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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.43 Belo Horizonte July 2015
Princípio do prazer versus princípio da realidade em contos infantis
Pleasure principle versus reality principle in fairy tales
Renata Franco Leite
I Círculo Psicanalítico de Sergipe
II Universidade Tiradentes
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo relacionar o princípio do prazer e o princípio da realidade com os contos infantis. Tais princípios apresentam conceitos bastante complexos, estudados com muita frequência principalmente por psicólogos, médicos e psicanalistas. Neste artigo, a intenção não é aprofundar essas definições, mas estabelecer a relação entre esses princípios e os contos infantis como busca para a satisfação do sujeito e o vínculo que se estabelece com as realidades interna e externa.
Palavras-chave: Princípio do prazer, Princípio da realidade, Contos infantis, Satisfação, Realidade.
ABSTRACT
This study aims to understand the pleasure principle and the reality principle, relating them to fairy tales. It is known that these are very complex concepts and they are studied with great frequency by psychologists, doctors and psychoanalysts, so at this point their definitions will not be deepened, being the focus of this study the relationship between these principles and fairy tales as a search for satisfaction of the subject and the relationship with the internal and external realities.
Keywords: Pleasure principle, Reality principle, Fairy tales, Satisfaction, Reality.
Introdução
O princípio do prazer e o princípio da realidade podem ser considerados importantes conceitos psicanalíticos. Apesar de, em alguns momentos, serem colocados como opostos, percebe-se que são conceitos que se complementam e se manifestam corriqueiramente em nosso dia a dia.
Faremos referência a esses conceitos, destacando sua relação com os contos infantis. É importante apontar que será estabelecido um recorte, ou seja, serão destacados aspectos específicos da teoria para que se possa analisar o que está associado aos princípios do prazer e da realidade.
O princípio do prazer e o princípio da realidade: algumas considerações
Laplanche e Pontalis (1988) esclarecem que o conceito do princípio do prazer surgiu das ideias de Fechner e depois foi desenvolvido por Freud ([1920] 1969). Através desse princípio, antigos conceitos ganharam ainda mais sentido, além de novas teorias terem sido criadas.
Bergeret (1998) aponta o princípio do prazer como um direcionamento de energia ou uma descarga pulsional que tem por objetivo atingir a satisfação desejada. Tendo em vista que essa satisfação não atingirá completamente as expectativas do sujeito, seja por conta de frustrações eminentemente internas, seja por conta de questões socioculturais, é nesse momento que o princípio da realidade se manifesta: uma censura interna impede que o sujeito desobedeça a questões éticas e morais para atingir a satisfação de seus desejos internos.
A partir da leitura de Zimerman (1999), compreende-se que o princípio do prazer descrito por Freud ([1920] 1969) direciona toda a ação psíquica e orgânica, com a intenção de atingir um prazer idealizado, ignorando ou mesmo evitando as frustrações. Já o princípio da realidade se manifesta a partir da adaptação sociocultural e da formação dos conceitos morais e éticos, ou seja, o indivíduo passa a entender o funcionamento da descarga pulsional e, com isso, a respeitar os limites impostos, controlando a maneira como se comporta.
Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Este último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer (FREUD, [1920] 1969, p. 20, grifo do autor).
Laplanche e Pontalis (1988) esclarecem que o princípio do prazer é um princípio econômico, já que se trata do princípio responsável pelo controle da quantidade de excitação entre a relação do prazer e desprazer para a manutenção da homeostase psíquica.
Além disso, o princípio do prazer é regido pelo funcionamento do id, já que sua principal característica é justamente reduzir os níveis de tensão existentes no aparelho psíquico (HALL; LINDZEY, 1984).
Com relação ao princípio da realidade, Laplanche e Pontalis (1988) consideram-no como um princípio regulador, já que ele modifica o princípio do prazer no que diz respeito aos caminhos percorridos para se atingir a satisfação.
De acordo com Fadiman e Frager (1986), esse funcionamento se dá porque o ego é o responsável por operar esse princípio, já que essa estrutura está ligada diretamente à realidade externa, controlando as pulsões do id, o princípio do prazer e proporcionando assim uma satisfação real para o sujeito.
Tendo essas questões em vista, percebe-se que os princípios descritos anteriormente não podem, nem devem, ser vistos de maneira separada. Alguns autores falam dessa relação entre os princípios e a ligação sequencial entre eles.
Zimerman (1999) cita a percepção de Freud e Bion com relação a esse aspecto:
Freud descreveu o surgimento de ambos os princípios de uma forma sucessiva e sequencial, porém, na atualidade, principalmente a partir de Bion, considera-se que de alguma forma os “princípios do prazer e realidade” estão sempre presentes, de forma simultânea, e interagem ao longo de toda vida, mesmo que, no adulto, as demandas imediatistas e mágicas do princípio do prazer possam ser ocultadas (ZIMERMAN, 1999, p. 78).
