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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.41 Belo Horizonte July 2014
Gladiator de Ridley Scott - receita de imaginário para video game
Ridley Scott Gladiator - a recipe from the imaginary for a video game
Anchyses Jobim Lopes
I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá
RESUMO
Conexões entre cinema e psicanálise. Dependências de internet e video games, possível relação com novos tipos de assassinato. Análise do filme Gladiator, de Ridley Scott. Comparação entre o enredo do filme, as cenas suprimidas do filme e a história real. Interpretação psicanalítica das mudanças realizadas pelo diretor e roteiristas: supressão, cisão e negação. Aumento da duração das cenas de luta. Violência intrínseca do funcionamento do imaginário. Alterações de conteúdo que exacerbariam as características do imaginário. Gozo centrado no sadismo. Hipóteses sobre forma e conteúdo do imaginário, utilizados nos filmes e video games violentos.
Palavras-chave: Cinema, Supressão, Cisão, Negação, Imaginário, Violência, Sadismo.
ABSTRACT
Connections between cinema and psychoanalysis. Internet and video games addiction, possible connection to new kinds of murder. Analysis of Ridley Scott’s movie Gladiator. Comparison between the film’s plot, delected scenes and actual history. Psychoanalytical interpretation of the director’s and screenplay writers changes: suppression, splitting and negation. Combat scenes enlarged. Intrinsic violence of the imaginary’s ways of function. Content alterations which could increase such characteristics. Sadistic centered bliss. Hypothesis around the form and content of the imaginary, used by violent movies and games.
Keywords: Cinema, Suppression, Splitting, Negation, Imaginary, Violence, Sadism.
... iam pridem, ex quo suffragia nulli
uendimus, effudit curas; nam qui dabat olim
imperium, fasces, legiones, omnia, nunc se
continet atque duas tantum res anxius optat,
panem et circenses.
(... há muito tempo, quando não vendíamos nossos votos
para nenhum homem,
o povo que concedia o comando militar,
o cargo civil mais importante, as leigiões – tudo,
o povo abdicou de seus deveres
agora reduz-se a expectativa ansiosa de duas coisas,
pão e circo.)
(Juvenal, Sátira X.77–81)
Introdução - uma trama sinistra
Ao mesmo tempo nasceram a psicanálise e o cinema. Um sempre se interessou pelo outro. Até dias atuais a toda hora surgem artigos e livros misturando ambos. Seja como eventos ocasionais, seja como atividades estruturadas e regulares, todas as sociedades psicanalíticas apresentam seu Cinema e Psicanálise. Junto com este interesse, há o das consequências dos novos meios digitais. E o surgimento de novos quadros clínicos como a dependência em internet (YOUNG; ABREU, 2011) em suas várias modalidades (jogos de azar, cibersexo, role-playing games, entre outras). Em nossa clínica já faz tempo que chegaram casos de jovens, não só com dependência em internet, mas também casos de vício mais específicos como jogos de azar e em video games.
Na revista Estudos de Psicanálise n. 30 foi publicado um artigo – Psicanálise, poesia e educação: a imagem furo e a leitura poética (LOPES, 2007) – que entre outros temas aborda a conexão do excesso e da rapidez das imagens visuais trazidas pela internet, tanto com as dificuldades de leitura, quanto com o que foi denominado por KEHL (2004) “violência própria do funcionamento do imaginário” e suas consequências para a psicanálise e para o laço social. Já na revista Estudos n. 37 em Considerações sobre o massacre de Realengo (LOPES, 2012), houve a tentativa de expurgar o trauma causado pela primeira grande ocorrência de um tipo de crime até então pouco conhecido no Brasil. O tema, muito explorado pela mídia, da possível influência sobre o assassino não só da internet e de video games, mas também do excesso de filmes violentos, foi colocado em questão.
O artigo atual pretende ser um pouco mais lúdico, aproveitando o clima que sempre é convocado quando se trata de juntar cinema e psicanálise. Mas o entretenimento que é psicanalisar um filme que do princípio ao fim prende o espectador e tem um marcante fundo musical, também possui em seu núcleo uma reflexão não muito disfarçada de preocupação, por abordar alguns dos temas sombrios dos artigos anteriores.
Ridley Scott é um cineasta famoso, reconhecido por seus filmes premiados e pelos temas sombrios de muitos deles. Entre dezenas de outros prêmios, Scott ganhou o Oscar com Thelma e Louise e Falcão negro em perigo (Black Hawk Down). Diretor cultuado pelos clássicos de ficção científica Alien - o 8º passageiro (também premiado com o Oscar) e Blade Runner - o caçador de androides. De seus sucessos, Gladiador (Gladiator), lançado em maio de 2000, foi o que ganhou mais Oscars, cinco, outorgados em 2001. Foi um grande sucesso de bilheteria, que continuou em DVD, vendido hoje até em bancas de jornal no Brasil, e provou que superproduções calcadas na história antiga novamente podiam ser rentáveis. Mas o que mais chamou à época a atenção para Gladiator foi o uso maciço de efeitos especiais, agora não para um filme de ficção científica ou de fantasia, mas para a reconstituição de Roma antiga, em especial do Coliseu e os combates de gladiadores.
Um aspecto menos conhecido de Scott é que também sempre se dedicou à produção de anúncios, o que explica seu estilo muito visual, de imagens dinâmicas, impactantes, rapidamente se sucedendo. Sua obra cinematográfica se beneficia de seu conhecimento das técnicas de propaganda. Também podemos classificar Scott como autor completamente inserido no paradigma das linguagens visuais que fundamentam a computação de acesso à grande massa e à internet. Gladiator não é somente um filme que fala do passado, mas explica muito do presente e, quem sabe, prevê futuros sombrios como nos clássicos de ficção científica dirigidos por Scott.
Gladiator - o filme
Gladiator é uma refilmagem bastante livre, muito livre mesmo, de uma superprodução de 1964, A queda do império romano (The Fall of the Roman Empire), repleto de estrelas: Sophia Loren, Alec Guinness, James Mason, Omar Sharif, entre os mais conhecidos, e dirigido por Anthony Mann. O cenário do filme é considerado a mais fiel reconstrução do Forum de Roma antiga mostrada pelo cinema.
A queda do império romano foi um dos mais famosos fracassos de público do cinema. Enterrou a carreira do diretor e faliu o produtor, Samuel Bronston, célebre por filmes como Rei dos reis e El Cid. Com razoável dose de boa vontade pode ser assistido em DVD, desde se sobreviva a interminável primeira hora de exibição. Revisto décadas depois, apesar de uma direção pesada, concordante com a maioria das representações, os três quintos finais de A queda prende a atenção, revela uma trama política complexa, uma crítica espantosamente lúcida sobre a era de ouro da Guerra Fria e, apesar do final feliz para o mocinho e sua heroína, há um desfecho profundamente trágico para todos os demais protagonistas e suas ideias. Embora de passado no século II, deixa um gosto amargo de excesso de realidade. Completamente oposto de Gladiator, em que o herói morre, a mocinha fica só, mas a plateia sai exultante como se saída de um filme de fantasia.
Breve sinopse de Gladiator. No ano 180 o imperador Marco Aurélio, com a ajuda de seu general Máximo, combate os bárbaros na distante Germânia. Após o combate o imperador chama Máximo e, estando à beira da morte, o comunica que pretende nomeá-lo seu sucessor, com o objetivo de restaurar a república. Vindos de Roma chegam os filhos de Marco Aurélio: Cômodo e Lucila. Quando Cômodo é comunicado pelo pai sobre a decisão sucessória o estrangula e acaba assumindo o trono. Para tanto, manda matar Máximo que acaba conseguindo escapar.
O general corre para sua casa na Espanha, mas, quando chega, sua mulher e seu filho já haviam sido assassinados a mando de Cômodo. Fugindo, Máximo é tomado como soldado desertor e vendido como escravo. Acaba nas mãos de Próximo, um ex-gladiador liberto. Provando sua destreza na arena, Máximo acaba indo para Roma combater no Coliseu, sem que saibam sua verdadeira identidade. Magnífico vencedor do primeiro combate, quando o imperador Cômodo vai cumprimentá-lo, Máximo revela sua verdadeira identidade e promete vingança “nesta vida ou na próxima”. Seguem-se outros combates, sempre vencidos por Máximo, idolatrado pelo público, que impede que o imperador o mande matar. Ao mesmo tempo surge uma trama política para tirar o incapaz e debochado Cômodo do trono. O filme culmina em um combate com o próprio Cômodo, que acaba derrotado e morto por Máximo, que traiçoeiramente ferido, morre em seguida. Resumindo: de general a escravo, de escravo a gladiador, de gladiador à vitória sobre o homem mais poderoso do mundo.
