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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte July 2014

 

 

Sobre a prática psicanalítica em enfermarias hospitalares

 

About Psychoanalytic Practice in Hospital Wards

 

 

Walter Lisboa OliveiraI; Avelino Luiz Rodrigues I; II

IGrupo de Pesquisa SuCor
IIUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Vem aumentando significativamente a participação de psicólogos em hospitais e instituições de saúde junto a pacientes em enfermarias, UTIs, pronto-socorro, entre outros espaços hospitalares. Consequentemente, os diversos campos de saber presentes no complexo leque da psicologia são requisitados para fornecer respostas e oferecer instrumentos para o suporte psicológico de profissionais de saúde principalmente de pacientes hospitalizados. Dessa forma, o presente trabalho se propõe a refletir sobre a forma como a psicanálise pode ajudar no contato com os pacientes, uma vez que ela dispõe de uma série de recomendações no que diz respeito ao setting, contrato, contato com o paciente, além de possibilitar o manejo de importantes aspectos afetivos que podem desestabilizar ainda mais um enfermo, já fragilizado emocionalmente por causa de sua condição clínica. O texto faz um breve histórico da incursão da psicologia e da psicanálise no campo da saúde, evidenciando um campo fértil de atuação e em seguida discute o uso das principais técnicas psicanalíticas no atendimento a pacientes em enfermarias. Conclui-se que o trabalho psicanalítico é possível em tal ambiente, desde que algumas técnicas sejam adequadas e se respeitem algumas condições mínimas tais como a escuta, a atenção aos processos transferenciais e, acima de tudo, a preocupação com o lugar de sujeito que o paciente deve ocupar.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicologia da Saúde; Enfermaria Hospitalar.


ABSTRACT

The participation of psychologists in hospitals and health institutions has been increasing significantly. These professionals have been working with patients in wards, ICU, emergency rooms, and so on. Consequently, the various fields of knowledge that exist in the complex range of Psychology are required to provide answers and tools for psychological support of health professionals, and mainly of hospitalized patients. Thus, this paper proposes a reflection on how psychoanalysis can help in the contact with patients, once it offers a number of recommendations regarding the setting, contract and the contact with the patient, besides that, it enables the management of major affective aspects that may further destabilize the sick person, who is usually emotionally fragile by one clinical condition. The text mentions a brief history of the incursion of Psychology and Psychoanalysis in the health field, highlighting a fertile field, and then discusses the use of the main psychoanalytic techniques in patient care on the wards. It concludes that psychoanalytic work is possible in such an environment, since some techniques are adjusted and comply with some minimum conditions such as listening, attention to transference processes and, above all, concern about the role of subject the patient should play.

Keywords: Psychoanalysis, Health Psychology, Hospital Wards.


 

 

O sujeito enfermo leva ao hospital mais do que sua doença. Traz características que lhes são próprias, oriundas de sua realidade socioeconômico-cultural e, mais do que perder a saúde, pode perder conteúdos de seu mundo interno, inclusive a sua própria identidade. É prática comum no ato da hospitalização, para facilitar o manejo dos enfermos, dispor os pacientes, uniformizados, em leitos e quartos numerados, passando a ser um doente entre muitos (ROCCO, 2010). E nessas condições é comum que no adoecimento se potencializem angústias, medos, inseguranças, raivas, revoltas, não só para doentes e familiares, mas também para o próprio profissional de saúde (BRUSCATO, 2004). No caso de internações ou quadros clínicos complicados, evidencia-se ainda a existência de feridas narcísicas, vivência de angústia de castração e de morte, desamparo e distância da família, o que muitas vezes acaba demandando trabalho psicológico profissional (OLIVEIRA, 2011).

Dessa forma, é notável o crescimento da psicologia e da psicanálise dentro da área da saúde, com um aumento significativo da participação de psicólogos em hospitais e instituições de saúde, através de um maior número de vagas e remuneração para esses profissionais, que têm atuado junto a pacientes em enfermarias, UTIs, pronto-socorro, entre outros espaços hospitalares. Tal participação tem, inclusive, segundo revelam as pesquisas de Costa, Amorim & Costa (2010), gerado uma maior interação com outros campos do saber, principalmente por conta da participação em equipes multidisciplinares. Consequentemente, os diversos campos de saber presentes no complexo leque da psicologia têm sido requisitados para fornecer respostas e instrumentos para o suporte psicológico de profissionais de saúde, principalmente de pacientes hospitalizados.

