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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.37 Belo Horizonte July 2012
Algumas considerações sobre o objeto na psicanálise de Winnicott e Lacan: do objeto transicional ao objeto pequeno a
Some thoughts about the psychoanalysis object of Winnicott and Lacan: from the transitional object to the little a object
Pedro Teixeira Castilho
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
RESUMO
Este trabalho busca demonstrar a construção winnicottiana do objeto transicional para, em seguida, percorrer o caminho que leva ao objeto pequeno a desenvolvido por Jacques Lacan. A legalidade desta comparação é plausível se levarmos em consideração as referências de Lacan a Winnicott no seu Seminário, livro 4: a relação de objeto. O psicanalista francês abre caminho para esta aproximação porque o objeto transicional, assim como também o objeto pequeno a, não pertence à mãe e tampouco ao bebê. Procura-se na obra de Winnicott e de Jacques Lacan evidenciar o lugar de não pertencimento dos dois objetos.
Palavras-chave: Objeto a, Objeto transicional, Impossibilidade, Perda, Extração.
ABSTRACT
This work searches the construction of Winnicott of his transitional object. Following this issue, this work will be led to the object little a developed by Jacques Lacan. The legacy of these two conceptions is the lacanian reference to Winnicott. The French psychoanalyst opens one possibility for this comparison because both objects don’t belong either to the mother or to the child. We will attempt showing that this object is not part of anyone. Then we will determinate this object’s clinical character.
Keywords: Object a, Transicional object, Impossibility, Loss, Extraction.
Pretendo demonstrar o percurso de formulação e de construção da noção de objeto nas teorias de Winnicott e de Jacques Lacan. Este texto aponta as semelhanças e as diferenças nas construções teóricas destes dois autores. Lacan sabia que Winnicott escreveu seus trabalhos na perspectiva de um pediatra com postura psicanalítica que procura obter, no quadro do tratamento dos comportamentais psíquicos, esclarecimentos acerca das condições “suficientemente boas” do desenvolvimento emocional compatível com a idade cronológica das crianças pequenas. Sendo assim, a hipótese deste artigo é demonstrar que a concepção de objeto transicional de Winnicott é a porta de entrada para Lacan desenvolver a concepção de objeto pequeno a.
Winnicott e o objeto transicional
O que o distingue de imediato da abordagem da tradição ortodoxa da psicanálise é uma percepção que pode ser inserida na noção de relacional. Isso quer dizer que, em seus primeiros meses de vida, a criança pequena depende da mãe como aquela que cuida dele, que atende às suas necessidades (físicas e emocionais) e não complementa seu comportamento pelos cuidados maternos que ele representa uma abstração errônea quando a pesquisa psicanalítica a considerar um objeto de investigação independente, isolada de qualquer pessoa de referência, a mãe não é uma pessoa de referência, porque o bebê não a tem como uma alteridade.
A assistência com que a mãe mantém o bebê em vida não se conecta ao comportamento infantil como algo secundário, mas está fundida com ele de uma maneira que torna plausível supor, para o começo de toda uma vida humana, uma fase de intersubjetividade indiferenciada, não havendo propriamente falando uma intersubjetividade, porque não há duas subjetividades ou dois sujeitos.
Portanto, para Winnicott, isso se refere ao que é designado na teoria freudiana com o conceito de “narcisismo primário”. Não só o bebê deve alucinar, tomando o comportamento cuidadoso materno como uma emanação da própria onipotência, mas, também, a mãe perceberá todas as reações de seu filho como elemento único do ciclo de ação. Essa unidade originária do comportamento, reciprocamente vivenciada, suscita a questão com que Winnicott se ocupou principalmente durante sua vida: Como se constitui o processo de interação através do qual mãe e filho podem se separar do estado do indiferenciado ser-um, de modo que eles aprendem a se aceitar e amar, afinal, como pessoas independentes?
A formulação da questão já indica que desde o início Winnicott concebeu o processo de amadurecimento infantil como uma tarefa que só através da cooperação, que não passa pela intersubjetividade de mãe e filho, pode ser solucionada em comum: visto que ambos os sujeitos estão incluídos inicialmente, por meio de operações ativas, no estado do ser-um simbiótico.
Eles, de certo modo, precisam aprender como diferenciarem-se em seres autônomos. Por conseguinte, os conceitos que Winnicott emprega para caracterizar as diversas fases desse processo de amadurecimento são sempre designações, não só do estado psíquico de um dos implicados, da criança, mas também da constituição respectiva da relação entre mãe e filho; o progresso que o desenvolvimento infantil há de tomar deve conduzi-lo a uma personalidade psiquicamente sã, sendo perceptível nas modificações da estrutura de uma construção interativa, não nas transformações da organização do potencial pulsional do indivíduo.
Para caracterizar a primeira fase, isto é, aquela relação de comunidade simbiótica que principia logo depois do nascimento, Winnicott aduz principalmente a categoria de dependência absoluta; ela significa que os dois parceiros de interação dependem aqui, na satisfação de suas carências, inteiramente um do outro, sem estar em condições de uma delimitação individual em face do respectivo outro. Pois, por um lado, a mãe vivenciará o estado carencial precário do bebê como uma necessidade de seu próprio estado psicológico, uma vez que ela se identificou com ele no curso da gravidez; daí a atenção emotiva dela estar talhada para a criança de modo tão integral que ela aprende a adaptar sua assistência e cuidado, como por um ímpeto interno, aos seus interesses cambiantes, mas como que co-sentidos por ela própria (WINNICOTT, 1978, p.83).
