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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.46 Belo Horizonte Dec. 2016
‘Família’, de Farnese de Andrade - reflexões sobre o feminino, a função materna e as novas configurações familiares
‘Family’, by Farnese de Andrade - reflections on the feminine, maternal function and new family configurations
Anchyses Jobim Lopes
I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá
RESUMO
Lei e limite, linha e contorno e de indivíduo e singularidade contrastados. O primeiro de cada par tendo sua derivação de uma leitura patriarcal de conceitos freudianos e lacanianos, e o segundo, de uma leitura calcada no feminino e nas ideias de Winnicott. Uma obra do artista Farnese de Andrade interpretada como ilustrando esses contrastes e o modelo patriarcal de família, e algumas de suas características e consequências.
Palavras-chave: Lei, Limite, Linha, Contorno, Indivíduo, Singularidade, Família patriarcal.
ABSTRACT
The contrast between law and limit, line and contour, individual and singularity. The first of each pair deriving from a patriarchal reading of Freudian and Lacanian concepts and the second from a feminine based view grounded on Winnicott’s ideas. A work by Farnese de Andrade interpreted as showing these concepts and some of the patriarchal family characteristcs and consequences.
Keywords: Law, Limit, Line, Contour, Individual, Singularity, Patriarchal family.
prá Analu e seu primeiro ano de 'serzinho'
Introdução
Assemblage ou assemblagem é um termo francês usado para definir colagens com objetos e materiais tridimensionais. O artista mineiro radicado no Rio de Janeiro Farnese de Andrade (1926-1996) foi: pintor, escultor, desenhista, gravador, ilustrador. Contudo, hoje é mais conhecido por suas assemblagens (COSSAC, 2005).
Artista com várias mostras no Brasil e no exterior, inclusive tendo a obra exibida em 2000 no MASP, na exposição Brasil: Psicanálise e Modernismo (2000). E de quem a assemblagem Família, exposta também no MASP na mostra Histórias da Infância (2016), onde em julho deste ano a vi pela primeira vez, e ela me cativou.
Aqui teceremos comentários a partir desta única assemblagem. Teremos a liberdade de às vezes nos referir a ela como ‘escultura’. Sem interpretações associadas à biografia do autor ou sua vida interpretada como se fosse um caso clínico. A obra escolhida será usada como para-raio dando unidade a uma série de ideias discutidas entre os participantes do Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades do CBP-RJ.1
Dos muitos textos lidos e discutidos pelo grupo (principalmente Stoller, Butler, Ceccarelli, Birman), dois autores terão maior apreço neste texto. O psicanalista Carlos Alberto Plastino e sua didática sobre Winnicott e a crítica do patriarcado, tanto nas palestras dadas no CBP-RJ quanto em seu último livro (2014). E três dos textos de Márcia Arán, psicanalista precocemente falecida que pesquisava sobre o feminino (2003), sobre transgêneros (2006) e sobre homoparentalidade (2010).
Família
Família é uma obra extremamente simples. É composta por apenas seis itens: quatro ex-votos – uma cabeça de homem, outra de mulher, um menino representado por cabeça e tronco e outro menino só por uma pequena cabeça deitada de costas – e dois porta-pesos daquelas antigas balanças de metal, um mais gasto que o outro. Tudo colocado sobre uma base de madeira. Aparentemente nenhum dos itens foi modificado pelo artista. Ele apenas os juntou e mudou a posição de horizontal para vertical ou vice-versa de alguns itens. Tal uma criança brinca construindo algo a partir das coisas mais diversas encontradas ao acaso.
Na assemblagem de Farnese de Andrade, vista de frente, no porta-peso que forma à esquerda a base da figura masculina só há um círculo. Círculo único, ao alto – superior – e completamente vazado de um lado ao outro. Através dele, exterior além da escultura, é completamente visível. Num primeiro momento, sendo a cabeça de homem mais alta e dada a massa compacta da madeira que compõe o fundo do porta-peso, somadas ao círculo perfeitamente vazio que permite que se veja o outro lado do ambiente, a figura masculina domina.