É importante ressaltar neste momento a importância das estruturas psíquicas: o id, o ego e o superego. Didaticamente falando, a estrutura do id é regida pelos impulsos inconscientes, e nele não existem inibições ou censuras, conceitos de certo e errado. Podemos colocá-lo como a estrutura mais primitiva do organismo e, consequentemente, a mais difícil de ser acessada. Já o superego é a estrutura em que o sujeito é ciente de suas obrigações sociais, e nisso as inibições e censuras estão atuando ativamente. O superego é formado ao longo da vida do sujeito, através das castrações e frustrações que são vivenciadas. Por fim, o ego é a estrutura que pondera esses extremos, lidando com os conflitos internos e externos. Pode-se dizer que o ego seria a estrutura intermediária que dá equilíbrio aos impulsos do id e ao superego, proporcionando, assim, a ordem (ZIMERMAN, 1999).
Freud ([1920] 1969) acredita que existe uma dominância do princípio do prazer sobre o princípio da realidade na vida mental por causa de uma necessidade psíquica em manter o equilíbrio pulsional. A partir dessa ideia, é desenvolvido o princípio da constância, que não será aprofundado no decorrer deste artigo. Entretanto, é importante afirmar que ele é pensado em decorrência da relação entre os princípios do prazer e da realidade e do consequente equilíbrio entre eles.
Sendo assim, após essas considerações iniciais e breves referências a conceitos relevantes, pode-se dar início à discussão que relaciona os princípios do prazer e da realidade com as manifestações vivenciadas em contos infantis.
Os contos infantis: busca da satisfação e conflito com a realidade
Bettelheim (2007) afirma que os contos infantis surgiram como uma forma de literatura e que, ao longo dos anos, passaram a ser utilizados para diversos fins, por exemplo, para questões ligadas principalmente à disciplina e à religião.
Além disso, deve-se destacar a existência de uma ampla diversidade de contos que tiveram seus primeiros registros no século XVII, inicialmente através de Giambattista Basile e depois pelos irmãos Grimm. Além deles, houve autores como Charles Perrault, Johann Karl August Musäus e Des Knaben Wunderhorn (CORUMBA; RAMALHO, 2008).
Bettelheim (2007) defende ainda que os contos infantis, distintamente da literatura infantil em geral, permitem às crianças o acesso a mensagens importantes carregadas de sentido em todos os níveis da estrutura psíquica (id, ego e superego) no âmbito tanto psicológico quanto emocional.
Corumba e Ramalho (2008) ressaltam a importância dos contos para a análise do comportamento humano, pois é através dos contos que as peculiaridades de cada sociedade podem ser percebidas e transmitidas de uma geração para outra, e ainda acrescentam:
Os contos de fadas, tal como nos sonhos, nos falam de tudo que vivenciamos, respondem às nossas questões sobre a vida, narram o que fazemos e como fazemos (CORUMBA; RAMALHO, 2008, p. 14).
Freud ([1900] 2013) destaca uma série de questões relacionadas aos sonhos e a diversos aspectos que surgem a partir deles e à maneira como o sujeito se relaciona consigo mesmo e com as situações vivenciadas no dia a dia.
Com relação aos contos infantis, os principais trabalhos não se distanciam muito da época em que foi publicada A interpretação dos sonhos (1900). Deve-se dar destaque a Bruno Bettelheim, que foi inovador ao relacionar a psicanálise aos contos de fada e contos infantis, e a Diana Corso e Mário Corso (2006), que apresentam um ponto de vista mais recente a essa relação. Esses autores abordam de maneira diferenciada a importância dos contos infantis e a maneira como eles atingem tanto crianças quanto adultos.
Ao longo deste trabalho são colocadas algumas questões referentes ao sonho presente no conto Alice no país das maravilhas, e tendo essa perspectiva em vista, podemos entender e relacionar aqui as questões anteriormente citadas. Ao afirmar que no princípio do prazer as pulsões são direcionadas para que haja satisfação o mais rápido possível, podemos pensar nos relatos de sonhos para satisfazer necessidades fisiológicas como a vontade de ir ao banheiro e/ou alimentar-se. Através do sonho, a descarga pulsional flui de maneira inconsciente, já que nesse momento o id está em ação, com o objetivo de gerar satisfação no sujeito, nesse caso, o alívio da necessidade fisiológica (ZIMERMAN, 1999).
Os sonhos e os contos infantis podem se assemelhar quando temos em vista uma perspectiva dos conflitos internos do funcionamento psíquico para a obtenção de prazer e a vivência da realidade. Os conflitos entre as estruturas psíquicas – id, ego e superego – acontecem a todo momento, sem que haja, na prática, uma separação entre elas.
Por outro lado, os sonhos são manifestações do id, enquanto os contos de fada manifestam questões culturais e perspectivas de certo e errado para estimular as crianças a perceber o mundo ao seu redor, tendo as leis sociais sempre muito próximas a si. Sendo assim, os sonhos seriam dominados pelo id, enquanto os contos infantis pelos conflitos do ego (BETTELHEIM, 2007).