A essa dependência precária da mãe, que carece, segundo a suposição de Winnicott, do reconhecimento protetor da própria mãe, corresponde, por outro lado, o completo estado de desamparo do bebê, ainda incapaz de expressar por meios comunicativos suas carências físicas e emotivas. Não estando em condições de uma diferenciação cognitiva entre ela mesma e o ambiente, a criança se move, nos primeiros meses de vida, num horizonte de vivências cuja continuidade só pode ser assegurada pelo auxílio complementário de um parceiro de interação. Na medida em que a libertação das tensões pulsionais e também o conforto no contato corporal fazem parte das qualidades, necessárias à vida, desse mundo indiferenciado de experiências, o bebê depende desamparadamente de que a mãe lhe demonstre amor através das formas de “colo” holding (Winnicott, 1982, p.37), exigidas pelas carências. Só no abrigo físico representado pelo “colo” o bebê pode aprender a coordenar suas experiências motoras e sensórias em torno de um único centro de vivência, chegando assim ao desenvolvimento de um esquema corporal; por isso, uma vez que compete à atividade de “colo” uma importância extraordinária para o desenvolvimento infantil, em algumas passagens Winnicott chamou o estado de fusão também de “fase do colo” (WINNICOTT, 1982).
Como a mãe e a criança dependem uma da outra nessa fase de unidade simbiótica, esta só pode chegar, portanto, a um termo quando ambas obtêm para si um pouco de independência. Para a mãe, esse empuxo de emancipação principia no momento em que ela pode voltar a ampliar seu campo de atenção social, porque sua identificação primária e corporal com o bebê começa a fluidificar; o retorno às rotinas do cotidiano e a nova abertura para as pessoas de referência familiares impelem-na a negar a satisfação direta das carências da criança, ainda espontaneamente intuídas, deixando-a só por intervalos maiores de tempo. A essa “des-adaptação graduada” da mãe corresponde, pelo lado do bebê, um desenvolvimento intelectual que provoca, juntamente com a ampliação dos reflexos condicionados, a capacidade de diferenciar cognitivamente o próprio ego e o ambiente. Na idade média de seis meses, ele começa a entender sinais acústicos ou ópticos como índices de futuras satisfações de carências, de sorte que pode suportar progressivamente a ausência da mãe em curtos períodos. Se desse modo a pessoa da mãe passa a ser vivenciada pela primeira vez como algo no mundo que não está sob o controle da própria onipotência, então isso significa para a criança, ao mesmo tempo, uma percepção germinal de sua dependência: ela sai da fase da “absoluta dependência” porque a própria dependência em relação à mãe entra em seu campo de visão, de modo que ela aprende agora a referir seus impulsos pessoais, propositadamente, a certos aspectos da assistência materna (WINNICOTT, 1982).
Nesse novo estágio de interação, ao qual Winnicott anexa o conceito de “independência relativa”, ocorrem todos os passos decisivos no desenvolvimento da capacidade infantil para a ligação; é por isso que ele lhes dedicou a maior e, além disso, a mais instrutiva parte de suas análises. Elas dão a entender como se constitui na relação entre mãe e filho aquele “ser-si-mesmo em um outro”, o qual pode ser concebido como padrão elementar de todas as formas maduras de amor.
Para a criança, resulta do processo de desilusão, iniciado quando a mãe já não pode estar à sua disposição em virtude de novo aumento de sua autonomia de ação, um grande desafio, difícil de ser vencido: se a pessoa fantasiada até então como parte de seu mundo subjetivo escapa gradativamente de seu controle onipotente, ela precisa começar a chegar a um “reconhecimento do objeto como um ser com direito próprio”. A criança pequena é capaz de resolver essa tarefa na medida em que seu ambiente social lhe permite a aplicação de dois mecanismos psíquicos que servem em comum à elaboração afetiva da nova experiência; o primeiro dos dois mecanismos foi tratado por Winnicott sob a rubrica de “destruição”, o segundo é apresentado por ele no quadro de seu conceito de “fenômeno transicional”.
Em resposta à percepção gradual de uma realidade que resiste a estar disponível, o bebê desenvolve logo uma disposição para atos agressivos, dirigidos primariamente à mãe. Winnicott não concebe a agressividade em termos de frustração, há toda uma teoria de Winnicott a respeito das raízes da agressividade. Percebida agora também como independente, como que para rebelar-se contra a experiência do desvanecimento da onipotência, ele procura destruir o corpo dela, vivenciado até aqui apenas como fonte de prazer, aplicando-lhe golpes, mordidas e empurrões. Nos enfoques interpretativos convencionais, essas erupções de agressividade infantil são colocadas na maioria das vezes num nexo causal que ocorre devido à experiência da perda do controle onipotente. Para Winnicott, ao contrário, elas representam em si ações oportunas, através das quais o bebê testa à maneira inconsciente se o objeto, afetivamente investido em alguma medida, pertence de fato a uma realidade influenciável e, nesse sentido, “objetiva”. O bebê não agride a mãe para objetivá-la, ele a “objetiva” como resultado da sobrevivência da mãe à agressão do bebê. Se a mãe sobrevive a seus ataques destrutivos sem revidar, ele se desloca praticamente, de certo modo, para um mundo no qual existem ao lado dele outros sujeitos. Nesse sentido, os atos destrutivos com base nos quais a criança pode chegar a um reconhecimento da mãe, isento de ambivalência, como “um ser com direito próprio”: se ela suporta seus atos destrutivos como pessoa capaz de resistência, chegando até mesmo a lhe dar, com negativas, ensejos a erupções de fúria, então ele se torna capaz, através de integração de seus impulsos agressivos, de amá-la sem fantasias narcisísticas de onipotência. Na ligação que surgiu agora, a criança pode reconciliar sua afeição pela mãe ainda alimentada de forma simbólica, com a experiência da autonomia desta:
Durante esse tempo, a mãe é necessária, e ela é necessária por causa de seu valor de sobrevivência. Ela é uma mãe-ambiente e, ao mesmo tempo, uma mãe-objeto, o objeto do amor excitado. No último papel, ela é repetidamente destruída ou danificada. A criança integra gradualmente esses dois aspectos da mãe e gradualmente se torna capaz, ao mesmo tempo, de amar a mãe sobrevivente com ternura (WINNICOTT, 1975, p.133).
