles têm um direcionamento, têm uma intencionalidade, isto é, são atos direcionados para alguém ou para algo, para o mundo. São os primeiros atos do ser-aí em seu ser-no-mundo, em sua abertura ao mundo. A intencionalidade1 é constitutiva do ser-aí; todo e qualquer ato é intencional, dando-se no mundo, na cooriginariedade entre homem-mundo.
Heidegger (2009) afirma, ainda, que o que determina nosso ser-aí inicialmente é a quietude, o calor, a alimentação, o estado de sono e a sonolência. Com isso, poderíamos concluir que o ser-aí estaria, em princípio, em certa medida, encerrado em si mesmo, mas isso seria um equívoco de nossa parte, pois esses primeiros atos têm um caráter de susto ou choque do recém-nascido frente a isso que está fora, no mundo. Tal assustar-se representa uma sensibilidade à perturbação, uma forma originária de reparar em algo e deixar esse algo ser. Aponta para uma perplexidade frente àquilo que está aí, mas que ainda se encontra velado para o recém-nascido. O assustar-se significa que havia antes uma disposição de ânimo que é perturbada quando entra em cena um desconforto, que deverá ser repelido (Heidegger, 2009). Tais atos falam, portanto, desse ser lançado, jogado no mundo, numa relação com as coisas e com os demais Da-seins que constitui o homem.
A partir de tal compreensão, podemos concluir que a criança, desde seus momentos iniciais de vida, não é um sujeito encerrado, encapsulado, em si mesmo, mas um ente que está sempre voltado para fora junto a... Os entes que vêm ao seu encontro já estão manifestos para a criança, apesar de ainda não haver nenhum voltar-se especificamente para esses entes. Um estado de sonolência, por exemplo, apenas indica que esse comportar-se em relação a... ainda não possui uma finalidade determinada (Heidegger, 2009).
Heidegger (2009, pp. 132-133) afirma que nessas primeiras etapas da vida:
O ser junto ao ente ainda está, em certa medida, envolto em nuvens, ainda não está aclarado, de modo que esse ser-aí ainda não pode fazer uso do ente, junto ao qual, de acordo com sua essência, ele já sempre se encontra.
Ser arrancado do estado de sonolência não significa sair da esfera subjetiva. Ser arrancado do estado de sonolência significa apenas que o ser-junto a... dissipou as nuvens em torno de si, tornou-se claro. E é então em meio à claridade que acontece a primeira visão. O junto-ao-quê emerge para o ser-aí. Esse é um emergir do ter antes já existente.
Para Heidegger (2009), o nascimento do ser-aí deve ser compreendido, por isso, como um nascimento tardio, que se dá na relação de cooriginariedade com o mundo, não havendo nada antes da ek-sistência. Assim, não faria sentido tentarmos afirmar qualquer determinação ou natureza para o ser-aí em seus primeiros momentos de vida, bem como para momentos posteriores de sua existência, pois, em sendo poder-ser, ele é o ente marcado, justamente, pela indeterminação.
É fundamental notarmos que tal afirmação sobre o ser da criança implica no abandono de qualquer compreensão desenvolvimentista do homem, seja inatista, seja ambientalista, seja interacionista, isto é, que considere como determinante no desenvolvimento o fator biológico, ambiental ou a conciliação entre esses dois fatores. O que chamamos de desenvolvimento são, senão, modos de lida que variam de acordo com as orientações do mundo onde está lançada a criança. Em sendo ser-aí, o homem é numa relação de cooriginariedade com o mundo, não podendo, portanto, ser determinado, posicionado pelo mundo ou vice-versa. O mundo, que é o campo intencional do ser-aí, é o espaço de realização do existir do homem, no qual ele, quando adulto ou criança, em seu caráter de ter de ser, de cuidado, se constitui.
A Lida com a Criança na Era da Técnica
No tópico anterior tivemos a oportunidade de nos aproximarmos do modo como a criança é compreendida a partir da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Mas não é assim que compreendemos comumente a criança no cotidiano. Antes, a compreendemos, de início, como ente em desenvolvimento, potencial a ser investido, que precisa ser criado, cuidado e educado para que se desenvolva da melhor maneira possível, para que se torne feliz e bem-sucedido profissionalmente. A felicidade e o sucesso financeiro-profissional parecem estar a cada dia mais entrelaçados em nossa sociedade.
