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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte Dec. 2011

 

 

Experiência de cura na comunidade: uma exigência contemporânea

 

Experience of cure in the community: a contemporary demand

 

 

Henriqueta Lúcia Arcoverde Melo

Sociedade Psicanalítica da Paraíba
Centro Universitário de João Pessoa
Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de exigências do Ministério de Educação, que ampliou o campo de estágio dos Cursos de Psicologia, o Estágio Supervisionado em Psicanálise do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ vem desenvolvendo práticas psicanalíticas junto à população empobrecida de um bairro da periferia da cidade de João Pessoa. Apesar da especificidade da Psicanálise quanto ao objeto de estudo e ao método, pensa-se estabelecer uma íntima articulação entre a teoria e a prática psicanalíticas a partir de um trabalho realizado em uma creche que atende crianças de faixa etária entre seis meses e cinco anos. Aposta-se, através do brincar e do cuidar das crianças e dos adultos implicados nessa prática, na formação do profissional em Psicologia envolvido com as comunidades empobrecidas e na construção de um ambiente suficientemente bom que facilite o processo de subjetivação do sujeito. Apresentam-se fragmentos da experiência psicanalítica com as crianças, com as famílias e com os cuidadores. Tecem-se, também, alguns comentários acerca dos movimentos transferenciais.

Palavras-chave: Estágio supervisionado, Experiência psicanalítica, Creche.


ABSTRACT

Based on the demands of the Ministry of Education which broadened the field of placement for Courses of Psychology, the Supervised Placement of the University Centre of João Pessoa – UNIPÊ, has been developing psychoanalytical practices with the impoverished population of a peripheral district of the city of João Pessoa. Despite the specificity of Psychoanalysis as an object of study and despite its specific method, an intimate articulation between psychoanalytical theory and practice based on work carried out in a crèche which attends children between the ages of six months and five years is thought to have been established. By playing with and looking after the children and adults involved in this practice, the training of students of psychology to work with impoverished communities and to assist in the construction of an environment sufficiently good as to facilitate the process of subjectivization of those involved appears to be a healthy measure. Fragments of psychoanalytical experience with children, with families and carers are presented. Commentaries are elaborated on the movements of transference.

Keywords: Supervised placement, Psychoanalytical experience, Crèche.


 

 

Introdução

 

Foi a partir da Resolução nº 5, de 15/03/2011, do Ministério de Educação, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a complementação curricular dos cursos de Psicologia, que a obrigatoriedade de práticas voltadas para as necessidades mais urgentes de nossa sociedade se intensificaram. Então, a formação do psicólogo clínico nas universidades brasileiras compreende, para além dos atendimentos psicoterápicos realizados nas Clínicas Universitárias, a inserção do estagiário no âmbito social, a partir de um trabalho mais abrangente no que tange à prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde mental da população, tanto no nível individual quanto coletivo.

A mudança curricular ampliou o campo de estágio independentemente da abordagem teórica das práticas clínicas supervisionadas e recomenda a articulação entre as diversas teorias estudadas. Ao mesmo tempo, exige, tanto do supervisor quanto dos alunos, estudos e reflexões das possibilidades de articulação entre teoria e prática, no sentido de avaliar sua pertinência e efetividade. Trata-se, pois, de capacitar os futuros psicólogos para o exercício competente de seus ofícios em consonância com a realidade brasileira e atender às necessidades mais urgentes das comunidades mais vulneráveis.

Este texto apresenta algumas elaborações acerca de uma das atividades clínicas desenvolvida na comunidade, ao longo do Estágio Supervisionado em Psicanálise, realizada por alunos do Curso de Psicologia do Centro Universitário de João Pessoa – Unipê, sob minha orientação. Esta prática vem sendo realizada, há mais de dois anos, em uma creche localizada num bairro de periferia da cidade.

Marcando as diferenças entre Psicologia e Psicanálise e observando as possibilidades da transmissão da Psicanálise na Universidade, tenta-se, através do brincar com as crianças e da escuta dos grupos de pais e cuidadores, facilitar o processo de subjetivação dos infantes. Tendo por base a escuta dos movimentos transferenciais, busca-se promover uma maior circulação da fala e dos afetos entre todos os envolvidos na experiência psicanalítica.

 

Psicanálise e Psicologia

Essa resolução do MEC que pretende uma articulação entre as ênfases teóricas e as práticas dos mais variados campos de estágio nas Universidades coloca, de saída, alguns problemas para o estágio em clínica psicanalítica no que diz respeito à especificidade da Psicanálise.

Maia (1995), abordando as diferenças entre Psicanálise e Psicologia, ressalta que há uma essencial diferença entre esses dois campos no que tange tanto ao objeto quanto ao método. Para a Psicologia, o objeto de estudo é, sobretudo, o comportamento humano geralmente estudado a partir do método empírico. A especificidade da Psicanálise, por outro lado, tem como objeto e método o inconsciente e a associação livre. Entretanto, a Psicanálise não desconhece e, nem tampouco, substitui a compreensão de um variado número de fenômenos estudados pela Psicologia.