Se concebemos, dessa maneira, o primeiro processo de desligamento da criança como o resultado de manifestações de comportamento agressivo, considerando-a um modelo instrutivo: com efeito, só na tentativa de destruição de sua mãe, ou seja, na forma de uma luta, a criança vivencia o fato de que ela depende da atenção amorosa de uma pessoa existindo independentemente dela, como um ser com pretensões próprias. Para a mãe, inversamente, isto significa, no entanto, que também ela tem de aprender primeiro a aceitar a independência de seu defrontante, se quer “sobreviver” a seus ataques destrutivos no quadro do seu espaço de ação novamente alargado: a carga agressiva da situação requer dela que compreenda as fantasias e desejos destrutivos de seu filho como algo que vai contra os seus próprios interesses e que, por isso, só compete a ele, como uma pessoa já autonomizada. Se, pelo caminho assim traçado, um primeiro passo de delimitação recíproca é bem-sucedido, a mãe e a criança poderão saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra. Para Winnicott, somente uma mãe psicótica se confundiria com seu filho. Nos casos normais é o filho que tem a mãe como um objeto subjetivo.
Winnicott afirma então, numa parte complementar de suas análises, que a criança está tanto mais em condições para essa primeira forma de equilíbrio entre autonomia e simbiose quanto menos distorcido é o desdobramento de um segundo mecanismo de elaboração: ele o apresenta com base numa concepção teórica marcada pelo conceito de “objeto transicional”. O fenômeno empírico que Winnicott tem em vista consiste na forte inclinação das crianças de poucos meses de idade para contrair uma relação afetivamente investida com objetos de seu ambiente material: tais objetos, sejam partes de brinquedos, pontas de travesseiros ou o próprio dedo polegar, são tratados como uma posse exclusiva, amados temporariamente com ternura, mas também destruídos com paixão. O objeto transicional representa a primeira posse “não-ego” da criança, tem um caráter de intermediação entre o seu mundo interno e externo. Em Winnicott o conceito de objeto ou fenômeno transicional recebe três usos diferentes: um processo evolutivo, como etapa do desenvolvimento; vinculada às angústias de separação e às defesas contra elas; representando um espaço dentro da mente do indivíduo. O objeto transicional é algo que não está definitivamente nem dentro nem fora da criança; servirá para que o sujeito possa experimentar com essas situações, e para ir demarcando seus próprios limites mentais em relação ao externo e ao interno. O objeto transicional está situado em uma zona intermediária, na qual a criança se exercita na experimentação com objetos, mesmo que estejam fora, sente como parte de si mesma. Para explicar a constituição do objeto transicional, Winnicott remonta ao primeiro vínculo da criança com o mundo externo, a relação com o seio materno (WINNICOTT, 1976, p.70). No princípio, a criança tem uma ilusão de onipotência, vivenciando o seio como sendo parte do seu próprio corpo. Mas, uma vez alcançada esta onipotência ilusória, a mãe deve, idealmente, ir desiludindo a criança, pouco a pouco, fazendo com que o bebê adquira a noção de que o seio é uma “possessão”, no sentido de um objeto, mas que não é ele (“pertence-me, mas não sou eu”). O objeto transicional ocupa um lugar que Winnicott chama de ilusão. Ao contrário do seio, que não está disponível constantemente, o objeto transicional é conservado pela criança. Ela é quem decide a distância entre ela e tal objeto. Como os fenômenos transicionais “representam” a mãe, é essencial que ela seja vivenciada como um objeto bom.
Winnicott aponta algumas características que são comuns aos objetos transicionais: a criança afirma uma série de direitos sobre o objeto; o objeto é afetuosamente ninado e excitadamente amado e mutilado; deve sobreviver ao ódio, ao amor, e à agressão. É muito importante que o objeto sobreviva à agressão, possibilitando à criança neutralizá-la, dando-lhe, posteriormente, um fim construtivo, ao notar que esta não destrói os objetos. A ligação e o afastamento do objeto transicional deixam em cada sujeito uma marca: fica na mente do indivíduo um espaço que, assim como o objeto transicional, é intermediário entre o interno e o externo. É nesse espaço que se produzem muitas das atividades criativas do homem, como as artes, a música, etc. que “representam” o mundo interno para o exterior e, em certo sentido, “representam” a realidade para si mesmo.
Winnicott enxerga a chave para uma explicação da função desses objetos transicionais no fato de os parceiros de interação da criança também os classificarem num domínio da realidade perante o qual a questão da ficção ou realidade se torna irrelevante; como que por acordo, tácito, eles são situados num domínio “intermediário”, do qual os implicados não precisam mais discernir se pertence a um mundo interno de meras alucinações ou ao mundo empírico das circunstâncias objetivas:
Em relação ao objeto transicional, há por assim dizer uma espécie de acordo entre nós e o bebê de que nós nunca colocaremos a questão: ‘Você imaginou isso ou foi-lhe apresentado de fora’. É importante que uma decisão nesse ponto não seja esperada. A questão não é para ser formulada (WINNICOTT, 1975, p.23)
Se se considera em conjunto a fase evolutiva em que ocorre a descoberta desses objetos referenciais intermediários, então é natural supor primeiramente que eles representam formações substitutivas para a mãe, perdida na realidade exterior; visto que lhes cabe ontologicamente uma espécie de dupla natureza, a criança pode utilizá-los praticamente aos olhos dos pais para continuar a viver suas fantasias, originárias de onipotência depois da experiência de separação e, ao mesmo tempo, testá-las na realidade de maneira criativa.