Como afirma Mattar (2017, p. 9):
Entre a preparação para a vida e a formação do currículo, esta última parece prevalecer com vantagem. Uma parte da existência que seria dedicada ao trabalho, à produção e consumo de bens, vem invadindo todo o espaço que seria de outras áreas da vida: a infância ocupada e produtiva, o lazer otimizado, a viagem programada, a alimentação regrada por contagem de calorias, carboidratos, glúten e lactose, o sexo turbinado, a vida sempre conectada e online, sem interrupção, onde quer que esteja, a qualquer hora do dia ou da noite, parecem ser exemplos dessa invasão. (grifo da autora)
Essa invasão de que fala Mattar (2010) deve ser compreendida à luz da técnica moderna. Uma compreensão fenomenológico-existencial da lida com a criança na atualidade precisa ser realizada à luz do questionamento da técnica moderna, pois todos "os modos de ser que, na modernidade, se destinam, no Dasein (ser-aí), vigoram desde a Gestell (com-posição), a qual tende a nortear as experiências que ele tem do real" (Cabral, 2009, p. 124). Mesmo as crianças devem corresponder, desde muito novas, aos ideais de sucesso e produtividade de nossa época. Corresponder, então, aos ideais presentes na era da técnica.
Nesse horizonte, tornou-se corriqueiro nos depararmos com aquela infância ocupada e produtiva a que se referiu Mattar (2017), em que as crianças possuem agendas lotadas de atividades extracurriculares. Elas vão da escola para aulas de língua estrangeira, para a natação, para o futebol, para o balé, para o judô, para a aula de violão... Sempre atarefadas nas classes média e alta. Em uma compreensão metafísica do tempo enquanto algo que se possui, este precisa ser organizado, controlado, de forma a ser utilizado de maneira eficaz, inclusive na infância, pois, em um cenário cada vez mais competitivo, é necessária uma preparação constante para o futuro. Em outros contextos sociais, nos deparamos não com a preparação para o futuro, mas com a imediatez da sobrevivência ou a exploração da mão de obra infantil, em atividades seja nas ruas, seja no tráfico, seja na exploração sexual, todas questões muito presentes na vida de um grande número, senão a maioria, das crianças brasileiras. Em ambas as situações, a referência à exploração e aos bens de consumo se faz presente, embora de maneira diversa e, em todo caso, de consequências funestas para as crianças à margem dos direitos mais básicos.
Deparamo-nos, ainda, com espetáculos televisivos em que crianças e adolescentes de diversas idades competem entre si, avaliados por jurados conceituados e por milhões de espectadores, a fim de determinar qual deles é melhor que os outros, como o Masterchef Júnior e o The Voice Kids. Programas que não apenas exigem um alto desempenho de seus participantes, como também maturidade. Torna-se claro que, mesmo tão novas, essas crianças precisam saber competir, e saber competir é saber perder. Nesse contexto, não há lugar para qualquer outro sentimento, senão o de felicidade. Parece que ficar triste por si mesmo não seria apenas constranger o outro, mas mostrar-se infantil. Ironicamente, não há espaço para infantilidades2 em um programa protagonizado por crianças.
Assim, se, por um lado, a criança é compreendida na atualidade como um ser ainda incompleto, que está se desenvolvendo, e que precisa ser estimulado, cuidado e educado para vir a ser no futuro alguém feliz e bem-sucedido; por outro, parece ser compreendida como uma espécie de miniadulto, que pode assumir uma série de responsabilidades e que precisa agir com maturidade. Essas duas visões não se excluem, mas coexistem. A criança é tomada como um ser em desenvolvimento e como um miniadulto; ela é frágil por estar ainda incompleta e pode assumir uma série de responsabilidades e agir com maturidade.
Então, ainda que possam assumir tantas responsabilidades, as crianças, por serem tidas como frágeis e vulneráveis, necessitam de um adulto para zelar por elas e tutelá-las em suas escolhas. Ao falarmos aqui sobre a tutela não nos referimos, no entanto, ao uso jurídico do termo, mas àquela outra significação atribuída a este, de uma proteção exercida em relação a alguém mais frágil. Tutelar o outro, para nós, é assumir pelo outro o cuidado que lhe cabe pela própria existência, pelas suas escolhas, por considerá-lo frágil ou incapaz. Perde-se de vista, com isso, o fato de que o homem é essencialmente cuidado com tudo aquilo que vem ao seu encontro, inclusive com seu próprio modo de ser. Então, ainda que na cotidianidade mediana, mergulhado no impessoal, ele se tome como mais um dos entes que vêm ao seu encontro no mundo e, por vezes, deixe que seus coexistentes assumam por ele essa responsabilidade pela própria existência, esta continuará clamando por sua apropriação.
O cuidado tutelar compreende a criança como alguém que precisa ser guiado. Guiado de acordo com aqueles discursos ideacionais com relação à criança. Tais determinações em relação ao ser-criança devem ser compreendidas à luz da técnica moderna, que, como vimos, é condição de possibilidade para determinações produtivistas e utilitaristas do real. Frente a estas, cresce o número de diagnósticos infantis, entre os quais podemos destacar o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), bem como a medicalização da infância e a busca por especialistas que vão, por meio de um cuidado tutelar, encontrar soluções para os problemas das crianças.