Diante dessa realidade, surgiram diversos estudos, e tornou-se categórica a necessidade de reflexão ao profissional “psi” que deseja atuar no peculiar espaço hospitalar. No presente trabalho, nos debruçamos sobre a prática psicanalítica no hospital geral, atendo-nos às enfermarias, por entendermos que existe uma demanda cada vez maior em tal unidade, que é um espaço bastante diferente do consultório privado ou mesmo do ambulatório. Neste último, apesar de locar-se em um hospital, é possível manter muitas das regras do consultório privado, uma vez que são mantidas a maioria das características, assim como um espaço privativo.

Nessas circunstâncias, surge sempre uma questão: de que forma a psicanálise pode ajudar no contato com os pacientes, uma vez que ela dispõe de uma série de recomendações rigorosas no que diz respeito ao setting, contrato, contato com o paciente, além de fazer o manejo de importantes aspectos afetivos que podem desestabilizar ainda mais um enfermo, já fragilizado emocionalmente por conta de sua condição clínica?

Antes mesmo de responder à questão, julgamos pertinente um breve histórico da inserção da psicologia no hospital, a fim de evidenciar o campo fértil que se apresenta para a psicanálise. Observamos o surgimento de uma demanda por um saber que dê conta das questões da mente e que a psicanálise desde seu surgimento vem contribuindo significativamente para que o homem e suas enfermidades fossem observados além de sua dimensão orgânica.

Vale lembrar que no fim do século XIX e início do século XX, conforme adverte Perestrello (1982), a psiquiatria sofreu influência do pensamento estritamente objetivo e positivista de pensar o homem. Herdeira da clínica médica, ela assinalava o próprio cérebro como origem das doenças mentais e nessas circunstâncias, o psiquiatra era um especialista em manifestações mentais patológicas, as quais em sua maioria eram tidas como o reflexo de uma disposição hereditária do cérebro. Essa influência não poupou de igual modo a psicologia que, principalmente com os trabalhos de Wundt, avançava significativamente, estando mais preocupada com o sensório e se aproximando mais da fisiologia do que da própria psicologia.

Em meio a uma sociedade motivada por suas aspirações positivistas, Sigmund Freud apontou questões que punham em xeque a tradicional razão e o suposto conhecimento que o homem tinha a respeito de si. Médico neurologista, ele começou a atender pacientes, que mais tarde seriam denominadas histéricas, com sintomas corporais que não condiziam com a realidade orgânica daquele corpo. Confrontando o saber médico de sua época, ele afirmou que tais sintomas estariam numa dimensão psíquica e, portanto, iam além do alcance da medicina. Com isso, empenhou-se na investigação de fenômenos psíquicos e durante um tempo utilizou a hipnose para tal fim, abandonando-a mais tarde e concedendo a palavra às suas pacientes. Percebeu que nem mesmo elas tinham consciência do significado dos seus sintomas. Notou que havia algo naquele sofrimento que não dizia respeito à consciência (MORETTO, 2001). Finalmente passou a compreender que o sintoma observado nas histéricas era uma conciliação entre o eu consciente e a demanda de energia psíquica inconsciente. Por alguma razão, a consciência recusava a energia vinda do inconsciente, e a energia acabava se expressando pelo corpo (FREUD, [1926-1925] 2000). Dessa forma, a psicanálise, ao postular o inconsciente, evidenciava o paradoxo de um sujeito constituído por aquilo que ele não podia saber (CONTÉ, 1995).