De acordo com Maia (1995), o desconhecimento das diferenças entre Psicologia e Psicanálise é, em grande parte, responsável pelas querelas presentes na comunicação entre psicólogos e psicanalistas e pela frequente acusação, por parte dos psicólogos, sobretudo cognitivistas, da não cientificidade da Psicanálise. Entretanto, quando se trata de fenômenos do registro do inconsciente, a Psicologia tem pouco ou quase nada a explicar. Porém, a recíproca é verdadeira! Quando correntes teóricas pós freudianas pretendem transformar a Psicanálise numa Psicologia geral, capaz de explicar a maioria dos fenômenos psíquicos pertencentes a outros campos de estudo, no dizer do autor, “faz-se uma má Psicologia e não se faz Psicanálise” (MAIA, 1995, p.6)

Laplanche (1987), quando trata dessa questão, afirma que há um lugar para a Psicologia que se apresenta extremamente importante e profícuo no que tange ao campo da autoconservação do ser humano. Critica a invasão da Psicologia pela Psicanálise – que denomina panpsicanalitismo, tomando como ilustração algumas teorias evolutivas de inspiração psicanalítica, formuladas a partir de certa confusão presente em alguns textos freudianos. Argumenta que a especificidade do campo da Psicanálise (sexual) atravessa o campo da autoconservação, porém não o substitui e nem se confunde com ele. Na clínica psicanalítica, a autoconservação não pode ser negada, mas deve ser tomada de forma tangencial.

Na prática analítica, cuidar do psíquico é cuidar do sujeito em sua dimensão humana, enquanto um ser teorizador e que teoriza sobre si mesmo e simboliza a seu próprio respeito; enquanto formula, põe em forma a sua própria experiência, sobretudo, na linguagem de cura (LAPLANCHE, 1993). Trata-se, pois, de escutá-lo na sua dor, no seu sofrimento interno, favorecendo a elaboração de seus conflitos e o reconhecimento de seus desejos, de sua história e de sua subjetividade. Nesse sentido, a Psicanálise pode atender, não apenas às exigências curriculares governamentais mas, oferecer trilhas e meios para o desenvolvimento de uma prática efetiva com a população mais empobrecida.

Consequentemente, tanto quanto do corpo e do comportamento, é preciso cuidar da mente. Nada de surpreendente se não houvesse uma tendência dos projetos assistenciais a acreditarem em ilusões confortáveis e a negar aos sujeitos, já tão pobres, o direito ao inconsciente e à neurose, de serem donos dos próprios desejos e protagonistas de sua própria história.

 

A experiência psicanalítica do estágio supervisionado: uma situação de cura?

Apesar das dificuldades e controvérsias, há muito se exerce o ensino e a prática da Psicanálise nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia. Na verdade, a Universidade não forma psicanalistas mas, trata-se de um lugar legítimo de ensino, pesquisa e descoberta dos postulados. Nesse sentido, ao falar da Psicanálise na universidade, Laplanche (1993) afirma que:

Supõe que nossa disciplina possa ser objeto de enunciados comunicáveis, passíveis de prova, discutíveis, e até mesmo (como dizem em certos meios epistemológicos) eventualmente “falsificáveis”; em uma palavra, que não se possa dizer da Psicanálise seja o que for. A Psicanálise é legitimamente o objeto de enunciados, embora, conservando sua especificidade, e sem buscar uma pseudocientificidade ao lado das matemáticas transcendentes ou da lógica... (LAPLANCHE, 1993, p.111)

Laplanche (1993), marcando uma diferença entre a Psicanálise transmitida na Universidade e a formação analítica das Instituições Psicanalíticas, chama a atenção para a dupla função da Universidade: sancionar capacidades científicas e aptidões à pesquisa e a função de habilitação e formação a uma profissão.

Para além de uma exigência acadêmica, essas práticas impõem uma contínua articulação entre a teoria e a prática clínica fora do setting analítico clássico e um fazer analítico comprometido com a realidade socioeconômica e cultural da população empobrecida, marcada, por vezes, por uma situação de extremo desamparo. É, pois, um compromisso de transmissão da Psicanálise que envolve a formação de jovens psicólogos e uma população carente de cuidados ambientais suficientemente bons.

Laplanche (1993) situa a prática analítica a partir de três pontos: a situação, a transferência e o processo. Para o autor, a especificidade da situação analítica não é a inter-relação humana enquanto tal, mas a própria situação de análise que é inseparável do seu método. A partir de Freud, reafirma que a definição da Psicanálise não pode ser restrita apenas à situação analítica. Acrescenta que o específico não é o setting, mas o método, na medida em que o setting não se define como um ritual, como uma instalação técnica e, nem tampouco, como uma lei arbitrária.

Nesse sentido, a tarefa prática permite identificar de que modo o método analítico e a situação clínica são capazes de revelar a concepção psicanalítica do homem decorrente dos postulados freudianos, e até que ponto pode ser observada a imbricação entre teoria e prática, na medida em que ambas caminham juntas. Da mesma forma, a clínica permite identificar a correlação entre teoria e prática, pois, se as elaborações teóricas são verdadeiras, elas devem achar sua correspondência na prática psicanalítica. Em suma, pode-se constatar em que a prática analítica, na forma como se instaura, desenvolve e exclui, pode ilustrar, confirmar, precisar ou retificar os enunciados da teoria e da psicopatologia psicanalíticas acerca do ser humano.

Os fundamentos da teoria são, ao mesmo tempo, os fundamentos para a experiência psicanalítica que se traduz pela experiência de cura. Assim, a prática é concebida como uma elaboração viva da teoria. Fracassos ou dificuldades da Psicanálise englobam tanto a teoria quanto a prática. Consequentemente, “os fundamentos para a Psicanálise são, pois, fundamentos para a experiência psicanalítica”. Nesse sentido, podem-se reagrupar, em quatro pontos, os lugares e objetos da experiência analítica: a clínica (cura), a Psicanálise extramuros, a teoria e a história. (LAPLANCHE, 1987, p.16).