Entre esses especialistas está o(a) especialista psicólogo(a), que é convidado a assumir também esse cuidado tutelar com as crianças que atende, adaptando-as ao padrão considerado ideal pelos pais, pela escola ou pela mídia (Mattar, 2015). Pais que, não devemos perder de vista, também são convocados pela técnica moderna, desafiados ao sucesso e produtividade no papel de cuidadores e educadores, e são culpabilizados quando algo "não vai bem", quando a criança não corresponde aos ideais do mundo técnico.
Mas convidamos o(a) leitor(a) a refletir: seria essa a nossa prática de cuidado? Sermos ajustadores de conduta, tal qual afirmava a Lei nº 4.119/62, que regulamentou a profissão de psicólogo no Brasil? No Art.13, parágrafo 1º, da presente lei, lemos: "Constitui função privativa do psicólogo e utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos: a) diagnóstico psicológico; b) orientação e seleção profissional; c) orientação psicopedagógica; d) solução de problemas de ajustamento" (s/p, grifo nosso).
É isso que buscamos com nossas práticas? Que outro modo de cuidado ôntico estaria, então, em jogo na perspectiva fenomenológico-existencial e em que medida ele se afasta desse cuidado tutelar, por vezes adaptativo, que somos convidados a assumir?
O Cuidado na Clínica Psicológica com a Criança
Na clínica psicológica em uma perspectiva fenomenológico-existencial, o discurso constitui a essência do processo psicoterapêutico, pois é na linguagem que o ser, isto é, o real se revela. Esse discurso já aconteceu sempre, mas se mostra oticamente por meio da fala, do silêncio, dos gestos, do brincar etc. Podemos observar que, enquanto no atendimento a adultos, na maioria das vezes, é possível realizar o processo psicoterapêutico apenas por meio da fala, no atendimento a crianças, na maioria das vezes, isso não se mostra possível, o que faz com que se torne necessária a utilização do brinquedo para que o processo psicoterapêutico possa fluir, pois na brincadeira a criança vive suas possibilidades. No brincar, a criança pode trazer à luz suas vivências e sentimentos, seus significados, podendo, por meio dele, se aproximar de suas possibilidades (Feijoo, 1997).
Assim, o brincar, que não é compreendido como algo da natureza da criança, mas que compõe o campo de possibilidades e significações do ser-aí, de seu ser jogado no mundo, do ser junto aos demais entes, surge como um modo possível da criança estar no mundo. O brincar ôntico ensaia modos de ser e existir possíveis. Trata-se de um recurso que se coloca aí não como um fim, mas como algo que pretende facilitar o processo, possibilitando a abertura (Feijoo, 1997). Os jogos e brincadeiras escolhidos pela criança não são compreendidos como possuindo uma utilidade a priori, mas como algo que permite que nos aproximemos do modo de ser da criança e de suas vivências. Se a criança consegue recordar ou não as peças de um jogo da memória, se fica irritada quando perde, se prefere jogos em que pode jogar sozinha ou se prefere jogar com o psicoterapeuta etc., tudo isso fala do modo de ser da criança, de seu mundo, e não de estruturas do desenvolvimento da criança, nem revelam algo de uma interioridade. Esta noção não está presente na perspectiva fenomenológicoexistencial, uma vez que compreender o homem como ser-aí implica no abandono de qualquer noção de interioridade, sendo o homem compreendido como pura intencionalidade, não havendo nada antes desse estar lançado no mundo, junto aos outros entes.
Esse outro modo de compreensão da criança em jogo em tal perspectiva, sem dúvida, traz consigo outro modo de atuação, outra aposta de cuidado clínico. Na sessão, nomeada justamente de sessão livre, a criança pode experienciar estar livre para fazer o que desejar, não sendo obrigada a fazer ou a falar nada que não queira ou que seja esperado dela. Não se trata da liberdade, no entanto, como um livre-arbítrio absoluto, como se tudo fosse dado à criança, bastando que esta o queira. O que se propõe é que haja menos obstáculos à criança em função de que esta é culturalmente conduzida e monitorada pelos adultos quando é cuidada. Quando falamos da suspensão fenomenológica na clínica, não nos referimos, portanto, a uma indiferença e a deixar a criança desprotegida, sem referências ou sem orientação, mas a um buscar estar junto ao fenômeno tal como ele se mostra, sem que o obscureçamos em seu movimento de mostração. Assim, nenhuma orientação é imposta à criança, devendo o psicoterapeuta estar aberto a todas as expressões e escolhas feitas pela criança durante o atendimento, e suspender os juízos e as críticas sobre qualquer expressão da criança. As atitudes usuais e naturais que tomam a criança como ser em si, como natureza ou identidade, são suspensas.