Contudo, nesse modo de emprego lúdico e examinador da realidade, vem à luz também que a função dos objetos transicionais não pode limitar-se a assumir simbioticamente o papel da mãe vivenciada no estado de fusão; a criança não somente se refere aos objetos escolhidos por ela com ternura simbiótica, mas também os expõe repetidas vezes a ataques furiosos e a tentativas de destruição. Winnicott crê poder concluir daí que os objetos transicionais seriam de certo modo elos de mediação ontológica entre a vivência primária do estar fundido e a experiência do estar separado: no relacionamento lúdico com os objetos afetivamente investidos, a criança tenta amiúde lançar pontes simbólicas sobre o abismo dolorosamente vivenciado da realidade interna e externa. A circunstância de que está associado a isso, ao mesmo tempo, o começo de uma ilusão intersubjetivamente aceita faz com que Winnicott dê um passo a mais, chegando a uma tese com consequências profundas e dificilmente sintetizáveis: porque aquela esfera de mediação ontológica deve sua constituição à solução de uma tarefa que continua a subsistir para os homens ao longo de sua vida, ele é o lugar psíquico da gênese de todos os interesses que o adulto demonstrará pelas objetivações culturais. Não sem senso para agudezas especulativas, Winnicott diz:
Afirmamos aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é totalmente completada, que nenhum ser humano está livre da pressão de relacionar realidade interna e externa, e que a libertação dessa pressão é oferecida por um domínio de experiência intermediária [...] não colocada em questão (arte, religião, etc.). Esse domínio intermediário está em continuidade direta com o domínio lúdico das crianças pequenas, que estão ‘perdidas’ no seu jogo (WINNICOTT, 1975, p.23-4).
Se a mãe soube passar pelo teste de seu filho, tolerando os ataques agressivos sem a vingança de privá-lo do amor, então, da perspectiva dele, ela pertence de agora em diante a um mundo exterior aceito com dor; pela primeira vez, como foi dito, ele terá de tomar consciência agora de sua dependência em relação à dedicação dela. Se o amor da mãe é duradouro e confiável, a criança é capaz de desenvolver ao mesmo tempo, à sombra de sua confiabilidade intersubjetiva, uma confiança na satisfação social de suas próprias demandas ditadas pela carência; pelas vias psíquicas abertas dessa forma, vai se desdobrando nela, de maneira gradual, uma “capacidade elementar de estar só”. Winnicott atribui a capacidade da criança pequena de estar a sós, no sentido de que ela começa a descobrir de maneira descontraída “sua própria vida pessoal”, à experiência da “existência contínua de sua mãe confiável”: só na medida em que “há um bom objeto na realidade psíquica do indivíduo”, ele pode se entregar a seus impulsos internos, sem o medo de ser abandonado, buscando entendê-los de um modo criativo e aberto à experiência.
Lacan com Winnicott
É no Seminário, livro 4: a relação de objeto que Lacan recorre a Winnicott para fortalecer o seu argumento, numa controvérsia com os pós-freudianos, acerca da dialética mãe-bebê. Assim, torna-se necessário evidenciarmos nosso ponto de partida: o conceito de objeto. Neste seminário de 1956-57, ao comentar o artigo winnicottiano “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, Lacan recorre primeiramente às observações efetuadas por Winnicott acerca do papel exercido pela função materna na apreensão da realidade.
Nesse sentido, para Lacan, Winnicott surge como aquele que propõe a noção de objeto transicional, permitindo a Lacan apresentar as diferenças entre os registros imaginário, simbólico e real, no que diz respeito aos conceitos de desejo, demanda e necessidade. É a partir do seminário A relação de objeto que Lacan começa a construir o que, mais tarde, ele considera a sua maior contribuição à teoria psicanalítica, que é o objeto a. Lacan, em seu retorno a Freud, parte do conceito de objeto perdido, assim como também se inspira no conceito de objeto transicional de Winnicott.
A partir daí, Lacan formula um conceito próprio de objeto. Winnicott é, portanto, citado por Lacan por se diferenciar dos psicanalistas pós-freudianos, na medida em que Winnicott não se afasta dos preceitos freudianos: “Winnicott observa simplesmente, em primeiro lugar, que no interior de uma tal dialética é inconcebível que qualquer coisa possa se elaborar que vá além da noção de um objeto estritamente correspondente ao desejo primário” (LACAN, 1995, p.34). Do ponto de vista lacaniano, se a relação mãe-bebê fosse meramente dual, não conduziria a nada além da noção de um objeto correspondente, sendo, dessa maneira, impossível diferenciar o objeto alucinado da apreensão real do objeto de satisfação. Notemos também que, apesar da diferença na concepção da relação mãe-bebê, os dois psicanalistas se aproximam, na medida em que consideram que a natureza do objeto transicional não é nem interior nem exterior ao sujeito. A diferença se daria quando, no argumento lacaniano, a transicionalidade não é considerada apenas uma característica de alguns objetos num momento específico do desenvolvimento infantil e, sim, o próprio efeito da inserção da linguagem na apreensão humana da realidade.
O objeto pequeno a de Lacan
Nessa linha, as contribuições de Jacques Lacan com a noção de objeto pequeno a há uma diferente perspectiva na relação mãe-bebê. Neste sentido, procuraremos demonstrar que para o psicanalista francês o objeto pequeno a faz parte da relação mãe-bebê. No entanto, para Lacan, será necessário partir do ponto iniciado por Winnicott ao que concerne o objeto transicional. No meu entender, o trabalho de Jacques Lacan é de dar continuidade à construção teórica do psicanalista inglês. Na última parte do Seminário, livro 10: a angústia, Lacan se dedica a demarcar a experiência corporal a partir de novas categorias para os objetos. Lacan faz uma extração dos objetos oral, anal e genital – objetos herdados de Freud, e que, anteriormente, foram utilizados pelo movimento psicanalítico inglês, que tem como maior representante Melanie Klein –, dando a eles uma nova formulação. A sexualidade constitui-se em torno do buraco, da falta que circunda o vazio do objeto. Sendo assim, de que tratam os objetos parciais em Lacan? Esses objetos valem por serem caducos, restos destinados a não fazerem parte da mãe e tampouco do bebê. A noção de simbiose cai por terra por trazer uma impossibilidade de preenchimento na relação mãe-filho. Estes são objetos que pertencem, simultaneamente, ao Outro e ao sujeito. Quando Lacan apresenta sua lista de objetos, ele insiste em dizer que é o objeto “no Outro” e não “do Outro”. Lacan considera que o objeto oral é o resto da necessidade no Outro, o excremento é o resto da demanda no Outro. Que o olhar é a potência no Outro, e a voz é o desejo no Outro. Lacan diz “no Outro” porque esse objeto é separado do organismo do sujeito. Nesse sentido, só podemos pensar essa separação porque um sujeito pode ser visto. Isso quer dizer que esse espaço só se constitui com a condição de que o corpo e os objetos estejam elididos. Desse modo, há um outro espaço que interessa a Lacan, que é a objetalidade e, como poderemos verificar, não é mais uma objetividade simbiotizante.