A experiência psicanalítica do estágio supervisionado ultrapassa os limites do enquadre clássico em que é, formalmente, praticada. Ela é levada para a comunidade como um novo dispositivo de atuação que amplia o seu alcance social. Constitui-se na tentativa de cuidar de crianças e adolescentes em situação de risco e de promover uma transformação nas instituições, tornando-as espaços “suficientemente bons” para a saúde mental dessa população. Seguindo a trilha de Laplanche (1987), tenta-se levar a experiência analítica para fora do setting clássico da cura, considerando um duplo aspecto e um único movimento: aspecto especulativo e interpretativo e um aspecto real, no sentido da invasão da cultura pelo imenso movimento cultural intrínseco à própria Psicanálise. Neste sentido, a experiência de estágio leva para essa população e essas instituições todo o conjunto da Psicanálise.

 

Experiências psicanalíticas na comunidade

Além dos atendimentos realizados na Clínica Escola do UNIPÊ, a experiência das práticas supervisionadas para a formação do psicólogo clínico a partir da escuta psicanalítica vem se revelando especialmente profícua. Embora não se trate de um processo de acordo com o enquadre psicanalítico clássico, a escuta e o manejo das situações experimentadas com as crianças, adolescentes e os adultos envolvidos no trabalho vêm permitindo que se vislumbrem grandes possibilidades de intervenção junto a essa população tão carente de cuidados.

Atendendo às exigências curriculares e à demanda do pároco de um bairro da periferia da cidade de João Pessoa, há quase três anos foram elaborados e implementados dois projetos de estágio supervisionado. Um deles, junto a uma creche que atende crianças de faixa etária entre seis meses e cinco anos e, o outro (Oficinas Lúdicas Terapêuticas), junto a adolescentes moradores do referido bairro. Em ambos os campos de prática supervisionada, a atenção maior recai sobre a prevenção e intervenção de problemáticas que interferem no desenvolvimento psíquico e que sinalizam uma situação de risco. E, assim, capacitam-se os alunos do curso de Psicologia para o exercício de atividades grupais e comunitárias, seguindo os princípios fundamentais da teoria e prática psicanalíticas, com vistas à prevenção e promoção da saúde mental.

A partir das supervisões clínicas, todas as atividades práticas são refletidas teoricamente na tentativa de complementar a compreensão dos dados oriundos da clínica. Consequentemente, o estágio visa, também, promover um trabalho de pesquisa que avalie a pertinência dessas práticas e possibilite a passagem à escrita das atividades. No caso específico do UNIPÊ, a transmissão dos trabalhos vem acontecendo a partir de comunicações em Jornadas e Congressos e, sobretudo, através da elaboração de monografias de final do Curso de Psicologia.

As experiências clínicas na comunidade envolvem oito estagiários do quinto ano do Curso de Psicologia, oito alunos participantes do Núcleo de Psicanálise do Unipê e quatro estagiários graduados em Psicologia nessa mesma instituição, todos em processo de análise pessoal. Todas as práticas são supervisionadas por duas supervisoras: uma psicanalista e Mestra em Psicanálise, a autora deste texto, e outra, Doutora em Psicologia Social e em formação psicanalítica. O registro de todas as atividades, para além da função de uma primeira elaboração das vivências práticas, visa à construção de um banco de dados que possibilite atividades de pesquisa. As supervisões e seminários teóricos são realizados em três turnos, perfazendo um total de doze horas semanais e as práticas nas instituições somam nove horas por semana.

Apesar da importância de ambas as práticas psicanalíticas do Estágio Supervisionado, este texto aborda apenas a experiência na Creche, em face das urgências da clientela, na medida em que as bases da saúde mental do indivíduo se formam nos primeiros anos de vida. Sabe-se que é nesse período que ocorrem importantes aquisições no nível do desenvolvimento global e da construção de um adulto potencialmente mais saudável. Esse processo de estruturação da psique envolve tanto as competências inatas quanto os cuidados ambientais. A perspectiva do presente projeto é, sem desconsiderar as bases autoconservativas, intervir, preventivamente, sobre as bases ambientais neste período do desenvolvimento. Sobre o sentido de prevenção na Psicanálise, Mariotto (2009) postula:

É na perspectiva da Psicanálise que nos apoiamos para reconhecer que a prevenção não se baseia nem na antecipação do sintoma nem na tentativa de evitá-lo, mas, sim na aposta da criação de condições estruturais suficientes para que uma subjetivação se dê antes que se interrompa definitivamente o laço. (MARIOTTO, 2009, p.17).

 

Experiência psicanalítica na Creche

Com as transformações no mundo do trabalho, cada vez mais ocorre o distanciamento das mulheres das atividades domésticas e a inserção das mesmas em setores públicos da sociedade. Surge, então, a necessidade de instituições com a finalidade de dar suporte a essa nova configuração familiar e social. Além disso, no Brasil, muitas famílias vivem em condições muito precárias, com subemprego ou até mesmo desempregadas, necessitando contar com apoio institucional para garantir a sobrevivência.

Nesse cenário, destaca-se a Creche, como a instituição que minimiza o desamparo experimentado por essas famílias, cuidando das crianças pré-escolares durante um longo período (o dia inteiro, de segunda a sexta feira). Outro dado da realidade brasileira é que muitas dessas instituições funcionam sem adequada estrutura física, material e profissional. Dessa forma, se, por um lado, a creche desenvolve uma função importantíssima caracterizada pela continuidade dos cuidados maternos, por outro, não conta com uma estrutura adequada que garanta esse cuidado fundamental.

A experiência psicanalítica na creche tem como enquadre o trabalho em grupo. Embora não se trate de atendimento clássico de grupos terapêuticos, permite o atendimento de um maior número de pessoas. Além disso, vai ao encontro dos postulados psicanalíticos no que diz respeito à presença do outro, real ou imaginária, na vida do ser humano. De acordo com Bion (1975), o sujeito, desde os primeiros contatos com a mãe, por mais isolado que se encontre em seu meio, continua membro de um grupo. Embora Freud não tenha atendido seus pacientes em situação de grupo, deu uma grande contribuição para a compreensão dos grupos humanos.