À direita, sendo mais baixa a cabeça de mulher e mais clara a madeira do ex-voto e do porta-peso, há uma primeira sugestão de algo ‘inferior’. Mas na base da figura feminina há uma sucessão de dezesseis círculos. Sequência que vai da direita à esquerda, do menor ao maior de todos. A sequência de círculos forma um segundo grande círculo. Somente o último e mais inferior deles é vazado de um lado ao outro. E esse círculo na parte de baixo da figura feminina contém um pequeno objeto. Visto pelo outro lado da assemblagem descobrimos que se trata de uma pequena cabeça de criança, deitada e voltada para o lado de trás, para o exterior além da escultura.
Se pelo hábito da leitura ocidental o olhar se dirige da esquerda para a direita, então o olhar se fixa na diversidade dos orifícios de todos os tamanhos do porta-peso da direita, sobre o qual há a cabeça de mulher. E se intriga sobre o que, no maior dos buracos, obstrui o olhar pleno do outro lado do ambiente. Embora mais baixa, a figura feminina está colocada sobre a base de madeira mais à frente que a masculina. O ‘peso’ figurativo da figura feminina rapidamente inverte a atração do olhar. Agora a figura feminina parece ser mais importante que a masculina.
A partir dessas imagens o que podemos conceber como representações das funções paterna e materna? Ressaltemos que, ao falar de funções paterna e materna, as afastamos completamente do grau de parentesco ou sexo biológico dos que exercem essas funções. São funções exercidas pelas mesma(s) pessoa(s).
Lei e limite
A noção de lei da obra freudiana é de imposição pela força. Associada sempre à ameaça ou à castração, concreta ou metafórica. Tende a permanecer como advinda do exterior, mesmo quando esse exterior se localiza dentro da própria psique, na forma de superego ou eu ideal. Em neuróticos ou normopatas, aparece associada à violência, ao sadismo ou ao masoquismo moral. Em psicóticos é concretamente foracluída em vozes acusadoras. As Erínias que acusavam Orestes de matricídio.
A noção de limite, tomada por empréstimo e desenvolvida em alegoria a partir da obra winnicottiana, evolui a partir da simbiose inicial mãe-bebê. Unidade que, dado um continente suficientemente adequado, vai aos poucos permitindo a diferenciação de um novo ser. O limite lentamente surge a partir de uma fusão que aos poucos se esgarça. Um espaço que pertence tanto à mãe quanto ao bebê.
Freud jamais observou diretamente um bebê. Iniciador do percurso da psicanálise, necessariamente tinha de perfurar as camadas da psique de cima para baixo. Freud sempre descreve o superego em uma criança de quatro anos ou mais. A observação de bebês e de crianças com menos de três anos, corrobora que ao superego e à função paterna, da sua lei como herdeira do complexo de Édipo, tenha sido precedido e seja herdeiro do limite e da função materna. Limite que se funda da doação amorosa. E do luto dessa doação, ao permitir que o bebê se diferencie em um outro ser.
Aquele ou aqueles aos quais a criança nomeia pai ou mãe – o mesmo nas crianças que só possuem um deles para nomear – exercem alternadamente ambas as funções: materna e paterna. Endossamos que, para a maturação adequada, a função materna suficientemente boa prevaleça. Função que tanto biologicamente nutre e protege quando ainda dentro do corpo da mãe como depois fora dele. Alterna-se um primeiro momento violento mas inevitável, em que a mãe abre o bebê para a vida, com outros suaves em que aos poucos vai abrindo o bebê para o mundo e o mundo para ele. Movimentos brandos, que por sua vez se alternam com a necessidade de que, de tempos em tempos, à semelhança do primeiro momento de violência, os momentos súbitos e os cortes abruptos da função paterna, se imponham como necessários. Pois muitas vezes correspondem à realidade do próprio mundo e dos movimentos pulsionais da criança.