O que é esquecido (...) – esquecimento que obriga a essas formas de suplementação que enfatizo, a propósito do artigo de Winnicott – é que um dos pontos mais essenciais da experiência analítica, e isso desde o começo, é a noção da falta do objeto (LACAN, 1995, p.35).
Na teoria dos estádios oral e anal, certos objetos se condensam na relação libidinizada, o que Lacan traduz em termos de objeto a, como mais-gozar. A partir daí, esses objetos permanecem escondidos como objetos comuns, mas esses objetos são anteriores ao objeto comum, e, também, anteriores à imagem. É uma exterioridade que o sujeito não pode apreender de forma especular e imaginária.
Esses objetos, ao mesmo tempo em que marcam sua presença no campo do desejo, apontam para a fixação de um gozo que insiste; a única tradução subjetiva desses objetos é a angústia. É aí que esses objetos incidem de uma maneira não compartilhada, não comunicável e mais êxtimo do sujeito. É essa a maleabilidade das zonas que contornam o corpo, como cicatrizes indeléveis, a partir da ausência de significação da relação mãe-bebê.
Lacan propõe construir os objetos-causa como não especularizáveis – não podemos capturá-los no campo do espelho. Eles escapam do campo do visual. Surge, então, algo que não pode ser sintetizado como imagem – objeto-causa da angústia, objeto a, vazio que é marcado pelo desejo do Outro que humaniza o sujeito falante, a falta do Outro, que erotiza o vazio do objeto. Para Lacan, esse objeto é irrepreensível seguindo-se as leis normais do campo visual. O objeto a pode tamponar todos os orifícios, e o desejo do Outro aparece na margem, na borda, obstruindo esse buraco, com o qual o encontro é de estrutura. Os modos de apresentação dos objetos estão correlacionados um com os outros, existindo uma maturação do objeto a.
As formas dos objetos nos diferentes estágios. Fonte: LACAN, 2004, p.320.
Quando considera o objeto oral, no Seminário, Livro 10: A angústia, Lacan concebe uma clivagem entre o mamilo, o bico do seio, e o seio como nutridor. Existe uma questão ligada ao mamilo, que está vinculada ao desejo erótico, e uma questão ligada ao seio nutridor, que pode ser pensada como o ponto de angústia que se ergue sobre a satisfação de alimento, esperada do seio. O grafo parte do objeto oral, o seio, na função de desmame. O objeto oral é o paradigma da função de corte entre o sujeito e o outro – a mãe-bebê – neste caso, o seio se separa do corpo da criança e não do corpo da mãe. Trata-se de um corte anterior à castração edipiana. O seio ocupa um lugar de objeto do qual o sujeito deve se soltar, objeto a ser perdido, renunciado. É o seio que cai quando o sujeito faz soltá-lo. Pertence ao sujeito, embora esteja no corpo da mãe. Dessa maneira, tem caráter amboceptor, estando do lado de quem suga e do lado de quem é sugado. A realidade do sujeito passa a ser o objeto caído do Outro. O seio e as fezes são objetos destinados a cair, têm o caráter de perda, no qual o objeto se dessubstancializa.
A passagem da pulsão oral para a anal é anterior, e traz a relação com a demanda do Outro. O objeto fezes faz surgir a demanda do Outro. É o resto da demanda do Outro que ele pede enquanto objeto anal – excremento enquanto objeto de demanda do Outro, que vale por ser objeto de troca com o Outro, em forma de pedido do Outro. Se, no nível oral, o sujeito solta ou não o seio, no nível anal, o Outro demanda do sujeito as fezes, podendo esta ser fonte de nojo ou ter o caráter de um presente: objeto agalmático – a permanência do objeto como algo, coisa que circula, báscula, não mais o sujeito que solta, mas um objeto que se solta para o desejo do Outro. Logo, é um objeto do dom que Outro demanda, criando uma dialética cheia de regras, que circula e bascula. O sujeito pode ou não se identificar com esse objeto, submetido à demanda da oblatividade do Outro. Lacan privilegia a abordagem do objeto anal na perspectiva do ideal, ou seja, da sublimação.
No alto do grafo surge o falo, sempre parcial, pois, em sua detumescência, pode faltar. Esse objeto está inserido no corpo e passa a ter uma fisiologia, sendo construído a partir da natureza evanescente da ereção. É daí que ele tem função central: o falo acena para o que não está resolvido na cópula sexual, sendo aproveitado quando está tumescente. É a imagem do corte e da separação, na possibilidade da falta do instrumento, que funciona para a efetivação do desejo, sendo mais significativo por sua queda do que por sua presença. Ele é a entrada da negatividade do objeto de desejo. O fato de o objeto de desejo poder faltar lança o sujeito no desejo e, nesse ponto, é a alternância que permite o encontro sexual e a afetivação da libido. Nesse seminário, propõe-se a função da detumescência no lugar da castração. Por isso, de maneira geral, preocupa-se com as particularidades anatômicas dos corpos em relação aos órgãos:
Afasta-se de toda mitologia, de toda dramaturgia do Édipo... e se os objetos emergem aqui como única, e ao mesmo tempo se multiplicam em relação às listas tradicionais, é porque estão desligados de toda retroação edípica. A separação que encontramos em alienação e separação é considerada como tal, independente de uma separação anatômica anterior à incidência do Outro (MILLER, 2007, p.55).