A partir dos textos “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (1910), “Totem e Tabu (1913[1912])”, “Psicologia das massas e análise ego” (1921), “O futuro de uma ilusão” (1927) e “Mal-estar na civilização” (1930[1929]), Freud ressalta a importância do grupo familiar e da cultura social na determinação da estruturação psíquica do indivíduo. Acrescenta que não há diferença entre a Psicologia individual e a Psicologia de grupo, porque a Psicologia do indivíduo é, ela própria, uma função da relação existente entre uma pessoa e outra. Consequentemente, o sujeito é, e sempre foi, membro de um grupo.

Na situação analítica da creche, quatro estagiários do quinto ano, quatro estagiários alunos participantes do Núcleo de Psicanálise do Unipê e duas psicólogas voluntárias organizam-se, em dupla, para as práticas em grupo. Quatro atendem semanalmente, durante uma manhã, os dois grupos de crianças (em torno de trinta crianças por grupo), de faixa etária entre seis meses e cinco anos. O coordenador, as quatro cuidadoras e a cozinheira da creche são atendidos, também em grupo, quinzenalmente, por dois outros estagiários. As famílias das crianças são atendidas em grupos abertos quinzenais, também por dois estagiários.

No berçário, em uma sala para o grupo das crianças maiores e, em outra sala, para os grupos de adultos, as atividades são, assim, desenvolvidas:

--> Com as crianças: em dois grupos, “Tico de gente” (crianças de seis meses a dois anos) e “Crescidinhos” (crianças de dois a cinco anos), brinca-se com as crianças, semanalmente, durante duas horas, usando pintura, jogos, historinhas, músicas infantis, colagem, recortes, entre outros dispositivos lúdicos.

--> Grupo aberto com os familiares: quinzenais, com uma hora de duração. Através da escuta das dificuldades parentais, tenta-se promover a circulação da fala acerca dos conflitos mais prementes que interferem na relação dos pais com a criança, com os demais membros da família e com os cuidadores. Tenta-se, assim, favorecer a organização de novos arranjos familiares com vistas à construção de um ambiente familiar suficientemente bom que atenda às necessidades da criança.

--> Grupo com os cuidadores: quinzenais, com uma hora de duração. Através da escuta da relação dos cuidadores com as crianças, com os pais das crianças, entre os membros da equipe da creche e entre cuidadores e estagiários, tenta-se fazer circular a fala das dificuldades e problemas enfrentados no exercício de suas funções.

 

Fragmentos da elaboração da experiência analítica na creche

A maioria das crianças da creche é oriunda de famílias em situação socioeconômica extremamente precária. As mães, em grande parte desempregadas ou com subemprego, deixam, por vezes, seus bebês na creche como garantia de que lhes sejam providas suas necessidades básicas (RABELLO, 2010).

Por outro lado, embora garanta alimentação básica e cuidados de higiene aos bebês, a creche também carece de atenções. Trata-se de uma pequena casa, sem janelas, cujo espaço é insuficiente para acolher, cinco dias por semana, em torno de setenta crianças. Sobrevive, basicamente, de doações, em face da minguada verba governamental recebida. Além de uma cozinheira e do coordenador, conta apenas com seis cuidadoras, cinco com o ensino fundamental incompleto e uma com o ensino médio, também incompleto.

Provavelmente em face do número reduzido e do despreparo dos funcionários, até o início do estágio não havia nenhuma proposta de atividades que assegurassem uma maternagem minimamente adequada. O cuidar se resumia, apenas, em atender algumas exigências básicas: as crianças eram limpas, a rotina diária de alimentação, banho e dormida era cumprida e a casa asseada e organizada.

Foi a partir desse cenário que iniciamos as primeiras intervenções, consideradas mais urgentes, voltadas para as necessidades das crianças: atividades que facilitassem os processo de (1) adaptação à creche; (2) a importância do brincar; (3) a escuta dos pais das crianças; (4) a escuta dos cuidadores.

 

1. Adaptação das crianças à creche

As rupturas e a descontinuidade das relações primordiais parecem realçadas no momento de chegada à creche, quando os bebês, abruptamente, são apartados da mãe. Imediatamente, passam a viver a experiência do cuidado de “outras mães”, de outra rotina, do convívio com “outros irmãos” e, com “outra família”, e em um espaço físico totalmente estranho.

A teoria psicanalítica ressalta a importância da instauração e manutenção dos vínculos afetivos entre a mãe e sua cria, principalmente, para a construção do psiquismo e para o processo de subjetivação da criança. Estudos como os de Bowlby (2004), Spitz (1975), Winnicott (1975), entre outros autores, enfatizam os riscos para a saúde mental das crianças pequenas quando da ruptura ou descontinuidade desses vínculos formados entre o bebê e sua mãe ou um substituto materno. Da parte do bebê, esse vínculo pode se tornar especialmente forte mas, nem sempre a recíproca é verdadeira. Por conseguinte, até aproximadamente os dois anos, o processo de adaptação do bebê à creche deve se constituir no alvo de atenções e cuidados. Trata-se de um processo individual e, portanto, vivenciado por cada criança de forma própria, na medida em que estão em jogo a história, o ambiente familiar e, sobretudo, a qualidade dos vínculos entre o bebê e sua mãe. Consequentemente, o respeito ao ritmo e a história de cada criança sinaliza para a impossibilidade de ser estabelecido um tempo para o período de adaptação.