Com isso, ao colocar o inconsciente em evidência, Freud confere ao psiquismo importante papel na saúde, influenciando mais adiante o surgimento da psicologia da saúde e da psicossomática, importantes campos de pesquisa e atuação nas interações entre mente e corpo. Apesar dessas importantes contribuições, essas transformações levaram algum tempo até adentrar o hospital. Até a primeira metade do século XX, o hospital era uma instituição com credibilidade para diversos tratamentos médicos, mas a psicologia tinha pouco espaço no campo da saúde e no hospital. A prioridade era a cura de enfermidades orgânicas. No entanto, ao longo desse século, ocorreram importantes mudanças na sociedade que criaram condições para emersão da psicologia e da psicanálise no âmbito da saúde. Nesse momento, a ciência já avançara significativamente possibilitando o tratamento e a prevenção de diversas doenças, através de inovações tecnológicas que permitiam diagnósticos mais precisos e uma compreensão mais profunda das enfermidades, além de um melhor controle dos dados clínicos e do desenvolvimento da doença. Straub (2005) destaca que os últimos avanços tecnológicos, na higiene, nas medidas de saúde pública e microbiologia foram tão significativos que praticamente erradicaram várias doenças infecciosas temidas no passado. A qualidade de vida mudou, a maioria das pessoas tomou consciência de que a saúde significava muito mais do que estar livre de doenças e, portanto, começaram a procurar a fazer coisas visando garantir uma maior longevidade, como a prática de exercícios e o controle da alimentação. Assim, com maior consciência das questões relacionadas à saúde e com a melhoria dos serviços de saúde, a expectativa de vida aumentou.

Outro fator que contribuiu para uma maior importância das questões psicológicas no campo da saúde é que se as pessoas antes morriam de doenças causadas por falta de água potável, alimentos contaminados ou infecções contraídas de pessoas doentes, com as melhorias na higiene pessoal, na nutrição, na saúde pública, como um melhor sistema de tratamento de esgotos, hoje em dia esse panorama mudou na maioria dos países desenvolvidos (STRAUB, 2005). Atualmente diversas pesquisas apontam o aumento de doenças intimamente relacionadas ao estilo de vida de cada um, muitas vezes associada com o estresse (RODRIGUES; LIMONGI-FRANÇA, 2010). Nessas condições, emergiu a necessidade de um campo voltado para a identificação de correlatos entre aspectos emocionais e o surgimento de doenças, visando com isso a manutenção da saúde física e emocional, a prevenção e o tratamento de doenças. Num sentido mais amplo, buscando promover a formação e a melhoria nas questões relacionadas à saúde (ISMAEL, 2005).

Assim, emergiu no campo da saúde, um terreno fértil para intervenções no alívio do sofrimento psíquico e prevenção de doenças que a psicanálise mostra plena condições para semear. Tal característica é evidenciada quando se destaca o fato histórico de que no cenário tanto internacional quanto nacional, as primeiras atuações de psicólogos se dão mediante demandas reais, a exemplo de uma das precursoras, Mathilde Neder, convidada a fazer parte da Clínica Ortopédica e Traumatológica (atualmente Instituto de Ortopedia e Traumatologia) do Hospital das Clínicas da USP - HC (NEDER, 2005).

Dessa forma, conforme aponta Campos (2010), no mínimo há quatro décadas, o psicólogo já era solicitado em instituições de saúde para integrar equipes multidisciplinares, tendo seu papel cada vez mais reconhecido. Isso, no entanto, significa que esse profissional começou a atuar na área da saúde antes mesmo da regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil e, quando tal profissão se regulamentou, ainda não contemplava a área da saúde, algo que ocorreu na década de 1970, com a criação na American Psychological Association (APA) do grupo de trabalho na área de saúde e com o surgimento dos primeiros cursos de especialização no final da década de 1970 (CYTRYNOWICZ, 2004).

Dessa forma, fica claro que a psicologia e a psicanálise não entraram no hospital à revelia ou capricho, mas sim a convite, pela porta da frente e são realidade em muitos hospitais. Nessas circunstâncias, retomamos nossa questão: “De que maneira numa enfermaria, podemos aliviar o sofrimento psíquico de um paciente em meio à atribulada rotina hospitalar, com incerteza da duração do processo ou mesmo de cada sessão ou ainda de um encontro seguinte?”