Além das imagens do Coliseu, há belíssimas imagens de Roma antiga, apesar de mais lembrarem pinturas do romantismo do século XIX. A direção de Scott é magnificamente ágil. A cena de chegada de Cômodo a Roma como imperador, inspira-se em O triunfo da vontade (Triumph des Willens), famoso documentário de 1935, da diretora Leni Riefensthal sobre o 6º congresso do partido nazista em Nuremberg, considerado obra prima da propaganda política do século XX. Ambos os filmes iniciam por nuvens se abrindo e brotando a imagem de uma grande cidade histórica. Então aparece em Gladiator uma gigantesca estátua de águia, que não é romana, mas do 3º Reich. O grandioso show de imensas tropas estáticas formando retângulos perfeitos calca-se no filme da propaganda nazista. Há a entrega de flores por crianças a Cômodo, calcada em cena similar a Hitler. Há um jogo de espelhos, a estética nazista inspirava-se na romana, e Scott arrisca um paralelo direto, infelizmente o único filme, entre a Antiguidade e o século XX.
O fundo musical do filme também foi um sucesso, misturando new-age com música romântica e monumental. Apesar do processo de plágio pelos herdeiros do compositor inglês Gustav Holst. Críticos musicais ainda observaram que a trilha também tomou empréstimos das obras de Richard Wagner, em especial temas de Siegfried e O crepúsculo dos deuses (WIKIPEDIA, 2014).
Cômodo - o da estória do filme
No filme Gladiator o imperador Cômodo, representado pelo ator Joaquin Phoenix, aparece caracterizado como um pós-adolescente um tanto franzino e de uma palidez malsã, às vezes exageradamente acentuada, com olheiras à luz do sol, que chega a sugerir os vampiros adolescentes na cinegrafia da década seguinte. Sempre coberto por roupas e joias luxuosas, que, além de ressaltar uma andrógina vaidade, visivelmente são usadas para esconder um corpo débil e preguiçoso, caricatura que contrasta com o vigor físico e másculo e Máximo. Em seu comportamento o imperador apresenta-se nada menos que: parricida, incestuoso e levemente pedófilo. Ressaltemos o primeiro item. Declara pessoalmente a Marco Aurélio quanto a Máximo em público, no Coliseu, que ama seu pai. Mas a afirmação soa sempre falsa, de um fingimento tão perceptível que é fácil ao público diagnosticar que está diante de um sociopata. Quando se descobre deserdado do trono a favor de Máximo, no que seria de um abraço de reconciliação entre pai e filho, torpemente estrangula seu pai.
O desejo incestuoso é escancarado nas inúmeras vezes em que Cômodo professa sua paixão pela irmã Lucila, a qual declara que pretende coagir até que se submeta a conceber um filho dele. Mas se o falso imperador pode roubar um trono, não pode roubar um coração. Na pieguice e na linearidade nada dissimuladas do enredo, fica claro que o Máximo foi amante (antes dos respectivos casamentos dos dois personagens, claro) e ainda é o grande amor de Lucila. Outra ameaça são os olhares e afagos suspeitos de Cômodo sobre seu sobrinho Lúcio, filho de Lucila, menino órfão de pai e indefeso diante de tal tio, que manipulam no espectador o medo de um dos grandes escândalos que era encoberto e foi publicizado até a histeria a partir final do século XX: pedofilia.
O deboche completa o personagem Cômodo, que trata os senadores de forma indigna e em público faz caretas e coloca para fora a língua, tal um moleque, num total desprezo pela dignidade e as obrigações sérias de um estadista. Nada há na versão de Cômodo do filme Gladiador que lembre à plateia algum grau de normalidade. Para justificar tal nível de patologia, do filme antecessor A queda do império romano, Ridley Scott só não aproveitou a ideia de que Cômodo não seria filho de Marco Aurélio, e sim de um adultério de sua mãe com um gladiador. Se o diretor de Gladiador tivesse usado a ideia da ilegitimidade, ficaríamos no paraíso do biologismo e da psicologia evolutiva: a genética explicaria perfeitamente a causa do contraste entre Marco Aurélio e Cômodo. Parece que a ideia de bastardia não agradou ao diretor de Gladiador, uma vez que estragaria um pouco a imagem ultraidealizada por ele exibida de Marco Aurélio, o pai.
Um brevíssimo diálogo entre pai e filho, momentos antes do estrangulamento, permite o aparecimento do clichê do filho incapaz de atender as expectativas de um pai, e deste como um grande ausente. O tema pode até ser parte da realidade histórica, mas foi colocado nesse trecho da fita como a prova, para a plateia, da caricatura do que pode ser explicado por um psicologismo barato. Utilizar um chavão corriqueiro serve, apenas, para zombar de qualquer compreensão subjetiva e reforçar a insinuação de que um pai não tem nenhum grau de responsabilidade quanto ao comportamento psicopático do filho. No fundo é um problema biológico mesmo.
De qualquer modo, no Gladiador fica a garantia de que não haja nenhuma possibilidade de empatia da plateia com o personagem Cômodo. Só torcer pela destruição, de preferência do modo mais cruel possível, de tal monstro, satisfazendo ao público sua sede de vingança quanto às maldades feitas ao herói Máximo e ao terror psicológico feito à linda e indefesa viúva Lucila e a seu filho Lucio.
Cômodo - o da história
Já os relatos históricos são bastante diferentes. Herodiano, historiador do século II e como ele mesmo gosta de repetidamente assinalar – testemunha ocular dos fatos – mas que nada possuía de bajulador e que relata de modo bem realista as barbaridades dos tiranos de sua época, descreve a aparência do imperador:
Cômodo possuía uma aparência admirável, com um corpo bem proporcionado, um rosto masculamente belo; seus olhos eram claros e flamejavam; seu cabelo era louro e encaracolado, que quando aparecia ao sol brilhava como se ouro tivesse sido espalhado nele (HERODIAN, 1969, p. 41; tradução do autor).
Outro historiador da época, Dio Cássio, também testemunha ocular dos fatos, deixou-nos uma análise da personalidade e das motivações de Cômodo que até hoje brilham por sua concisão:
Este homem não era originariamente perverso, mas, ao contrário, tão sem malícia quanto qualquer outro que já viveu. Sua grande simplicidade, contudo, junto com sua covardia, o tornou escravo de seus companheiros, e foi através deles no início, devido sua ignorância, que lhe fugiu uma vida melhor e foi então levado à luxúria e hábitos cruéis, que logo se tornaram uma segunda natureza. E isto, creio, Marcos havia de antemão claramente percebido (DIO CASSIUS, 1927, p. 73; tradução do autor).
Através da descrição dos historiadores da época se vê que o Cômodo original nada tinha a ver como o estereótipo do filme. Mais parece um personagem a quem o destino amarrou um enredo trágico: um jovem de dezoito anos, belo mas medíocre e fraco, as rédeas do poder absoluto sobre o maior império do mundo. Além da complexidade de uma tarefa para a qual era desprovido de qualquer talento, como diz o célebre aforismo do historiador e político Lord Acton: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Quanto à educação de Cômodo esses historiadores, e também o relato da Historia Augusta (escrita no século IV), são unânimes em afirmar que Marco Aurélio esteve longe de ser um pai desleixado. Contratou os melhores professores trazidos de várias partes do império. Comentadores atuais se referem ao efeito contrário que isso pode ter tido sobre Cômodo. Quanto o tirano tinha horror a livros e a toda forma de filósofos e eruditos. A recusa ao rigoroso estoicismo de seu pai e de sua educação descambou na revolta em direção ao oposto. Ao contrário do pai intelectual, Cômodo tornou-se fã de exercícios físicos, jogos e combates. Não era nada franzino; comparava-se a Hércules.
Freud também teria alguma coisa a nos dizer sobre a revolta edípica, Lacan sobre o amódio, o eu ideal e a incapacidade de chegar aos pés de um pai insuperável. Foucault talvez chamasse a atenção, historiador que era da Antiguidade, de como o estoicismo serviu de base para a recusa cristã da sexualidade. Logo também podemos elucubrar sobre o quanto a austeridade e o famoso estoicismo das Meditações, de Marco Aurélio, não seria uma grande defesa contra as tentações do gozo absoluto do poder absoluto. Teria o filho em parte satisfeito o desejo inconsciente do pai?
Aliás, ao contrário do que é dito por Próximo no filme, o imperador-filósofo jamais proibiu os jogos gladiatoriais. Pelo contrário, abaixou os impostos que incidiam sobre os patrocinadores para facilitá-los. No máximo teria solicitado que nos jogos que assistia as armas não fossem mortais, inclusive porque a vida cada vez mais curta dos gladiadores, cuja morte no tempo de Augusto ocorria em média no décimo combate, estava ocorrendo na quarta luta (VEYNE, 2008, p. 146), e isso encarecia muito os jogos. Em suas famosas Meditações, na única observação sobre os espetáculos do Coliseu (oficialmente Amphitheatrum Flavium), sua reprovação não se dá por questões éticas ou morais. Escreve no pensamento 46 do livro VI:
Assim como os espetáculos do anfiteatro e outras diversões do mesmo tipo, das quais se aborrece de ver sempre as mesmas coisas e a monotonia torna o espetáculo fastidioso, assim também é o espetáculo da vida como um todo (MARC AURÉLE, 1983, p. 65-66, tradução do autor).