Na tumescência e detumescência do falo, existe um registro a partir da retroação dos objetos perdidos, oral e anal. É porque há uma retroação, primeiro no nível anal e depois no nível ideal, que o sujeito percebe que perdeu algo dele. Nesse ponto, podemos lembrar uma passagem do texto do pequeno Hans, em que ele diz que o pênis pode se atarraxar e desatarraxar-se, demonstrando que há um objeto cortado, anterior ao campo do simbólico. É aí que se pode pensar que esses objetos não podem fazer parte da partilha ou da concorrência, pois eles não são especularizáveis. Isso quer dizer que eles são anteriores aos objetos comuns, que podem ser compartilhados.
Na lição XIX desse mesmo seminário, pode-se perceber o que se destaca na desedipianização da castração, produzindo um estatuto da castração relativo ao organismo, à detumescência e à copulação. Nesse sentido, o obstáculo conceitual da castração passa a ser uma questão sobre o funcionamento do órgão.
O valor do termo separação substitui a castração. Surge, então, uma desmitologização da psicanálise. Esses objetos requerem um corte que não é simbólico. Isso quer dizer que são anteriores aos objetos comuns, funcionando como objetos escondidos. O fato de que sejam anteriores aos objetos comuns, aos objetos que podemos compartilhar, implica que eles sejam anteriores ao simbólico. Não somente esses objetos são anteriores aos objetos comuns, mas são, também, exteriores à imagem. É uma exterioridade de antes, que o sujeito não apreende de forma especular, em que se formam o moi e o Je. Por isso, ele faz uma distinção do objeto no Outro como anterior ao objeto do Outro. O que Lacan permite pensar, na utilização da separação, consiste em partir da demanda do Outro para remeter o objeto a à dimensão de causa de desejo. Em relação a isso, a pulsão escópica é reveladora.
A pulsão escópica alude à figura da estátua de Buda. Lacan observa suas pálpebras, através das quais seria difícil descobrir seu sexo: seria ele homem ou mulher (LACAN, 2004). Esse olhar de Buda é a articulação do desejo à imagem. Cria-se o desejo como ilusão, um ponto vazio, que não é especularizável. O olhar é abordado, a partir do budismo, ligando a ilusão à concepção de desejo como ilusão. Dizer que o desejo é uma ilusão é dizer que não tem suporte.
Uma diferença nítida entre o olho e o olhar começa a ser delineada pela psicanálise, o começo do desejo como ilusão é o vazio não-especular do objeto. É o olhar tomado na função de agalma que cria o desejo, é da falta da falta de objeto que surge o desejo. Além de sua ausência fazer sua presença, é a presença da falta do objeto que move o sujeito. O sujeito olha para elidir o fato de que tem algo que não vê, sem perceber que o mundo olha para ele. Para que o sujeito veja, é necessário que tenha algo que não vê.
Se não se sabe se Buda é homem ou mulher, é por causa do ponto de anulação do seu olhar. As pálpebras são um espelho da ilusão: há algo de engano e de miragem no uso da pulsão escópica. A experiência búdica tem uma referência ao espelho sem superfície, onde nada se reflete, dando lugar ao que se revela na imagem. No olhar situado na escultura de Bodnisattava não existe abertura dos olhos, a pálpebra está quase fechada, deixando passar um fio branco de olhos. As pálpebras preservam a fascinação do olhar, ao mesmo tempo em que indica algo do sujeito. Trata-se de uma figura visível que evita o invisível, ponto em que o desejo e a angústia coincidem. O olhar do Outro só se torna objeto de reconhecimento a partir do momento em que existe uma subjetivação da imagem, dando vida, como um brilho no olhar, um momento nulo, o instante zero (LACAN, 2004). É por isso que podemos compreender o fato de o vampiro não se reconhecer no espelho. Na parábola do conde de Wladwostock, o vampiro não se reconhece no espelho exatamente porque não existiu um Outro para criar a ilusão de seu desejo e da imagem do seu eu (moi): “O desejo é ilusório. Por quê? Porque se dirige sempre para o outro lugar, para um resto, para um resto constituído pela relação do sujeito ao outro que vem se substituir aí” (LACAN, 2004, p.276).
O desejo do Outro oculta a castração, o ponto zero, ausente de qualquer significação, buraco esvaziado de gozo que se suporta pela castração, em termos lacanianos. Esse objeto parcial de Lacan é o suporte do sujeito na formação imaginária de seu desejo, a “falta do Outro como aquela que me vê” (LACAN, 2004).
Estes dois últimos objetos, o olhar e a voz, acrescentados por Lacan, estão situados no nível do desejo. Eles estão ligados diretamente à divisão do sujeito a partir da fração libidinal que se pode subtrair do corpo. Como foi trabalhado neste capítulo, podemos perceber uma crítica do próprio Lacan ao “estádio do espelho”, uma vez que o valor do olhar e da voz vieram recobertos pela reação imaginária. Nesse ponto, o objeto não se reflete. O reconhecimento que se estabelece a partir da imagem, agora, se dá pelo desconhecimento suscitado pelo objeto a.
Vimos que Lacan, no Seminário, Livro 10: A angústia, coloca a disjunção do Édipo e da castração. A separação passa a ocupar o lugar da castração e do falo, surgindo um ponto de incongruência na identificação com o Pai. A retroação do Édipo, como formalizou Freud, a partir de Karl Abraham, supunha que esses diferentes estágios (oral, anal e fálico) adquirissem sentido e valor a partir do ponto edípico que a proibição do Pai confere ao sujeito. Quando Lacan volta ao tema, ele propõe que não é o desejo e a lei que trazem o sujeito, mas sim a separação dos órgãos. O objeto é anterior ao desejo e à lei. Nesse sentido, o objeto está anterior ao desejo; quer dizer, anterior à função paterna a que o desejo está vinculado. Lacan, assim, questiona o estatuto do pai como Nome-do-Pai.
A voz rompe com o jogo sintático de uma voz passiva e ativa. Não podemos pensar a partir da noção de mensagem e receptor. Abandonamos, então, a hipótese de uma gramática da voz. A partir desse momento, a voz passa a ser algo anterior à articulação da fala. Por meio desse encontro da voz com o corpo, está a equivocidade da fala. O objeto da pulsão invocante é a voz. Nessa versão da pulsão, há um se fazer ouvir que se dirige ao Outro. É aí que se pode evidenciar que o desejo do homem é o desejo do desejo do Outro. Sem sombra de dúvida, a voz é o que resta quando se é despojado das identificações, o desejo seria, então, uma história da voz. É pelo fato de não existir uma mensagem invertida, que vem do Outro, que podemos pensar em uma história da voz. A voz marca o campo do desejo: “Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar” (LACAN, 2004, p.184).