Melo (2010), abordando a questão, enfatiza a importância da continuidade da função materna na creche como possibilidade de minimizar as perdas experimentadas pelo bebê quando da separação da mãe:

É essencial que o bebê possa vivenciar com a cuidadora (mãe substituta) uma relação afetuosa, íntima e contínua, na qual ambos encontrem satisfação e prazer. [...] Este prazer e a profunda identificação de sentimentos são possíveis para cada um dos dois se o relacionamento for contínuo (MELO, 2010, p.25).

Entretanto, como indica Rabello (2010), na creche estudada, lugar da experiência analítica, observou-se que, desde o primeiro dia, as crianças eram simplesmente apartadas da mãe. Possivelmente por conta do número reduzido de cuidadores em relação ao número elevado de crianças, logo após a saída das mães, as crianças eram colocadas no berço ou no chão, independentemente das reações expressadas. Provavelmente, em face do total despreparo e desinformação, as reações de choro, agressividade, anorexia e agitação dos bebês eram consideradas pelos cuidadores como “passageiras, manha ou besteira”.

De início, nessas situações, quando algum estagiário tomava as crianças no colo falando-lhes do que imaginava que estavam sentindo e garantindo-lhes o retorno da mãe, os cuidadores, prontamente, afirmavam: “No início é assim, mas logo passa e elas se calam”. Sim, a ausência de choro, de estranheza e de agressividade dos bebês, associada à passividade e isolamento, eram compreendidos pelas cuidadoras como sinais da adaptação das crianças à creche. Por outro lado, agitação motora, incapacidade de concentração e comportamentos de “amolação” eram interpretados como sinais de dificuldades na família. Em momento algum, os sintomas depressivos ou de defesa maníaca das crianças, mesmo os mais espetaculares, eram reconhecidos e associados à separação abrupta da mãe.

Apesar do ambiente físico extremamente precário e do número elevado de crianças, o maior obstáculo encontrado foi a rejeição inicial ao trabalho dos estagiários, expressa de forma velada, por parte dos cuidadores. Pareciam ameaçados, temerosos de perderem o emprego, única fonte de renda para o sustento de suas famílias. Porém, pouco a pouco, a partir das sessões de grupo e com a melhora evidente das crianças, “os fantasmas persecutórios iniciais, deram lugar a atitudes de aceitação e cooperação do nosso trabalho” (BARROS, 2010, p.41).

Os cuidados dispensados pelos estagiários a essas crianças e as interpretações e construções formuladas acerca da falta materna, da estranheza do ambiente, entre outras falas, além de facilitar a elaboração das vivências dolorosas das crianças, permitiam que os cuidadores percebessem a inadequação do processo de adaptação das crianças à creche. Nas sessões do grupo de funcionários esse tema era, reiteradamente, comentado.

 

2. A importância do brincar

Brincar e criança se confundem. Impossível imaginar uma situação de crianças saudáveis reunidas sem a presença do jogo. Entretanto, na rotina da creche estudada, essas atividades praticamente não aconteciam. Havia alguns poucos brinquedos que eram distribuídos mas, rapidamente recolhidos, devido as disputas entre as crianças. Quando as crianças improvisavam algumas brincadeiras, por conta do barulho, das disputas e da “bagunça”, os cuidadores logo abortavam as iniciativas. A televisão permanecia ligada todo o tempo da rotina da creche.

O brincar por si só é terapêutico. É através do brincar que as crianças melhor revelam o seu mundo interno e elaboram os seus conflitos. Desde Hans, com os desenhos da girafa e, desde a observação de outro bebê com o jogo do “for-da”, Freud (1909, 1920) sinalizou a importância das atividades lúdicas como expressão e elaboração das angústias infantis. As teorizações de Klein (1975) acerca das fantasias infantis expressas no jogo influenciaram a sua posteridade. Com base nas teses Kleinianas (1975) ressalta-se, aqui, as teorias de Winnicott (1975) que concebem o brincar como uma atividade inerente ao ser humano saudável. Nesse sentido, o brincar, para além de permitir o acesso ao imaginário infantil e a elaboração dos conflitos das crianças, permite que se avalie a saúde mental do infante. Para Winnicott (1983), a ausência de atividades lúdicas pode sinalizar a instalação de uma problemática psíquica na criança (na que brinca também, dependendo da brincadeira – dizemos nós).

A partir do aprofundamento das teses acima, resumidamente citadas, os estagiários foram, pouco a pouco, liberando as crianças para o brincar livre: coletivo, entre pequenos subgrupos, entre uma criança e um estagiário ou cuidador, ou “brincando sozinha na presença do outro (mãe)” (WINNICOTT, 1975). Há sempre jogos, livros, material reciclável, tintas, lápis colorido e material para modelagem. As atividades são tanto espontâneas quanto propostas pelos estagiários, que vão de historinhas, música, brincadeira de roda, “dedo mindinho”, “esconde-esconde”, desenho, pintura, recorte, passando pela comemoração de datas festivas.

Momentos há em que as crianças, repentinamente, se agitam e, como se acontecesse uma contaminação, todos choram, disputam brinquedos e, principalmente, a atenção dos estagiários. Alguns bebês, parecendo assustados, se recolhem no berço. Outros tentam se aninhar no colo dos estagiários, o que acirra a disputa entre eles. Trata-se de momentos de um corpo a corpo extremamente difícil e que exigem muita sensibilidade e calma por parte dos estagiários. Vale salientar que, nesses momentos, alguns cuidadores permanecem sentados, calados, como espectadores, como se testassem a competência dos estagiários em lidarem com a situação. Os cuidadores não percebem, como ensina Klein em vários textos – por exemplo em “Os princípios psicológicos da análise de crianças pequenas”(KLEIN, (1994, p.28) -, que a interrupção do jogo já sinaliza a irrupção das ansiedades mobilizadas desde as camadas mais profundas da mente que, depois de apaziguadas, permitem que as crianças retomem a brincadeira.