De qualquer modo os relatos históricos mostram que sempre esteve longe de Marco Aurélio qualquer ideia de deserdar o filho. Só em filme. Quando tinha cinco anos, Cômodo foi elevado à condição de César (hoje equivalente a príncipe herdeiro). Quando tinha quinze, foi tornado pelo pai Augusto (imperador). Quando Marco Aurélio faleceu, seu filho oficialmente já era coimperador há três ou quatro anos. E estava há dois anos no norte, ao lado de seu pai, lutando contra os bárbaros. O oposto do que é visto no filme de uma súbita viagem à fronteira, juntamente com sua irmã, em luxuosa carruagem, chamados por um pai moribundo. Parece que o imaginário, ao menos de alguns cineastas e algumas plateias, goza com estereótipos piegas.
Mais do que a cegueira narcísica que os pais têm de seus filhos, da qual nos fala Freud, era uma impossibilidade política que Marco Aurélio não fosse sucedido pelo filho. Exceto na fantasia republicana oficial, Roma era uma monarquia nada disfarçada. Os quatro imperadores anteriores (Nerva, Trajano, Adriano e Antonino Pio) é que tiveram a sorte – para o estado – de não ter filhos, ou ao menos filhos homens, que lhes pudessem suceder, logo podiam adotar aqueles que julgavam os melhores. Durante quase um século, que o clássico historiador Gibbon (1993) julgou o ápice do Império Romano, essa política funcionou.
Já o parricídio, o incesto e a pedofilia de Cômodo, bem, não há nada nos relatos históricos. Apenas uma sugestão irônica de quando Marco Aurélio adoeceu pela última vez, os médicos o trataram de tal modo que acabaram fazendo um favor ao filho.
Gladiator - trechos suprimidos por Ridley Scott - primeira parte
Os trechos que foram excluídos do filme por Ridley Scott, mas que podem ser assistidos no segundo DVD que acompanha o do filme, com a opção dos comentários do diretor, contribuem com informações muito interessantes. Pode-se psicanaliticamente interpreta-los a semelhança de um sonho duas vezes contado, no que a diferença entre as duas versões trai o conteúdo recalcado.
Um desses trechos, com a duração de um minuto e que deveria ter sido colocado no filme após as primeiras cenas de combate no Coliseu, logo depois que se descobre que Máximo está vivo. Nessa cena suprimida Cômodo, no palácio, desce sozinho até uma sala onde estão estátuas dos antepassados. Coloca-se defronte do busto de Marco Aurélio, muito mais jovem do que antes de morrer, pega uma espada que está diante da estátua e que Scott explica, em seus comentários, ser a de Marco Aurélio. Com ela golpeia várias vezes a estátua, sem conseguir arrancar uma lasca. Então se abraça aos prantos com a estátua, acariciando os cabelos de mármore e soluçando: “Pai”.
Densa interpretação de Phoenix contrastando com a cena inicial, quando Cômodo matara o pai. A cena suprimida sugere a ambivalência de um homem muito angustiado, e não um cínico psicopata. Também revela quanto Máximo lhe evoca a figura paterna. Este trecho teria antecedido a cena, que não foi cortada, na qual o imperador está assinando documentos e entra sua irmã Lucila. Cômodo pergunta-lhe se sabia que Máximo ainda estava vivo e, após um curto diálogo, diz em inglês para a irmã: “I’m vexed, terribly vexed”. Termo interessante que foi legendado por “irritado”, mas poderia também ser traduzido por “aflito” ou “muito abatido”. O diretor comenta que gostou muito da cena suprimida, tece várias considerações a elogiando, mas não justifica porque a cortou. Talvez porque quebrasse a imagem de um Cômodo caricaturalmente encarnação do mal e das piores perversões. Manter aquela cena colocaria muito às claras a ambivalência, um dos temas favoritos de Freud, e sua origem na relação entre pais e filhos. Talvez o diretor tivesse percebido que era por demais psicológica para uma plateia alvo de video games.
Lucila - a da estória do filme e a da história
Várias das características da personagem Lucila no filme Gladiador foram descritas: belíssima e jovem viúva, antigo amor de Máximo, tendo um único filho de seu marido recentemente falecido. Pela idade do filho, próximo à pré-adolescência, o espectador deduz que, mesmo tendo casado muito jovem, Lucila é irmã mais velha de Cômodo. A maturidade, a seriedade e a nobreza da irmã fortemente contrastam com as qualidades exatamente opostas do irmão. Possuidora de todas as características de Marco Aurélio, a imagem de Lucila também faz com que a plateia reconheça que ela deveria ser a herdeira do império, mas jamais poderia ocupar o posto por ser mulher.
Somente as grotescas tentativas de sedução de Cômodo, as ameaças contra a integridade infantil do filho, e contra a vida de ambos, justificam – no filme – Lucila tomar parte ativa numa tentativa de golpe para depor o irmão. Assim tece a aliança de Máximo com um dos senadores mais influente, ao mesmo tempo que o ex-general procura sublevar seus antigos soldados que estão nas cercanias de Roma. Pela linearidade do enredo hollywoodiano – no mau sentido – torna-se óbvio que a trama só poderia acabar pela descoberta por Cômodo e em uma carnificina geral. Apenas uma luta final corpo a corpo no Coliseu, entre o imperador e Máximo, salvará Lucila, seu filho, o senador e o império. Luta em que, mesmo covardemente ferido de morte por Cômodo, Máximo o acabará vencendo, não pela espada, mas com uns bons socos típicos de faroeste americano.
Já a Lucila dos relatos históricos do século II era bem diferente. Segunda menina, mas a mais velha a chegar à vida adulta, Annia Aurelia Galeria Lucilla nascera treze anos antes de Cômodo. Aos onze anos Lucila ficou noiva de Lucio Vero, que tinha dezoito anos a mais que ela. No esquema sucessório de adoções que fora montado décadas antes pelo imperador Adriano, este adotou o futuro imperador Antonino Pio, que por sua vez adotou Marco Aurélio e Lucio Vero. Este último era filho Lucio Aélio, a primeira escolha de sucessor direto por Adriano, mas que falecera de tuberculose. Assim sendo, Lucio Vero, imperador conjuntamente com Marco Aurélio quando da morte de Antonino Pio, era irmão adotivo do imperador-filósofo e tio adotivo de Lucila. O casamento consumou-se quando ela estava com quatorze anos. De fato tiveram, como no filme, um filho com o nome do pai – Lucio Vero – mas do qual a história nada registra, certamente tendo falecido quando criança e duas filhas. De uma se falará a abaixo.
Dono de uma saúde precária tal seu pai biológico, o imperador Lucio Vero faleceu aos trinta e nove anos, muito antes de seu irmão imperador. Marco Aurélio então casou sua filha com um de seus principais generais, Tibério Claudio Pompeiano, também viúvo. Como a maioria dos filhos seus e da imperatriz Faustina não chegavam à idade adulta, o imperador-filósofo chegou a cogitar em Tibério como sucessor. Mas o casamento de Lucila e Tibério, se já fora sem amor, logo se tornou menos que de mera aparência.
De qualquer modo, desde a morte de Lúcio, Lucila fora autorizada pelo pai a permanecer usufruindo do título e das prerrogativas de Augusta (imperatriz). Como Marco Aurélio enviuvou cinco anos antes de ele mesmo falecer, Lucila tornou-se uma espécie de primeira dama ainda no reinado do pai. Haverá mais a dizer adiante sobre esse enredo genealógico-edípico que envolvia o entorno de Cômodo.
Durante os primeiros dois ou três anos de seu reinado Cômodo foi se afastando dos conselheiros e ministros deixados por seu pai. Com sua completa inaptidão e sem desejo para governar, deixava tudo nas mãos de um favorito de plantão, homens que foram se tornando mais e mais corruptos. Mas não foi uma mudança brusca, e a máquina imperial continuava funcionando bem, inclusive militarmente.
Lucila teve seus privilégios de imperatriz mantidos pelo irmão. Possivelmente terá sido a ambição o motivo principal pelo qual passou a tramar a deposição de Cômodo. Embora Herodiano escreva que:
[...] Lucila estava raivosa com as honras que eram concedidas a Crispina (esposa de Cômodo), [...] começou a sondar os sentimentos de um jovem nobre, de nome Quadrato, com o qual, se alega, teria tido uma relação ilícita (HERODIAN, 1969, p. 47; traduções do autor).
O plano de Lucila era matar o irmão e colocar no trono ou o segundo marido, ou um enteado. A execução do ato foi incumbida a outro Claudio Pompeiano que, ou era seu sobrinho, ou um dos filhos do primeiro casamento de seu marido Tibério. Desse Claudio historiador Dio Cássio relata que “era noivo da filha de Lucila” (com Lucio Vero), “mas tinha relações íntimas tanto com a garota quanto com sua mãe” (DIO CASSIUS, 1927, p. 79; traduções do autor). Não se trata de um enredo aproveitável para blockbuster de filme americano; para Nelson Rodrigues, talvez.
A conspiração foi um fracasso. O tal Claudio, em lugar de executar logo o imperador, apanhado de surpresa em uma passagem escura do anfiteatro, resolveu justificar assassiná-lo com umas palavras em defesa do Senado. Foi o bastante para que os guardas aparecessem. Como era de praxe na Roma antiga, e em muitos outros lugares, todos conjurados foram mortos. Cômodo exilou Lucila para Capri, onde algum tempo depois também foi morta. Já seu marido, que fora o último a saber, mesmo um imperador como Cômodo considerou-o inocente e sobreviveu ao menos até o reinado seguinte. A sequela mais grave da conspiração foi que a partir de então, agravado pelo assassinato pouco depois Saotero, um favorito seu e camareiro do palácio, Cômodo iniciou um processo de paranoia, que num crescendo foi evoluindo até chegar dez anos depois na mais absoluta loucura.