Pensemos a escultura e a inversão do olhar. O círculo aberto e oco na parte de cima da base da figura masculina agora parece contrapor-se ao outro grande círculo na parte inferior da base da figura feminina, aquele com a cabeça deitada de criança. Olhando pelo outro lado da escultura, há vários outros círculos na base da figura masculina. Mas só os descobrimos depois de dar uma volta ao redor da obra. Agora, superada a primeira imposição ao olhar de se dirigir primeiro ao masculino, tanto pela frente como por detrás, o olhar passa a só se direcionar para os círculos masculinos após os femininos. Em linguagem concreta esquizofrênica, a condensação de ‘posterior’: depois (tempo) e atrás (espaço). Dissolveu-se a tirania do olhar pelo falo que tanto Lacan incensa em seu Seminário 11.
E olhando pelo lado de trás da assemblagem, o círculo com a cabeça de criança deitada, ou seja, um bebê “sendo” na parte inferior da base da figura feminina, se complementa com o círculo contendo o espaço vazio no alto da base masculina: um não ser. O feminino simbolizando ‘ser’ e ao masculino, uma vez que só surge depois e num vazio, só resta o ‘fazer’.
A lei paterna só pode se impor no sulco de um limite materno prévio já bem definido. Assim como o limite também vai lentamente se esgarçando até que também possa conter a lei.
Linha e contorno
No porta-peso que forma a base da figura masculina, o grande círculo único visto de frente, assim como a sequência de círculos vistos na parte de trás, todos possuem bordas bem delimitadas separando cada um, contornos nítidos, duros ao olhar. Já os círculos da figura feminina têm as bordas gastas, manchadas, e entre quase todas elas há pequenas aberturas. Dois dos círculos até mesmo chegam a se fundir formando um oito.
Na base da figura masculina a borda dos círculos é nítida e sem comunicação de um com os outros. A profundidade cortada por cada círculo é exatamente proporcional ao tamanho da borda da madeira talhada. Assim como a lei patriarcal freudiana é dura, e os contornos do falo lacaniano são nítidos. Em todos os casos há o limite duro imposto por uma linha, que separa o que está de um lado ou de outro lado. Linha que delimita o que está dentro ou fora da lei, com ou sem falo, e se não se tem se é ou não o falo.
Dicotomias que se alicerçam no pensamento binário. Desde que Parmênides, um dos primeiros pensadores gregos, discorreu sobre o Ser, fundamento adotado por todo pensamento binário ocidental: ‘o Ser é e o não-ser não é’. Só o primeiro – o Ser – pode ser pensado, o outro – o não ser – é impensável. O Ser participa da verdade, o outro é puro erro (ou pecado). Não há transição. Ou masculino ou não masculino: ‘a mulher não existe’.
O Ser de Parmênides difere em quase tudo daquilo que Winnicott nomeou de experiência de ser. O primeiro é atemporal, absoluto, pensamento abstrato puro, pura lógica. O segundo o sentimento pessoal de continuidade e do fluir ao longo de nossa existência, ‘um dos sentidos básicos da vida’ (PLASTINO, 2014, p. 49).
A exclusão pela linha rígida também lembra a rígida cisão esquizo-paranoide da teoria kleiniana.
Tudo o pertence ao meu eu, é bom. Tudo que vem do outro, o que foi colocado do lado de fora da linha, é completamente mau. Dentro e fora rígido que representam uma violência a à realidade. E que só podem ser mantidos por mais violência. Por que a realidade é sempre de nuances, de ambivalências freudianas, de dúvida.
Na base da figura feminina o contorno se esmaece, ou até desaparece entre um e outro círculo. A transição da borda é mais suave. Entre os círculos maiores à esquerda há vários talhes de tamanho crescente, até um grande talhe em forma de ‘v‘ ao círculo mais inferior que contém a cabeça de criança. Útero, canal de parto, vagina, genitais femininos? Há criação a partir do nada. ‘Por que há o Ser, e não apenas o não ser?’ A pergunta com que Heidegger questiona toda a metafísica ocidental indaga pela origem da criação.
Há até mesmo dois círculos cuja profundidade ou foi obliterada, ou jamais concretizada. A criação que ficou apenas como possibilidade, como potencialidade. Bordas mais suaves e as várias profundidades permitem que conteúdos diversos tenham suas particularidades, possibilidades de diferentes formas e velocidades de crescimento contidas mas respeitadas. Por meio da metáfora do contorno, o feminino como causador de diversidade.