O próprio Freud ([1919-1918] 2000) no texto Linhas de progresso da terapia psicanalítica profetizou alguns dos rumos da psicanálise, entre eles o da expansão a outros campos de saber, e apontou a necessidade de readequação às novas realidades desde que se mantivessem os seus princípios. Nesse sentido, Machado & Chatelard (2013) destacam que, na medida em que os psicanalistas são convocados a intervir nos mais diferentes campos, sendo inclusive objeto de curiosidade de profissionais não analistas, vemos que o futuro de difusão e consolidação da psicanálise vislumbrado por Freud é uma realidade. Há que considerar, conforme advertem os mesmos autores, que esse movimento vem acompanhado de uma preocupação sobre a formalização da práxis analítica.

Assim é que nos propusemos a repensar essa práxis e procuraremos analisar alguns pontos que consideramos cruciais no contexto analítico e de que maneira ele se insere na realidade das enfermarias. Para tanto, se faz mister descrever preliminarmente uma enfermaria e por que elas, ao nosso ver, constituem um desafio à parte ao psicanalista.

A enfermaria é o espaço no qual ficam os pacientes internados, muitas vezes por causa da necessidade de tratamentos constantes e intensos para determinadas lesões, enfermidades ou quadros clínicos delicados ou ainda situações pré e pós-cirúrgicas. É normal que esses espaços – e isso é ainda mais comum na realidade do sistema público de saúde – abriguem mais de um paciente, geralmente um mínimo de três ou quatro por quarto, sem divisões ou biombos, o que em alguma medida, coloca em xeque a privacidade ideal do ambiente analítico. Há ainda a rotina que se inicia pela manhã com o banho e costuma ocupar boa parte do dia, entre administração de medicamentos, procedimentos médicos, troca de curativos, entre outros. Assim, com esse peculiar ambiente de pano de fundo é que procedemos a nossa análise.

O primeiro ponto a ser levado em consideração é a demanda. No caso do hospital, as demandas surgem da equipe multidisciplinar ou do próprio paciente. Na primeira situação, é comum quando a equipe detecta algum comportamento disfuncional, como descuido com o próprio tratamento, a ocorrência de comportamentos hostis, além de manifestações de ansiedade ou tristeza.

Já no segundo momento, é o próprio paciente quem solicita o atendimento. Nas duas situações é preciso atenção; no entanto, na primeira é necessário cuidar para que não caiamos em algumas ciladas, por conta dos nossos próprios anseios, uma vez que corremos o risco de perder de vista a subjetividade do paciente, deixando de procurar estabelecer um contato psicanalítico o mais genuíno possível, perdendo-se em nossos anseios em responder às questões da equipe, a fim de obter aceitação dos outros profissionais, conforme adverte Moretto (2001).

Cabe ainda sinalizar que mantendo nossa escuta psicanalítica, podemos perceber conflitos e demandas na própria equipe e, nesses casos, além do contato com o enfermo, temos outro campo de atuação, a exemplo do caso de uma jovem portadora de câncer terminal, cujo quadro mobilizou toda a equipe a ponto de sempre nos solicitarem atendimento psicológico, ainda que já estivesse ocorrendo há algumas semanas.

Outro ponto que costuma mobilizar o analista no hospital no tocante à demanda é a própria existência dela, uma vez que corriqueiramente é o analista que oferece a escuta. Quanto a isso nos serve a clássica recomendação lacaniana de que se não há demanda, que então a criemos. Assim, oferecendo a escuta, criamos um espaço de acolhimento da angústia e surgimento da transferência que, se bem conduzido, surtirá efeitos ao paciente e provavelmente demandará um retorno.

Outro mobilizador de angústia é a própria configuração do setting, uma vez que, como já mencionado tem uma série de variáveis interferentes. É comum que a sessão seja interrompida por outro profissional que lhe fará algum procedimento médico como administração de medicamentos ou troca de curativos, que, se adiados, podem colocar em risco a saúde do paciente. Há ainda a possibilidade de interrupção da sessão por pacientes dos leitos ao lado ou mesmo familiares, acompanhantes ou visitas. Nesses casos, cabe flexibilidade e manejo das situações em comum acordo com o paciente e demais elementos da cena. Retomando Freud ([1919-1918] 2000) em Linhas de progresso na terapia psicanalítica, podemos adequar a prática psicanalítica no hospital, mantendo os fundamentos. Para tanto, aponta Zimerman (1999), é possível manter características no vínculo com o paciente como uma boa delimitação dos papéis e assimetria na relação (os lugares, papéis e funções do analista e do paciente não são simétricos) e não similaridade, uma vez que eles não são iguais. Tal configuração ajudará a lidar com a contratransferência e permitirá que a relação se dê minimamente nos moldes adequados, garantindo condições para que ocorra a transferência e esta seja analisada de maneira adequada.