Geralmente, no mesmo ambiente acontecem, ao mesmo tempo, várias atividades. Desse modo, pode-se escutar uma criança em vários momentos, de várias perspectivas, uma escuta complementando a outra. Ao final de cada encontro é passado, suavemente, o “cheirinho” em cada criança. Esta é uma técnica de maternagem: algodão embebido com colônia de fragrância suave passado no corpinho das crianças. Nesses momentos, as crianças ficam calmas, relaxadas e parecem inteiramente entregues aos cuidados.

Através da maternagem e do brincar, foi possível facilitar a expressão e a elaboração de angústias e conflitos das crianças. Além desses benefícios, Barros (2010) observou que o brincar em grupo permite às crianças uma maior circulação dos afetos; facilita o jogo identificatório e o desenvolvimento da fala e do jogo simbólico. Entretanto, a autora ressalta que apesar de se tratar de uma situação de grupo, tenta-se preservar o particular de cada criança.

Torna-se necessário analisar, de forma atenta, a demanda de cada paciente, ou seja, seus vínculos afetivos, dados de sua história, da estrutura edípica e dos arranjos familiares. Quando se observa que alguma criança se encontra em situação de risco, desenvolvem-se cuidados individuais na própria situação de grupo ou, se necessário, encaminha-se a criança para uma psicoterapia individual (BARROS, 2010, p.42).

Nesses movimentos, além das crianças, todos os adultos, estagiários e cuidadoras, também passaram a brincar. A creche vem se transformando num espaço reservado ao lúdico. E o brincar vem, pouco a pouco, tomando conta da rotina da creche!

 

3. A escuta dos pais das crianças

O trabalho com os pais não se constitui no processo de psicoterapia analítica de grupo no enquadre psicanalítico clássico. Todavia, com base, sobretudo, nos estudos de Anzieu (1990) e Decherf (1986), tenta-se escutar os movimentos grupais e, principalmente, os movimentos transferenciais. Trata-se de um grupo aberto, realizado quinzenalmente. Um espaço que permite escutá-los na sua dor, no seu sofrimento interno e, por vezes, favorece a elaboração de seus conflitos mais emergentes, o reconhecimento de alguns de seus desejos, de sua história e de sua subjetividade implicados na relação com os filhos e com a creche.

Neste sentido, pretende-se com esse grupo promover cuidados suficientemente bons às crianças e possibilitar novos arranjos familiares que atendam às necessidades dos filhos. À luz da teoria psicanalítica, tenta-se fazer circular a fala e afetos que marcam as relações entre pais e filhos; facilitar a emergência e elaboração de alguns fantasmas que permeiam as relações, fontes das dificuldades e problemas enfrentados no exercício dos cuidados parentais; analisar a significação da creche e dos cuidadores para esses pais.

De acordo com Cavalcanti (2010), a configuração das famílias é, por vezes, extremamente problemática. São pais, em sua maioria, extremamente pobres e desorganizados e, tal como os filhos, carecem de cuidados. Desde o início, a escuta vem revelando uma infinidade de dificuldades e inadequações parentais que interferem no processo de subjetivação das crianças.

Embora, reiteradamente, fosse afirmada a não obrigatoriedade da participação no grupo, parecia, de início, que a maioria vinha às sessões por temer perder a vaga do filho na creche. Porém, depois de muitas sessões, a confiança nas estagiárias e a certeza do sigilo vêm favorecendo o abrandamento das resistências, a livre expressão das dificuldades e temores e a troca, entre os pais, de experiências nos cuidados com os filhos, na relação conjugal e com os funcionários da creche.

Se, para a criança, a entrada na creche constitui-se numa experiência, por vezes, traumática, para as mães o corte prematuro e abrupto desse vínculo não é menos doloroso. Cavalcanti (2010) lembra que a creche pode mobilizar culpa e ambivalência. Culpa por deixar o filho na creche. Alívio pela necessidade em deixar a criança em um lugar seguro e poder usar esse tempo para realizar suas atividades relacionadas ao trabalho ou, simplesmente, livrar-se de mais um encargo da rotina doméstica. Algumas falas das mães ressaltadas por Cavalcanti (2010) parecem ilustrar, com pertinência, o vivido por elas:

- “Quando eles estão na creche é bom demais, porque geralmente cuido deles sozinha e de repente corre um pra o meio da rua e eu nem vejo. Eles na creche estão mais seguros do que em casa”.
- “Até hoje a vontade que tenho é de tirar ele da creche e ficar com ele em casa. Quando ele entrou, eu tava trabalhando. Mas mesmo que eu esteja desempregada, agora eu prefiro assim. Porque na creche ele tem o que comer e às vezes em casa só tem leite. Sempre achei melhor deixá-lo na creche, do que com outra pessoa. No início ele ficava sem comer, mas, agora ta melhorando. Foi difícil arrumar a vaga e agora não vou tirar ele”.
- “Meu filho tem amor às cuidadoras. Eu até já tive um motivo para reclamar, mas, de tantas coisas boas que a creche traz, eu não me senti no direito.”
- “Nas férias foi difícil pra mim, porque minha filha é muito danada. Eu tenho certeza que tô pagando pelos meus pecados. É com o pequeno no braço e fazendo comida no fogão. Pense que ele é danado!” (CAVALCANTI, 2010, p.36)

Os fragmentos dos discursos acima parecem ilustrativos das ambivalências parentais presentes em suas relações com a creche, cuidadores e com os filhos. Ao mesmo tempo em que aparece gratidão, de forma velada, aparecem sentimentos de raiva e inveja das cuidadoras. O objeto-creche ora é enaltecido pelos cuidados oferecidos às crianças, ora parece odiado. Sentimentos de raiva, impotência e culpa parecem marcar a relação dessas mães com suas crias.