O contorno acata as nuances da realidade. Há a diluição de opostos que em realidade não eram absolutos e nem de origem diversa. Há que pensar na posição depressiva da teoria kleiniana. Só possível quando se padece do luto pelo fato de que nada é perfeito e de que tudo prenhe de ambivalência. Luto que só se torna possível quando predomina a pulsão de vida, nomeie-se como se queira: libido, Eros, amor. A inclusão permite que aos poucos a rejeição e a violência deem lugar à reparação. Em vez de ‘ou um ou outro’, superposição mortal dos registros do real e do imaginário, lugar ocupado pelo mortífero conflito entre as três grandes religiões monoteístas patriarcais, passa-se ao ‘um e outro’ entre o imaginário e o simbólico, lócus do amor humano possível e da poesia.
Pelo contorno dissolve-se a linha do rígido binarismo, incluso o sexual. Tal já descrevera Freud, entre os dois polos da dicotomia sexual biológica há todas as nuances dos objetos da bissexualidade humana. Mesmo em seus extremos, como também já observara Freud na linguagem patologizante de sua época, há que se falar das heterossexualidades e das homossexualidades.
Indivíduo e singularidade
Como diz sua origem etimológica, indivíduo é algo uno. Uma linha nítida o separa do meio ambiente. Desde o início do pensamento grego o Ser de Parmênides, representado como uma esfera eterna e imóvel, com um interior totalmente homogêneo, simboliza a perfeição e a exclusão do que não é exato e absoluto. Mais tarde denominada por Platão de ideia do Bem, em si conjugando os absolutos de verdade, beleza e justiça. Conceitos puros que de modo transcendente se impuseram a toda a matéria. Mais um passo e a ideia do Bem foi nomeada de Deus, para os cristãos origem e fim de todas as coisas. E entre estas os próprios seres humanos, indivíduos construídos e norteados por uma gigantesca individualidade: eterna, absoluta e transcendente. A lei que se impõe de fora ao sujeito e que se complementa com o que dela foi internalizado sob a forma de eu ideal. Que coloca nas mãos daqueles que se dizem capazes de interpretá-la a partir de normas absolutas e atemporais um poder absoluto.
Desde Freud sabemos que a psique se compõe de várias instâncias em conflito. Só na consciência há a ilusão de um eu uno e soberano. Que se eleja um ou todos os modelos com divisões da psique como favorito: primeira ou segunda tópicas, eu-realidade e eu-prazer tendendo à cisão, um eu central e outros eus periféricos, nó borromeano e sua tríade de registros, uma outra tríade com sombra, animus e anima, e mais outros modelos da psique a ser descritos no futuro. E para Freud, além das instâncias psíquicas, as próprias pulsões carecem de unidade e conflitam entre si.
A incompletude e a superposição de tantos modelos psicológicos complexos atesta a multiplicidade da experiência humana. Que pelo número quase infinito de combinações sinápticas não permite estatisticamente que jamais tenham existido dois cérebros iguais, nem mesmo em gêmeos monozigóticos. Jamais houve ou haverá duas experiências de ser iguais em dois seres humanos. E para Demócrito, outro dos primeiros pensadores gregos, ‘o homem, um microcosmo’. Ou, em termos contemporâneos, absoluta só a singularidade humana.
A lei pelo modelo fálico e da castração constitui uma violência imposta à complexidade psíquica e às dualidades pulsionais. Violência gera violência. A linha do molde fálico impõe separações contra a diversidade, a singularidade intrínseca da natureza humana. Assim, o desafio é pensar a partir do feminino e da imanência, a alteridade e a
[...] a subjetivação como forma de singularização, em um universo de valores compartilhados que se constituem não por uma ilusão transcendente, mas sim pela práxis da experiência cotidiana, pela forma de ser com o outro (ARÁN, 2003, p. 256).