Gladiator - trechos suprimidos por Ridley Scott - segunda parte
De novo um dos trechos do filme excluído por Ridley Scott e que podem ser assistidos no segundo DVD que acompanha o do filme, com os comentários do diretor, contribuem com informações importantes para uma interpretação mais profunda. Há um longo trecho suprimido em que Lucila se reúne à noite e às escondidas com os senadores Graco e Gaio quando, até então, todos em Roma supunham Máximo morto. Discutem que a situação política é insustentável. Cômodo solicitou ao Senado a lei marcial, o que foi recusado. O imperador trama, assim que possível, fechar a instituição. Gaio indaga como podem ser pagos os cento e cinquenta dias seguidos de jogos no Coliseu. Lucila revela que Cômodo está, às escondidas, acabando com as reservas de alimento que mantém a plebe romana:
Ele está vendendo os estoques de grãos de Roma. Em dois anos o povo estará morrendo de fome. Espero que estejam aproveitando os espetáculos, porque breve estarão mortos por causa deles (FRANZONI; LOGAN, 2008, tradução do autor).
Há aqui um dado histórico verdadeiro. Enormes carregamentos de grãos, financiados pelo estado, periodicamente embarcavam de Alexandria e de outros locais no norte da África em direção aos portos próximos a Roma para abastecer a cidade. Donde o aforismo de que se controla o povo com “pão e circo” (embora muitos governantes, atuais inclusive, esqueçam que em Roma durante séculos o pão e o circo eram grátis). A própria Lucila termina sua fala decretando que Cômodo tem de ser morto. Os senadores ficam perplexos, mas a convencem de que eles próprios não possuem apoio nem no Senado, nem entre o povo – por enquanto. Outras das cenas que se seguiriam e também foram suprimidas, mostram a ação de informantes de Cômodo, nas ruas e no palácio.
A cena na casa de Graco revela uma Lucila no filme tomando iniciativa pessoal e política, em que justifica o assassinato do irmão tanto por se ver, juntamente com seu filho, ameaçada de morte, quanto para salvar o povo da catástrofe. Mantida no filme, nessa cena seria vista uma Lucila ativa e nobre, tomando para si a ação, antes que Máximo ressurgisse dos mortos. Seria uma Lucila ainda completamente diferente daquela da história, mas diminuindo um pouco a importância do personagem Máximo. O diretor resolveu reduzir Lucila ao papel de “bonequinha de luxo” e fornecer à plateia a imagem de Máximo no papel de salvador (o termo é utilizado pelo próprio Scott em seus comentários): da mocinha, do Senado e da liberdade do povo. Uma visão bem patriarcal para se diga o mínimo. Ao mesmo tempo, um trecho razoável de diálogos e de informações político-históricas cedeu ainda mais tempo aos episódios de pura luta e violência no Coliseu.
Como se viu da descrição histórica, a Lucila real, além do nome, só possui em comum com a do filme, um instante em que Cômodo diz: “Minha irmã, não queria ser seu inimigo”. Pela supressão do trecho da conspiração na casa de Graco e das cenas sobre os informantes de Cômodo, a frase ficou jogada e sem aparente sentido. Mas sintoma é algo que sempre surge.
Outras considerações sobre o Cômodo da história: o gladiador
Ao Cômodo dos relatos históricos não apetecia a arte de governar. Deixou a tarefa a uma série de favoritos. Os atentados contra sua vida e a de Saotero aumentaram sua mania de perseguição. Uma parte dessa mania tinha base na realidade: os imperadores romanos sempre deviam temer por sua vida. E um número enorme morreu assassinado. Mas é possível marcar os atentados como o momento em que uma paranoia se tornou manifesta. Séries de assassinatos ordenados por Cômodo foram motivados contra: os que discordavam abertamente; os que não o aplaudiam tanto quanto seria desejado, logo discordavam um pouco; os que tinham posição e prestígio, e embora lhe fossem fiéis, podiam um dia vir a discordar; os que governavam mal, logo o ameaçavam junto ao povo; os que governavam bem, logo o ofuscavam junto ao povo, e assim por diante.
Com seu medo real ou não de atentados, nos primeiros anos o imperador vivia em vilas fora de Roma recluso e recebendo apenas aqueles que lhe eram devotadamente cegos. Mas em parte porque a população de Roma exigiu, em parte porque a loucura ultrapassou os sintomas de simples paranoia, o filho do imperador filósofo, Marco Aurélio, saiu do isolamento para o justo contrário: expor-se no maior local de espetáculos do império. Cômodo se tornou gladiador no Coliseu. Máximo ou algum romano que tivesse papel semelhante ao herói da estória do filme jamais existiram. Quem passou a história como o mais espetaculoso dos gladiadores foi o próprio Cômodo: o gladiador.
Claro que sempre havia uma mãozinha áulica favorecendo o soberano a ganhar, e derrotá-lo seria não permanecer vivo. E a plateia achava melhor aplaudi-lo. Apesar ser horrível para a aristocracia e, mesmo para a plebe, cada vez mais chocante um soberano que se colocava como membro de uma das mais degradadas classes do império. Cômodo chegou mesmo a coabitar com gladiadores nos porões do Coliseu.
E esse gladiador nada tinha da aparência do imperador do filme. Além da descrição já feita, Cômodo era homem forte, atlético, ótimo espadachim e lançador de flechas e lanças. Quando da morte de seu pai acrescentara o nome Marcus aos seus em homenagem a ele. Agora retirara esse nome, retornando ao nome original. Não por muito tempo. Imperadores romanos podiam se dar ao luxo quanto à questão do nome-do-pai.
Tal era seu estado de mania e paranoia (manías kai paranoías) que primeiro recusou usar o nome de família, dando ordens de que deveria ser chamado de Hercules, filho de Zeus em vez de Cômodo, filho de Marcus. Então deixou de usar as roupas de um imperador romano, passando a usar uma pele de leão e a carregar na mão uma clave. Ou então, a se vestir em púrpura e dourado, se expondo ao ridículo ao trajar roupas que davam, ao mesmo tempo, impressão de extravagância feminina e de uma força heroica (HERODIAN, 1969, p. 97, tradução do autor).
Cômodo se intitulava agora Hercules Romanus. Não esperava ser divinizado postumamente como era o costume dos imperadores, como ocorrera com seu pai e com o herói grego na mitologia. Cômodo queria ser adorado como um deus vivo. Centenas de estátuas foram feitas com o soberano vestindo a pele do Leão de Nemeia e segurando uma clave, roupa e arma características de Hércules desde os seus famosos doze trabalhos (um busto em perfeitas condições foi redescoberto no século XIX). Quanto às roupas femininas, a justificativa mitológica é que Hércules teve de vesti-las ao servir de escravo a Onfale. Embora os historiadores Herodiano e Aelius Lampridius descrevam o comportamento desregrado e frequentemente bissexual do imperador.
Pela mesma época, Cômodo solicitou ao Senado a mudança do nome de Roma em Colonia Commodiana. Como recompensa o próprio Senado passou a se intitular Senatus Commodianus Fortunatus, as legiões Commodianae, a frota que trazia grãos Commodiana Herculae e daí por diante. Os doze meses do ano tiveram seus nomes mudados para os prenomes, nomes e epítetos do imperador.
Em sua loucura o Cômodo da história diverge completamente daquele do filme Gladiador: vulgar, mesquinho e fracote. Em A queda do império romano, película da qual Gladiador é uma refilmagem muito simplificada da narrativa, o imperador também enlouquece, aparecendo como sendo um deus, saído de dentro da estátua de uma gigantesca mão em saudação romana, colocada na praça principal do fórum, numa delirante cerimônia digna de Fellini. Mas apresentar ao público uma das mais famosas psicoses da história não interessava aos roteiristas e nem ao diretor de Gladiador. Nesse filme Cômodo é morto ao começo de seu reinado, e não ao final dos doze anos que ele durou. Loucura verdadeira é algo sério demais para ser ideologia de merchandising de video game.
Nos relatos históricos da época, Cômodo mandou matar sua esposa Brutia Crispina, não se sabe se por acusação de adultério, se por participar de conspirações, ou ambos os motivos. Resolveu não mais se casar oficialmente. Mas passou a ser sua concubina oficial Marcia, também casada, viúva (assassinato também a mando de Cômodo) e recasada com cortesãos do palácio. “Ela era tratada do mesmo modo que uma esposa legítima, com todas as honras devidas a uma imperatriz exceto as do fogo sagrado” (HERODIAN, p. 111). “A tradição é a de que ela favorecia extraordinariamente os cristãos e lhes dava muitos benefícios, uma vez que conseguia de tudo com Cômodo” (DIO CASSIUS, p. 79). Com frequência Marcia é descrita por historiadores tardios como sendo ela mesma cristã.