Buscamos assumir com a criança um cuidado diferente daquele em jogo no cotidiano, em que as crianças são tuteladas pelos adultos com quem convivem. Cuidado este que está associado à visão da criança como alguém frágil ou incapaz, o que faz com que seja necessário que ela se torne objeto do cuidado de outro, que irá assumir por ela o cuidado que lhe cabe por suas escolhas, por sua existência. Tutelamos uma criança na clínica quando frente às possibilidades que ali se encontram - falar, ficar em silêncio, jogar esse ou aquele jogo, de tal ou qual maneira etc., - escolhemos o que ela deve falar, o que deve fazer e/ou como deve ser feito, ou quando julgamos algo que ela diz ou faz como inadequado e a corrigimos.
Podemos aproximar esse cuidado tutelar, ôntico, que, por vezes, acaba mesmo por normatizar o outro, daquela modalidade de cuidado ontológico que Heidegger (2014) nomeou como preocupação substitutiva. Ôntico e ontológico, devemos nos lembrar, não existem isolados um do outro, mas estão em constante relação. O cuidado ôntico tem como condição de possibilidade justamente o cuidado ontológico. É precisamente porque somos ontologicamente cuidado que podemos ter algum modo de cuidado ôntico na clínica com nossos pacientes. Esse modo de cuidado tutelar é comum em "formas de terapia que possuem ou aspiram a uma teoria e uma técnica que deem conta do sofrimento humano" (Santos & Sá, 2013, p. 56). Ele tem sido muito demandado na atualidade, pois se buscam soluções rápidas e mágicas para todos os tipos de situações, inclusive para o sofrimento psicológico e emocional. O profissional que atua a partir desse modo de cuidado se encontra no modo de atuação sedimentado, no qual se afirma que é preciso conduzir o outro e que cuidar é tutelar.
Na clínica psicológica temos sido convidados, como dito anteriormente, a assumir esse modo de cuidado tutelar. As demandas na clínica infantil, ainda que possuam um conteúdo específico que varia de caso a caso, têm em comum o fato de trazerem, implícita ou explicitamente, um pedido de adaptação, de normatização das crianças a um padrão considerado ideal em nossa sociedade, de desenvolvimento, de desempenho ou de comportamento. Com a criança, é preciso que suspendamos essa demanda, que precisa ser compreendida à luz da técnica moderna, do modo como o homem tem sido desafiado em nosso horizonte histórico a dispor o real como algo disponível para uso, no qual nós mesmos somos desafiados a corresponder a esse produtivismo e utilitarismo sem questionar.
Na clínica em uma perspectiva fenomenológico-existencial buscamos estar atentos, para que o que está ali em jogo, em cada situação existencial, possa se mostrar. Em nossa prática de cuidado buscamos nos aproximar daquela preocupação antepositivo-libertadora que, como vimos, salta não para substituir o outro em sua ocupação, mas para se antecipar a ele em suas possibilidades existenciárias de ser, ajudando a tornar transparente para ele o seu modo de ser enquanto ek-sistência, poder-ser. Essa modalidade de cuidado fala sobre o cuidado em seu modo próprio, na qual o outro aparece propriamente como coexistente. Na clínica, "a "anteposição" seria o modo do "ser-com" em que o terapeuta se deixa apropriar enquanto abertura para a manifestação das possibilidades próprias do outro" (Santos & Sá, 2013, p. 56).
Mostra-se importante ressaltar aqui, no entanto, que não é nosso objetivo condenar o cuidado tutelar. Ele possui seu lugar no cotidiano da criança e também na clínica em uma perspectiva fenomenológico-existencial. Na clínica, nós tutelamos uma criança, por exemplo, quando impedimos que ela realize uma atividade em que ela comprometerá sua integridade física. Com pais ou responsáveis, nota-se, por vezes, a ausência desse modo de cuidado com a criança. O cuidado tutelar, substitutivo, e o cuidado antepositivo-libertador são modos possíveis de cuidado com o outro, que têm seu lugar, sua importância, tanto no cotidiano quanto na clínica psicológica infantil na perspectiva fenomenológico-existencial.