No que concerne à transferência, é ela é que garante a boa execução da psicanálise juntamente com os fundamentos éticos dos procedimentos técnicos e o “desejo do analista”, conforme destaca Moretto (2001). Naturalmente, acrescenta a autora, a transferência deverá ocorrer, uma vez que o paciente no hospital procura um saber dirigido a ele. Atribui esse saber aos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e ao psicólogo. A neutralidade do analista, evidentemente, fica comprometida, mas ainda é possível analisar a transferência sobre outros aspectos e que muitas vezes revelam a relação do paciente com o restante da equipe.

Ainda com relação à transferência, Zimerman (1999) destaca a importância para a técnica freudiana de ser analisada juntamente a um processo de associação livre. O ideal seria que o paciente associasse livremente as ideias que lhe surgissem na mente e as verbalizasse. No contexto hospitalar, no entanto, o trabalho se dá num tempo muito breve, muitas vezes de uma única sessão. Assim, é preciso que as intervenções do analista ocorram já no primeiro contato e, se houver oportunidade, se repitam em outros momentos.

Nessas circunstâncias, em nossa prática clínica adotamos uma abordagem semelhante ao da pesquisa qualitativa com base em psicanálise. Questionamos o paciente sobre a rotina dele, sobre suas relações com a equipe, sobre sua enfermidade e deixamos que ele associe em cima disso. É comum que, no meio das descrições de fatos, procedimentos e pessoas, o paciente expresse seus afetos, desejos, conteúdos inconscientes e processos transferenciais, configurando um campo fértil para a atuação do analista.

Um ponto que temos observado necessitar de extremo cuidado do profissional diz respeito à interpretação. Sabe-se que é uma ferramenta importante à psicanálise, na medida em que ela está no centro da teoria freudiana (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001) por trazer representações inconscientes à tona (BREUER; FREUD, 1895; FREUD, 1911). E por essa razão, o analista pode se sentir impelido a realizar interpretações a fim de acelerar o processo breve de análise que ocorre no hospital.

Há que mencionar, no entanto, conforme destaca o próprio Freud (1911), que a interpretação não deve ser feita à revelia, de maneira alegórica ou desvinculada do processo global, dado seu poder, uma vez que, se mal aplicada, pode causar até mesmos estragos, desestruturando o paciente.

Por essa razão, segundo Roudinesco (1998), o próprio Freud alertava a respeito da onipotência da interpretação, que foi alvo de diversos estudos e ensaios, que o levaram à conclusão do uso ponderado, mediante um cuidadoso processo de construção. Diante dessa realidade, observamos que a brevidade do processo analítico no hospital é pouco convidativa ao uso de interpretações, uma vez que poucas são às vezes em que é possível um minucioso processo de construção da interpretação, que se alia à fragilidade emocional dos pacientes, muitas vezes gravemente enfermos ou em risco de morte. Portanto, é preciso cautela com a “violência da interpretação” (AULAGNIER apud ZIMERMAN, 1999), pois pode ser excessiva, intrusiva e desestruturante.

Entretanto, a dificuldade com o ato de interpretar não inviabiliza o processo analítico. Afinal, como destaca Moretto (2001) o processo analítico se dá principalmente pela escuta e pela restituição ao paciente do lugar de sujeito, muitas vezes objetificado pelos procedimentos médicos essenciais à sua cura ou manutenção da vida.

Dessa forma, cabem muitas outras ferramentas, como dar voz ao paciente, o que ajuda a aliviar sua angústia. Há vezes até mesmo em que o silêncio é suficiente para auxiliar um paciente. Há outras vezes na clínica, segundo Zimerman (2008), que o analista pode assumir um papel semelhante ao de um educador, ajudando o paciente a desfazer alguns mitos e retirando significados patológicos de algumas experiências, permitindo o surgimento de novas significações, mais sadias, que colaborem para a obtenção de uma homeostase interior.