Era público que em breve Cômodo teria um fim violento semelhante a outros tiranos loucos ou semiloucos: Calígula, Nero e Domiciano. Cômodo havia decidido que no dia 1º de janeiro tomaria posse como cônsul (cargo anual, o de maior prestígio depois do imperial) vestido de gladiador. Seria uma degradação intolerável dos costumes, e os próprios palacianos, com medo que o destino de Cômodo levasse junto o seu, decidiram eliminá-lo. Também teria chegado por acidente às mãos de Marcia uma lista das próximas vítimas do imperador, onde estava seu nome. Em conluio com outros palacianos, no dia 31 de dezembro de 192 Marcia colocou veneno na comida de Cômodo. O imperador passou mal, mas vomitou o veneno e não morreu. Então, os conspiradores enviaram um companheiro de lutas de Cômodo chamado Narciso que o estrangulou no banho. Como se vê um fim completamente diferente do filme, com uma mulher possuindo papel preponderante. E que não assenta muito bem com a ideia dos cristãos, sempre como vítimas até a época de Constantino e da adoção do cristianismo como religião oficial. Tudo inútil e perigoso para a ideologia do filme de Ridley Scott.
Marco Aurélio do filme e seu(s) filho(s)
Os redatores e o diretor de Gladiador criaram duas imagens maniqueístas, do tradicional estilo vilão e mocinho: Cômodo e Máximo. Os personagens formam uma antítese que pode ser mais bem compreendida se levarmos em conta uma observação de Freud no artigo Alguns tipos de personalidade que encontramos no trabalho psicanalítico (FREUD, 1978), ao discorrer sobre Macbeth.
Ludwig Jekels, em recente estudo shakespereano, cogita ter descoberto uma técnica específica do poeta [...]. Ele acredita que Shakespeare frequentemente cindia um personagem em dois os quais, tomados separadamente, não são completamente compreensíveis e tal não se tornam, até serem colocados junto mais uma vez num único (FREUD, 1979, p. 321, tradução do autor).
Cômodo e Máximo se consideram filhos de Marco Aurélio. O primeiro enquanto filho biológico, mas que não possui o amor do pai. O segundo como filho adotivo por amor, mas que não o é biologicamente. Ambos explicitamente dizem que amam o pai imperador-filósofo. Numa monarquia nada disfarçada, mas que não possuía uma lei sucessória, ambos se consideram no direito de sucederem o pai. Que revela em momentos quase simultâneos que o falo pertence a um, e não ao outro. Mas momentos sem testemunha ou documento que reconheça esta passagem. Ocorreu de fato a transmissão a Máximo, ou um jogo de pura ambivalência por parte do Marco Aurélio do filme?
Parece desnecessário repetir todos os defeitos de Cômodo e todas as qualidades de Máximo: o negativo de um é o positivo do outro. Exceto quanto à sexualidade, externamente nula em ambos. Porque Cômodo e Máximo amam a mesma mulher e do mesmo modo: impossível. Num caso seria incesto, noutro adultério. Um uma fantasia infantil não desinvestida, outro um passado mítico, o que psicanaliticamente vem a ser o mesmo. Mas há uma fala de Lucila bem ao início revelando que o mesmo Marco Aurélio – o pai – que hoje privilegia Máximo, no passado interditou o casamento de ambos. No filme não há nenhuma referência a Faustina, na história real, a imperatriz falecida, e sim a presença constante de sua sucessora, a filha mais velha, proibida ao vilão e ao herói, e aos dois pelo mesmo pai. Lucila, cujo único filho é o herdeiro de Cômodo, que ameaça a vida do menino, e que sempre evoca em Máximo a lembrança de seu filho de mesma idade assassinado por ordem de Cômodo.
Aliás, no filme, tirando o triângulo Marco Aurélio/Lucila/Cômodo e Máximo, não há relacionamentos afetivos. Máximo se refere a sua esposa e filho, vivos ou mortos, em cenas oníricas difusas e sem qualquer diálogo. Mas é no mínimo estranho que se venda tanto seu amor por ambos no filme, quando relata que não os vê pessoalmente há quase três anos. Implausível por maiores que tenham sido suas incumbências militares, tanto na Roma da Antiguidade, como na era contemporânea. Também não é muito crível que todos os personagens do filme, quase sem exceção, de senadores a gladiadores, não apresentem vida sexual, mesmo que em vagas referências. Numa cena de dois ou três segundos, quando um conspirador coloca uma cobra venenosa entre os lençóis de um senador dormindo há uma mulher no leito. Em uma dos trechos cortados há o breve aparecimento de uma mulher ou concubina de Próximo, o antigo gladiador liberto, hoje dono e treinador dos gladiadores. Mas a cena não sobreviveu. Tudo bem que não era relevante ao enredo, mas evoca a sensação de reforço do estranho familiar dos antigos desenhos e quadrinhos do Pato Donald de Walt Disney: personagens sem claras noções de parentesco, sem casamentos, sem sexo.
Quanto ao tema principal evocado pelo título do filme e pelo seu maior apelo visual, a reconstrução histórica do Coliseu, as lutas, Cômodo e Máximo aparentam ser complementares tal o negativo e o positivo. O imperador e o ex-general “parecem ser as duas partes desunidas de uma mesma individualidade psíquica, e que podem ter sido ambas copiadas de um mesmo protótipo” (FREUD, 1978, p. 324, tradução do autor). Nas duas cenas iniciais de combates no Coliseu todo o conflito é preparado por Cômodo, que permanece no camarote imperial. Embora não sejam lutas físicas, é nítido que seu oponente é todo o tempo Máximo. Até que chegue o terceiro combate, quando a luta se dá corpo a corpo entre ambos. Luta fatal para os dois, que falecem praticamente ao mesmo tempo. Deixando o julgamento final sobre ambos para Lucila, uma fala sobre a herança de Marco Aurélio – o pai.
Cômodo e Máximo como imagem e emblema do super-vilão e do super-herói
Os comentários sobre o enredo e os personagens do filme, comparados com as narrativas históricas – que algumas vezes denominamos de história real –, podem fornecer diversas pistas como pode ocorrer o reforço do imaginário. Seguindo a sequência acima comecemos com a análise dos personagens principais.
No Gladiador a oposição entre Cômodo e Máximo é levada a um paroxismo maniqueísta entre um personagem esterotipadamente mau e outro esterotipadamente bom. Utilizamos acima o termo “supressão” para nomear o mecanismo de reforço dessa cisão, utilizado pelos roteiristas e pelo diretor, retirando do filme qualquer meio termo entre os dois extremos.
Além da tese subscrita por Freud sobre a cisão de um personagem inicial em dois, esta palavra nos envia a outras características que podem ser adicionadas ao termo “cisão” num referencial Kleiniano. Trata-se de um mecanismo muito arcaico, de uma era em que predomina intensamente o autoerotismo e depois o narcisismo primário, e ainda não há o reconhecimento de uma alteridade. A partir das experiências de satisfação que, em movimento circular são reforçadas ou não pela libido, e daquelas de privação e dor, reforçadas ou não pela pulsão de morte, o bebê cria uma primeira ordenação de seu mundo psíquico: de um lado o muito (narcisicamente) bom, do outro, o muito (narcisicamente) mau. Como se não bastasse, o muito bom é seu, e o muito ruim vem de fora, mesmo que em realidade tenha ocorrido o oposto. A cisão tem por objetivo manter essa ordenação e foi defendida por Melanie Klein (1980) que, embora arbitrária, essa classificação é fundamental para tirar do caos e colocar em alguma ordem o corpo e a psique do bebê. Assim como as ameaças internas (dores, infecções, gases e muitos outros desconfortos), que constituem parte de todo desenvolvimento e são potencializadas pela pulsão de morte, quando expelidas para fora, tornam-se suportáveis. Mesmo sucedida mais tarde por mecanismos integradores que serão superpostos à cisão, a posição esquizo-paranoide permanecerá sempre como base de nossa vida psíquica.
À semelhança da ordenação da experiência do bebê durante a posição esquizo-paranoide, a fragmentação pulsional do autoerotismo, onde ainda não existia uma unidade corporal, sob um todo pulsional unificado e definido pelo conceito de narcisismo, e que ocorre quando surge o eu a partir da imagem do corpo, permite que complementemos a descrição com o referencial lacaniano. O início da unidade da representação corporal é marcado pelo estádio do espelho, no qual a criança vê a imagem de seu corpo como um todo e, seguindo a ideia de Freud, a partir da criação de um eu corporal, inicia-se a de um eu psíquico. Mas tudo leva a crer que antes, durante e por longo tempo após a unidade conferida pela imagem especular, o narcisismo predomine. Estamos sob o domínio do registro do imaginário.
O conceito de narcisismo, fundamentado por Freud em Introdução ao narcisismo (1914), ficou com uma dívida do fundador da psicanálise. O artigo foi escrito numa fase da obra freudiana em que a libido contrastava apenas com os interesses do eu. Quando Freud une ambas em pulsão de vida, passa o eu a ser um receptáculo dessa pulsão. Mas pode-se considerar que a passagem da primeira para a segunda teoria da pulsão também propõe o eu (ainda distinto do conceito de ego, e na acepção mais genérica de self) como um receptáculo para o acúmulo também de tânatos. Assim, do mesmo modo que alguns autores, podemos falar de narcisismo de vida e narcisismo de morte. Ambos predominantemente embebendo o imaginário, que só consegue dispor das pulsões por meio da cisão.