Devido ao funcionamento psíquico, os contos infantis se manifestam de forma diferenciada. Neles, em geral, existe um pudor em aceitar que a satisfação seja atingida, o que dificulta a existência do princípio do prazer como há no sonho. Exemplificando, em Alice no país das maravilhas (1951), a criança, em seu sonho, busca a todo tempo encontrar o coelho branco e, nessa jornada pela busca de sua satisfação – o encontro do coelho – diversos aspectos a atrapalham (os conflitos socioculturais e internos). A dificuldade em atingir essa satisfação culminaria na existência do princípio da realidade. Dessa maneira, no sonho, a busca pela satisfação é movida pelo id, enquanto a dificuldade em atingi-la e o caminho correto para encontrá-la seriam controlados pelo princípio da realidade e, consequentemente, pelo ego.
É importante apontar que o conto Alice no país das maravilhas foi escrito em 1865 por Lewis Carrol e em 1951 utilizado por Walt Disney como inspiração para um filme de animação. Destacaremos, assim, a história adaptada por Walt Disney em 1951, utilizando algumas passagens como exemplos.
Deve-se destacar que a escolha desse conto infantil não foi aleatória, mas porque já existe uma relação entre ele e o sonho. No enredo de Alice no país das maravilhas (1951), trata-se de um sonho vivenciado pela protagonista. Assim, a relação que ao longo do conto surge entre Alice e a realização de seus desejos através do sonho não se distancia da realidade psíquica do ser humano, pois, segundo Freud ([1916-1917] 2006), o sonho se caracteriza essencialmente como uma satisfação de um desejo inconsciente do sujeito.
É importante ressaltar que não serão realizadas interpretações com relação ao sonho ou conto infantil aqui citado, pois o objetivo, neste momento, é apenas relacioná-los aos princípios do prazer e da realidade descritos por Freud ([1920] 1969).
Sobre os sonhos e os contos de fadas Bettelheim (2007, p. 52) afirma:
Não podemos controlar o que se passa em nossos sonhos. Embora nossa censura interna influencie aquilo que venhamos a sonhar, esse controle ocorre num nível inconsciente. O conto de fadas, por outro lado, é em grande parte o resultado de o conteúdo comum consciente e inconsciente ter sido moldado pela mente consciente, não de uma pessoa em particular, mas pelo consenso de várias a respeito daquilo que consideram problemas humanos universais e do que se aceitam como soluções desejáveis.
Ainda em Alice no país das maravilhas (1951), pode-se destacar o conflito entre o id e o ego, quando a menina encontra o gato de cheshire, ou gato risonho. Nesse momento, a menina questiona que caminho deve tomar e, em resposta, o gato diz que não importa o caminho que ela tome se não sabe aonde quer chegar. A vontade ou necessidade de encontrar o caminho, mesmo sem saber aonde quer chegar, seria uma representação do funcionamento do princípio do prazer, enquanto a necessidade de saber o que se deseja para então seguir o caminho correto está diretamente atrelada ao princípio da realidade. Mais uma vez, podemos destacar a manifestação dos conflitos entre a satisfação e a realidade, entre o id e o ego.
Nos sonhos, quase sempre a realização do desejo é disfarçada, enquanto que no conto de fadas é expressa abertamente. Num grau considerável, os sonhos são o resultado de pressões interiores que não encontraram alívio [...] O conto de fadas faz o oposto: ele projeta o alívio de todas as pressões e não só oferece caminhos para resolver os problemas como promete uma solução “feliz” para eles (BETTELHEIM, 2007, p. 52).
Sabe-se das inúmeras diferenças existentes entre sonhos e contos infantis, porém essa análise é uma maneira de tornar prático o conhecimento relacionado ao funcionamento dos princípios do prazer e da realidade, já que nesse momento eles estão diretamente relacionados. Afinal, trata-se de um sonho vivenciado em conto infantil que elucida as vivências do sujeito no dia a dia, mesmo que não haja essa percepção.
Conclusão
Os princípios do prazer e da realidade regem a vida do ser humano e é através deles que o sujeito é capaz de lidar consigo mesmo, e com seus conflitos e com outros indivíduos.
É fundamental acrescentar que os contos infantis têm muito valor principalmente para as crianças, pois são importantes ferramentas que permitem ao sujeito interagir, identificar e manifestar suas próprias questões durante a narrativa e, com isso, podem atingir um efeito terapêutico bastante eficiente.
Por fim, é importante apontar que neste trabalho o conto Alice no país das maravilhas foi resgatado nos auxiliando a esclarecer o funcionamento dos princípios do prazer e da realidade.
Referências
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BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fada. 21. ed. Tradução de Arlene Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007. [ Links ]
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E-mail: renatafrancoleite@hotmail.com
Recebido em: 08/05/2015
Aprovado em: 11/05/2015
SOBRE A AUTORA
Renata Franco Leite
Psicóloga graduada pela Universidade Tiradentes (UNIT).
Membro candidato à formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS).