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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: MOVIMENTO ARTICULAÇÃO

 

A articulação das entidades psicanalíticas brasileiras

 

The linkage among Brazilian psychoanalytic entities

 

La articulación de las entidades psicoanalíticas brasileñas

 

L'articulation des institutions psychanalytiques brésiliennes

 

 

Wilson Amendoeira

Psicanalista. Ex-presidente da Associação Brasileira de Psicanálise e criador, com Marcus Vinicius de Oliveira Silva e Ana Mercês Bahia Bock (do Conselho Federal de Psicologia), do movimento que resultou na Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor, como um preâmbulo aos textos de Gustavo Soares e Samyra Assad sobre as questões da profissionalização, faz um pequeno histórico das diversas etapas da abordagem desta questão, chegando à criação do movimento “Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras”, em 2000. Relata o processo de luta desenvolvido e a construção de uma unidade que permitiu ter como parceiras a cultura e as instâncias políticas para a defesa do campo e da prática psicanalítica.

Palavras-chave: psicanálise, movimento articulação, regulamentação


ABSTRACT

The author writes, as a preamble to Gustavo Soares's and Samyra Assad's writings about the professionalization, a brief history of the several steps in dealing with this matter until the creation of the movement “Linkage among Brazilian Psychoanalytic Entities” in 2000. The author reports the process of fighting for professionalization and the construction of a unity which has enabled the partnership with culture and political instances in order to defend the field and the psychoanalytic practice.

Keywords: psychoanalysis, articulation movement, regulation


RESUMEN

El autor, como preámbulo de los textos de Gustavo Soares y Samyra Assad sobre los temas de la profesionalización, hace un pequeño historial de las diversas etapas del abordaje de este tema, llegando a la creación del movimiento “Articulación de las Entidades Psicoanalíticas Brasileñas”, en el año 2000. Relata el proceso de lucha desarrollado y la construcción de una unidad que permitió tener como asociadas a la cultura y las instancias políticas para la defensa del campo y la práctica psicoanalítica.

Palabras clave: psicoanálisis, movimiento articulación, reglamentación


RÉSUMÉ

L'auteur fait un petit historique des diverses étapes de l'approche des questions de la professionnalisation, en guise de préambule des textes de Gustavo Soares et Samyra Assad, en allant jusqu'à la création du mouvement “Articulation des institutions psychanalytiques Brésiliennes”, en 2000. Il relate le processus de lutte qui a eu lieu, et la construction d'une unité, ce qui a permis d'avoir comme partenaires la culture et les instances politiques, pour la défense de ce domaine et de la pratique psychanalytique.

Mots-clés: psychanalyse, mouvement articulation, réglementation


 

 

As discussões e as iniciativas voltadas para a profissionalização da psicanálise ocorrem há muitos anos em nosso país. Ao longo desse tempo, constituiu-se um embate sustentado pelos psicanalistas que a elas se opunham, visto que nenhuma delas partia das suas instituições. O que há, então, de tão diferente agora, se já houve várias tentativas de regulamentar a profissão e todas elas foram rechaçadas pela comunidade psicanalítica brasileira e arquivadas?

Em meados dos anos 1990, apareceu o oferecimento de formação psicanalítica por agências vinculadas a grupos fora do campo constituído pelas instituições reconhecidas como psicanalíticas. Uma reação articulada ao surgimento de entidades e cursos de formação ditos psicanalíticos, ancorados em grupos religiosos, deu-se em 1998, quando a então Associação Brasileira de Psicanálise, na gestão de Plinio Montagna, acionou o Ministério Público contra a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), vinculada a igrejas evangélicas e que dizia ter cerca de 80 turmas formadas e mais de 3 mil ditos psicanalistas espalhados pelo país. Fomos bem-sucedidos: com base no Código de Defesa do Consumidor, pleiteamos que havia propaganda enganosa, por não ser a psicanálise uma profissão regulamentada, o que levou à interdição dos cursos.

Entretanto, precisávamos constituir um fórum que reunisse as entidades psicanalíticas brasileiras, visando maior efetividade em nossas ações. Esse passo foi dado com o convite feito pela Associação Brasileira de Psicanálise e pelo Conselho Federal de Psicologia, com a colaboração do Conselho Federal de Medicina e da Associação Brasileira de Psiquiatria, a várias entidades do campo psicanalítico, que cobriam uma grande parcela dos profissionais seriamente dedicados ao estudo e à prática da psicanálise, apesar das divergências de concepção entre elas sobre os requisitos para a formação de profissionais, para uma reunião inicial e exploratória, realizada em junho de 2000 no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Esse foi o marco zero do movimento.

Fazíamos nossas as preocupações de Freud, que em 1910 o levaram a fundar a Associação Psicanalítica Internacional (ipa), com o objetivo de criar normas para a formação de futuros analistas e evitar distorções e descaminhos na psicanálise, no curso da expansão da sua prática, preocupações que eram mais do que nunca bastante atuais. A sua ênfase na exigência de que ninguém deve praticar a psicanálise se não tiver adquirido esse direito através de uma formação específica também é bastante atual.

Como expusemos em texto anterior, que serviu de base ao Manifesto da Articulação, de 2001:

Essa tríade configura a formação como um ofício, e o psicanalista aprende e ganha qualificação em oficinas - os institutos de formação - onde, artesanalmente, no contato com outros analistas, desenvolve a sua análise pessoal, realiza os seus seminários para o aprendizado teórico e técnico e tem o seu trabalho supervisionado. A formação de cada psicanalista é um processo permanente, que se amplia no seu diálogo com os textos clássicos e com os produzidos por outros analistas, confrontados com a sua experiência pessoal na relação com os seus analisandos, mesmo quando já está qualificado como psicanalista. Essa qualificação, portanto, não se ajusta aos modelos que podem sofrer algum tipo de certificação por instituições de ensino ou órgãos reguladores públicos; se existe um indicador, ele será, certamente, o de qual é a instituição que forma, quem são os seus componentes, que padrões são seguidos.

Esses três pilares, por si só, não garantem o desejo do analista de dirigir eticamente o seu ofício. Para tanto, os psicanalistas, seguindo Freud desde Viena, até 1910, criaram as instituições psicanalíticas - um recanto, um espaço, uma casa, para compartilhar experiências, desenvolver estudo, oferecer suporte à formação psicanalítica, desenvolver o tornar-se solidário ao partilhar a experiência de psicanalisar pessoas, bastante solitária, com os seus pares.

Encontros regulares, seminários, discussões clínicas formam a agenda dessas instituições, conclamando cada um dos seus membros a testemunhar a sua experiência. Nesse instante, eles tornam público o seu fazer entre os colegas de trabalho. É esse exercício cotidiano que inscreve o rigor e a ética da prática analítica. Cada escola vai interrogar os seus membros, os seus pontos de sustentação, a partir de uma lógica que orienta o seu funcionamento. Ainda que essa lógica possa diferir de escola para escola, elas guardam em comum a tradição da psicanálise na transmissão da experiência analítica. Dessa forma singular, constroem a estrutura que dá consistência à formação do analista.

Essa qualificação, ancorada na confiabilidade depositada nas instituições e nos atributos do seu corpo societário, gerou o vezo de que tal qualidade destacaria os psicanalistas e os faria distintos de qualquer aventureiro que não tivesse o preparo adequado para o exercício do ofício. O tempo mostrou que esse vezo foi se esfarelando, sendo corroído por atores que dão primazia ao exercício predador de uma prática em que afloram os aspectos mercantilistas, que não têm lastro em qualquer aspecto do desenvolvimento científico da psicanálise.

Durante os 10 anos iniciais, em parceria com Mário Lúcio Alves Baptista, coordenei as reuniões da Articulação, realizadas em média quatro vezes por ano. Nesse período, a Articulação mostrou as diferenças teóricas e da prática psicanalítica entre as várias instituições que dela participam. A natural pluralidade de pensamento evidenciava a impossibilidade de uma transmissão padronizada ou de uma técnica uniforme. Os embates nas reuniões apontavam a natureza essencialmente política do movimento, com a conquista de uma quebra de hegemonias e de uma predominância, então natural, de pluralidade de pensamento.

Cabe aqui uma pequena referência histórica, que nos dê uma visão de como se constituiu o campo psicanalítico no Brasil. Por razões históricas, as nossas instituições vinculadas à Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) têm grande responsabilidade sobre esse quadro: com a regulamentação dos cursos de psicologia em 1962, os psicólogos interessados em psicanálise, como uma extensão natural da sua formação universitária, procuraram as nossas instituições, as vinculadas à IPA, para fazer a formação.

Em algumas cidades, as nossas instituições reservavam a formação somente para médicos. Isso fez que, por exemplo, na minha cidade, Rio de Janeiro, se constituíssem outras instituições oferecendo formação, como a Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro e a Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Estas foram as duas principais instituições que, naquele tempo, acolheram o grupo de psicólogos interessados em fazer formação nos moldes preconizados pela IPA.

À medida que o tempo passou, a demanda aumentou, se incrementou. Em meados dos anos 1970, o movimento lacaniano chegou ao Rio de Janeiro e a Campinas, com M. D. Magno e Betty Milan. Abriu-se, assim, outra vertente. Lacan era um dissidente da psicanálise oficial. Ele havia se desligado da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), e portanto da IPA, porque, entre outras divergências, contestava o modelo de formação de psicanalistas adotado pela IPA. Além disso, desenvolveu um corpo teórico muito específico, mas reconhecido por todos nós como psicanálise.

Essas são, digamos assim, as três principais vertentes do grande número de instituições espalhadas pelo Brasil que praticam psicanálise, que formam psicanalistas e que são reconhecidas por todos nós como pertencendo ao campo psicanalítico e como tratando com seriedade e respeito o patrimônio da humanidade que é a psicanálise. Foram essas instituições que se apresentaram para constituir a Articulação.

O embate nas instâncias públicas foi enfrentado. A Articulação se fez presente. Comparecemos a audiências públicas na Câmara dos Deputados para confrontar projetos de origem evangélica, que visavam regulamentar a psicanálise. Fomos incansáveis no trabalho de conversar e convencer parlamentares sobre a justeza e a correção das nossas posições acerca da questão. Mantivemos presença constante na imprensa escrita, radiofônica e televisiva. Lançamos dois documentos, um em 2001 e outro em 2004, denominados Manifesto de Entidades Brasileiras de Psicanálise, subscritos por 65 entidades psicanalíticas e apoiados por 10 instituições não psicanalíticas (universidades, conselhos profissionais, associações de atividades afins ao nosso campo). Em 2009, publicamos um livro com um bom apanhado do que é e do que havia sido feito na Articulação até então: Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação.

 

 

A nossa posição era cristalina e forte: entendemos que a universidade, o Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Medicina, as instâncias legislativas não podem responder pela psicanálise, não podem legislar sobre a nossa formação.

Portanto, apoiamos o trabalho de articulação das entidades psicanalíticas na construção de mecanismos de regulação da sua própria experiência. Os psicanalistas avançaram muito nesses anos, sob os pontos de vista clínico e teórico. Agora, a demanda é por novos avanços, avanços políticos, de forma coletiva, arregimentando apoios, principalmente na cultura e nas instâncias políticas.

A psicanálise hoje faz parte da sociedade, está inserida nos recursos ao alcance do cidadão para tratar o seu sofrimento. Falamos, então, de um analista que recebe na sua clínica os efeitos da organização política e social de uma cultura sobre a formação da subjetividade. Falamos do analista cidadão.

Mas vamos avançar.

Que este momento histórico sirva para ampliar a militância do analista, aquele que não recua diante da defesa da causa analítica, que não silencia diante da demanda quando a sociedade e o público o questionam. O trabalho da Articulação visa impedir que se proliferem oportunismos, interesses inconfessos que desejam se regulamentar num momento em que as práticas democráticas estão bastante vulneráveis.

Nós temos uma particularidade e uma peculiaridade: acreditamos no que fazemos e, no mais das vezes, somos apaixonados pela nossa atividade. Não abrimos mão dos nossos princípios. Então, quando nos sentimos atacados, nos defendemos com toda a veemência que a crença e a fé no nosso trabalho nos permitem. Não estou falando da crença e da fé religiosas, mas da crença e da fé no que praticamos. Sabemos o valor do que fazemos e conhecemos os benefícios que o nosso trabalho pode trazer para as pessoas.

Gostaríamos que houvesse psicanalistas no país para atender toda a demanda. A verdade é que isso é impossível. Todo processo de formação artesanal, oficinal, não tem como atender a pressa e a necessidade e produzir psicanalistas em massa. Essa é uma impossibilidade.

Nós tentamos lidar com essas dificuldades multiplicando o nosso saber e a nossa capacidade de realizar as coisas, o que fazemos desenvolvendo alternativas como o trabalho em instituições públicas, a participação em atendimentos em comunidades carentes, o atendimento de psicanálise e psicoterapia em grupo, supervisionando profissionais que ainda não são psicanalistas, mas que podem usar o instrumental psicanalítico para embasar uma prática psicoterápica. Isso nós fazemos com muito esforço e disso temos muito orgulho.

Quando a editora da rbp, Marina Massi, me fez o convite para uma pequena nota introduzindo dois trabalhos advindos do espírito da Articulação, revivi as discussões que lá tivemos, a parceria com todos aqueles que nos acompanharam por 10 anos e continuaram até os dias de hoje, a presença e a participação do nosso Mário Lúcio.

Retornou a veemência!

Vamos aos textos dos colegas Gustavo Soares (Febrapsi) e Samyra Assad (Escola Brasileira de Psicanálise).

Vivamos um novo momento nesta nossa luta!

 

 

Correspondência:
Wilson Amendoeira
Av. Ataulfo de Paiva 135, 1213, Leblon
22440-030 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 2259-7354
amendoeira@globo.com

Recebido em 17/1/2019
Aceito em 22/1/2019

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