A experiência inicial do bebê, predominando o imaginário, é mantida e reforçada pela cisão e pelas pulsões de vida e de morte, quando ainda reina a busca de repetição dos traumas do início da vida: o muito bom e o muito ruim. Ambas as imagens extremadas são mantidas separadas à força pela cisão. Ambas exigem um gozo não fálico. O imaginário também se manifesta por uma busca de um gozo de sentido absoluto. Só com a entrada no simbólico, onde:
[...] também há prazer, mas mediado pela linguagem, por uma cadeia de significantes sempre desliza. Cada vez que um significado é obtido, a cadeia estanca e ocorre uma satisfação, mas parcial, por que, em seguida, a cadeia recomeça seu trabalho de Sísifo (LOPES, 2007, p. 23).
E, então, também se descobre que não há sentido absoluto, só explicações parciais.
O maniqueísmo da dualidade entre Cômodo e Máximo sintetiza o reforço de uma intensa cisão, aprofundando a dicotomia entre o mau e bom, que na criança pequena é mesma do que ela julga o mal ou o bem, feio ou bonito (basta lembrar que, quando recusamos um pedido infantil, recebemos um você é mau, e/ou um você é feio). Separação evidentemente narcísica e fantasiosa, pois tudo e todos são compostos em graus variáveis de todas essas palavras, aparentemente tão opostas.
Pela comparação dos personagens com o que se sabe a partir dos registros históricos, assim como pela análise acima das cenas que foram retiradas da versão final da película que foi apresentada ao público, vê-se o imenso esforço do diretor no trabalho de reforço da cisão entre o bem e o mal. Assim como também do reforço do estereótipo patriarcal. O Cômodo do filme possui traços afeminados, e todas as suas ações ativas são covardes e malévolas. A Lucila do filme é uma bela mulher quase completamente passiva e suas ações, embora boas, meramente reativas. Já Máximo é caracterizado indubitavelmente ativo e másculo, todas suas ações, além de símbolos de coragem e de uma vontade férrea, são moralmente boas. Isso é, o feminino passivo é tornado sinônimo do mal, Eva e Pandora, o masculino ativo sinônimo do bem: Prometeu. Só falta completarmos com Nietzsche (1992) em O nascimento da tragédia:
A lenda de Prometeu é possessão original do conjunto da comunidade dos povos árias [...]. O que a representação ariana distingue é a ideia sublime do pecado ativo como a virtude genuinamente prometeica [...] e os semitas entendem o pecado como mulher (NIETZSCHE, 1992, p. 67-68).
No referencial kleiniano podemos colocar Máximo e Cômodo como emblemas de eros e de tânatos, rotulando o filme como uma visão intensamente esquizo-paranoide, que nada mais é do que uma descrição do maniqueísmo em kleinianês. Dizer que ambos os personagens são emblemas – símbolos – é dizer que não correspondem a ninguém na vida real, são apenas imagens caricaturais. Caricaturais e frequentemente cômicas ou terroríficas como eram os delírios e alucinações cisões do famoso psicótico que foi Schreber. Pois se estamos sob o predomínio da posição esquizo-paranoide e do imaginário, estamos sob o predomínio da psicose e da religião. E sob o predomínio da foraclusão. Não há interioridade ou subjetividade, tudo vem de fora, do real.
Ao espectador há um reforço de seu narcisismo no que se refere a se identificar com todas as qualidades quase supra-humanas de Máximo. A força física e a destreza bélica do personagem, um herói de gibi, ancoram-se no ponto em que no estádio do espelho o corpo é a primeira unidade do eu, unificando e projetando sua agressividade, e com ela reagindo a qualquer intrusão do outro. Já todo narcisismo de morte é foracluído e colocado em Cômodo. Com este não há qualquer possibilidade de identificação consciente, e todo o enredo legitima que se deseje sua morte. A plateia goza quando de sua morte ao final do filme.
A guerra e o Coliseu como imagens e emblemas de um jogo virtual
A supressão como mecanismo de reforço da cisão impede que se juntem ambas as metades do que poderia ser um mesmo protótipo individual. Mas também o faz num plano coletivo. Entre as cenas suprimidas do filme, há duas que revelam quão intenso foi esse processo.
Na primeira dessas cenas, logo ao início do filme, após a luta contra os bárbaros, Máximo visita um hospital de campanha improvisado. Cena muito impactante em que feridos e mutilados gemem. O ator Rusell Crowe apresenta a fisionomia de um homem que, por detrás de uma aparente calma, se mostra profundamente consternado com as consequências reais da guerra. Máximo não é um comandante indiferente à sorte de seus subordinados, mas um general-pai que se preocupa com o destino de seus soldados-filhos. Atitude que os historiadores comentam ser a dos grandes líderes militares antes do advento das guerras tecnológicas a partir do século XX: Alexandre, César e Frederico, o Grande. A guerra era um ofício para eles, mas eles sabiam do seu preço.
O realismo da cena, estampado na empatia de Máximo para com os soldados e no autocontrole que mal disfarça sua dor, mostra que a guerra real difere completamente de um video game. E se isso se passa no acampamento dos romanos, se é obrigado a pensar de que o mesmo acontece no dos bárbaros. Claro que a cena tinha de ser suprimida da versão final do filme que foi apresentada ao público. Além de que bárbaros não são gente.
Quando se assiste a uma segunda vez as cenas de luta no Coliseu, deixando-se de ficar embriagado com a rapidez dos combates e de torcer pelo herói do filme, observa-se que ocorre a mesma supressão dos horrores reais da carnificina. Há degolamentos, cabeças cortadas ou esmagadas, gente esmigalhada, mas ou a câmara muda instantaneamente de foco após o ato, ou a cena é olhada tão de longe, de modo que nada que possa chocar a plateia é visto. Nada ou quase nada se sabe dos oponentes do herói; logo, nenhum fenômeno de empatia é possível. Mesmo assim, ver as consequências diretas da violência no corpo tanto pode levar a um gozo sádico, quanto a se identificar com a vítima, geralmente ambos simultaneamente, criaturas ambivalentes que somos. Mas no filme esta segunda opção se torna impossível. Além de que no narcisismo do imaginário, toda ferida e lesão física é vivida como uma insuportável e concreta castração. No distanciamento espacial e psíquico construído pela câmera, nas imagens de Gladiator não existe este perigo, o que impede que o gozo sádico do espectador torne-se angústia de castração.
Na segunda cena excluída, também no Coliseu, Máximo vê através de uma pequena janela gradeada, com a mesma serena consternação da cena do hospital, o suplício de cristãos entregues aos leões. A câmara focaliza o rosto de um menino abraçado a seu pai que está de joelhos. Cena que culmina com um leão atacando o pai. Pelos olhos de Máximo, o espectador poderia ser levado a traçar um paralelo com seu destino, e com o assassinato de seu filho. E também foi descrito acima sobre a participação de Marcia, concubina imperial simpatizante ou mesmo cristã, na morte de Cômodo, papel reduzido a nada no filme. Falar de uma religião no passado e ainda contemporânea foge a um imaginário atemporal. Parece ser o lema de que nada deve fazer a plateia se identificar que não seja narcisicamente. Desse modo, legitima-se a descarga só física da pulsão, por meio da violência e de seu prazer, e a impossibilidade de sentir ou pensar.
Por mais fiel que tenha sido a reconstrução cinematográfica do Coliseu no filme de Ridley Scott, dados essenciais sobre a verdadeira luta dos gladiadores foram omitidos ou distorcidos.
Em primeiro lugar, ainda durante os séculos finais da república, as lutas de gladiadores, oriundas de rituais e jogos fúnebres, bastante adequados à origem marcial da república romana, eram realizadas basicamente por cativos de guerra e escravos escolhidos. Mas com o tempo o espetáculo foi se sofisticando na duração e na qualidade das lutas. A revolta do gladiador escravo Spartacus, que entre 73 e 71 a.C. liderou uma rebelião que chegou a contar com 70.000 homens. Foi mais uma das razões pelas quais o número de escravos foi diminuindo, e o profissionalismo aumentando nos jogos.
Cada vez mais tanto homens livres, muitos da aristocracia, quanto escravos, seja nos combates e duelos entre homens (e não raras mulheres), seja na luta contra animais, escolhiam livremente o ofício. Até porque nos dois primeiros séculos a partir do início do império (27 a.C.) a Pax Romana durou bastante, e já não havia tantas guerras que fornecessem material humano para os espetáculos. Chegou-se ao ponto descrito pelo historiador e grande amigo de Foucault, Paul Veyne:
Os gladiadores eram sempre voluntários, como entre nós os toureiros ou os pilotos de corridas de automóveis: combatiam por que assim o desejavam e não havia motivo para ter pena deles [...] (VEYNE, 2008, p. 143).
Era diferente das execuções de criminosos, que muitas vezes eram apenas uma paródia dos combates reais, ou sua execução por meio de feras, como no caso que aconteceu também com cristãos. Se homens livres ou escravos fossem obrigados à força ao combate, produziriam espetáculos medíocres. O público agora era muito mais sofisticado. E os voluntários passavam por longo e intenso treinamento antes de se apresentarem.