A ilusão de unidade do eu a partir da consciência faz com que todos os sintomas pareçam vindos de fora. A moda atual é a de que não são meus, mas impostos pela genética e pelos neurônios. As pulsões são mal contidas e necessitam ser descarregadas na realidade externa. Há pouco ser e o excesso de um fazer agressivo e compulsivo. Não se faz por sublimação ou reparação, mas para impor ao outro o que se aliena dentro de nós mesmos. E assim, não ilusão de me parecer externo, ser combatido por mim mesmo.
A lei patriarcal e sua linha rígida tentam impor à pulsão e às diferentes instâncias psíquicas uma lei transcendente. Impõe que se molde a psique a partir da ilusão de que, mais que uma unidade, se não teria uma identidade homogênea, tanto no corte de um momento específico, como ao longo do tempo. E que os demais seres humanos também têm de possuir uma identidade a mais igual possível. Senão não são humanos. Meros zumbis a ser destruídos.
Ora, se há o compartilhamento de muitas coisas em comum, ninguém jamais compartilha tudo com o outro: nos identificamos por identidades parecidas, não iguais. Identidades limitadas e diversificadas até mesmo a partir de seu interior. Na classe de identidade ‘psicanalista’, já na subclasse ‘freudianos’, há os: lacanianos, millerianos, winnicottianos, kleinianos, fairbairnianos, bionianos e outros. E em realidade nenhum desses, por que não há dois iguais dentro de qualquer uma das subclasses da subclasse ‘freudianos’. Cada um tem que criar seu modo de ser psicanalista e criar mais um novo a cada paciente. Cada terapeuta é singular em seu modo de se fazer em relação ao paciente. Porque, mesmo utilizando paradigmas cujos limites o próprio Freud elevou em lei (por exemplo, a aceitação de um inconsciente dinâmico), bem como tendo traços comuns a cada paciente enquanto pertencente à espécie humana, cada qual é singular.
Não seria para o ofício de psicanalista mais básico ser enquanto limite e contorno femininos de modo a possibilitar que o outro termine a gestação de sua singularidade? Bem, pelo menos a prática do ofício se mostrou incompatível com qualquer crença mais forte em algum modelo de lei transcendente patriarcal. Lei que acaba sendo consciente ou inconscientemente imposta ao paciente pelo pretenso terapeuta como castração, a partir de suas linhas divisórias em identidades binárias.
Conclusões: a função materna e as novas as configurações familiares do início do século XXI
Os porta-pesos a partir dos quais descrevemos as funções paterna e materna foram unidos às cabeças de homem e de mulher dos ex-votos. É a partir delas que na assemblagem temos a certeza do sexo biológico. Contudo, a função e o biológico foram colados pela criação do artista. A assemblagem do artista bem pode representar a clássica família patriarcal. Nesta os estereótipos sociais e os papéis na criação dos filhos são exageradamente diferenciados. Mas são criações externas e impostas.
O efeito dessa imposição é que entre os membros da família patriarcal não há real companheirismo e cumplicidade. Os olhares das cabeças masculina e feminina são taciturnos e paralelos. Um não olha para o outro. Já o busto do menino ao lado da figura masculina não olha para ninguém, olha para fora da assemblagem. É difícil deixar de lado que a descrição da assemblagem se refere á família monogâmica indissolúvel e cuja sexualidade é limitada e só permitida pelo sacramento.
Através do paradigma psicanalítico, que tem como foco o complexo de Édipo, é possível intuir como a falta de laços afetivos e sexuais profundos deixa sua marca nos filhos. Faltam-lhes identificações mais intensas que tragam maior possibilidade de sublimação e reparação. Pois o complexo edípico determina que filhos não apenas se identificam em graus variáveis com as funções paterna e materna, mas também a partir de como as figuras parentais se relacionam. Pela falta de identificações estáveis no núcleo familiar, elas passam a ser excessivamente procuradas no meio ambiente. Com distúrbio na construção do ser passa-se a um compulsivo fazer, violento na maioria dos casos.