Outros temas vêm sendo abordados ao longo das sessões com os pais: a colocação de limites, a sexualidade infantil e a questão de bater ou não bater, ocupam boa parte do tempo. Em algumas sessões, embora de forma tímida, fragmentos das histórias pessoais, a relação conjugal e a sexualidade parental vêm sendo, rapidamente, falados por algumas mães.

 

4. A escuta dos cuidadores

A simples presença dos bebês na creche já diz que houve um corte no vínculo com a mãe. E que as carências decorrentes desse corte devem ser supridas pelo cuidador. A literatura psicanalítica é uníssona em valorizar a importância do restabelecimento desse vínculo entre o bebê e a mãe substituta, no caso da creche, o cuidador.

A relação entre a criança e a mãe substituta é, por vezes, extremamente problemática. Por mais devotado que seja o cuidador, a falta da mãe e a descontinuidade da relação materna se fazem presentes. Por mais capacitado que seja o cuidador, o manejo com as crianças pode suscitar a emergência de fantasmas que interferem no desempenho de suas funções. Fantasmas decorrentes da relação dele com sua própria mãe. De acordo com Laplanche (1987), trata-se de Mensagens Enigmáticas tanto para mãe como para o filho, porque inconscientes, veiculadas ao longo dos cuidados maternos.

Entretanto, apesar das dificuldades, o cuidador pode se colocar no lugar daquele que acolhe o bebê, que lhe dá segurança e, principalmente afeto, tão essenciais para a construção da autoconfiança e autonomia do bebê. O fundamental, portanto, “é que quem cuida do bebê esteja implicado com esse cuidar” (MELO, 2010, p.42).

Os cuidadores da creche são pessoas extremamente simples, desinformadas, empobrecidas e totalmente despreparadas profissionalmente para o exercício de suas funções. Sua situação socioeconômica e cultural é tão difícil quanto a das crianças e familiares atendidos. Tal como as crianças, parecem chegar à creche trazendo na mochila histórias dolorosas, cortes e separações não elaborados e muita carência de cuidados. Algumas deixam seus próprios filhos em outras instituições e vêm “cuidar dos filhos dos outros”. Para todos, o trabalho na creche constitui-se na única fonte de renda fixa familiar. Frágeis, em sua maioria, não conseguem se colocar como suporte dos ataques pulsionais dos bebês.

As pesquisas de Melo (2010) sinalizam para a necessidade de uma atenção especial dirigida aos cuidadores em relação aos cuidados dispensados, por eles, aos bebês da creche. A autora observou uma extrema dissonância entre as propostas teóricas e a prática dos cuidadores com os bebês. Entre outros comentários, sublinha que as crianças que ainda não apresentavam linguagem verbal tentavam se comunicar através do choro, grito, olhar, sorriso, enfim, comunicação própria de crianças pequenas. Porém, a maioria ficava sem resposta. As tentativas de comunicação dos bebês pareciam não fazer eco nas cuidadoras. E, quando atendidas, a demanda individual era traduzida como sendo de todos. “Possivelmente, a falta de um gesto que desse sentido ao experimentado, deixava os bebês na vivência de um imenso vazio” (MELO, 2010, p.42). Entretanto, a autora acrescenta:

[...] Não nos apressemos em julgar os cuidadores. Não existe treinamento que possibilite aos cuidadores esse olhar. Eles próprios parecem precisar também de um olhar que os reconheça na dura tarefa de cuidar, praticamente sem apoio, de tantas crianças carentes! (MELO, 2010, p.42).

Como tentativa de prover bons cuidados, a equipe é atendida, quinzenalmente, por dois estagiários. É composta do coordenador, senhor idoso, de seis cuidadoras e de uma cozinheira, todas com idade média de trinta e cinco anos. Como foi dito anteriormente, a escolaridade da equipe de funcionários é precária. Apenas o coordenador tem ensino superior. Exceto uma cuidadora (ensino médio incompleto), as demais não concluíram o ensino fundamental.

Nas primeiras sessões, muito defendidos, como se a estratégia consistisse em passar da defesa ao ataque – antes que vocês nos acusem de maus cuidadores, ouçam as dificuldades do nosso trabalho – teciam críticas às famílias das crianças. Pareciam ameaçados, provavelmente pelo sentimento de estarem sendo avaliados e em face da presença do coordenador. Este, também ameaçado, ocupava toda a sessão queixando-se das dificuldades financeiras em sustentar a creche e dos esforços que fazia para mantê-la. Por vezes, de forma indireta, parecendo aproveitar a situação, criticava o trabalho das cuidadoras. Estas, cabisbaixas, nada falavam.

A escuta das sessões iniciais revelou que a presença dos estagiários junto às crianças parecia incomodar as cuidadoras, seja pelo sentimento de perda de poder, seja pela raiva e inveja dos estagiários, percebidos como poderosos. Estes, pelo contraste, pareciam realçar para as cuidadoras as fragilidades e adversidades de suas vidas.