É pelo fato de o orifício não ser mais fechado que escutamos o que nos dá prazer e aquilo que está mais além do prazer. É nesse orifício do corpo que a voz incide, trata-se, portanto, de uma caixa de ressonância para a recepção da força da voz. É dessa maneira que o objeto voz surge para delimitar o silêncio que é anterior à voz. O silêncio que ninguém ouviu, mas que todos escutaram.
É nesse sentido que devemos pensar a voz. Ela é a última instância do Outro. O caráter da voz é etéreo. Ele é o sopro do shofar, um sinal de presença do desejo do Outro. Ele marca a aliança entre o Deus Yahveh e o povo judeu. É com o shofar que há um sinal do encontro com a voz do Outro. A tradição do verbo é, agora, a transmissão de uma voz.
A partir desses demarcados até aqui, podemos começar a construir uma nova maneira de se pensar a questão da identificação, delineada a partir da divisão do Outro. O que Lacan se pergunta no Seminário, Livro 10: A angústia é de que lado está o objeto. Quando se debruça sobre esse tema, há um deslocamento do Édipo para o objeto. Não se determina o infans pela proibição, mas sim pela separação. Quando Lacan introduz o objeto voz, é à voz de Yahveh que traz a referência da tradição judaica, na Bíblia e nos rituais, bem como as referências talmúdicas, especialmente à cerimônia do Yom Kippur, no qual se escuta o som do shofar. Com relação ao objeto voz, Lacan investiga o shofar, primeiro instrumento de sopro na história da civilização judaico-cristã, que emite um som contínuo, fora de qualquer tom. Isso seria representado no shofar, chifre de carneiro usado nas sinagogas para integrar a comunidade judaica. Na história do judaísmo, esse instrumento estabeleceu o pacto entre o povo hebreu e Yahveh, e é tocado para comemorar duas ocasiões: o aniversário do mundo e a presença de Deus.
No Seminário, Livro 10: A angústia, Lacan comenta o texto de Theodor Reik, Le rituel, psychanalyse des rites religieux, sobre o shofar, que é tocado três vezes na sinagoga, depois do Rosh Hashanah (aniversário do mundo) e no Yom Kippour (a presença de Deus), dia do grande perdão, primeiro dia do ano do calendário judeu. O som tem a função de renovar a aliança com Deus, emocionando a todos por representar a voz de Deus, seu rugido, referindo-se às tábuas da Lei, aos seus mandamentos, e inscrevem o sujeito na cultura. Nesse ponto, o dispositivo voz é o lugar do que existe de mais real do Outro,
onde se insere no campo do enigma do Outro e em que momento pode intervir tal tipo de objeto, a voz, que acreditamos conhecer bem, sob o pretexto de que conhecemos seus restos, na forma das vozes extraviadas da psicose, seu caráter parasitário, como imperativo interrompidos do supereu? (LACAN, 2004, p.321).
No Seminário, Livro 10: A angústia, o shofar é o ponto de amarração para a elaboração do objeto voz. Trata-se de um mugido, tendo algo de primitivo também em sua fabricação, que não é refinada. O instrumento é quase que apenas retirado do animal, produzido com parte de seu corpo, é seu chifre, seu osso. O som evoca o grito do Pai como marca do que Freud chamou de recalque originário, ou recalque propriamente dito. Nesse ponto, o shofar representa o momento solene em que Deus dita a Moisés os dez mandamentos, surgindo, aí, a aliança entre o povo Judeu e seu Deus, gesto que funda a Lei.
Para os judeus, é familiar o mugido do shofar, por três vezes repetido, no encerramento da celebração de Rosh Hashanah. A Bíblia refere-se, explicitamente, à “voz do shofar”: um som estarrecedor que, após a cerimônia de reconhecimento, lembra aos fiéis a vigência e a aliança com Yahveh. Para todos os efeitos, eles ouvem a voz de Deus. Uma voz isolada, ao mesmo tempo vazia e cheia de sentido, tanto que basta para renovar o pacto, ela possui o sentido absoluto da aliança: uma voz caída.
Podemos partir do fato de que a função da fala é o que confere um sentido às funções do sujeito. Essa fala enlaça um ao outro do significado – ou, antes, o “a significar”, o que resta a significar – e o significante; e esse enlace comporta sempre um terceiro termo, que é a voz. Se dizemos que não se pode falar sem voz, nada a dizer disso, podemos inscrever no registro da voz o que é resíduo, resto da subtração da significação ao significante. E podemos também, numa primeira abordagem, compreender a voz como tudo o que, do significante, não concorre ao efeito de significação. É isso que um esquema bem simples de Lacan comporta. A voz aparece na sua dimensão de objeto quando é a voz do Outro. O que conta aí? O que conta é que essa voz vem do Outro. A esse respeito, a voz é a parte da cadeia significante não passível de ser assumida pelo sujeito como “eu”; é subjetivamente atribuída ao Outro.
Esse som traz como marca uma mediação evanescente entre a expressão mítica e a palavra articulada em um discurso. Uma voz transgressora que se apresenta seguida do discurso articulado da palavra do Nome-do-Pai. Theodor Reik prolongou as teorias totêmicas de Freud, fazendo uso do tema da psicologia da religião, ao lado de Karl Abraham. As passagens de Reik sobre o shofar nos levam a ver que esse som do corno, que se faz ouvir na sinagoga, quando da renovação do pacto do povo eleito com Yahveh, é a referência do psicanalista. Esse som não é a Palavra de Deus, mas um mugido de touro, ou de bode, feito para lembrar a morte do Pai e o pacto que se deve seguir. A voz ressoa em um vazio que é o vazio do Outro, não moldada, senão articulada, afônica, ressoando nos ecos do real, por onde a verdade se transmite.