Pelas leis do patriarcado é exigido que a função paterna seja exercida por um homem. Fruto de sua época, Freud descreve a sexualidade sempre a partir do masculino, assim como nele ancorou suas ideias sobre a lei e a formação da cultura. Mas, aos poucos, sua obra revolucionou tudo que se sabia e teorizava sobre sexualidade. Revolução que foi uma das fontes que embasou o movimento feminista, muito fortalecido a partir dos anos 50 do século passado e que desde então cada vez mais se amplia. Na década seguinte, a partir da luta pelos direitos civis na América do Norte, mas também por uma visão muito mais rica da sexualidade trazida pela psicanálise, surgiram as reivindicações de igualdade social e perante a lei das pessoas homoafetivas. Feminismo e direitos gays, por sua vez, confluíram na construção de todo um novo saber sobre o que hoje é denominado de gênero.
Apesar do feminismo, do movimento gay e do surgimento de todo um novo saber sobre questões de gênero, a maior parte dos seguidores de Freud se aferrou ao passado como mais realista que o rei. Houve o exagero por diversas correntes psicanalíticas da função paterna, e das parcerias sexuais exclusivas pelas leis do patriarcado e a ênfase de que essa função só poderia ser concretamente exercida por um homem.
Por décadas essa psicanálise levou à culpabilização de mulheres que parcialmente ou todo o tempo sozinhas criaram seus filhos. O que em nosso país é quase a maioria nas classes menos favorecidas. E teimou em patologizar a homoafetividade como perversão. Ficaram famosas as infelizes tentativas de cura gay por muitos psicanalistas conhecidos.
Freud, em seu revolucionário texto Três ensaios sobre a sexualidade ([1905] 1978), além da ênfase na bissexualidade, já divorciou sexo de genitalidade e pulsão de reprodução. Consciente ou inconscientemente, a maioria de seus seguidores permaneceu fiel às antigas leis religiosas do Levítico, e não à revolução freudiana. Além da culpabilização das mulheres que sozinhas criam seus filhos, é impossível esquecer do lamentável papel que grupos de psicanalistas tiveram, por exemplo, na França. Foi grande o número dos que lá subscreveram manifestos contra alterações na lei do ‘PAC’ (pacte civil de solidarité), que pudessem efetivar parcerias ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Em sua maioria não foram os psicanalistas das correntes julgadas ‘reacionárias’. E ainda há em muitos países a oposição, revestida de teorizações e nenhuma prática, contra a criação de filhos biológicos ou adotivos por casais homoparentais.
Assim como o sexo foi dissociado da reprodução, as funções paterna e materna divergem do sexo biológico de quem cria uma criança. Ambas são exercidas independentemente do sexo do cuidador. Ou de quantas pessoas, e de que sexo biológico, constituem ou possam constituir uma família do século XXI. Sem dúvida com a necessidade de ocasionais intervenções mais bruscas da lei paterna. Mas com a necessária predominância da função materna enquanto continente e limite, contorno que possibilite a singularidade, pois jamais houve ou haverá dois seres humanos iguais.
Referências
ARÁN, M. Feminilidade: uma abertura para a diferença. In: ______. (Org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos; Contra Capa, 2003. [ Links ]
ARÁN, M. Políticas do desejo na atualidade: a psicanálise e a homoparentalidade. In: PRATA, M. R. (Org.). Sexualidades. Rio de Janeiro: Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos; Contra Capa, 2010. [ Links ]
ARÁN, M. Transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro: UFRJ, v. IX, n. 1, p. 49-63. jan.-jun. 2006. [ Links ]
COSSAC, C. Farnese (objetos): Charles Cossac. São Paulo: Cossac Naify, 2005. [ Links ]
FREUD, S. Three essays on sexuality (1905). In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. VII. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978. [ Links ]
MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND (MASP). Brasil: psicanálise e modernismo. São Paulo, 2000. Catálogo de exposição, 9 out.-28 nov. 2000. [ Links ]
MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND (MASP). Histórias da infância. São Paulo, 2016. Catálogo de exposição, 08 abr.-31 jul. 2016. [ Links ]
PLASTINO, C. A. Vida, criatividade e sentido no pensamento de Winnicott. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br
Recebido em: 15/10/2016
Aprovado em: 30/10/2016
SOBRE O AUTOR
Anchyses Jobim Lopes
Médico.
Bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ. Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Transexualidades e Psicanálise do CBP-RJ.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.