É importante ressaltar, do mesmo modo, que esse cuidado antepositivo-libertador não é adquirido a partir de mero aprendizado técnico-científico, ele fala de meu modo de sercom o outro. Ele demanda, portanto, o modo de ser do psicoterapeuta (Sá, 2017). Não é um modo de cuidado que conquistamos de maneira definitiva, mas que exige um esforço e um movimento de (re)conquista constantes, o que faz com que o risco de que recaiamos naquele modo de cuidado cotidiano com as crianças esteja sempre presente. Assumir, nesse horizonte histórico, outro modo de cuidado, que não apenas o sedimentado em que se busca tutelar o outro, substituindo-o em suas escolhas, mas que aguarda paciente que os sentidos ali em jogo se mostrem, que aquela existência concreta se desvele, mostra-se para nós como uma atitude ética, uma vez que nela o psicoterapeuta busca preservar-se enquanto abertura para as possibilidades existenciárias do outro. Ética, como sabemos, provém do grego ethos, que significa morada. Portanto, trata-se de buscar retomar a si mesmo como o ethos de guarda do ser, condição originária do Da-sein que se torna encoberta no horizonte de caça ininterrupta aos entes. Ou, como sugere Heidegger na conferência sobre a serenidade, deixar ser o que se mostra ao seu modo, dizer sim e dizer não à técnica moderna - sim ao uso dos instrumentos técnicos, não à confusão da essência humana com algo técnico - e abrir-se ao mistério (Heidegger, 2000).
Nesse cuidado, questionamos qualquer tentativa de normatização da vida. Não buscamos, a partir de tal questionamento, eliminar as demandas de normatização da vida que surgem em nosso horizonte ou negar o sofrimento associado à desadaptação aos ideais de desempenho de nossa sociedade, mas dar um passo atrás para que essas demandas possam ser compreendidas em uma visada mais ampla, a partir do modo como se desvelam e em sua relação com o nosso horizonte histórico.
Abre-se com isso, na clínica, um caminho para que o pensar a partir de nosso horizonte histórico, com suas determinações de desempenho e sua normalização disciplinar, dê lugar a uma escuta mais livre ao apelo do ser dos entes, que permita espantar-se, recuando frente a isso que lhe é mais próximo, para justamente aproximar-se disso que nos é mais essencial: nossa relação com o ser.
Na clínica é possível silenciar o burburinho das informações e sugestões, conselhos e orientações, sempre numerosos no repertório de ações dos psicólogos. Essas orientações não irão desaparecer, pois fazem parte do modo como lidamos com as situações-problema na atualidade. No entanto, é possível resistir à tentação de ceder a elas e silenciar para escutar. (Mattar, 2017, p. 16, grifo da autora)
Assim, não buscamos na psicoterapia infantil alguma espécie de adequação da criança a um padrão social, mas, por meio de uma escuta paciente, que silencia e aguarda, deixar que o sentido daquilo que está em jogo ali apareça em seu contexto de significações. A clínica necessita desse pacientar; um silenciar que aguarda e um aguardar que silencia. Silencia frente aos ruídos da vida cotidiana, em que muito se fala, muito se aconselha e determina. Nesse horizonte, é preciso construir na clínica um estar com o outro que dê a esse outro espaço para estar consigo mesmo, podendo, assim, se aproximar e cuidar de si.
Nessa relação, o psicoterapeuta surge não como o condutor do processo, mas como aquele que acompanha a criança, que está com ela, servindo de abertura para que ela se aproxime de si mesma, podendo, assim, vislumbrar suas possibilidades. Ao brincar seu mundo, suas possibilidades, a criança pode cuidar de si. Cabe ao ser-aí, originariamente, o cuidado com a própria existência, mas deixar que se mostre ao paciente, adulto ou criança, essa responsabilidade no cuidado com a própria existência não significa, de modo algum, assumir um cuidado clínico, ôntico, ao modo do desinteresse, abandono, indiferença ou negligência. Trata-se, justamente, de outro modo de atenção solícita, que busca não substituir o outro em suas ocupações, mas, com o outro, estar entregue ao que ali se mostra, inclusive ao que se mostre necessário como cuidado em cada situação. O cuidado não existe antes da experiência, antes de estar junto ao paciente; ele se constrói incessantemente a cada encontro. A fim de exemplificar o que foi discutido até aqui, apresentamos uma situação clínica.
O Menino que Não Aprendia a Ler
Frente a tais considerações sobre a demanda na clínica psicológica infantil e o cuidado clínico, lembramos que, certa vez, atendemos um menino de seis anos, João3. Na entrevista inicial, seu pai comparece sozinho. Sua esposa, mãe de João, nunca consegue se ausentar do trabalho em horário comercial para estar nas consultas do filho. A demanda para o atendimento psicológico surge por parte da escola, pois João estaria com problemas no processo de aprendizado. O menino não aprendia a ler, não estava seguindo o mesmo ritmo de aprendizado do restante de sua turma. Os pais, que enfrentavam uma longa jornada de trabalho todos os dias, não sabiam como ajudar o filho no processo de alfabetização. Aqui, novamente, o anúncio da vida dominada pelo tempo da técnica. Em primeiro lugar, porque o trabalho que, no Brasil, sem dúvida, está bastante atrelado a condições difíceis de sobrevivência e de emprego, ocupa a maior parte da vida, mesmo em contextos mais abastados, impondo-se em valor e importância como prioridade. Acima, por exemplo, do estar mais com os filhos. Segundo, porque se espera que uma criança de seis anos aprenda rapidamente a ler, mal tendo ingressado no contexto escolar, sendo comparada com as demais crianças e, assim, não tomada em seu próprio modo de ser e em seu ritmo.
Alguns meses depois do início dos atendimentos, a escola, por intermédio do pai, solicita um relatório psicológico. A demanda? Saber qual era o diagnóstico do menino. Desse modo, o que parecia estar em questão para a escola não era compreender a dificuldade de João, ou seu modo de ser singular, mas sim buscar uma explicação com base na ciência para "o problema". Não eliminamos aqui a possibilidade das explicações e diagnósticos objetivos, que possuem o seu lugar. A psicologia recebe muitas críticas atribuídas ao que seria um excesso de subjetivismo ou uma vacuidade em suas respostas e descrições, sendo valorizada, ao contrário, em suas facetas mais experimentais e estatísticas, consideradas, aí sim, como ciência de fato. Na perspectiva aqui adotada, a dicotomia objetividade-subjetividade é suspensa, a fim de que se possa chegar ao fundamento ontológico da existência que permite falar em psicológico, objetivo e subjetivo. Desse modo, é possível esclarecer a situação de João com ele mesmo, os pais e a escola, desde que as informações a serem obtidas e fornecidas não excluam do processo diagnóstico (na origem do termo, ver através de) o próprio João, sua situação existencial, seus modos de ser-no-mundo, sua mostração e as características ontológicas de seu modo de ser como Da-sein.
Nos primeiros atendimentos, João mostra-se envergonhado, escondendo-se atrás do pai e evitando olhar para a psicóloga. Conta que os pais haviam lhe explicado que a escola tinha pedido que eles o levassem a um psicólogo, pois estava com dificuldade para aprender a ler. A mãe, que durante os meses de atendimento nunca pôde comparecer aos momentos de devolutiva com os pais devido ao trabalho, aparece na cena clínica, por meio das situações familiares relatadas por João, como uma mulher muito trabalhadora e, assim, por vezes, ausente, mas também muito carinhosa com o filho.
Durante os primeiros atendimentos, na maioria das vezes, João escolhe um brinquedo ou jogo que não conhece e tenta brincar. Nesses momentos, não inventa sua própria maneira de brincar, nem pergunta à psicóloga como funciona o jogo, mas parece buscar ir descobrindo, sem ler as regras, "como se deve jogar o jogo". As regras pareciam estar colocadas para João como algo que, mesmo nos momentos de brincadeira, ele deveria seguir. Assim, ao brincar com um conjunto de peças de lego, o menino logo busca na caixa ou manual o objeto/animal que deveria criar e se atém a ele. Parecia obscurecer-se para João, assim, a possibilidade de relacionar-se livremente com os jogos e brincadeiras, com seu mundo.
Quando alguma dificuldade se apresentava nesses momentos em que João buscava descobrir como jogar um jogo, ele logo desistia e corria para o armário para buscar um novo brinquedo. A situação se repete e João parece não apenas ter dificuldade de brincar sem ser seguindo um suposto modo correto, como o processo de ver como o jogo é jogado antes de jogar parecia ter que ser algo imediato e fácil. Mas, a cada atendimento, ele chega e tenta tudo novamente, indo embora dizendo que o tempo havia passado muito rápido, que não havia conseguido brincar direito. Passados alguns atendimentos, frente à fala de João, dizemos: "sabe, parece que você gosta muito de tentar novos jogos e brincadeiras, mas não gosta quando elas ficam difíceis, então, troca a todo o momento de brincadeira sem terminar nenhuma". Nesse momento, a psicóloga compartilha com João a descrição da mensagem que aparecia em suas ações, aquilo que se mostrava, e João, que escutava atentamente, volta-se para o quebra-cabeça com o qual estava brincando e, ao invés de trocar de brinquedo como havia dito segundos antes, passa os últimos minutos do atendimento concentrado em tentar montá-lo.