Porém, pouco a pouco, começaram as queixas do número excessivo de crianças por cuidadora, da rotina da creche e, discretamente, do coordenador. Também passaram a falar das dificuldades entre elas e das dificuldades pessoais. Por vezes, questionavam a eficácia das atividades propostas pela equipe e algumas discordâncias, principalmente, nas questões que implicavam a adaptação à creche, à maternagem e à colocação de limites. Entretanto, de forma discreta, algumas falavam do desejo de serem mais bem capacitadas para o exercício de suas funções.

 

Considerações finais

Parece relevante fazer alguns comentários das supervisões clínicas com os estagiários, no que diz respeito aos movimentos contratransferenciais. Trata-se de uma equipe formada por jovens iniciantes tanto na prática psicanalítica e nos estudos teóricos, como no próprio processo de análise. Consequentemente, frente às histórias e ao desamparo dessa clientela, os estagiários, por vezes, se sentiam incompetentes, não sabiam o que fazer. Temiam errar e, assim, aumentar ainda mais o sofrimento dos pais, dos cuidadores e, sobretudo, das crianças. Nesse tempo, algumas vezes, as supervisões eram tensas, alguns estagiários pareciam sentir-se ameaçados e julgados pela supervisora. Outros esqueciam o material de supervisão, faltavam ou chegavam atrasados. De forma velada, algumas tensões e competições entre os estagiários aconteciam.

Em outros momentos, na relação com as crianças, apareciam movimentos de ficar no lugar das mães ou das cuidadoras desses filhos tão desamparados! Alguns comentários feitos pelos estagiários, de forma emocionada, nos momentos das supervisões: “as cuidadoras e o coordenador são inadequados; então, não vai ser possível fazer mudanças”; “com essas famílias, as crianças não têm saída”; “precisamos fazer alguma coisa para impedir que o coordenador demonstre as suas preferências, ora por uma cuidadora, ora por alguma criança”; “a creche deveria ser mais cuidadosa e protetora!”.

Ora, em algumas queixas dos estagiários o que aparecia era o desejo de colocarem-se no lugar da mãe ideal, daquela que preenche todas as faltas do filho. Assim, de ficarem no lugar dos cuidadores enquanto estes, mesmo provisoriamente, ocupavam o lugar dos pais. Em alguns momentos, pareciam não estarem livres para ocupar esse lugar no plano da transferência. Em outros momentos, aparecia o desejo de interromper o estágio e, assim, livrarem-se da demanda incessante de cuidados advinda da clientela, experimentada por alguns estagiários como intensa cobrança e invasão.

Para concluir, um comentário sobre os movimentos transferenciais. Na creche, parece evidente que a troca anual de estagiários coloca, de saída, o problema da diluição da transferência. Ademais, as crianças são confrontadas com situação de cortes com os vínculos primordiais e, ao mesmo tempo, precisam estabelecer novos vínculos com as cuidadoras e, agora, com os estagiários. Muitas mães, muitos pais, muita rotatividade e descontinuidade!

Como tentativa de amenizar essa questão, os pares de estagiários são, geralmente organizados, considerando a necessidade de manter constante um mesmo estagiário por grupo. Nesse sentido, os pares são formados por um estagiário do quinto ano e uma psicóloga voluntária ou um aluno do Núcleo de Psicanálise. Consequentemente, mesmo com a saída de um estagiário, o outro se mantém.

Apesar das inúmeras dificuldades, a experiência tem revelado que as práticas analíticas na creche vêm favorecendo o estabelecimento de movimentos transferenciais que permitem a emergência e elaboração de alguns conflitos. Por outro lado, as práticas realizadas em grupo favorecem a instauração da transferência paralela, o que tem fortalecido os vínculos fraternos entre as crianças e entre os adultos envolvidos nos cuidados das crianças: familiares, cuidadores e estagiários.

Temos pouco mais de dois anos de trabalho na creche, mas já se vislumbram avanços. Crianças, cuidadores e pais mais participativos. A palavra circula e a maioria das crianças começa a brincar. Observam-se indícios, embora tênues, de alguns vínculos entre as crianças e cuidadoras, e entre as crianças da creche. Apesar das dificuldades e mudanças de membros, a equipe de estagiários tem-se revelado mais coesa, cúmplice e solidária. Mais centrada nas suas funções e ciente dos seus limites. A palavra de uma ex-estagiária pode ilustrar o movimento recente da equipe:

[...] O estágio permitiu constatar a importância de uma boa provisão ambiental no início da vida da cria humana. [...] As supervisões e as reflexões teóricas dessa prática contribuíram para a nossa formação como psicoterapeuta. Podemos dizer que, se as bases da saúde mental do indivíduo se encontram no “ambiente suficientemente bom”, as bases de uma prática efetiva e solidária do futuro psicólogo se assentam ao longo de sua formação acadêmica (BARROS, 2010, p.43).

A fala acima citada mobiliza o desejo de um último comentário acerca da transmissão da Psicanálise na Universidade. Apesar dos limites, das dificuldades e controvérsias, a Universidade se constitui num lugar legítimo para a transmissão, pesquisa e prática psicanalíticas, desde que se efetive a articulação contínua entre teoria e prática. Longe da preocupação de formar psicanalistas, o estágio supervisionado em Psicanálise pode preparar e habilitar um profissional de Psicologia, com vistas à prevenção e promoção da saúde mental da população empobrecida, tão carente de boas provisões ambientais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Praça João Brasil de Mesquita, 19 - Miramar
58043-060 – João Pessoa/PB
Tel.: (83)3224-2504
E-mail: henriquetaarcoverdemelo.com.br

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 12/09/2011

 

 

Sobre a Autora

Henriqueta Lúcia Arcoverde Melo
Psicanalista da SPP – Sociedade Psicanalítica da Paraíba/Círculo Brasileiro de Psicanálise. Psicóloga. Mestrado em Psicanálise. Professora do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.