Única exceção aparente: quando punha as mãos em um bandido corajoso, disposto á batalha, a justiça o condenava ao ofício de gladiador (com possibilidade de aposentadoria e perspectiva de morrer na cama) muito mais do que á morte (VEYNE, 2008, p. 148).
Em segundo lugar, na maioria das vezes o combate entre dois contendores não conduzia diretamente à morte. O público e o patrocinador, o imperador no caso do Coliseu, é que julgavam. Em muitos casos os dois adversários eram considerados bons, e mesmo o perdedor era poupado. Quando era decidida a morte do perdedor, seu oponente tinha o direito de enforcá-lo. Depois o corpo era queimado em público. Segundo o historiador Paul Veyne (2008, p. 146), no século de Augusto um gladiador morria em média no seu décimo duelo; século e meio depois, sob Marco Aurélio, será enforcado no terceiro ou quarto combate (VEYNE, 2008, p. 146). Quanto ao papel do público, novamente citando as palavras do mesmo historiador:
[...] o momento supremo não era um hábil golpe de espada, mas a decisão soberana do público. Um combate de gladiadores não é um duelo leal em que as armas decidem: sua lógica é acuar um infeliz até que ele mesmo se declare quebrado e ponha ele mesmo próprio sua existência nas mãos de um público que sente sua onipotência nesse instante em que um homem espera sua sentença. O ponto mais apaixonante é ver o rosto desse homem quando é enforcado [...]. O público antigo não ia ao anfiteatro para ver esgrimistas assumindo riscos: ia para ver homens morrendo e, havendo a possibilidade, morrendo por decisão dele próprio, o público (VEYNE, 2008, p. 146-147).
No filme de Ridley Scott esse aspecto foi mitigado, para não dizer simplesmente negado, pelo fato de que a plateia do Coliseu todas as vezes se inclina a favor de Máximo para salvá-lo de Cômodo. A plateia do Gladiador é boa e magnânima. Serão as plateias atuais tão boazinhas e politicamente corretas, ou serão semelhantes às antigas? Será que o participante de video game, no auge da onipotência de seu imaginário, se privarão de um gozo sádico e mesmo da tentativa de um não fálico? Há espectadores de filmes violentos e jogadores de jogos de internet ainda mais violentos que o façam por obrigação ou por serem submetidos à escravatura?
Receita de imaginário
Tal descrito acima, a invenção de dois personagens com características tão opostas entre si, a partir da cisão de um protótipo inicial único, segundo a hipótese de Ludwig Jekels subscrita por Freud, induz a pensar que os roteiristas e o diretor de Gladiator intuíram o fato de que o imaginário só trabalha de modo maniqueísta: o super-herói e o super-vilão. Mesmo ao preço de criar uma série de fraudes históricas: um Máximo que jamais teve similar na história de Roma antiga, que teria levado a uma restauração republicana que jamais aconteceu e nem era desejada por quem quer que fosse à época. Por outro lado, o personagem malévolo é tão exacerbado que qualquer identificação com o espectador é negada e foracluída. Conscientemente a plateia só se identifica com o personagem super-bom. Toda a agressividade, numa fusão da pulsão de morte unida e defletida ao exterior pela pulsão de vida, se transforma em sadismo. Para delírio tanto da plateia antiga quanto da contemporânea. O Cômodo do filme merece que tudo de ruim e da forma mais cruel possível que lhe aconteça, o eu ideal do espectador goza seu sadismo com isso.
Máximo pode ser visto como o executor desse eu ideal. Um emblema da instância narcísica, através da qual o espectador do mundo pós-moderno, diante de sua impotência diante da realidade, delega o poder de “dar a volta por cima”, já que ele, espectador é e se sente um “zé-ninguém”. Dito de outro modo, aquele que perdeu tudo, sendo reduzido a um escravo, é capaz de ascender novamente ao topo, derrotar o poder supremo do pai primevo, usurpado pelo irmão mais novo, e se tornar um herói mundial. Encaixa tanto na ideologia atual de que o neoliberalismo, mesmo que por vias transversas, acabará dando oportunidades iguais a todos, quanto numa espiritualidade contemporânea que endeusa a competição e o individualismo, com a desculpa esfarrapada de que ele também acabará trazendo a salvação e agradando o deus-pai.
Mas o eu ideal jamais deixa de ocupar o lado excruciante da identificação narcísica e da culpabilização inconsciente: se o espectador não é capaz de, à semelhança de Máximo, ascender de escravo a campeão dos gladiadores, de matar o demônio encarnado em Cômodo, se não é capaz de se martirizar para salvar o mundo, o espectador é um perdedor, um loser. Apesar do prazer pelo ganho narcísico imediato ao término do filme, num prazo maior o eu ideal desaba sobre o eu, numa dinâmica depressiogênica.
Além de Máximo e Cômodo, o confronto entre as personagens Lucila e Marco Aurélio, e os seus símiles dos relatos históricos e das cenas suprimidas, induz à pensar outras reflexões sobre o imaginário. Na comparação descrita em vários itens acima, se observa que tudo o que seria complexo, paradoxal ou, em termos freudianos, ambivalente, foi retirado. Os personagens do filme são unidimensionais. Do mesmo modo que as relações que mantêm entre si não passam de estereótipos congelados no tempo. Se a ambivalência constitui característica básica da criança no drama edípico, paradoxo que a leva sentir e pensar como os que a cercam e ela mesma, são seres muito mais complicados do que ela supunha, sem dúvida uma grande fonte de angústia; por outro lado, é a tentativa de compreensão da ambivalência um dos motivos que a obriga à passagem ao simbólico.
Como efeito direto da supressão da ambivalência, qualquer referência à constituição bissexual infantil, tão defendida por Freud nos Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, 1978) teve de ser suprimida. Máximo é o estereótipo patriarcal da virilidade ativa; Lucila, da passividade feminina. Cômodo é um ser sexualmente ambivalente e, como tal, um perverso no sentido popular do termo. Lembrando a citação de Nietzsche acima, estamos a um passo da passagem do chauvinismo ao racismo.
Mas mais assustadora é a retirada pelos roteiristas e pelo diretor de qualquer forma de parceria afetiva e sexual: Marco Aurélio é viúvo; Lucila é viúva; Máximo foi enviuvado, e Cômodo um perverso que só deseja a irmã e, talvez, o sobrinho, isto é, a si mesmo em espelhos. Até a companheira de um personagem secundário, Próximo, foi suprimida do filme. Os demais personagens, de gladiadores a senadores, aparecem mais castos que virgens vestais. Nunca dantes na história do cinema a Roma imperial foi caracterizada tão pudica. Além de colocar o espectador como se fosse uma criança dentro de uma família em todas as relações edípicas inexistem, à semelhança da família do Pato Donald, o que constitui uma completa negação da sexualidade infantil. Negação (Verleugnung) estruturante de perversão, o oposto do reconhecimento da sexualidade infantil como perverso polimorfa. E, colocando em termos econômicos, toda libido da plateia reduzida à perversão, deslocada para a satisfação de um gozo sádico por meio da violência de imagens. Não para um gozo fálico trazido por uma compreensão superior de dramas e mistérios humanos, mesmo trágicos, ou de um gozo estético pela configuração das imagens, ou pela conjugação do sentido e da figura por meio da cena cinematográfica.
A quantidade e a qualidade das cenas suprimidas pelo diretor, cenas discursivas, que implicavam em tramas políticas, em um papel feminino, mas ativo, em possibilidade de identificação com o sofrimento alheio, tanto deram mais tempo às cenas para lutas corporais no Coliseu, como retiraram grande parte da convocação a um pensamento mais complexo sobre as causas e consequências dos atos praticados pelos personagens. Outro tanto foi feito: pelo recalque do drama edípico, pela supressão da ambivalência, pelos estereótipos de gênero e pelo reforço dos mecanismos de cisão e foraclusão.
Ao analisar a cultura de massas tendo por modelo a cultura televisiva, Kehl defende a ideia de que:
[...] há, sim, um tipo de violência que é própria do funcionamento do imaginário em si (grifo da autora) [...] a violência do imaginário independe do conteúdo (grifo da autora) que as imagens da cultura de massas apresentam (KEHL, 2004, p. 87-88).
Ao contrário, defendemos a hipótese de que o conteúdo possui conexão com o funcionamento do imaginário. Separar o modo de operar daquilo que é veiculado seria continuar na dicotomia aristotélica entre forma e conteúdo. No chavão de McLuhan (2012) concordamos que o “meio é a mensagem”. Como também defende Kehl (2004), diante de um fluxo contínuo de imagens paramos de pensar, porque diante do gozo dele decorrente sobra muito pouco que necessite da passagem ao simbólico. Principalmente se são anuladas as tentativas sem fim de responder aos grandes enigmas edípicos propostos pela esfinge.
Paramos de pensar com o reforço de mecanismos esquizo-paranoides e da foraclusão. Com a supressão de todas as dicotomias para a criação de emblemas. Com o ritmo e a rapidez alucinatória de imagens em um Coliseu circular, vertigem ampliada pelo movimento das câmeras, sem dúvida associadas ao brilhante trabalho de direção de Ridley Scott. Tudo associado a um tema que sempre convoca a fortaleza narcísica primordial, que é o corpo.