O sujeito monta um fantasma pelo qual a voz lhe retorna, passando a manipular os objetos fantasmáticos onde a voz é o primeiro; a voz que suscita a angústia a partir do encontro com o Outro, marcando uma anterioridade lógica ao estádio oral. Retornando ao grafo dos cinco estágios da constituição dos objetos, Lacan diz dos vínculos do estágio oral com as manifestações primárias da voz. O sujeito ouve a voz de um desejo que ele não sabe. A voz é a única forma do objeto a, que articula o desejo do sujeito com a vinda do Outro. Nesse ponto, teríamos o que se distingue, no seminário, como a marca da identificação. Ela se estabelece em um esquema que Lacan propõe como divisão – o que nos permite ler que o Outro é o Outro porque existe um resto. Isso quer dizer que há algo que não é significante e que está separado do corpo.
A esse respeito, a voz vem no lugar do que é do sujeito propriamente indizível, e que Lacan chamou seu “mais de gozar”, com a castração; quer dizer que não se escuta a voz no real, que aí somos surdos. Onde está, então, a instância da voz? E, se é feito um pacto, é a entrada no simbólico tanto para o judeu quanto para o Deus que firmou esse pacto. Então, é um Deus sobre o qual a lei também incide e marca seu desejo. Esse Deus é a voz, pois só resta a voz do shofar, um grito angustiante e angustiado, pois o shofar soa a cada vez que o humano e a divindade selam um pacto. Destacamos que há, na voz, qualquer coisa que escapa ao efeito instrumental. E é precisamente que o sujeito se ligue ao Outro: o que o sujeito liga ao Outro é a voz no campo do Outro.
Esse corno de carneiro, chamado de shofar pelos hebreus, é mencionado por Lacan no Seminário, Livro 10: A angústia como o objeto voz. Diante do som profundo desse corno, pode-se perceber algo que é transmitido, mas que não pode ser mais que um som puro, não significante. É por isso que são os objetos tomados da demanda – o objeto oral e o objeto anal – que vieram ao primeiro plano na análise, antes deste objeto do desejo, que é a voz. Há voz a partir do fato de que o significante gira em torno do objeto indizível. E a voz, como tal, emerge a cada vez que o significante se quebra, para agregar esse objeto ao horror.
A problemática da voz é ontológica. Há uma reivindicação do problema da voz e da sua “gramática” como um problema metafísico fundamental e, conjuntamente, como estrutura originária da negatividade. Ela é, antes, a possibilidade da impossibilidade da existência em geral, do esvanecimento de todo referir-se e de todo existir. É apenas no modo puramente negativo, em que se tem a experiência da impossibilidade radical. Segundo uma tradição que domina toda a reflexão ocidental sobre a linguagem, dos gramáticos antigos ao fonema, na moderna fonologia, aquilo que articula a voz humana, em linguagem, é de pura negatividade. Uma vez que tem lugar na voz, a linguagem tem lugar no tempo. Ela é cronotética. É nesse ponto que encontramos a voz como um objeto separado do corpo. Existem objetos que são partes desprendidas do corpo, cuja estrutura é uma borda. É pelo fato de esses objetos terem sido separados do corpo que eles exercem a função de resto. Se Lacan partiu da angústia para construir os objetos separados do corpo, é porque esses objetos não podem estar no campo do significante.
Em face de um corpo especular que habita a linguagem e a representação, ergue-se um corpo como resto. Esse resto faz uma ação de corte, separando-se do corpo especular. Diferentemente de uma ação de castração, agora, surge a separação de objetos perdidos. Os órgãos se separam do corpo não mais como uma ameaça de castração ou uma ação dialética do significante fálico. Surgem órgãos que se desprendem do corpo. Essas separações são mutilações de partes do corpo, algo anterior à simbolização fálica. Porque são objetos separados do corpo anterior à significação. Aí, a lista de objetos é independente da referência da castração e do desenvolvimento. Saímos do corpo especular para o campo dos objetos soletrados do corpo. Nos termos de Lacan:
A voz onde o que diz, mas não pode responder por isso. Para que ela responda, devemos incorporar a voz como alteridade do que diz [...] lembremos aqui essa forma de identificação cujo primeiro modelo é a voz e a respeito da qual falamos de incorporação (LACAN, 2004, p.319).
Assim, para concluir, é importante demonstrar que estamos saindo dessa posição secundária, por si só, ressitua a construção cujo princípio deve ser buscado na dimensão do objeto a.
À guisa de conclusão
Nesse sentido, podemos dar um novo valor ao termo princípio; isso quer dizer que o princípio está no nível do órgão que apaga toda a dramaturgia edípica. A partir daí, podemos começar a apagar o complexo de Édipo como um conceito fundamental da psicanálise. Essa afirmação de que o Édipo não seria mais um conceito fundamental da psicanálise, juntamente com a tentativa de encontrar outras maneiras de se pensar a questão do princípio, que, certamente, nos leva para a origem, pois, nesse ponto, separam-se o Édipo e a castração, o que demonstra a anterioridade do objeto.
Podemos, então, formular que o objeto transicional de Winnicott e o objeto pequeno a de Lacan demonstram algo anterior à proibição do desejo. No Seminário, Livro 10: A angústia, propõe-se chegar a um estatuto do anterior ao desejo e anterior à lei. É uma tentativa de desvincular a realidade psíquica ressignificando a sua verdadeira causa. Isso quer dizer que com a construção do objeto transicional e do objeto a, como trabalhamos, evidencia que o que restou foi um resto caído.
Referências
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E-mail: ctcastilho@ig.com.br
RECEBIDO EM: 20/01/2012
APROVADO EM: 15/03/2012
Sobre o Autor
Pedro Teixeira Castilho
Mestre em literatura e Psicanálise – UFMG. Doutor em Teoria Psicanalítica – UFRJ. Pós-Doutorando em Psicologia Clínica pela USP. Bolsista da Fapesp.