No atendimento seguinte, João novamente quer tentar um jogo que não conhece e diz: "hoje quero aprender esse, você me ensina?". A psicóloga nota uma mudança nesse momento: João a convida a estar com ele e vislumbra como possibilidade que não precisa já saber tudo sobre o jogo de antemão, mas que pode conhecê-lo, ir aprendendo sobre ele, agora com a ajuda do outro. A relação com o jogo sai do campo da dificuldade ou incapacidade da criança, que estava em um registro de desempenho, para a ação de perceber em conjunto como se joga. Ainda assim, nota-se que João pede para ser ensinado pela psicoterapeuta, como se a brincadeira fosse algo a ser aprendido, uma tarefa para a qual ele necessita de ajuda, e não uma brincadeira que ambos, ou ele somente, possam descobrir juntos como se faz. Se, em alguns momentos, João inventava modos novos de brincar; em outros, ele se fixava às regras e ao seu próprio julgamento.
Entre arriscar outros modos do brincar, sem seguir as regras recomendadas pelo jogo, e a rigidez do modo único como deveria ser feita a brincadeira, João vai experimentando outros lugares que não o do menino atrasado na escola ou com dificuldades. Nesse ensaiar, João desenhava e, logo em seguida, apagava o desenho, afirmando que tinha errado ou que estava feio. Certo dia desenha uma paisagem e colore o chão de rosa, mas logo após se repreende e diz: "quem pinta a grama de rosa?". "Mas a sua grama, no seu desenho, não pode ser rosa, João?". O menino para, olha o desenho e diz: "a minha pode sim". Aqui, João assume, de forma mais própria, seu modo de brincar e a escolha das cores para o desenho, ainda que não sejam as usuais ou as que são esperadas pelos adultos, sem tanto temor do julgamento e avaliação, sob os quais vinha sendo colocado.
João ia se mostrando, a cada atendimento, um menino muito interessado em "aprender", mas com seu próprio ritmo de aprendizado (como todos nós), ainda que muito preocupado com o olhar do outro, ao passo que, por vezes, com um olhar muito severo em relação a si mesmo, ao que fazia e ao que era lhe dito que era certo ou errado. A escola prosseguia questionando qual era o diagnóstico. Do nosso lugar de especialista, o que diríamos? Justamente isso que, até então, se mostrava.
Preocupados, os pais decidem contratar uma professora de reforço escolar. João chega animado: "agora tenho uma tia que me ajuda com os deveres da escola". O menino vai se mostrando mais atento às brincadeiras e curioso com tudo o que não conhecia. Um dia, encontra uma antiga fita cassete perdida no armário e quer saber o que é aquilo, escutando atentamente; no outro, o objeto de seu interesse e curiosidade é um corretivo em fita. E, assim, o tempo ia passando, João ia buscando conhecer o mundo e a si mesmo; novos modos de relação com o mundo iam surgindo e as "dificuldades" na escola iam diminuindo.
Um novo contato é feito pela escola, que afirma que João estava aprendendo a ler, tendo o reforço escolar sido essencial nesse processo, já que os pais não tinham tempo para o menino. Poderíamos dizer que a escola, ao invés de buscar compreender o modo de ser de João, sua situação existencial e familiar, buscou um novo diagnóstico, que não está nos grandes manuais de diagnóstico, mas volta e meia se faz presente na clínica psicológica infantil: a culpabilização dos pais. Com isso, mais uma vez, o João mesmo era perdido de vista, o fenômeno se obscurecia.
Apesar das identidades atribuídas a João, como também à família e à escola (esta última, também constituída por meio de pressupostos produtivistas e de avaliação), a cada atendimento, João se mostrava mais confortável em seu modo próprio de corresponder ao mundo em meio ao qual se encontrava. Não mais era necessário que já soubesse tudo de antemão, nem que tivesse sempre as respostas. Era possível saber e não saber; era possível ter ajuda, se necessário; e era justamente o que não conhecia que despertava o seu interesse em um mundo ainda não tão domesticado pela familiaridade e que ainda guardava surpresas e mistérios.
De nosso lado, acompanhamos João em seu estar consigo mesmo, não como aquele especialista que lhe dizia como fazer, como agir ou sentir, não como quem deveria rapidamente transformá-lo para oferecer uma resposta às demandas colocadas, mas como outro existente que pacientemente aguarda, que silencia as orientações, que fala a partir do mostrar-se da criança, com ela, não sobre ela, permitindo que outras possibilidades de compreensão e atuação frente ao que se vivia pudessem se mostrar para João e sua família. O cuidado clínico aqui buscado refere-se ao estar-com a criança a partir do modo como ela mesma se revela, colocando em suspensão ou destruindo algumas referências que aparecem como verdades inquestionáveis, como identidades essenciais, quando são somente sedimentações de modos de ser possíveis sempre em jogo no existir.