Tais recomendações parecem simples, mas muitas vezes são deixadas de lado pelo analista, no afã de “resolver as questões solicitadas” pela equipe. Há geralmente um pedido pela adaptação do paciente à rotina hospitalar, mas o psicanalista deve olhar além disso, oferecendo uma escuta ao drama subjetivo do paciente. Caso ele fique preso meramente a esse pedido, estará bem distante das pretensões da psicanálise, deixando de lado a questão do sujeito em prol da questão do médico. A escuta, por outro lado, costuma diminuir a angústia e a agressividade, transferindo-as para um único objeto que deve ser capaz de contê-las: o analista (MORETTO, 2001).

Tal recomendação, no entanto, não deve afastar os princípios éticos com a equipe. O analista, apesar de fazer uma aliança com o paciente, não deve emitir julgamentos a respeito de terceiras pessoas ou colegas, “tendo em vista que os pacientes os convidam para tal quebra de ética, por meio de um inconsciente jogo sutil e provocador veiculado por intrigas, ‘fofocas’, insinuações e afins”. (ZIMERMAN, 1999, p. 297).

Da mesma forma, é preciso não perder de vista que, uma vez inseridos na equipe, devemos manter nosso compromisso com a equipe e dar alguma devolutiva do atendimento, desde que se preserve a dignidade do paciente. Nesses casos, um breve sumário do exame mental e estado emocional do paciente diante da enfermidade, cirurgia ou algum procedimento costuma arrefecer a ansiedade da equipe.

Por todos esses aspectos, observa-se que o trabalho analítico é possível no ambiente hospitalar, desde que se respeitem algumas condições mínimas tais como a escuta, a atenção aos processos transferenciais e, acima de tudo, a preocupação com o lugar de sujeito que o paciente deve ocupar.

Nessas circunstâncias, Figueiredo (1997) afirma que a psicanálise tem sido convidada a ocupar os mais diversos espaços, e é nosso papel criar condições de possibilidade para que ela ocorra. De um lado, estamos diante do paciente, com suas angústias e conflitos, muitas vezes objetificado pelos inúmeros procedimentos médicos. E de outro lado, estamos diante de uma equipe atarefada, cuidando de diversos aspectos da saúde daqueles pacientes, lidando com rígidos cronogramas e as mais diversas responsabilidades, cujo deslize pode acarretar na perda de uma vida.

É preciso, portanto paciência, com as duas realidades do hospital, pois muitas vezes esse processo de objetificação pode ser dar como fruto dessa rotina, mas também como uma defesa dos próprios profissionais diante de suas angústias e conflitos pessoais. E, se assim for, nossa escuta deverá estar pronta para acolher também esses personagens. Da mesma forma, é preciso ponderar o desejo do paciente, muitas vezes alvo constante da nossa postura analítica, uma vez que em determinadas situações a satisfação plena desse desejo pode colocá-lo numa situação de agravamento de sua enfermidade ou mesmo risco de morte. Assim, ao atuar no hospital, trafegamos entre a linha tênue do desejo do paciente em ser sujeito o desejo de cura da equipe e o parâmetro para a nossa conduta analítica é a ética.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Vereador João Calazans, 105-B
Bairro 13 de Julho
Clínica Pio XII - Espaço Renascer
49020-330 - Aracaju/SE
E-mails: Walter Lisboa Oliveira: walterlisboa@usp.br - Avelino Luiz Rodrigues: avelinoluiz@usp.br

Recebido: 01/04/2014
Aprovado: 10/04/2014

 

 

SOBRE OS AUTORES

Walter Lisboa Oliveira
Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo – IP/USP; Especialista em Psicologia Hospitalar pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa SuCor - Sujeito e Corpo: Grupo Interdisciplinar de Psicossomática.

Avelino Luiz Rodrigues
Médico. Psicanalista. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Líder do Grupo de Pesquisa SuCor - Sujeito e Corpo: Grupo Interdisciplinar de Psicossomática.

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