Certo que propomos todo um trabalho consciente ou inconsciente dos realizadores do filme na tarefa de oferecer ao público uma satisfação muito arcaica. Tão antiga na psique humana que se coloca no momento de construção da própria imagem do eu a partir do estádio do espelho. Momento em que o eu corporal acaba de se unificar e de reconhecer o Outro. Ambos muito precariamente, dado a proximidade com a fragmentação do autoerotismo. O trabalho dos criadores de Gladiator permite que se manifeste ou se regrida ao estabelecimento de um duplo, a partir do qual é reforçada a rivalidade narcísica, sendo neste duplo projetada toda a agressividade, permitem que se mantenha a integridade parcial da outra metade do eu corporal e psíquico. Enredados no confronto mortal entre Máximo e Cômodo não há como avançar do estádio do espelho, fundante do imaginário, em direção ao simbólico.
Se lembrarmos de que as proposições iniciais de Lacan sobre o imaginário – lugar das ilusões do eu, da alienação e do engodo – se fundamentavam também nos estudos da Gestalt e na etologia de Lorentz (LACAN, 1975, p. 194-195), estamos no domínio do instinto e do reflexo estímulo/resposta, dos comportamentos inatos; ainda não dentro do âmbito da pulsão, do comportamento adquirido e da passagem por vias mais complexas e tortuosas do pensamento. A narrativa do filme e suas imagens são harmônicas, a estereotipia e os emblemas representados pelos personagens são coesos com a fluidez, a rapidez e a violência das imagens, conteúdo e forma é um só. O modo de funcionamento do imaginário pode ser o mesmo do que a violência do que transmite. Sem dúvida, um grande filme merecedor de cinco Oscars.
A regressão do remake
O diretor, os roteiristas e os produtores de Gladiator aprenderam com o malsucedido A queda do império romano. Nele a trágica derrocada da proposta de um estado multiétnico e multicultural, defendido por Timonides, ex-escravo e maior amigo de Marco Aurélio, com o apoio alguns senadores, é mostrado com excesso de debates e de didatismo. O cenário principal localiza-se no Fórum e não no Coliseu. Livius, que foi rebatizado de Maximo no Gladiator, derrota e mata Cômodo na praça principal do Fórum, que é o centro cívico maior de Roma, herdeiro das ágoras gregas. Ao contrário de Máximo, Livius sai vivo, a multidão o aclama, e o trono lhe é oferecido pelos grandes.
Ainda durante o combate com Cômodo, ricaços oferecem à guarda pretoriana e aos generais fortunas, independentemente do resultado da luta corpo a corpo, pois agora ‘o poder pertence em verdade a eles (os militares)’. Quando lhe é oferecido o trono, Livius recusa dizendo que “Vocês não me acharão adequado, porque meu primeiro ato oficial será mandar crucificá-los a todos”. Então desaparece junto com sua amada Lucila no meio da multidão anônima. O leilão de fato aconteceu historicamente, tanto após a morte de Cômodo, como já ocorrera no século anterior e voltou a acontecer com mais frequência.
É provável que o abandono da concepção de apresentar as razões do fracasso dos ideais de Marco Aurélio e de Timonides no percussor de Gladiator, além dos erros de direção e do enredo lento e prolixo daquele filme, tenha sido um acerto do diretor, dos roteiristas e dos produtores do filme mais recente. Tanto a estética quanto o conteúdo do filme de Scott se complementam na onda de produtos culturais ampliada nas últimas décadas. Em lugar do primeiro filme, que hoje se assiste mais por curiosidade e com boa dose de paciência, o filme de Scott captura o espectador, mesmo mais de uma década após seu lançamento.
Contudo, a passagem do Fórum ao Coliseu também simboliza a troca de uma reflexão sobre o imediatismo e a ganância levando à decadência do Império, pela fantasia neorromântica de sua salvação por um super-herói. De um roteiro que era mais próximo a fatos históricos para sua completa mistificação, da substituição do social e do político pelo individualismo exacerbado. Defende o filósofo psicanalítico esloveno Zizek, ao interpretar filmes de ficção científica, que “[...] uma das melhores maneiras de detectar as mudanças na constelação ideológica é comparar os remakes consecutivos de uma mesma estória” (ZIZEK 2010, p. 61). Seguindo a linha desse polêmico pensador, pode-se refletir que a trágica meditação sociopolítica do primeiro filme, foi trocada no segundo pela fantasia religiosa de salvação do império ao preço da morte de Máximo. Morte causada por torpe traição e que muito pouco, disfarçadamente, constitui uma variante do mito soteriológico cristão.
A proposta de A queda do império romano de uma crítica dos nacionalismos e da Guerra Fria dos anos 1960, que trazia consigo a ideia do multiculturalismo e a convivência de etnias de diferentes costumes e crenças, regrediu a uma apologia do fundamentalismo religioso e do individualismo exacerbados. Mudança coerente com um enredo que suprimiu todos os debates e todos os diálogos que implicam o reconhecimento da alteridade, e os transformou em uma sucessão de imagens narcisicamente grandiosas e sadicamente pré-genitais, onde inexiste o outro. Mas num imaginário no qual um eu ideal cobra a extensão de um gozo não fálico até a morte, ou como diria Melanie Klein, numa posição esquizo-paranoide com seu superego oral sádico exige uma castração absoluta.
Conclusão - um pacto sinistro
Gladiator cumpre a missão básica de um filme: entretenimento. Entretanto, especulamos que alcançou mais. Há muito se discute como é possível a arte se antecipar à história. À semelhança de O show de Truman (The Truman Show), filme de 1998, mas cujo roteiro datava de 1991, antecipou a onda de reality shows, o filme de Ridley Scott, que já aproveitava em seus efeitos especiais os recursos da tecnologia de ponta, antecipou aspectos da cibercultura que se hipertrofiaram. Não por menos Scott é também um especialista em propaganda e imagem: velocidade, vertigem, impacto, centralizar a descarga da pulsão um átimo de tempo não discursivo. Uma quantidade de energia em um espaço de tempo muito curto: temos a definição psicanalítica no modelo econômico freudiano de trauma. Cabe aos psicanalistas a crítica dos aspectos traumáticos da cibercultura. Um filme sobre o passado remoto previu aspectos então de um futuro próximo, que hoje já são o presente.
Deste presente pode-se dizer que há uma epidemia de filmes em série, interligados à venda de video games, livros e quadrinhos. E os jogos que vão desde os modelos mais convencionais aos role-playing games, nos quais a violência vai muito além da dos gladiadores romanos. Pode ser justificada porque se trata de combater: terroristas, narcotraficantes, exércitos inimigos, alienígenas ou zumbis. As características descritas na análise de Gladiator se repetem: maniqueísmo, desumanização dos opositores, sexualidade concentrada em sadismo, ser o jogador salvador da humanidade ou do pouco que resta dela. Apesar de um conhecimento restrito que temos desses filmes e jogos, tudo indica que o discursivo e a história são reduzidos a um mínimo estereotipado ou inexistem. Logo produzem algo semelhante a reflexos condicionados, passagens ao ato, na busca de sucessivos gozos, à semelhança de quaisquer outras dependências: de alimentos, de substâncias psicoativas ou de compras.
Há que pesquisar mais sobre a relação entre filmes e seus produtos derivados e os massacres, como o de Realengo, quase sempre seguidos pelo suicídio dos jovens perpetradores. Mas a lógica do sacrifício e do martírio, apesar de despida de sua origem religiosa e de motivações políticas, pode fornecer uma pista. O assassino de Realengo deixou extenso material para a mídia, de modo que nos dias seguintes ao crime foi o grande herói em todos os meios de comunicação. Talvez a prova de uma lógica pura do martírio, lógica inconsciente, satisfazendo o individualismo e o narcisismo ferido, tonando seu autor para si mesmo (e muitos outros) um Máximo do século XXI.
Do mesmo modo é válida uma meditação mais ambiciosa sobre a cultura contemporânea e os remakes de filmes. Em Gladiator também há muitos dos erros de continuidade, vestimenta e outros tantos que deliciam alguns sites sobre filmes. Vale a pena ressaltar apenas que as centenas de mastros que rodeiam o teto do Coliseu eram para sustentação do toldo que protegia os espectadores do sol e da chuva. Não para a colocação de infinitas bandeiras, que há época não existiam como símbolo das nações. Bandeiras que são bem distinguíveis nas cenas em que Máximo e os gladiadores chegam a Roma e veem o Coliseu de perto pela primeira vez, e na cena em que se aproximam para a primeira luta. Sinistras bandeiras esverdeadas, com uma figura geométrica dourada no meio, estas por sua vez com o que deve ser uma águia imperial arredondada no centro.
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Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308 - Copacacabana
22030-040 - Rio de Janeiro/RJ
Página: http://www.anchyses.pro.br
E-mail: anchyses@terra.com.br
Recebido: 31/03/2014
Aprovado: 07/04/2014
SOBRE O AUTOR
Anchyses Jobim Lopes
Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Presidente do CBP-RJ 2000-04, 2008-12 e 2014-16. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2004-06. Professor Titular II do curso de Graduação em Psicologia e Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da UNESA.