Considerações Finais
Ainda que tenhamos publicações que busquem pensar a clínica psicológica infantil, bem como a criança e a lida com ela na modernidade, a partir de uma perspectiva de inspiração heideggeriana, no presente artigo, buscamos nos demorar nessas temáticas, dada a sua importância para estudantes e profissionais que têm interesse e/ou atuam com tal perspectiva. Acrescentamos, ainda, o intuito de fornecer ferramentas conceituais e filosóficas que possam ir ao encontro das demandas que recorrem à psicoterapia infantil em nosso tempo. Nesse caminho, procuramos sair do mero registro historiográfico para tentarmos experienciar o acontecer histórico da nossa época, isto é, o desencobrir-se da vida em escala planetária sob o domínio da técnica moderna. A partir de alguns conceitos heideggerianos que alertam para a própria situação, colocamos em questão a criança ocupada e produtiva, propondo que o encontro clínico possibilite o tempo para nada, que não mais se permite vir à luz em meio à azáfama de ocupações cotidianas. Numa articulação entre a obra de Heidegger e o fragmento de uma situação clínica, procuramos explicitar o modo de cuidado em que apostamos nessa perspectiva e como esse cuidado se dá na clínica psicológica infantil.
Como vimos no decorrer deste trabalho, na psicologia fenomenológico-existencial compreendemos a normatização dos modos de ser desde a conjuntura da com-posição técnica. Sendo assim, a questão que se coloca para nós não diz respeito a uma negação de uma modalidade de cuidado tutelar, mas a como podemos estabelecer outra modalidade de cuidado, que corresponda a esse horizonte sem a ele ficar tão aderido, de forma irrefletida. A partir das contribuições da fenomenologia-hermenêutica de Heidegger, mostrouse possível não apenas a construção de outro modo de compreensão da criança, que não aquele presente nas teorias do desenvolvimento, mas também de outro modo de cuidado, o cuidado antepositivo-libertador, que não busca assumir pelo homem, adulto ou criança, o cuidado que lhe cabe enquanto Da-sein pelo fato de ter de ser. Se o impessoal substitui a criança, como faz com todos nós, buscamos na clínica não ser mais uma voz do "todo mundo", do "a gente" em jogo na cotidianidade mediana, assim interrompendo um pouco a cadência que nos conduz e que, muitas vezes, apazigua e tranquiliza perante a indeterminação existencial do ser-aí lançado e desterrado (Casanova, 2017), portanto, sempre em jogo no tempo.
Assim, o principal resultado ao qual chegamos está em mostrar a possibilidade de atuar no cuidado antepositivo-libertador, em que o(a) psicólogo(a) não busca substituir a criança e/ou corresponder de modo irrefletido às orientações do mundo técnico, mas aguardar junto ao outro, entregue ao que ali se mostra. Trata-se de buscarmos, enquanto ser-aí que somos, servirmos de abertura para possibilidades existenciárias que possam se encontrar, de início, veladas para a criança e sua família, bem como para o(a) psicoterapeuta, abrindo espaço, por meio dessa atenção solícita, para que o outro esteja consigo e possa cuidar de si.
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Endereço para correspondência:
Lívia Grijó Halfeld
E-mail: liviahalfeld@gmail.com
Cristine Monteiro Mattar
E-mail: cristinemattar.cm@gmail.com
Recebido em: 03/09/2019
Revisado em: 25/08/2020
Aceito em: 07/09/2020
Publicado online: 19/06/2021
1 Heidegger apreende a noção de intencionalidade do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), para quem a consciência é sempre intencional. Para Husserl, a consciência é sempre consciência de um objeto, assim como o objeto é sempre objeto para uma consciência. É a partir dessa noção husserliana de cooriginariedade entre sujeito e objeto que Heidegger elabora sua noção de ser-no-mundo, em que homem e mundo são cooriginários, compreendendo o ser do homem como pura intencionalidade.
2 Vemos que, atualmente, o termo infantilidade, que se refere a qualidade daquilo que é infantil, vem sendo utilizado em nossa sociedade em um sentido negativo, pejorativo, e demarcando, com isso, a desqualificação desse estágio transitório da vida do homem e a valorização de uma dada maturidade, tida como ideal a ser alcançado. Podemos problematizar aqui a utilização dessa noção de maturidade, do ser maduro ou imaturo comumente utilizados em referência a atitudes de crianças e adolescente. Sobre uma fruta, sobre o fato objetivo de sua maturação, podemos observar, normalmente por sua cor, que ela está madura, mas podemos observar com a mesma objetividade o modo de ser de uma criança e afirmar que ela é madura/imatura? Não seria isso um julgamento de valor construído a partir dos padrões normativos criados pelas abordagens evolucionistas do desenvolvimento?
3 O presente caso clínico foi construído a partir de fragmentos da clínica, sendo o nome João um nome fictício.